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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GESTÃO DE ENSINO
DA EDUCAÇÃO BÁSICA (PPGEEB)

TEXTOS PARA A DISCIPLINA


FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E METODOLÓGICOS DA
EDUCAÇÃO PARA NEGROS NO BRASIL

Prof. Dr. Rosenverck Estrela Santos (Organizador)

São Luís/MA
2023
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GESTÃO DE ENSINO
DA EDUCAÇÃO BÁSICA (PPGEEB)

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO PARA


NEGROS NO BRASIL

ANO: 2023

PROFESSOR: ROSENVERCK ESTRELA SANTOS

CARGA HORÁRIA: 60H/A

1. EMENTA

O processo histórico de escolarização dos negros no Brasil. O mito da democracia racial


no contexto educacional. Representações sociais e estereótipos dos negros nos livros
didáticos. Textos legais sobre a Educação para a população negra. Procedimentos e
recursos de ensino para ambientes escolares de população negra.

2. OBJETIVO GERAL

Compreender os fundamentos históricos da educação da população negra no Brasil,


destacando as relações étnico-raciais desiguais, bem como as lutas e movimentos de
resistência ao racismo, discutindo a função social da educação e da escola, no contexto
das reproduções ideológicas racistas e das práticas emancipatórias e antirracistas.

3. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 Entender as especificidades das relações étnico-raciais no Brasil;


 Identificar os processos históricos de constituição das desigualdades étnico-
raciais no Brasil;
 Verificar as organizações e os movimentos de combate ao racismo e luta pelo
direito a educação da população negra;
 Discutir a função social da Educação e da Escola na reprodução ou
transformação das relações étnico-raciais.
 Desenvolver competências e habilidades no planejamento e na elaboração de
procedimentos de ensino no contexto de educação para negros

4. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

UNIDADE I: TEORIAS RACIAIS E ESPECIFICIDADE DA FORMAÇÃO


SOCIAL BRASILEIRA

 Especificidades das relações étnico-raciais no Brasil;


 Construção histórica das desigualdades nas relações étnico-raciais brasilerias.
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UNIDADE II: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL:


eurocentrismo, identidade negra e escola

 Relações étnico-racial no Brasil e a função social da educação e da escola;


 Diversidade étnico-racial e currículo

UNIDADE III: MOVIMENTO NEGRO E AS LEIS ANTIRRACISTAS

 A luta do movimento negro pela educação


 As leis antirracistas na história do Brasil
 A lei 10.639 e seus impactos na educação
 Políticas antirracistas e igualdade racial

UNIDADE IV: PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO


PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAS

 Competências e habilidades no planejamento e na elaboração de procedimentos


de ensino no contexto de educação para negros;
 Práticas de ensino e relações étnico-raciais;
 Metodologias antirracistas para a educação dos negros e negras no Brasil

5. METODOLOGIA DE ENSINO

 Exposições orais dialogadas;


 Leitura e discussão de textos;
 Reflexão, análise e síntese conjunta sobre os assuntos que compõem o conteúdo do
curso;
 Exibição e análise de vídeos e filmes

6. AVALIAÇÃO

A avaliação ocorrerá de forma processual e flexível, podendo incluir trabalhos


individuais e em grupos por meio de textos em formato de resenha, artigos, ensaios,
resumos e fichamentos, bem como apresentação em forma de seminários. Além disso,
consideraremos assiduidade, pontualidade, participação crítica e zelo pelos trabalhos e
atividades realizadas.

7. REFERÊNCIAS

BARBOZA, A. P.; DE CARVALHO FREIRE, E. O jogo na (re)educação das relações


étnico-raciais: que história é essa? Revista História Hoje, [S. l.], v. 12, n. 25, 2023.
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DOI: 10.20949/rhhj.v12i25.1015. Disponível em:


https://rhhj.emnuvens.com.br/RHHJ/article/view/1015. Acesso em: 26 jul. 2023.

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BRASIL Lei nº 1.639, de 09 de janeiro 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”, e dá outras providências.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-


Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília:
MEC/SEPPIR, 2004.

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MEC/SECADI, SEB, CNE/CEB, 2012.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena”.

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional.

BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação das Relações étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
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ANPED, 2005

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Paulo: Selo Negro, 2003
RAÇA E OS ESTUDOS DE RELAÇÕES
RACIAIS NO BRASIL

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

RESUMO
A partir de uma história abreviada dos estudos de relações raciais no Brasil, o autor busca
refletir se é legítima, do ponto de vista ético ou científico, a utilização do conceito de raça nos
trabalhos de intelectuais e cientistas sociais brasileiros. Conclui pela imprescindibilidade e
potencial crítico daquele conceito, nos dias de hoje, como forma de identidade social do povo
negro, desde que concebido sociologicamente e em contraponto à noção errônea de raça
biológica, que fundamenta as práticas de discriminação.
Palavras-chave: relações raciais; conceito de raça; ciências sociais brasileiras.

SUMMARY
Following a brief history of race relations studies in Brazil, the author questions whether the
use of a race concept by Brazilian social scientists and intellectuals is legitimate from an ethical
or scientific point of view. The article argues that currently the concept not only is crucial but
also holds a significant critical potential as a form of social identity among Black people,
insofar as it is conceived sociologically, as opposed to the erroneous biological notion of race,
which has bolstered discrimination practices.
Keywords: race relations; race concept; Brazilian social sciences.

No Brasil, uma questão inquieta muitos intelectuais e cientistas


sociais: é legítimo, quer do ponto de vista ético, quer do ponto de vista
científico, utilizar o conceito de "raça" nos nossos trabalhos? A questão, é
claro, tem uma história. No século passado, não havia dúvidas de que as
"raças" eram subdivisões da espécie humana, grosseiramente identificadas
com as populações nativas dos diferentes continentes e caracterizadas por
particularidades morfológicas tais como cor da pele, forma do nariz, (1) Segundo Appiah (1997, p.
33), racialismo é a doutrina
textura do cabelo e forma craniana. Juntavam-se a tais particularidades segundo a qual "existem ca-
físicas características morais, psicológicas e intelectuais que, supostamente, racterísticas hereditárias, pos-
suídas por membros da nossa
definiam o potencial das raças para a civilização. Essas doutrinas, conside- espécie, que nos permitem di-
vidi-los num pequeno conjun-
radas científicas, que Appiah chama de racialismo1, serviram para justificar to de raças, de tal modo que
todos os membros dessas ra-
diferenças de tratamento e de estatuto social entre os diversos grupos ças compartilham, entre si, cer-
tos traços e tendências, que
étnicos presentes nas sociedades ocidentais e americanas, conduzindo, eles não têm em comum com
membros de nenhuma outra
quase sempre, a um racismo perverso e desumano, genocida, às vezes, raça".

JULHO DE 1999 147


RAÇA E OS ESTUDOS DE RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

mas outras vezes condescendente e paternalista, como o manifestado por


Nina Rodrigues2, ele mesmo ogã de um terreiro de candomblé na Bahia. (2) Nina Rodrigues (1945
[1933]), médico, foi o primeiro
A partir do começo do século XX, com o crescente prestígio das teorias a estudar sistematicamente a
cultura dos africanos trazidos
mendelianas, que relegaram as classificações morfológicas a aproximações para o Brasil, como meio de
grosseiras, o conceito de "raça" perdeu importância científica, sendo decifrar-lhes a linhagem. Tor-
nou-se, assim, um pioneiro dos
parcialmente abandonado pela biologia. estudos antropológicos afro-
brasileiros. Para uma aprecia-
No século XIX, porém, as teorias raciais sustentaram diversas ideo- ção de sua obra, ver Corrêa,
1982.
logias nacionais e nacionalistas3, estando na base da legitimação dos
Estados-nações europeus. Tempos depois, principalmente nas décadas de (3) Muitas vezes, a equação
"uma língua = um povo = uma
1920 e 1930, o conceito de raça e o racialismo passaram a ser largamente raça = uma nação" serviu de
utilizados por Estados nacionais com aspirações imperialistas, gerando as base para reivindicar a criação
de um Estado. Ver Anderson,
tragédias que todos conhecemos. Em grande parte pelas conseqüências 1992.

tão nocivas geradas pelo conceito, a reação das forças esclarecidas,


sobretudo dos cientistas (biólogos, antropólogos e sociólogos), foi a de
renegá-lo peremptoriamente, dado que tal conceito não se refere a algo
que exista no mundo biológico. Ou seja, não existem subdivisões da
espécie humana que possam ser, de modo inequívoco, identificadas pela
genética e às quais correspondam qualidades físicas, psicológicas, morais
e intelectuais distintas. As diferenças morais e intelectuais entre os grupos
humanos (populações razoavelmente estáveis, num dado território) só
poderiam ser cientificamente explicadas, portanto, por diferenças cultu-
rais. Os conceitos de "população", em biologia, e de "etnia", em ciências
sociais, deveriam então substituir o conceito de "raça", ele mesmo trans-
formado, doravante, em tropo para desatualização científica ou racismo,
tout court.
No Brasil, logo no início do século XX, a construção da nacionalidade
foi positivamente afetada pelo descrédito do conceito de raça, o qual
representou, sempre, um enorme estorvo para os construtores da nação,
dada a incongruência entre a importância dos mulatos e mestiços na vida
social e os malefícios que as teorias racialistas atribuíam à hibridização. Com
o aparição de Casa-grande & senzala, em 1933, iniciou-se uma grande
mudança no modo como a ciência e o pensamento social e político
brasileiros encaravam os povos africanos e seus descendentes, híbridos ou
não. Gilberto Freyre, ao introduzir o conceito antropológico de cultura nos
círculos eruditos nacionais e ao apreciar de modo profundamente positivo
a contribuição dos povos africanos à civilização brasileira, foi um marco do
(4) As teorias racialistas de Nina
deslocamento e do desprestígio que sofreram, daí em diante, o antigo Rodrigues e de Cesare Lom-
broso gozaram ainda de um
discurso racialista de Nina Rodrigues e, sobremodo, a continuada influência certo prestígio, até meados
deste século, nas escolas de
que a escola de medicina legal italiana ainda exercia nos meios médicos e direito do país, onde a moder-
na sociologia custou a pene-
jurídicos nacionais 4 . trar. A modernidade trazida por
Freyre, ao contrário, foi rapi-
De certo modo, a modernidade brasileira, seja nas ciências sociais — damente assimilada pela esco-
la baiana de antropologia soci-
que tiveram em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Caio al, que sempre reivindicou a
Prado Jr. (1965 [1937]) seus primeiros expoentes —, seja na literatura linhagem intelectual de Nina
Rodrigues, tais como Manuel
regionalista — expressa por Jorge Amado (1933, 1935), José Lins do Rego Querino (1938), Arthur Ramos
(1937, 1956), Edison Carneiro
(1934, 1935) e outros —, seja na indústria cultural emergente — erudita ou (1948), Thales de Azevedo
(1966 [1955]) e Vivaldo da Cos-
popular —, encontrou um destino nacional comum na superação do ta Lima (1971).

148 NOVOS ESTUDOS N.° 54


ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES

racialismo e na valorização da herança cultural em uso por negros, mulatos


e caboclos brasileiros.
Não é de estranhar, portanto, que nas ciências sociais brasileiras o
conceito de raça, além de exprimir a ignorância daqueles que o emprega-
vam, denotava também seu racismo. "Raça" passou a significar, entre nós,
apenas "garra", "força de vontade" ou "índole", mas quase nunca "subdivi-
sões da espécie humana", as quais passaram a ser designadas, apenas, pela
cor da pele das pessoas: branca, parda, preta etc. Cores que vieram a ser
consideradas realidades objetivas, concretas e inquestionáveis, sem cono-
tações morais ou intelectuais, as quais — quando existentes — eram
reprovadas como "preconceitos".
É muito interessante notar como este ideário anti-racialista se entra-
nhou na maneira de ser brasileira. Aliás, a percepção de que para os
brasileiros as raças não existem e de que, aqui, o que importa em termos de
oportunidades de vida é a classe social de alguém tornou-se lugar-comum.
Na verdade, dada a aceitação tão ampla e profunda de tal ideário, a grande
questão é saber por que o anti-racialismo se viu sob ataque nos últimos
anos, sofrendo a crítica sistemática dos movimentos negros e de alguns
cientistas sociais. A resposta a tal questão talvez nos esclareça por que o
conceito de "raça" voltou a ser importante para as ciências sociais deste país.
Examinemos esse amplo consenso. Se perguntássemos a um bom
brasileiro, aquele que adere a este ideário, por que hoje se fala em "raça" no
Brasil, talvez ele não hesitasse em culpar a influência norte-americana por
isso5. Tal resposta estaria em sintonia com o que os brasileiros pensam, (5) Ironicamente, foi um brasi-
lianista, Charles Wagley, um
desde, pelo menos, Gilberto Freyre: raça é uma invenção estrangeira, ela dos primeiros a atribuir a influ-
ências estrangeiras o racismo já
mesma sinal de racismo, inexistente para o povo brasileiro. Esta resposta observável nas grandes cida-
tem um traço que eu gostaria de realçar, qual seja, a negação do racismo e des brasileiras nos anos 1950.
"Os observadores, tanto brasi-
da discriminação racial existentes no país, razão pela qual os brasileiros leiros quanto estrangeiros, têm
a impressão de que ao mesmo
preferem falar, por exemplo, em preconceito — a atitude equivocada, tempo que o Ocidente intro-
duz no Brasil suas técnicas e
individual, de preconceber antes de conhecer os fatos ou as pessoas — a processos industriais introduz
também suas atitudes e teorias
falar em discriminação — o ato de discriminar. Ou seja, quero realçar o racistas" (Wagley, 1952, p. 165).
seguinte ponto: no Brasil, o ideário anti-racialista de negação da existência
de "raças" fundiu-se rapidamente com uma política de negação do racismo
como fenômeno social. Entre nós existiria apenas "preconceito", ou seja,
percepções individuais equivocadas, que tenderiam a ser corrigidas na
continuidade das relações sociais6. (6) Ao contrário, quando o
"preconceito racial" é concebi-
Se, como nos lembra Appiah (1997), o racialismo não implica do de modo forte — como
virulento — se diz que, entre
necessariamente racismo, com melhor razão o anti-racialismo não significa, nós, existe apenas discrimina-
na prática, anti-racismo. Aquilo que designo pelo termo "racismo" denota ção, e não preconceito. Um
bom exemplo desta postura
sempre três dimensões: uma concepção de raças biológicas (racialismo); encontra-se na Introdução à 2ª
edição de Brancos e pretos na
uma atitude moral de tratar diferentemente membros de diferentes raças7; Bahia, de Pierson (1971 [1942]).

uma posição estrutural de desigualdade social entre as raças, oriunda deste (7) Erroneamente, Appiah
(1997) reduz o racismo a essas
tratamento. Ora, é claro que a negação da existência das raças pode subsistir duas primeiras dimensões.
pari passu ao tratamento discriminatório e à reprodução da desigualdade
social entre as raças, desde que se encontre um tropo para as raças. Foi o
que aconteceu no Brasil, como veremos.

JULHO DE 1999 149


RAÇA E OS ESTUDOS DE RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

Anti-racialismo e anti-racismo nas ciências sociais brasileiras

A redução da agenda anti-racista ao anti-racialismo foi um fenômeno


mundial. Tal consenso, já formado nas ciências sociais da Europa e Estados
Unidos, foi primeiro trazido ao Brasil por Freyre e depois difundido, na
prática sociológica e antropológica, pelos primeiros cientistas sociais a
exercerem seu ofício no país. Devemos, assim, a Donald Pierson (1971
[1942]), então estudante de doutorado em Chicago, sob a orientação de
Robert Park, a formulação sociológica da tese de que o Brasil seria uma
"sociedade multirracial de classes". Com isto Pierson queria dizer, antes de
mais nada, que não havia barreiras ao convívio e à mobilidade sociais entre
brasileiros de diversas origens étnico-raciais que fossem atribuíveis à "raça",
em si, sendo as barreiras existentes mais bem compreendidas como
decorrentes da ordem econômica e cultural8. Tomava como evidências de (8) Em Sobrados e mocambos,
sua tese o convívio social entre brancos, mulatos e pretos na Bahia e o fato Gilberto Freyre (1936) insistira
neste ponto.
de se poder encontrar negros e mulatos em todos os círculos sociais de
Salvador.
A perfeita sintonia entre a tese piersoniana e o senso comum
nacional foi lembrada, de modo irônico, por Arthur Ramos, na Introdu-
ção brasileira, datada de 1943, ao livro de Pierson (1971, p. 69): "Mas
cumpre logo registrar que, utilizando-se dos seus métodos objetivos de
estudo das relações humanas, Pierson chega às mesmas conclusões que
estavam admitidas, vamos dizer, tradicionalmente". Tal consenso refere-
se ao fato de que, no Brasil, o sistema de castas da escravidão (em que
as oportunidades de vida, o prestígio e o poder de senhores, libertos e
escravos estavam predefinidos) não dera lugar, na moderna sociedade
de classes (isto é, baseada na competição de indivíduos em mercados),
a grupos sociais fechados, definidos a partir de uma identidade racial.
Ou, dito de outra maneira, a identificação social baseada em raça não
passara a definir as oportunidades de vida das pessoas, quer em termos
econômicos, quer em termos de honra social, quer em termos de poder.
Esta era uma afirmação forte, diante das evidências de desigualdades tão
gritantes que inspiraram o seguinte comentário de Robert Park, que
visitara Salvador dois anos antes de Pierson iniciar seu trabalho de
campo naquela cidade:

Em todo caso, para o estrangeiro que na Bahia percorra uma das


elevações onde moram os ricos, é uma experiência um tanto
bizarra ouvir, vindo dentre as palmeiras dos vales vizinhos, onde
os pobres moram, o insistente rufar dos tambores africanos. Tão
estreitas são as distâncias espaciais que separam a Europa situada
nas elevações da África situada nos vales, que é difícil perceber a
amplitude das distâncias sociais que as separam (apud Pierson,
1971, p. 84).

150 NOVOS ESTUDOS N.° 54


ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES

Na defesa de tese tão forte, Pierson usou constantemente a categoria


nativa de "cor", que substituía, na sociedade local, o termo "raça", como
evidência da ausência de grupos sociais que pudessem ser referidos com
precisão como "raciais", ou seja, grupos que fizessem uso, na vida social e
política, de identidades raciais.
Da clareira aberta por Pierson, vale destacar dois caminhos diferentes
que foram seguidos. O primeiro, de maior interesse para a antropologia
social, foi trilhado principalmente por aqueles que procuraram desvendar as
"raças sociais"9, isto é, as diferentes formas de classificação racial emprega- (9) Charles Wagley e Marvin
Harris (1958, p. xv) cunharam
das em sociedades pluriétnicas. Thales de Azevedo (1996 [1955], p. 34), por a expressão: "Neste estudo,
exemplo, elucidou que a "cor", no Brasil, era mais que pigmentação: além quando tratamos de 'raça', es-
tamos falando de 'raça social,
de outros traços físicos (textura do cabelo, formato do nariz e dos lábios), da maneira como membros de
uma sociedade classificam-se,
incluía marcas não corporais, tais como vestimenta, modo de falar, boas uns aos outros, segundo carac-
terísticas físicas, e não de con-
maneiras etc. 10 ceitos biológicos de raça"'. Ver,
também, Harris e Kottak, 1963.
Os estudos coordenados por Azevedo e Wagley também contribuí-
(10) Nas palavras de Azevedo
ram para fixar a tese de que haveria em operação no Brasil um processo (1996 [1955], p. 34): "Aparen-
temente esses vocábulos [bran-
de embranquecimento, se não em termos biológicos, como queria a antiga co, preto, mulato, pardo, mo-
antropologia racialista, ao menos social. Ou seja, haveria uma tendência reno e caboclo] descrevem ti-
pos físicos determinados; na
dos negros e mulatos em ascensão social a se transformar em socialmente verdade o sentido dos mesmos
é socialmente condicionado,
brancos, já que a "cor" significava mais que simples pigmentação. Azeve- muito embora basicamente re-
lacionado com os traços raci-
do, por exemplo, já em 1953, em Les élites de couleur, cita Guerreiro ais, especialmente a cor da
pele, o cabelo e as formas
Ramos, que assumia papel de destaque na liderança do movimento negro faciais". Ver, também, Azeve-
do, 1966.
brasileiro:

... o negro brasileiro pode branquear-se, na medida em que se eleva


economicamente e adquire os estilos comportamentais dos grupos
dominantes. O peneiramento social brasileiro é realizado mais em
termos de cultura e de status econômico do que em termos de raça
(apud Azevedo, 1996, p. 35)11. (11) De fato, na 1a edição, de
1953, em francês, Azevedo cita
a primeira sentença da frase de
Ramos, mas sem identificá-lo,
o que fará apenas na 1a edição
brasileira, de 1955, quando dá
Oracy Nogueira (1985 [1954]), por seu turno, argumentou que no a referência completa da en-
Brasil era a marca da cor (a aparência física) que contava em termos de trevista de Ramos. Cito-a, como
vêem, pela 2a edição brasilei-
distinção social, e não a origem biológica (raça), como nos Estados Unidos. ra, de 1996.

Mais tarde, será apoiado nestes estudos que Carl Degler (1991 [1971])
formulará a famosa tese do "mulato como válvula de escape", segundo a
qual a ascensão social dos mulatos e mestiços resultava na sua cooptação
por um regime de desigualdade social, privando os negros de uma liderança
política mais preparada e educada.
De um modo geral, os estudos dos sistemas classificatórios difundiram
a idéia de que no Brasil não há uma regra clara de filiação racial, como a
hipodescendência norte-americana, mas que, ao contrário, a classificação é
feita pela aparência física da pessoa. Esses estudos reforçaram muito a
conclusão de Pierson a respeito do caráter das relações raciais no Brasil.
Como disse Harris:

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RAÇA E OS ESTUDOS DE RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

Um brasileiro nunca é meramente um "branco" ou um "homem de


cor"; ele é um homem branco rico e bem-educado ou um pobre e mal-
educado homem branco; um homem de cor rico e educado ou um
pobre e mal-educado homem de cor. O produto desta qualificação pela
educação e pelos recursos financeiros determina a identidade de
classe de alguém. É a classe e não a raça de uma pessoa que determina
a adoção de atitudes subordinadas ou superordinadas entre indivídu-
os específicos, em relações face a face. [...] Não há grupos raciais contra
os quais ocorra discriminação. Há, ao contrário, grupos de classe. A
cor é um dos critérios da identidade de classe; mas não é o único
critério (Harris, 1967, p. 6l).

O segundo caminho, mais propriamente sociológico, foi aberto pela


contestação, explícita ou não, do conceito de classe utilizado por Pierson e
depois por Harris, segundo o qual classe significava, a um só tempo, cor,
posição de status e posição econômica. Contestou-se, também, a sua visão
mais geral da mudança social no Brasil. Florestan Fernandes (1955),
analisando a passagem da ordem escravocrata para a sociedade de classes,
chega à conclusão de que, em primeiro lugar, tal transição conservara, em
grande medida, o sentido hierárquico e a ordem racial da sociedade
escravocrata e, em segundo, que os negros foram integrados de um modo
subordinado e tardio à sociedade de classes, sendo o "preconceito de cor"
a expressão da resistência das classes dominantes brasileiras a se adequar à
nova ordem competitiva. Thales de Azevedo (1966 [1956]), por seu turno,
examinando a mesma transição e bastante influenciado por suas leituras de
Weber e Tönnies, interpreta a situação dos negros brasileiros como
correspondendo àquela de um Ständ (um estamento social), ou seja, um
grupo de prestígio em que a cor e a origem social restringem a mobilidade
social e as oportunidades de vida dos indivíduos.
Presente em ambos os autores está a idéia de que a sociedade
brasileira não é, para ser exato, uma sociedade de classes no sentido
weberiano, ou seja, uma sociedade de mercados, em que indivíduos livres
competem entre si e se associam em busca de oportunidades de vida, de
poder e de prestígio, mas sim uma sociedade ainda hierarquizada em
grupos, cuja pertença é atribuída pela origem familiar e pela cor.
Dos estudos sociológicos e antropológicos dos anos 1950 e 1960
ficaram, portanto, algumas contribuições importantes e outros tantos mal-
entendidos, que a pesquisa posterior buscou reinterpretar. Vamos aos mal-
entendidos. Primeiro, ficou a idéia de que no Brasil não existem raças, mas
cores, como se a idéia de raça não estivesse subjacente à de "cor" e não
pudesse ser, a qualquer momento, acionada para realimentar identidades
sociais; segundo, formou-se o consenso de que no Brasil a aparência física
e não a origem determinaria a cor de alguém, como se houvesse algum
meio preciso de definir biologicamente as raças, e todas as formas de
aparências não fossem, elas mesmas, convenções; terceiro, criou-se a falsa

152 NOVOS ESTUDOS N.° 54


ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES

impressão de que no Brasil não se poderia discriminar alguém com base REFERÊNCIAS
na sua raça ou na sua cor, uma vez que não haveria critérios inequívocos Adorno, Sérgio. "Discrimina-
ção racial e justiça criminal em
de classificação de cor; quarto, alimentou-se a idéia de que os mulatos e São Paulo". Novos Estudas. São
os negros mais claros e educados seriam sempre economicamente absor- Paulo: Cebrap, nº 43, novem-
bro de 1995.
vidos, integrados cultural e socialmente e cooptados politicamente pelo Amado, Jorge. Cacau. Rio de
establishment branco; quinto, formou-se o consenso de que a ordem Janeiro: Ariel, 1933.
hierárquica racial, ainda visível no país, seria apenas um vestígio da ordem . Jubiabá. Rio de Ja-
neiro: José Olympio. 1935.
escravocrata em extinção.
Anderson, Benedict. Imagined
communities. London: Verso,
1992.
Appiah, Kwame A. Na casa de
A retomada do conceito de raça meu pai, a África na filosofia
da cultura. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.

. "Race, culture, iden-


Foi esse conjunto de crenças, somado a um anti-racialismo militante, tity: misunderstood conecti-
ons", 1997a (mimeo).
que passou a ser conhecido como "democracia racial". Nos anos da ditadura
Azevedo, Thales de. Les élites
militar, entre 1968 e 1978, a "democracia racial" passou a ser um dogma, de couleur dans une ville brési-
lienne. Paris: Unesco, 1953.
uma espécie de ideologia do Estado brasileiro.
. As elites de cor, um
Ora, a redução do anti-racismo ao anti-racialismo e sua utilização para estudo de ascensão social. Sal-
negar os fatos da discriminação e das desigualdades raciais, crescentes no vador: Edufba, 1996 [1955].

país, acabaram por se tornar uma ideologia racista per se, ou seja, uma . "Classes sociais e
grupos de prestígio". Cultura e
negação da ordem discriminatória e das desigualdades raciais realmente situação racial no Brasil. Rio
de Janeiro: Civilização Brasi-
existentes. Foi justamente a função obscurecedora do anti-racialismo que leira, 1966 [1956].
passou a incomodar cada vez mais a população negra, sobretudo aquela Bairros, L. "Pecados no paraíso
racial: o negro na força de
fatia que nunca quis ser embranquecida, e referida, em nossa terminologia trabalho na Bahia, 1950-1980".
cromática, por palavras como "escuros", "morenos", "roxinhos" e tantas In: Reis, João (org.). Escravi-
dão e invenção da liberdade.
outras, que denotam alguma desvantagem. Esta tensão entre um ideário São Paulo: Brasiliense, 1988,
pp. 289-323.
anti-racista, que corretamente negava a existência biológica das raças, e uma
Bastide, Roger e Fernandes,
ideologia nacional, que negava a existência do racismo e da discriminação Florestan (orgs.). Relações ra-
ciais entre negros e brancos em
racial, acabou por se tornar insuportável para todos e insustentável pelos São Paulo. São Paulo: Unesco/
Anhembi, 1955.
fatos.
Carneiro, Edison. Candomblés
Pois bem, é justamente a partir daí que aparece a necessidade de da Bahia. Salvador: Secretaria
da Educação e Saúde, 1948.
teorizar as "raças" como o que elas são, ou seja, construtos sociais, formas
de identidade baseadas numa idéia biológica errônea, mas eficaz, social- Castro, Nadya A. e Guimarães,
Antonio S. A. "Desigualdades
mente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios. Se as raciais no mercado e nos lo-
cais de trabalho". Estudos Afro-
raças não existem num sentido estritamente realista de ciência, ou seja, se Asiáticos. Rio de Janeiro, nº
24, 1993, pp. 23-60.
não são um fato do mundo físico, são, contudo, plenamente existentes no
Corrêa, Mariza. Ilusões da li-
mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que berdade — A escola Nina Ro-
drigues e a antropologia no
orientam as ações dos seres humanos. Brasil. São Paulo: tese de dou-
torado, FFLCH-USP, 1982.
De onde surgem essas "raças sociais"? Sartre (1963 [1948]), no "Orfeu
negro", seu famoso ensaio de introdução à poesia da négritude, nos sugere Costa Lima, Vivaldo da. A fa-
mília-de-santo nos candom-
uma dialética de suplantação do racismo em que a assunção da idéia de raça blés jeje-nagôs da Bahia. Sal-
vador: dissertação de mestra-
pelos negros, caracterizada por ele como "racismo anti-racista", mas que eu do, UFBa, 1971.
chamaria tão-somente de "racialismo anti-racista", seria a antítese que, no Degler, Carl N. Neither black
nor white. Madison: University
futuro, poderia construir um anti-racismo sem raças. Ou seja, Sartre nos of Wisconsin Press, 1991 [1971].
chama a atenção para o fato de que não se pode lutar contra o que não
existe. Dizendo de outro modo, se os negros considerarem que as raças não

JULHO DE 1999 153


RAÇA E OS ESTUDOS DE RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

existem, acabarão também por achar que eles não existem integralmente Fernandes, Florestan. "Cor e
estrutura social em mudança".
como pessoas, já que é como raça que são parcialmente percebidos e In: Bastide, Roger e Fernan-
des, Florestan (orgs.). Relações
classificados por outros. raciais entre negros e brancos
em São Paulo. São Paulo: Unes-
Teleologias à parte, a sugestão de Sartre nos leva a considerar o fato co/Anhembi, 1955.
político de que as identidades apenas em parte são escolhidas pelos sujeitos, . A integração do ne-
ainda que assumidas mais ou menos plenamente. Ao fim e ao cabo, a gro na sociedade de classes.
São Paulo: Cia. Editora Nacio-
questão se resume em saber se há alguma chance de combater o racismo nal, 1965 (2 vols.).

quando se nega que a idéia de raça continua a diferenciar e privilegiar Freyre, Gilberto. Casa grande
& senzala: formação da famí-
largamente as oportunidades de vida das pessoas. lia brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de
Ora, no Brasil, a teorização de "raças", definidas como formas de Janeiro: Schmidt, 1933.
classificar e identificar que podem produzir comunidades, associações ou . Sobrados e mucam-
apenas modos de agir e pensar individuais, constitui para a sociologia o bos. Rio de Janeiro: Editora
Nacional, 1936.
instrumento apto a revelar condutas políticas e instituições que, ainda que Fry, Peter. "As muitas caras e
inadvertidamente, conduzem à discriminação sistemática e à desigualdade cores do Brasil". Jornal do Bra-
sil. Rio de Janeiro: caderno
de oportunidades e de tratamento entre grupos de cor. "Idéias", 01/03/97, p. 4.

A história mais recente deste conceito na sociologia brasileira data do Guimarães, Antonio S. A. Pre-
conceito e discriminação.
final dos anos 1970, quando Nelson do Valle e Silva (1978) e Carlos Queixas de ofensas e tratamen-
to desigual das negros no Bra-
Hasenbalg (1979), dois jovens estudantes de doutorado em diferentes sil. Salvador: A Cor da Bahia,
1998.
universidades americanas, um em Michigan, outro em Berkeley, defende-
ram suas teses problematizando o fenômeno das crescentes desigualdades Harris, Marvin. Padrões raci-
ais nas Américas. Rio de Janei-
sociais entre brancos e negros no país. Recuperavam, assim, os trabalhos ro: Civilização Brasileira, 1967.

de Roger Bastide e Florestan Fernandes (1955), Thales de Azevedo (1996 e Kottak, Conrad.
"The structural significance of
[1955]), Luiz de Aguiar Costa Pinto (1998 [1953]) e outros que, nos anos Brazilian categories". Sociolo-
gia. São Paulo, nº XXV, 1963,
1950, se debruçaram sobre as relações entre classes e grupos de cor no pp. 203-208.
Brasil. Ao contrário desses autores, contudo, Silva e Hasenbalg passaram e outros. "Who are
a demonstrar a tese de que tais desigualdades apresentavam um compo- the whites? Imposed census
categories and the racial de-
nente racial inequívoco, que não poderia ser reduzido às diferenças de mography in Brazil". Social
Forces, 72(2), 1993, pp. 451-
educação, renda, classe e, o que é decisivo, não poderia ser também 462.
diluído num gradiente de cor. Esses estudos de desigualdades raciais Hasenbalg, Carlos. Discrimi-
nação e desigualdades raciais
proliferaram, lançando novas luzes sobre a situação dos negros brasileiros no Brasil. Rio de Janeiro: Gra-
al, 1979.
em termos de renda, emprego, residência, educação, e são hoje comple-
mentados por estudos sobre as desigualdades de tratamento, isto é, as e Valle e Silva, Nel-
son do. Relações raciais no
discriminações raciais. É justo esta differentia specifica das desigualdades Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fun-
do, 1992.
de oportunidade e de tratamento que cumpre ao conceito sociológico de
"raça" abarcar.
Os estudos de desigualdades raciais12 têm, todos, uma metodologia (12) Alguns destes estudos são
os de Bairros (1988); Castro e
bem precisa, que consiste em geral na análise multivariada (a partir de Guimarães (1993); Lovell
(1989); Porcaro (1988); Telles
modelos mais ou menos sofisticados) de dados agregados, retirados das (1992).
estatísticas oficiais do governo brasileiro, principalmente censos e pesqui-
sas amostrais por domicílios. Com base nessas análises pôde-se demons-
trar, primeiro, que é possível e correto agregar os dados de cor existentes
em dois grupos (brancos e não-brancos), pois não há diferenças substan-
tivas entre os grupos não-brancos entre si (pardos e pretos, sobretudo) em
termos de qualquer variável importante (renda, educação, residência etc.);
ao contrário, a grande diferença encontrada é entre o conjunto destes
grupos e o grupo branco. Segundo, que, mesmo quando se esgotam as

154 NOVOS ESTUDOS N.° 54


ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES

variáveis de status e de classe social nos modelos explicativos (renda, Holanda, Sérgio B de. Raízes
do Brasil. Rio de Janeiro: José
escolaridade, naturalidade, local de residência etc.), persiste inexplicado Olympio, 1936.
um resíduo substantivo, que só pode ser atribuído à própria cor ou raça Lovell, Peggy. Income and ra-
cial inequality in Brazil. Gains-
dos indivíduos. ville: Ph.D. dissertation, Uni-
versidade da Flórida, 1989.
A interpretação desses resultados seguiu na direção de contestar as
teses já firmadas pelos estudos de comunidade, baseados na observação Nogueira, Oracy. "Preconceito
racial de marca e preconceito
participante, a saber: primeiro, ainda que diferenças de cor (o famoso racial de origem — Sugestão
de um quadro de referência
gradiente de cor) pudessem ser importantes para as chances ascensionais de para a interpretação do materi-
al sobre relações raciais no
um indivíduo, se tomadas em conjunto não se notava um gradiente de Brasil". In: Tanto preto quanto
branco: Estudos de relações
oportunidades correspondente ao gradiente de cor — do ponto de vista raciais. São Paulo: T. A. Quei-
roz, 1985 [1954].
estrutural, portanto, o sistema é muito mais polarizado do que deixava
transparecer a percepção dos indivíduos entrevistados nestes estudos —, e, Pierson, Donald. Negroes in
Brazil: a study of race contact
segundo, assim como não havia uma "válvula de escape" mulata, parecia in Bahia. Chicago: University
of Chicago Press, 1971 [1942]
que a forma de classificação racial influía nas oportunidades de vida das [Brancos e pretos na Bahia. São
Paulo: Cia. Editora Nacional,
pessoas, apesar de um eventual "embranquecimento". A interpretação de 1971].
Hasenbalg (1979) constrói-se no sentido de rejeitar a esperança expressa Pinto, Luis Aguiar Costa. O ne-
gro no Rio de Janeiro — Rela-
por Florestan Fernandes (1965) de que os negros poderiam ter uma ções de raças numa sociedade
em mudança. Rio de Janeiro:
integração tardia na sociedade de classes. Hasenbalg, ao contrário, afirma Cia. Editora Nacional, 1998
que a integração subordinada dos negros criou uma situação de desvanta- [1953].

gens permanentes, que o preconceito e a discriminação racial apenas Porcaro, R. M. "Desigualdade


racial e segmentação do mer-
tendiam a reforçar. Hasenbalg e Valle e Silva (1992), entretanto, parecem cado de trabalho". Estudos
Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro,
cada vez mais descontentes com a ausência de estudos microssociais que nº 15, 1988, pp. 171-207.
pudessem revelar os mecanismos pelos quais o sistema manteve-se polari- Prado Jr., Caio. A formação do
zado, apesar da aparente fluidez das relações raciais. Brasil contemporâneo — Colô-
nia. São Paulo: Brasiliense,
1965 [1937].
Alguns trabalhos e estudos realizados em empresas e em escolas
Querino, Manoel. Costumes
revelaram que esses mecanismos condensam-se em padrões normativos e africanos no Brasil. Rio de Ja-
valores fortemente arraigados na identidade nacional, acabando por esta- neiro: Civilização Brasileira,
1938.
belecer o lugar do negro no mercado de trabalho e na sociedade. O
Ramos, Arthur. As culturas ne-
principal desses mecanismos é, sem dúvida, o acesso e aproveitamento gras no Novo Mundo. Rio de
Janeiro: Casa do Estudante do
diferencial dos negros no sistema educacional, cuja titulação serve de base Brasil, 1937.
para uma estruturação hierárquica rígida, legitimada pela noção de mérito . O negro na civiliza-
ção brasileira. Rio de Janeiro:
individual. Casa do Estudante do Brasil,
1956.
Por outro lado, os estudos ainda pioneiros sobre a discriminação racial
no país tendem a ressaltar a importância de uma ordem estamental que Rego, José Lins do. Menino de
engenho. Rio de Janeiro: José
ainda orienta a interação entre brancos e negros, moldando o sentido e as Olympio, 1934.

expectativas da ação social (cf. Adorno, 1995; Ribeiro, 1995; Silva, 1998; . Moleque Ricardo.
Rio de Janeiro: José Olympio,
Guimarães, 1998). A legitimidade de diversas formas de violência e de 1935.
discriminação, que são práticas generalizadas de interação para parcelas Ribeiro, Carlos A. Costa. Cor e
criminalidade. Estudo e análi-
significativas da população, acaba, de fato, por limitar o exercício da plena se da Justiça no Rio de janeiro
(1900-1930). Rio de janeiro:
cidadania, tornando bastante plausível, porque invisível, a discriminação UFRJ, 1995.
racial. Rodrigues, Raymundo Nina. Os
Tais práticas racistas são quase sempre encobertas para aqueles que as africanos no Brasil. São Paulo:
Cia. Editora Nacional, 1945
perpetuam por uma conjunção entre senso de diferenciação hierárquica e [1933].
informalidade das relações sociais, o que torna permissíveis diferentes tipos Sartre, Jean-Paul. "Orfeu Ne-
gro". In: Reflexões sobre o ra-
de comportamentos verbais ofensivos e condutas que ameaçam os direitos cismo. São Paulo: Difel, 1963
[1948].
individuais. Trata-se de um racismo às vezes sem intenção, às vezes "de

JULHO DE 1999 155


RAÇA E OS ESTUDOS DE RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

brincadeira", mas sempre com conseqüências sobre os direitos e as Silva, Jorge da. Violência e ra-
cismo no Rio de Janeiro. Nite-
oportunidades de vida dos atingidos. rói: Eduff, 1998.

Telles, Edward. "Residential


segregation by skin color in
Brazil". American Sociological
Review, nº 57, abril de 1992,
Conclusões pp. 186-197.

Valle e Silva, Nelson do. Whi-


te-Nonwhite Income Diferenti-
als: Brazil 1960. Ann Arbor:
A retomada do conceito de raça pela sociologia brasileira fez-se, PhD thesis, Universidade de
Michigan, 1978.
contudo, sem que se desse muita atenção às implicações teóricas e políticas
Wagley, Charles. "Comment les
do seu uso. Banido das ciências sociais desde o começo do século, classes ont remplacé les castes
dans le Brésil septentrional".
substituído no senso comum brasileiro, com sucesso, pela noção de cor, In: Wagley, Charles. Races et
classes dans le Brésil rural. Pa-
tomada como reprodução imediata de uma realidade objetiva e empírica, o ris: Unesco, 1952.
anti-racialismo começou, todavia, a chocar-se contra os fatos ululantes da e Harris, Marvin.
discriminação racial no Brasil. Esta redução do anti-racismo ao anti- Minorities in the New World.
Nova York: Columbia Univer-
racialismo acabou por contrariar os interesses e os valores do povo negro sity Press, 1958.
brasileiro, que ressuscitou — na sua luta contra o mito da democracia racial
— o conceito de "raça" tal como é usado no senso comum.
Essa postura do movimento negro e dos sociólogos tem recebido
críticas de outros cientistas sociais (cf. Harris e outros, 1993; Appiah, 1997a;
Fry, 1997), descontentes com a reintrodução do conceito biológico de raça
nas ciências sociais e na política brasileiras. Têm sido poucas (cf. Appiah,
1997) até agora as tentativas teóricas mais consistentes de retirar a funda-
mentação biológica do conceito de raça, dotando-o de um significado
propriamente sociológico, relacionado a uma certa forma de identidade
social.
Foi por esta razão que coloquei a pergunta: é legítimo, quer do ponto Recebido para publicação em
de vista ético, quer do ponto de vista científico, utilizar o conceito de "raça" 24 de abril de 1999.

nos nossos trabalhos? Espero ter demonstrado nestas páginas, através de Antonio Sérgio Guimarães é
professor do Departamento de
uma história abreviada dos estudos de relações raciais no Brasil, a impres- Sociologia da FFLCH-USP. Pu-
blicou nesta revista "Racismo e
cindibilidade do conceito de raça para os brasileiros de hoje. Tal necessida- anti-racismo no Brasil" (nº 43).
de prende-se ao fato de que, justo por termos construído uma sociedade
anti-racialista, o conceito de "raça" parece único — se concebido sociologi-
camente — em seu potencial crítico: por meio dele, pode-se desmascarar o Novos Estudos
persistente e sub-reptício uso da noção errônea de raça biológica, que CEBRAP
N.° 54, julho 1999
fundamenta as práticas de discriminação e tem na "cor" (tal como definida
pp. 147-156
pelos antropólogos dos anos 1950) a marca e o tropo principais.

156 NOVOS ESTUDOS N.° 54


AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO 45

CAPÍTULO

RACISMO E REPÚBLICA:
O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO
E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL

LUCIANA JACCOUD

INTRODUÇÃO

O
racismo nasce no Brasil associado à escravidão, mas é principalmente após
a abolição que ele se estrutura como discurso, com base nas teses de in-
ferioridade biológica dos negros, e se difunde no país como matriz para
a interpretação do desenvolvimento nacional. As teorias racistas, então largamente
difundidas na sociedade brasileira, e o projeto de branqueamento vigoraram até os
anos 30 do século XX, quando foram substituídos pela chamada ideologia da de-
mocracia racial. Nesse novo contexto, entretanto, a valorização da miscigenação e
do mulato continuaram propiciando a disseminação de um ideal de branqueamento
como projeto pessoal e social. Sua crítica só ganhou repercussão nas últimas décadas
do século XX, quando a denúncia da discriminação como prática social sistemáti-
ca, denunciada pelo Movimento Negro, somou-se às análises sobre as desigualdades
raciais entendidas não como simples produto de históricos acúmulos no campo da
pobreza e da educação, mas como reflexos dos mecanismos discriminatórios.
Este capítulo tentará recuperar os principais argumentos que permearam esse
debate, destacando o papel da ideologia do branqueamento e, posteriormente, da
democracia racial, como elementos formadores de um projeto nacional. Em um
46 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

século marcado pelo esforço de modernização do país, as visões hierárquicas do


social e a amplitude das divisões presentes na sociedade sustentaram um proces-
so de construção social e política bastante distante dos princípios que organizam
a cidadania no projeto de instituição de um Estado republicano e democrático.
Em um contexto de grande força do pensamento autoritário – que ganhou ex-
pressão máxima na obra de Francisco Campos, de Oliveira Vianna e da geração
de intelectuais autoritários dos anos 20, e esteve influente em praticamente todo
o século XX –, o diagnóstico de um país marcado pela desorganização social re-
forçou a busca de uma concepção de nação que afirmasse a unidade do povo e sua
identificação em torno de um conjunto integrado e harmonioso, no qual a questão
racial era sistematicamente negada. A desconstrução dessa leitura tem sido reali-
zada de forma integrada a um progressivo reconhecimento da complexidade dos
mecanismos de produção e reprodução da desigualdade racial, entre eles a ativa
operação dos mecanismos de discriminação racial. Procurar-se-á ressaltar, ainda,
que o debate nacional sobre o tema, nos últimos vinte anos, enfrentou também
o desafio de refletir sobre a questão da pobreza, que parece naturalizada no país,
inclusive em decorrência de seu componente racial. Por fim, pretende-se destacar
que o enfrentamento do problema no país implica na necessidade de integrar a
questão racial ao projeto democrático, onde os valores de igualdade na promoção
de oportunidades sejam sistematicamente reafirmados e reconhecidos.

2.1 A EMERGÊNCIA DAS INTERPRETAÇÕES RACISTAS DO DESENVOLVIMENTO


NACIONAL

O racismo é amplamente reconhecido como princípio ativo do processo de


colonização. Como lembra Boaventura de Souza Santos (2006), o colonialismo
assentou-se historicamente no racismo, que teve ali um papel de “princípio ma-
tricial de base”. Contudo, a valorização do homem branco e de sua cultura não
desaguou, no Brasil Colônia, na construção de um pensamento racista sistemati-
zado ou mesmo em um projeto de nação ancorado na afirmação da superiorida-
de racial. Segundo Skidmore, “os defensores da escravidão nunca, virtualmente,
recorriam a teorias de inferioridade racial”, e “antes do clímax da abolição da
escravidão no Brasil, em 1888, a maior parte da sua elite pouca atenção dava ao
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 47

problema da raça em si, bem como à relação entre as características raciais do


país e seu desenvolvimento futuro” (SKIDMORE, 1976, p. 12).
De fato, outros elementos – como o projeto missionário da Igreja Católica, o im-
perativo econômico face ao risco de ruína da economia nacional1 ou o próprio direito
de propriedade2 – também atuavam como importantes elementos legitimadores da
escravidão. Paralelamente, a importante presença de descendentes de africanos entre
a população livre brasileira fazia com que a elite nacional sustentasse a tese, já naquele
período, de que, apesar da escravidão, o país havia evitado o preconceito de raça.3
Contudo, se a elite colonial brasileira não organizou um sistema de discrimina-
ção legal ou uma ideologia racista que justificasse as diferentes posições sociais dos
grupos raciais, ela compartilhava um conjunto de estereótipos negativos em relação
ao negro que amparava sua visão hierárquica de sociedade. Nesse contexto, o ele-
mento branco era dotado de uma positividade que se acentuava quanto mais próxi-
mo estivesse da cultura européia. “Qualquer europeu ou americano que postulasse
a superioridade branca seria necessariamente bem recebido. Ele traria a autoridade
e o prestígio de uma cultura superior para idéias já existentes no Brasil” (COSTA,
1999, p. 373). Como destaca Hofbauer (2006), os estereótipos ligados à raça e o
ideal do branqueamento operaram ativamente enquanto vigorou a escravidão.
Contudo, a abolição não significou o início da desconstrução dos valores as-
sociados às “designações de cor”. Não apenas se observou a continuidade dos
fenômenos do preconceito e da discriminação racial, como esses foram fortaleci-
dos com a difusão das teses do chamado “racismo científico”. A adoção, pela elite
brasileira, de uma “ideologia racial” teve início nos anos 1870, tendo se tornado
amplamente aceita entre as décadas de 1880 e 1920.4 A disseminação das teses

1 Mesmo às vésperas da abolição, fazendeiros paulistas reafirmavam o argumento econômico na defesa


da escravidão. Como afirmou em carta um deles: “O meu grande argumento de escravista era que o corpo escra-
vo era o único com que podíamos contar para o trabalho constante e indispensável do agricultor” (apud CONRAD,
1975, p. 316).

2 Um exemplo da recusa de bases raciais para justificar a manutenção da escravidão e de sua defesa
como direito de propriedade é dado pelo Conselheiro Antônio Pereira Rebouças, cujos discursos na Câmara dos
Deputados são analisados por Mattos (2000).

3 “A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor, falando
coletivamente, nem criou, entre as duas raças, o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e opri-
midos”. Trecho de O abolicionista, de Joaquim Nabuco, citado por Skidmore (1976, p. 9).

4 Entre seus expoentes, pode-se citar Nina Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da Cunha.
48 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

racistas no Brasil e sua reconstrução na forma de uma ideologia racial ocorrem,


assim, no período final da escravidão, quando estava em curso o processo de
adaptação da sociedade à mudança do status jurídico dos negros.
A abolição também coincide com o nascimento da República (1889) e com a
disseminação das idéias de igualdade e cidadania que lhe são associadas. A coinci-
dência entre a expansão dos princípios republicanos e liberais e a adesão às for-
mulações racistas observadas nas Américas reflete a dificuldade então observada
para operar o direito individual numa sociedade fundamentalmente hierárquica.
Segundo Mattos, a emergência do conceito de raça permitiu a construção de
uma “contrapartida possível à generalização de uma concepção universalizante
de direitos do cidadão em sociedades que não reuniam condições políticas efeti-
vas para realizá-lo” (MATTOS, 2000, p. 12).
Efetivamente, a República não foi capaz de promover ações em defesa da am-
pliação das oportunidades da população negra.5 A formulação e consolidação da
ideologia racista ocorrida nesse período permitiu a naturalização das desigualdades
raciais que foram, assim, reafirmadas, em um novo ambiente político e jurídico.
Não mais separadas pelo direito de propriedade, pela história, religião ou cultura,
as raças se separariam por desigualdades naturais. O enfrentamento dessas desi-
gualdades seria, entretanto, identificado como uma exigência nacional, na medida
em que somente um país branco seria capaz de realizar os ideais do liberalismo e
do progresso. De fato, as desigualdades entre raças, agora interpretadas como in-
trínsecas às suas diferentes naturezas, determinariam as potencialidades individuais
e resvalariam para o cenário político e social onde a capacidade de participação dos
negros não poderia ser entendida a não ser com restrições. Ampliam-se os pre-
conceitos quanto à participação dos negros nos espaços públicos, acentuam-se os
mecanismos discriminatórios e fortalecem-se os estímulos à imigração européia.6

5 Ver a respeito em Carvalho (1996).

6 A ampla adesão da elite brasileira à tese da superioridade da raça branca nas últimas décadas do século
XIX é tratada em um vasto conjunto de trabalhos sobre o tema. Como citado em Hofbauer, é exemplo dessa men-
talidade a declaração do jurista e político Tavares Bastos, fundador da Sociedade Internacional de Imigração, segundo
o qual: “O homem livre, o homem branco, além de ser muito mais intelligente que o negro, que o africano boçal,
tem o incentivo do salário que percebe, do proveito que tira do serviço, da fortuna emfim que póde accumular
a bem de sua família. Há entre esses dous extremos, pois, um abysmo que separa o homem do bruto. [...] Cada
africano que se introduz no Brazil, além de afugentar o emigrante europeu, era em vez de um obreiro do futuro, o
instrumento cego, o embaraço, o elemento de regresso das nossas indústrias.” (apud HOFBAUER, 2006, p. 193).
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 49

O espectro de heterogeneidade que caracterizaria a população surge então


como elemento determinante na interpretação do desenvolvimento nacional.
Inspirada nas teorias “científicas” racialistas que emergiram na Europa desde a
primeira metade do século XIX, as teses adotadas no Brasil foram sendo, en-
tretanto, reinterpretadas. A aceitação da perspectiva de existência de uma hie-
rarquia racial e o reconhecimento dos problemas imanentes a uma sociedade
multirracial somaram-se à idéia de que a miscigenação permitiria alcançar a pre-
dominância da raça branca. A tese do branqueamento como projeto nacional
surgiu, assim, no Brasil, como uma forma de conciliar a crença na superioridade
branca com a busca do progressivo desaparecimento do negro, cuja presença
era interpretada como um mal para o país.7 À diferença do “racismo científico”, a
tese do branqueamento sustentava-se em um otimismo face à mestiçagem e aos
“povos mestiços”, reconhecendo, dessa forma, a expressiva presença do grupo
identificado como mulato, sua relativa mobilidade na sociedade da época e sua
possibilidade de continuar em uma trajetória em direção ao ideal branco.
Assim, no Brasil, o início da República não foi marcado pela construção de
uma dimensão política formuladora de ideais de igualdade e homogeneidade do
corpo social. Ao contrário, foi a teoria do branqueamento que pôde sustentar,
durante algumas décadas, um projeto nesse sentido. A idéia de que progresso do
país dependia não apenas do seu desenvolvimento econômico ou da implantação
de instituições modernas, mas também do aprimoramento racial de seu povo,
dominou a cena política e influenciou decisões públicas das últimas décadas do
século XIX, contribuindo efetivamente para o aprofundamento das desigualdades
no país, sobretudo, ao restringirem as possibilidades de integração da população
de ascendência africana.8 O projeto de um país moderno era, então, diretamente
associado ao projeto de uma nação progressivamente mais branca. A entrada dos
imigrantes europeus e a miscigenação permitiriam a diminuição do peso relativo
da população negra e a aceleração do processo de modernização do país.

7 “A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população


branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara exceção)
acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à
primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do ‘elemento superior’. Por isso mesmo, mais cedo
ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui” (VIANNA apud PNUD, 2005, p. 34).

8 Ver a respeito no capítulo 1 desse volume.


50 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

O ideal do branqueamento consolida-se nas décadas de 1920 e 1930,


mesmo com o progressivo enfraquecimento das “teorias deterministas da
raça”. As elites nacionais percebiam a questão racial de forma cada vez mais
positiva: para eles, o Brasil parecia branquear-se de maneira significativa, e
o problema racial se encaminhava para uma solução. É o que apontam, por
exemplo, os debates parlamentares que acompanharam a apresentação, ain-
da na década de 1920, de projetos de lei, na Câmara dos Deputados, visando
impedir a imigração de “indivíduos da cor preta”.9 Seus opositores reuniam
não apenas os que identificaram um teor racista nesses projetos, mas também
aqueles que os consideravam inócuos, pois a trajetória recente já assegurava
que o negro estava fadado ao desaparecimento no país em algumas décadas.10
Esse mesmo discurso é encontrado, ainda, nos debates da Assembléia Cons-
tituinte de 1934.

2.2 A DEMOCRACIA RACIAL E A REPRODUÇÃO DA DESIGUALDADE RACIAL: 1930-1970

A partir dos anos 1930, o Brasil assistiu ao progressivo desaparecimento do dis-


curso racista, quer no campo político quer nos esforços de interpretação do pro-
cesso de desenvolvimento nacional. Em seu lugar, emerge um pensamento racial
que destaca a dimensão positiva da mestiçagem no Brasil e afirma a unidade do
povo brasileiro como produto das diferentes raças e cuja convivência harmônica
permitiu ao país escapar dos problemas raciais observados em outros países. Mais
do que isso, o amalgamento das raças e a constituição de um povo e uma cultura
brasileira substituiriam o componente político da República, em seu molde clássico,
ancorado na igualdade dos cidadãos. Mais uma vez, não é o espaço político o local
em que se reafirmam, no país, os ideais de integração social e de alicerce da na-
ção. Ao mesmo tempo, se a democracia racial afirma-se como deslegitimadora da

9 Como cita Hofbauer: “No Congresso, debatiam-se não apenas formas de incentivo à imigração euro-
péia; foram também apresentados projetos que propunham a proibição da imigração de asiáticos e africanos. [...]
Ainda no final do Estado Novo, Getúlio Vargas justificaria a assinatura de um Decreto-Lei (1945) que devia estimu-
lar a imigração européia com as seguintes palavras: ‘[...] a necessidade de preservar e desenvolver, na composição
étnica da população, as características básicas mais desejáveis de sua ascendência’.” (2006, p. 213).

10 Ver a respeito em Skidmore (1976, p. 212-215).


CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 51

hierarquia social ancorada na identificação racial, ela não deixa de fortalecer o ideal
do branqueamento ao promover a mestiçagem e seu produto, o mulato.
Progressivamente, no decorrer das décadas de 1920 e 1930, a utilização do
conceito de raça na interpretação da sociedade brasileira vai perdendo força, e
as desigualdades entre grupos raciais passam a ser cada vez menos explicadas
por sua dimensão biológica, substituída pela dimensão cultural e social. Esse perí-
odo observa o recrudescimento do pensamento autoritário brasileiro, em para-
lelo à crítica sobre a viabilidade das instituições democráticas num país cujo povo
é caracterizado como atrasado, incapaz de ações que exijam discernimento e
submetido à manipulação das elites oligárquicas. Para a geração de intelectuais
autoritários dos anos 20, as elites políticas deviam ser substituídas por elites téc-
nicas. Azevedo Amaral, importante representante dessa geração, expressa com
clareza a necessidade de submeter o governo à orientação de uma elite bem
formada: “A própria natureza essencial da ação política é de ordem intelectual, se
molda pelo esforço da inteligência das minorias privilegiadas que se sobrepõem à
maioria inferior intelectualmente”.11
Mas a interpretação do problema racial passa a sofrer uma efetiva transforma-
ção com a disseminação da idéia da democracia racial como expressão da expe-
riência brasileira. Esse termo emerge na década de 1940, em artigos escritos por
Roger Bastide na imprensa nacional, mas impõe-se no debate nacional a partir da
divulgação da obra de Gilberto Freyre, na década de 1950 (cf. GUIMARÃES, 2002).
Assentada em uma interpretação benevolente do passado escravista e em uma visão
otimista da tolerância e da mestiçagem, a democracia racial reinventa uma história
de boa convivência e paz social que caracterizaria o Brasil. Todavia, cabe lembrar
que tal análise, ancorada na cultura, não implica na integral negação do caráter irre-
versível da inferioridade dos negros. Mesmo na obra de Gilberto Freyre, observa-se
a presença de elementos do pensamento racista prevalecente no início do século.
Como lembra Bastos, Freyre não escapa da caracterização de traços psicológicos
inerentes à raça ou à afirmação de superioridade dos negros chegados no Brasil,
face aos demais, devido a sua anterior mistura com a raça branca, em especial com
o sangue árabe. Ele reconhece, ainda, os benefícios do processo de branqueamento
da sociedade (BASTOS, 1993, p. 416-419). A idéia do branqueamento implícito na

11 Apud Pécaut (1989, p. 21).


52 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

formulação desse autor também é destacada por Hofbauer. Segundo Freyre, “Tal-
vez em nenhum outro país seja possível ascensão social mais rápida de uma classe
a outra: do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a ‘branco’ ou a
‘moreno’ ou ‘caboclo’” (FREYRE, 1936 apud HOFBAUER, 2006, p. 251).
Contudo, a democracia racial fornece uma nova chave interpretativa distinta para
a realidade brasileira: a recusa do determinismo biológico e a valorização do aspecto
cultural, reversível em suas diferenças. O progressivo desaparecimento do discurso
racista e sua substituição pelo mito da democracia racial permitiram a alteração dos
termos do debate sobre a questão racial no Brasil. A idéia de raça foi gradativamente
dando lugar, nas ciências sociais, à idéia de cultura, e o ideal do branqueamento foi
ultrapassado, em termos de projeto nacional, pela afirmação e valorização do “povo
brasileiro”. O fenômeno da miscigenação teria possibilitado a formação da nação, ul-
trapassando e fundindo os grupos raciais presentes em sua formação, e dando espaço
ao nascimento de uma nação integrada, mesmo que heterogênea.
A democracia racial passou de mito a dogma no período dos governos milita-
res. Em 1970, o Ministro das Relações Exteriores declara que “não há discrimina-
ção racial no Brasil, não há necessidade de tomar quaisquer medidas esporádicas
de natureza legislativa, judicial ou administrativa para assegurar a igualdade de
raças no Brasil” (apud TELLES, 2003, p. 58). De fato, a questão racial desaparece
do debate público nacional. É somente com o processo de redemocratização do
país que o tema das desigualdades raciais retorna à cena, mas largamente diluí-
do no debate sobre justiça social. Apoiada na interpretação do desenvolvimento
como a questão nacional maior, a temática da desigualdade se identifica quase
que exclusivamente com a da distribuição de renda.
Contudo, estereótipos e preconceitos raciais continuariam atuantes na socieda-
de brasileira durante todo o período, intervindo no processo de competição social
e de acesso às oportunidades, assim como influenciando no processo de mobilidade
intergeracional, restringindo o lugar social dos negros. Como mostrou Hasenbalg,
em seu estudo pioneiro de 1979, o racismo opera um mecanismo de desqualifi-
cação dos não-brancos na competição pelas posições mais almejadas. Ao mesmo
tempo, os processos de recrutamento para posições mais valorizadas no mercado
de trabalho e nos espaços sociais operam com características dos candidatos que
reforçam e legitimam a divisão hierárquica do trabalho, a imagem da empresa e
do próprio posto de trabalho. “A raça é assim mantida como símbolo de posição
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 53

subalterna na divisão hierárquica do trabalho e continua a fornecer a lógica para


confinar os membros do grupo racial subordinados àquilo que o código racial das
sociedades define como ‘seus lugares apropriados’” (HASENBALG, 1979, p. 83).
Contudo, o ideal da democracia racial impõe-se, entretanto, como hege-
mônico, vigorando praticamente sem contestação até o final dos anos 1980.12
Mas, desde o início daquela década, a questão racial passa a ganhar novamente
destaque no debate nacional. Dessa feita, não mais como explicação do retar-
do brasileiro em termos de desenvolvimento ou como fator de consolidação
da nação, mas como conseqüência de sua construção incompleta. Efetivamente,
durante todo o decorrer deste século, em que pesem importantes mudanças
sociais pelas quais passou o país, seja no campo da modernização da economia,
da urbanização, ou da ampliação das oportunidades educacionais e culturais, não
se observou uma trajetória de redução das desigualdades raciais. Apesar de seu
progressivo reconhecimento,13 as desigualdades raciais ainda eram largamente
interpretadas pela via da pobreza e como resultado de um acúmulo de carências
da população negra, e seu despreparo para participar do mercado de trabalho
moderno, que se consolidava gradativamente no país.

2.3 DESIGUALDADE RACIAL E DISCRIMINAÇÃO: A CRÍTICA AO MODELO DA


DEMOCRACIA RACIAL

A partir do final da década de 1970, a manutenção dos estereótipos e práticas


discriminatórias deixou de preocupar apenas o Movimento Negro14 e passou a
ser objeto cada vez mais freqüente da reflexão de pesquisadores dedicados aos
temas das desigualdades e da mobilidade social. Os estudos sobre mobilidade
social, inaugurados por Hasenbalg (1979), e que vêm se sucedendo desde então

12 Paralelamente, como lembra Guimarães (2002), nas Ciências Sociais, o processo de industrialização e
a modernização econômica que lhe está associada, ganhariam, desde os anos 1950, progressiva centralidade como
fator explicativo das transformações da sociedade brasileira. Incluem-se aí o fortalecimento das classes sociais e de
seus conflitos, face aos quais a questão racial perderia qualquer poder explicativo.

13 Sobre a literatura sociológica a respeito do tema racial nos anos 1950 e 1960, ver o capítulo 3 deste
volume.

14 Ver a respeito em Paulo (2002).


54 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

com relativa freqüência, têm sempre apontado para as mesmas tendências, em


que pese o uso de diferentes bases de dados e metodologias.15 Entre os negros,
observam-se menores índices de mobilidade ascendente, e essas dificuldades são
maiores nos oriundos de estratos mais elevados de renda. Esse último grupo
também é exposto a maiores possibilidades de mobilidade descendente. Esses
estudos apontam que os rendimentos derivados do trabalho são invariavelmen-
te menores entre os negros, em todos os estratos ocupacionais estudados. No
que diz respeito à situação dos negros e mestiços no mercado de trabalho, no
período 1930-1980, cabe lembrar que o processo de modernização econômica,
somada à valorização da mão-de-obra nacional que se seguiu ao fim da fase de
imigração massiva, deveriam ter beneficiado diretamente a mão-de-obra negra
do país. Contudo, não se observou no período significativa convergência dos
indicadores de renda e ocupação dos grupos branco e negro.
Como mostram Hasenbalg e Silva (1992), há um processo de competição
social que se desenvolve em etapas, acumulando desvantagens que impedem a
igualdade de chances. A cor, como critério de seleção no mercado do trabalho,
também varia segundo o perfil da ocupação. Aquelas ocupações mais voltadas ao
contato direto com o público estão mais suscetíveis à exclusão dos negros, ao
contrário de posições manuais. Também é forte a hipótese de que quanto mais
alta a ocupação está na hierarquia ocupacional, mais refratária à absorção de
negros. E de que quanto mais alto for o nível educacional exigido, maior será a
discriminação observada no mercado de trabalho.
Dos estudos dedicados à análise das desigualdades raciais no país não se in-
fere a ausência de mudanças na sociedade brasileira, mas sim a ausência de uma
mobilidade relativa dos negros. Examinando as desigualdades raciais entre as dé-
cadas de 1940 e 1990, conclui-se que a posição relativa dos negros e brancos na
hierarquia social não foi substancialmente alterada com o processo de cresci-
mento e modernização econômica. A industrialização não eliminou a raça como
fator organizador de relações sociais e oportunidades econômicas, nem reverteu
a subordinação social das minorias raciais. Pode-se observar, inclusive, a piora da
posição relativa dos negros nas posições superiores da estrutura de ocupações,

15 Pode-se citar, entre outros, Pastore (1982); Lovell (1989); Pastore e Silva (2000); Silva (2000) e Telles
(2003).
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 55

derivada, em grande parte, da crescente desigualdade de acesso de brancos e


negros no ensino superior.16
Os estudos sobre esses temas têm, assim, avançado de forma significativa.
Mas limites ainda são enfrentados. De um lado, existem dificuldades de se medir
o fenômeno da discriminação, seja porque suas manifestações e efeitos são múl-
tiplos, seja porque é difícil isolar seus efeitos nos indicadores de desigualdade.
De outro lado, a discriminação não atua isoladamente, mas em conjunto com
outros mecanismos, no processo de produção e reprodução da pobreza e da
restrição de oportunidades para os negros no país. Nesse sentido, um grupo
de fatores pode ser destacado como atuando nesse processo. Pode-se apontar
a estagnação econômica de regiões ou atividades onde a população negra está
mais representada; o acesso a serviços de baixa qualidade (especificamente rela-
cionados à educação) e piores redes sociais e de trabalho devido à concentração
dessa população em bairros dotados de menos recursos; as diferenças familiares
relacionadas ao acúmulo de capital humano; a limitada mobilidade observada na
sociedade brasileira em seu conjunto, impactando também a população negra.17
Efetivamente, pode-se afirmar que todos esses processos atuam sobre o quadro
de desigualdade racial no Brasil. Contudo, os esforços de pesquisas já realiza-
das sobre a temática racial têm mostrado, de forma recorrente, que, quando
isolados, esses fatores não conseguem explicar a totalidade das desigualdades
observadas. Porém, não há dúvidas de que uma parte importante dos fatores
que impedem a melhorias das condições de vida e oportunidades dos negros se
encontra ofertada em padrões limitados e insuficientes devido à naturalização
social da condição subalterna dessa população.
Assim, apesar de ser freqüentemente considerada como discriminação de
classe, a discriminação racial é um fenômeno presente na dinâmica social bra-
sileira. Operando na ordem da distribuição do prestígio e privilégios sociais,
os mecanismos raciais de discriminação atuam mesmo nos espaços sociais e

16 Telles (2003) destaca ainda que os segmentos brancos da população brasileira têm se beneficiado de
forma desproporcional da expansão do Ensino Superior ocorrida no país nas últimas duas décadas, o que vem
impactando na crescente desigualdade racial no topo da estrutura ocupacional.

17 Cabe lembrar que, em estudo de 1982, Pastore apontou que a mobilidade existente na sociedade
brasileira nos anos 1950 e 1960 seria suficientemente vigorosa para atenuar ou erradicar as desigualdades raciais.
Contudo, a estagnação econômica dos anos 1980 e 1990 voltou a fortalecer a tese de sua insuficiência.
56 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

econômicos mais modernos da sociedade. Esses mecanismos não apenas in-


fluenciam na distribuição de lugares e oportunidades. Reforçados pela própria
composição racial da pobreza, eles atuam naturalizando a surpreendente desi-
gualdade social deste país.
Em que pese o avanço das análises e a contínua ação de denúncia realizada
pelo Movimento Negro, ainda vige de forma recorrente o argumento de que,
no Brasil, há efetivamente em operação processos de preconceito e de discrimi-
nação, mas dirigidos aos pobres e não aos negros. Guimarães (2002, p. 67) ob-
serva que a freqüência com que esse argumento é usado indica a surpreendente
legitimidade que adquire no Brasil o preconceito de classe. O pobre não seria,
assim, portador de direitos no Brasil, independentemente da cor. Poderíamos,
então, levantar o argumento de que a legitimidade desse preconceito se assenta
exatamente no fato de que a maioria dos pobres é negra, e de que a imagem
do pobre no Brasil está diretamente associada à negritude. Nesse sentido, o
racismo, o preconceito e a discriminação operariam integrados a um importante
processo de naturalização da pobreza. Ao mesmo tempo, a pobreza opera sobre
a naturalização do racismo, exercendo uma importante influência no que tange à
situação do negro no Brasil.

2.4 O PERÍODO PÓS-CONSTITUINTE: ENTRE AS DESIGUALDADES SOCIAIS E AS


DESIGUALDADES RACIAIS

A elaboração da Constituição de 1988 foi fortemente marcada pelo debate


sobre a chamada dívida social, refletida na desigualdade que marcava a sociedade
brasileira, na parca distribuição de riqueza derivada do crescimento econômi-
co e na precária cobertura das políticas sociais. De fato, o combate à pobreza
e a promoção da democracia apareciam no discurso político oposicionista dos
anos 1980 – e, posteriormente, no discurso consagrado pelo texto constitucio-
nal – como as duas faces da mesma moeda. Neste discurso, definia-se a pobreza
como um processo de exclusão dos benefícios do desenvolvimento econômico
enquanto a cidadania era definida por uma dupla característica: a participação nas
decisões públicas e o acesso a direitos sociais. Direitos políticos e direitos so-
ciais seriam, pois, complementares. Viabilizar-se-ia, assim, o combate à situação
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 57

de exclusão sofrida por parte significativa da população: exclusão do processo


político-decisório e do processo de desenvolvimento econômico. Os direitos
sociais e a proteção social, que se organizaria sob o manto da seguridade social,
deveriam garantir o acesso das camadas mais pobres da população aos benefícios
do desenvolvimento econômico e à própria democracia.
Com relação à população negra, observa-se, nesse período, a reafirmação de
um diagnóstico no qual o negro é associado à situação de miséria que predomina
nas camadas de menor renda da população. O enfretamento das condições de
pobreza e a oferta de melhores condições de educação, de trabalho e de cida-
dania definem uma pauta importante das demandas do Movimento Negro. Com
elas, colocava-se a ênfase na necessidade de reconhecimento da discriminação ra-
cial como um fenômeno recorrente no país e de sua condenação, e a defesa da
preservação e valorização do patrimônio cultural dos negros.18 A associação entre
pobreza e negritude pode ainda ser observada na descrição de Santos (2007, p.
151) sobre as propostas apresentadas pelo Movimento Negro paulista em meados
da década de 1980, onde se destacam, além da demanda pela criminalização da
discriminação racial, a reivindicação de garantia de reserva de vagas nas instituições
públicas de ensino, do primeiro grau à universidade, à população carente.
Efetivamente, durante a década de 1980, a população negra brasileira tinha acesso
restrito aos serviços de educação, saúde e proteção social, entre outros. Como lem-
bra o boletim Políticas sociais – Acompanhamento e análise, do Ipea (BRASIL, 2008):

Em 1987, uma em cada cinco crianças negras não tinha acesso à escolarização ele-
mentar e 63% não tinham acesso à educação média. Os sistemas de saúde e de
previdência social então existentes deixavam a maior parte dessa população, inserida
em relações de trabalho informais, sem acesso aos serviços e benefícios. Finalmente,
não havia nenhum sistema de garantia de renda para a população mais pobre e as
pensões não contributivas eram apenas incipientes.

Nesse contexto, no final da década de 1980, pouco se discutia sobre a


necessidade de políticas específicas para melhorar os patamares de inserção e

18 Ver, por exemplo, o programa partidário do PMDB, em 1985, no que se refere à questão racial, citado
por Santos (2007).
58 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

integração da população negra à sociedade. O debate sobre políticas afirmativas


não havia começado e não contava com apoio dentro do Movimento Negro.
A universalização do acesso às políticas sociais que excluíam importantes con-
tingentes da população pobre, composta majoritariamente de negros, era ainda
uma pauta relevante.
A Constituição de 1988 significou efetivamente uma ampla reorganização do
Estado no campo das políticas sociais. Garantiu a universalização do atendimento
na saúde, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS); do atendimento dos
serviços e benefícios da Assistência Social, a quem deles necessitar; e a gratui-
dade e obrigatoriedade do ensino fundamental, inclusive para os que a ele não
tiveram acesso na idade própria. Ampliou os direitos previdenciários criando a
Previdência Rural, fixando o piso geral em um salário mínimo e equalizando o
tratamento de trabalhadores rurais e urbanos. Todas essas orientações consoli-
daram-se durante a década de 1990, por meio das regulamentações dos artigos
do texto constitucional, e a progressiva implementação de suas determinações.
Embora com dificuldade de diversas naturezas, como as que se referem à garan-
tia de qualidade nos serviços de educação e saúde, a ampliação das coberturas
das políticas sociais teve impactos importantes na redução da desigualdade entre
brancos e negros no que diz respeito ao acesso aos serviços e benefícios.19
Contudo, se políticas sociais universais são imprescindíveis para o combate
às desigualdades raciais em um país com o histórico de racialização da pobreza,
como é o caso do Brasil, nos últimos 20 anos elas foram, progressivamente,
deixando de ser consideradas como os únicos instrumentos necessários a serem
adotados face ao objetivo de redução das desigualdades raciais. Nesse sentido,
a discriminação racial e o racismo, atuando de forma a restringir a igualdade de
oportunidades e alimentando o processo de manutenção da população negra nas
piores posições da sociedade brasileira, passaram a ser objeto cada vez mais pre-
sente em debates e foco de proposições. Essa discussão ganhou corpo na cena
política com a preparação e realização da Marcha Zumbi dos Palmares contra
o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, em 1995. O documento elaborado pela
Marcha e entregue ao governo defende a implementação de políticas específicas

19 Pode-se citar a equalização das matrículas de estudantes brancos e negros nas primeiras séries do
Ensino Fundamental, assim como a ampliação do acesso à saúde e aos programas previdenciários e assistenciais de
transferência de renda para a população negra. Ver a respeito em Brasil (2008).
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 59

nos campos da educação (incluindo capacitação dos professores para lidar com
o tema da diversidade racial e com as práticas discriminatórias), saúde, traba-
lho, violência e cultura. Propõe também a instituição de ações afirmativas para o
acesso a cursos profissionalizantes e à universidades, assim como demanda a re-
presentação proporcional dos grupos raciais nas campanhas de comunicação do
governo e de entidades a ele vinculadas. As demandas por políticas específicas se
aprofundaram durante o processo de preparação da participação do Brasil na III
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
e Intolerância Correlata.20 Sua consolidação como pauta do Movimento Negro
levou, em 2003, à criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial – Seppir. Ao mesmo tempo, foram sendo consolidadas pautas
setoriais e começaram a ser desenhadas e implementadas ações e programas
nos campos da educação e da saúde, com foco no combate ao preconceito e à
discriminação.21
No entanto, apesar de todo esse movimento que confluiu para a demanda
pela criação de um organismo público voltado à temática racial, assim como na
formulação de iniciativas setoriais e específicas, o que fato é que, nos últimos vin-
te anos, o aumento expressivo da cobertura da população pelas políticas sociais
não tem colaborado significativamente para a redução das desigualdades raciais.
Os avanços no sentido da consolidação de políticas sociais universais têm am-
pliado o acesso e as oportunidades da população negra, mas, em geral, não vêm
alterando os índices históricos de desigualdade entre brancos e negros. Para citar
apenas um caso, na educação, os indicadores registram não apenas a manuten-
ção de expressivos patamares de desigualdade, mas também a ampliação desses
patamares, como é o caso do aumento da diferença proporcional da freqüência
líquida de estudantes brancos e negros no Ensino Médio e Superior.22
Nesse sentido, o desafio de construção de uma sociedade onde o Estado
e as políticas públicas beneficiem, de forma geral e abrangente, o conjunto da

20 A III Conferência Mundial foi promovida pela ONU e realizada em Durban, na África do Sul, entre 31
de agosto e 7 de setembro de 2001. Sobre a organização para a participação brasileira na conferência, ver Jaccoud;
Beghin (2002) e Telles (2003).

21 Ver o capítulo 6 deste volume.

22 Ver Brasil (2008).


60 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

população, parece estar, no caso brasileiro, diretamente associado ao enfren-


tamento da questão racial. A discriminação racial perpassa o tecido social e
as relações sociais que, de modo geral, estruturam o cotidiano, reafirmando
patamares surpreendentes de desigualdade. E, nesse decurso, a negação da
existência de um problema racial parece ser um importante sustentáculo do
processo de reprodução das desigualdades sociais no país.

2.5 CONCLUINDO: A QUESTÃO RACIAL E OS DESAFIOS PARA A CONSOLIDAÇÃO


DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO

A sociedade brasileira, dialogando há 120 anos com os ideais republicanos e


democráticos, ainda enfrenta o desafio da integração social e racial. Efetivamente,
a organização hierárquica e autoritária da sociedade é colocada em cheque nos
momentos de reconstrução da democracia, pressionando pela apresentação de
uma resposta não apenas à questão da pobreza, mas à questão da desigualdade
racial. De um lado, os pobres e os negros transformam-se em sujeitos políticos no
cenário democrático. De outro, a forma de sua inserção social opera questionan-
do a legitimidade da existência da Nação como espaço de interação de indivíduos
em um território e em uma rede social vinculada à instituição de um poder políti-
co. A pobreza se transforma em um problema real nas sociedades modernas, in-
clusive na medida em que aporta uma tensão à cena política num contexto demo-
crático. Como afirma Procacci (1993, p. 16), os pobres não podem não ser iguais,
pois eles participam do mesmo status jurídico de todos os demais cidadãos. Uma
vez afirmada a igualdade formal, os pobres não podem ser excluídos dos direitos,
consolidando um problema efetivo para o Estado e a sociedade moderna. Nesse
contexto, pode-se também formular a questão racial no Brasil.
Como afirma Vera Telles, a constatação de que, no Brasil, a pobreza nunca
foi formulada no horizonte da cidadania deve ser transformada em interrogação.
Para essa autora, a sociedade brasileira não construiu um padrão de sociabilida-
de onde a reciprocidade sustente o reconhecimento do outro como indivíduo
igual perante a lei e sujeito legítimo de direitos. A pobreza se fixa “como marca
de inferioridade”, e “descredencia os indivíduos para o exercício de seus direi-
tos” (TELLES, 2001, p. 21). Sobretudo, ela deslegitima uma regra de justiça cuja
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 61

validade é universal. Sendo assim, a hierarquia racial reforça os diferentes lugares


na sociedade, ampliando as dificuldades da construção de “medidas comuns de
equivalência”, únicas conformadoras da igualdade sobre a qual se sustenta a regra
da convivência democrática, quer no campo político, quer no civil ou no social.
A violência social, que perpassa hoje o tecido social e que tem na população
negra suas principais vítimas e seus principais autores, manifesta o risco de frag-
mentação e mesmo de ruptura social que o processo de diferenciação social in-
troduz na medida em que avança, sem que seja contrabalançado por mecanismos
políticos e sociais que permitam o reconhecimento de cada um como indivíduo
portador de reconhecimento e direitos na ordem pública. Como já apontou Te-
resa Caldeira (2000), “a lógica de um ciclo de violência é o oposto da lógica de
uma ordem democrática”, e reflete a incapacidade do Estado em se estabelecer
como autoridade moral legítima, que provê justiça, garante o espaço público e a
aplicação do direito.
No Brasil, a consolidação de um Estado democrático não pode mais prescin-
dir da garantia, pelo poder público, da oferta, do acesso e usufruto de direitos
não apenas políticos, mas civis e sociais. Mas esses direitos não podem reforçar
ou ampliar a desigualdade. Ao contrário, se a igualdade formal sob a qual se as-
sentam os regimes democráticos exige o reconhecimento público do tratamento
similar a todos os cidadãos, ela também exige o enfrentamento da desigualdade
e dos estigmas de subordinação por mecanismos de promoção e de compensa-
ção de naturezas diversas, legitimando o pacto social e político que sustenta as
sociedades democráticas modernas.
O objetivo de redução da desigualdade social tem se mostrado insuficiente
face à meta de redução das desigualdades raciais. A experiência de universali-
zação das políticas sociais nos últimos 20 anos tem mostrado os limites desse
processo, face aos mecanismos recorrentes de reprodução do preconceito e da
discriminação racial que operam no interior das instituições sociais, inclusive es-
colas, postos de saúde, hospitais, instâncias policiais e judiciais. Nesse contexto, o
reconhecimento da questão racial no Brasil como uma temática estratégica tem
dupla relevância. De um lado, ele responde à demanda de tratamento igualitário
entre brancos e negros. De outro, dele dependem avanços no campo da des-
naturalização da pobreza. Esse é um processo que demanda o enfrentamento
de mecanismos tradicionais de reprodução de hierarquias sociais e privilégios –
62 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO

com destaque para o racismo, o preconceito e a discriminação –, e a construção


de patamares efetivos e concretos de equivalência e reconhecimento entre os
cidadãos. Recusar a marginalização social é um desafio que demanda a abertu-
ra de um processo contínuo de negociação, onde os diferentes atores estejam
presentes em torno dos objetivos da eqüidade, do acesso à justiça e da redução
da desigualdade, reforçando o sentimento de reconhecimento pelo e do espaço
público bem como de um novo patamar de pertencimento à sociedade.
CAPÍTULO 2 – RACISMO E REPÚBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL 63

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Osorio, Rafael Guerreiro

Working Paper
A desigualdade racial no Brasil nas três últimas
décadas

Texto para Discussão, No. 2657

Provided in Cooperation with:


Institute of Applied Economic Research (ipea), Brasília

Suggested Citation: Osorio, Rafael Guerreiro (2021) : A desigualdade racial no Brasil nas três
últimas décadas, Texto para Discussão, No. 2657, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), Brasília,
https://doi.org/10.38116/td2657

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http://hdl.handle.net/10419/240851

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licence.
2657
A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL
NAS TRÊS ÚLTIMAS DÉCADAS

Rafael Guerreiro Osorio


2657
TEXTO PARA DISCUSSÃO
Brasília, maio de 2021

A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL NAS TRÊS ÚLTIMAS DÉCADAS1

Rafael Guerreiro Osorio2

1. O autor agradece a Antônio Teixeira Júnior, Márcia Lima, Pedro Souza e Tatiana Dias Silva pela leitura atenta e sugestões,
sem comprometê-los com eventuais equívocos, todos de sua responsabilidade.
2. Pesquisador na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea e no Centro Internacional de Políticas para o Crescimento
Inclusivo do Ipea e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). E-mail: <rafael.osorio@ipea.gov.br>.
Governo Federal Texto para
Ministério da Economia Discussão
Ministro Paulo Guedes

Publicação seriada que divulga resultados de estudos e


pesquisas em desenvolvimento pelo Ipea com o objetivo
de fomentar o debate e oferecer subsídios à formulação
e avaliação de políticas públicas.
Fundação pública vinculada ao Ministério da Economia,
o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações
© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2021
governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras
políticas públicas e programas de desenvolvimento
Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica
brasileiros – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e Aplicada.- Brasília : Rio de Janeiro : Ipea , 1990-
estudos realizados por seus técnicos.
ISSN 1415-4765

Presidente 1.Brasil. 2.Aspectos Econômicos. 3.Aspectos Sociais.


Carlos von Doellinger I. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

Diretor de Desenvolvimento Institucional CDD 330.908


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Ambientais necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa
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Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas
Internacionais
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Assessor-chefe de Imprensa e Comunicação
André Reis Diniz

Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria
URL: http://www.ipea.gov.br

JEL: I30, J15, J62, J71.

DOI: http://dx.doi.org/10.38116/td2657
SUMÁRIO

SINOPSE

ABSTRACT

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................7

2 DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL....................................................10

3 INDICADORES DA DESIGUALDADE RACIAL DE RENDA...........................................15

4 CONCLUSÃO.........................................................................................................23

REFERÊNCIAS...........................................................................................................24
SINOPSE
Este trabalho apresenta uma breve revisão das principais teorias sociológicas sobre a desi-
gualdade socioeconômica entre negros e brancos no Brasil e indicadores da desigualdade
racial de renda para o período 1986-2019, com base na Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (PNAD). Os indicadores revelam que, apesar de todas as transformações
nas relações raciais nesse período, como a derrocada do mito da democracia racial, a
crescente valorização da negritude e a maior denúncia e repúdio do racismo e da discri-
minação, na dimensão da renda houve apenas uma minúscula redução, e a desigualdade
racial persiste sem abalos substantivos. A renda média dos brancos é ao menos duas
vezes a dos negros, e a esta diferença, segundo a decomposição do indicador L de Theil,
pode-se atribuir por volta de 11% da desigualdade de renda brasileira. A contribuição
da desigualdade de renda entre negros para a desigualdade total no Brasil aumentou,
acompanhando a parcela da população que se declara preta e parda na PNAD, que se
tornou majoritária no período.
Palavras-chave: desigualdade racial; desigualdade de renda; PNAD; PNAD Contínua.

ABSTRACT
This paper presents a brief review of the main sociological theories on socioeconomic
inequality between blacks and whites in Brazil, and indicators of racial income inequa-
lity for the period 1986-2019, based on the National Household Survey (PNAD). The
indicators show that, despite all the change in racial relations in the period, such as the
debunking of the myth of racial democracy, the growing appreciation of blackness and
the greater denunciation and repudiation of racism and discrimination, in the income
dimension there was only a tiny reduction of inequality. Racial income inequality per-
sists without substantive upheavals. The average income of whites is at least twice that
of blacks, and this difference, according to the decomposition of the Theil L indicator,
accounts for 11% of the Brazilian income inequality. The contribution of income ine-
quality among blacks to total inequality in Brazil increased, together with the share of
the population that declares being preto and pardo in the PNAD, which became the
majority in the period.
Keywords: racial inequality; income inequality; PNAD; PNAD Contínua.
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta algumas evidências atualizadas que mostram a estabilidade da


desigualdade racial de renda no Brasil nas três últimas décadas. No Brasil, as estatísticas
socioeconômicas invariavelmente têm indicado que a situação das pessoas brancas é
melhor que a das pretas e pardas. Friamente, mostram que pessoas brancas têm mais
renda, mais escolaridade, moradias mais salubres e seguras, têm mais de tudo que é
bom, e menos de tudo que é ruim. A frieza, contudo, não advém dos números, mas da
realidade que retratam, na qual a desigualdade racial é constatável a olho nu.1

Isso não é de hoje. A desigualdade e a discriminação racial andam juntas no Bra-


sil desde a chegada dos portugueses, que erigiram a colônia com base na escravização
dos negros da terra e da África.2 A desigualdade racial entre os senhores brancos e os
escravos negros, indígenas, e mestiços era justificada, de início, pela suposta superiori-
dade religiosa; depois, com a emergência do racismo pseudocientífico do século XIX,
também por fantasias de superioridade biológica e cultural.3 Durante a maior parte da
história brasileira, a desigualdade racial foi reconhecida, preservada e garantida contra
a resistência dos negros. Objetivava-se mantê-la, não combatê-la.

Depois da Independência do Brasil, quando começa a se formar um pensamento


social propriamente brasileiro, a composição racial da população se tornou um problema
para a construção da identidade nacional. Sob inspiração de teorias racistas, as elites po-
líticas e intelectuais se convenceram de que pretos e pardos, a maior parte da população,

1. A partir dos anos 2000, com a disseminação do uso dos microdados dos Censos Demográficos e das Pesquisas Nacio-
nais por Amostras de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE), e a progressiva introdução
do quesito de cor ou raça em outras pesquisas e em registros administrativos (como os sistemas de informações sobre
nascimentos e óbitos), foram produzidas várias coleções de indicadores socioeconômicos desagregados por raça, bem
como estudos sobre esses indicadores. Muitas dessas iniciativas não estão mais disponíveis, ou estão desatualizadas,
sugerindo uma diminuição do interesse pelos indicadores. Contudo, o IBGE tem divulgado a desagregação por raça de
indicadores da PNAD Contínua, que invariavelmente mostram a desigualdade em prejuízo dos negros. Como exemplos
dos relatórios e estudos que continham e analisavam indicadores socioeconômicos da desigualdade racial, podem-se citar
Henriques (2001), Heringer (2002), Jaccoud e Begin (2002) e o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, produzido
pelo Ipea, cuja quarta edição pode ser encontrada em: <https://is.gd/z4OPf9>. O Datasus oferece a desagregação por raça
em consultas (disponível em: <https://is.gd/ho5Ahp>).
2. Sobre a exploração e a escravidão de indígenas e africanos, entre inúmeros trabalhos, ver Monteiro (1994), Alencastro
(2000) e Gomes (2019).
3. Sobre o preconceito racial no Brasil colônia, ver Carneiro (1988). Boas descrições das falácias do racismo do século XIX
são oferecidas por Benedict (1940), Montagu (1998) e Hofbauer (2006).

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Brasília, maio de 2021

eram um entrave ao desenvolvimento e, possivelmente mais importante, uma ameaça


aos donos do poder. Para desenvolver o país e construir a nação brasileira, modelada
pelas potências europeias, era preciso “melhorar a raça” da população, neutralizando os
elementos negros e indígenas. Essa visão se consolidou em políticas que estimulavam a
imigração europeia para “branquear” a população (Hofbauer, 2006).

Na virada para o século XX, a intelectualidade brasileira discutia as consequências para


o progresso nacional da composição racial da população, e, em particular, da mestiçagem,
mediante a chegada de grandes contingentes de imigrantes brancos. O que se almejava
com o branqueamento era garantir a prevalência dos elementos eugênicos “superiores” dos
brancos europeus, diluindo as heranças africana e indígena na população miscigenada.

Seria o branqueamento possível? Os autores racistas que liam, como a maior parte
da ciência da época, eram categóricos ao afirmar a inferioridade do mestiço, logo a impos-
sibilidade de a estratégia de branqueamento dar resultado. Euclides da Cunha descreveu o
mestiço como um “desequilibrado”, pois abrigaria em si as tendências contraditórias das
raças misturadas.4 Rompendo com o cânon em busca de uma interpretação condizente
com a possibilidade de construir uma grande nação no Brasil, na imaginação de Sílvio
Romero, o brasileiro resultante da miscigenação não seria branco em aparência, mas,
sim, moreno, e não seria inferior, pois acumularia o melhor das raças miscigenadas, ainda
que negros e indígenas tivessem menos elementos eugênicos a oferecer (Romero, 1949).

Na primeira metade do século XX, as teorias racistas perdem progressivamente a


hegemonia, e a desigualdade racial começa a ser explicada não como consequência da
suposta inferioridade religiosa, biológica ou cultural dos grupos discriminados, mas, sim,
da história e das instituições sociais. O racismo aberto da intelectualidade da geração
de 1870 acaba, paradoxal e rapidamente, substituído pelo mito da democracia racial,
a ideologia que sustentava ser o Brasil um paraíso das relações amistosas entre as raças,
onde não existia animosidade, e os brancos não discriminavam os pretos e os pardos.
O preconceito e a desigualdade eram essencialmente “de classe”, e a maior presença dos

4. “A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando
reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada
é um retrocesso” (Cunha, 1984, p. 54). “[...] o mestiço – traço de união entre as raças, breve existência individual em
que se comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos
histéricos” (idem, ibidem).

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Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
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negros nas classes menos abastadas devia-se ao pouco tempo transcorrido desde a Abolição
da Escravatura.5 A desigualdade racial de condições socioeconômicas transformava-se
em um problema de classe e mobilidade social.

A visão de que o Brasil seria uma democracia racial teve vida mais longa no pensa-
mento social – e ainda se ouvem altos, aqui e ali, seus estertores – do que na sociologia.
Nesta, o mito teve vida curta e foi logo desmentido por uma série de estudos sobre as
causas da desigualdade racial, que afirmavam a existência de preconceito e discriminação,
ainda que operando sob formas, meios e mecanismos particulares, genuinamente bra-
sileiros. Esses estudos tinham como pano de fundo a escravidão e a abolição, momento
inicial a partir do qual se buscava entender a desigualdade racial e sua transformação,
na transição do Brasil para a modernidade. Enquanto alguns estudavam a integração
do escravo metamorfoseado em proletário na emergente sociedade urbana e industrial,
outros estudavam sua inserção nas comunidades, ou a preservação dos costumes e tra-
dições variados trazidos de diferentes culturas africanas.6

Apesar da denúncia do racismo e do preconceito de cor, da discriminação e de


suas consequências, esses estudos auxiliaram a consolidar a percepção, hegemônica até
a década de 1980, de que, no período após a abolição, a desigualdade racial era con-
sequência da desigualdade de classe. As barreiras que faziam os negros permanecerem,
na nova estratificação socioeconômica, em posição semelhante à ocupada na sociedade
colonial derivariam da escassez de oportunidades econômicas de ascensão social.

O racismo e o preconceito eram vistos como arcaísmos, heranças da ordem es-


cravocrata, ideologias e atitudes que perderiam função no mundo secular e racional da
sociedade burguesa industrial e urbana que emergia e tenderiam a desaparecer. A ideia
de que a desigualdade racial era preponderantemente produzida pela classe, e não pela
raça, ganhou força também por sua conveniência para a defesa do mito da democracia
racial. No entanto, os principais proponentes dessa perspectiva teórica não desprezavam
as consequências da discriminação racial sobre a vida dos negros e a consideravam um

5. Representam esta linha os trabalhos de Pierson (1945), Wagley (1952) e Azevedo (1996), todos elaborados no âmbito
do Projeto UNESCO (Maio, 1999; Osorio, 2009).
6. Na segunda leva do Projeto UNESCO, Pinto (1998), Nogueira (1998), Cardoso e Ianni (1960) e Fernandes (1965) ques-
tionaram a ideia de preconceito de classe sem preconceito racial que marcara a primeira leva (Osorio, 2009).

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Brasília, maio de 2021

fator de atraso, tanto na integração destes à sociedade de classes quanto na transição do


Brasil para a modernidade.

2 DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL

Até os anos 1980, a perspectiva teórica hegemônica na sociologia brasileira era a de que,
da abolição até então, a persistência devia-se essencialmente às barreiras de classe para a
mobilidade social intergeracional. A discriminação racial tenderia a diminuir com o tempo
até desaparecer, pela incompatibilidade do racismo com a racionalização dos costumes
na transição para modernidade, mas não se negava sua presença e suas consequências, e
se questionava o mito da democracia racial. Sobre este, Florestan Fernandes ponderou
que era o ideal mais bonito a ser buscado por uma sociedade, mas que o Brasil estava
bem longe de ter alcançado coisa parecida (Fernandes, 2007).

No pós-guerra, as teorias, que pressupunham um poder racionalizador na mo-


dernidade, capaz de esclarecer as pessoas e as levar a, progressivamente, mudarem suas
atitudes e comportamentos racistas, foram sendo falseadas pelas evidências. O racismo
e a discriminação continuavam fortes e não mostravam sinais de enfraquecimento. Na
nova ordem da sociedade industrial moderna, renovados, adquiriam nova funcionali-
dade, a de garantir a manutenção, na sucessão das gerações, da situação privilegiada dos
brancos, após a queda das barreiras formais que impediam a competição dos negros pelas
oportunidades de ascensão social.

Novas e melhores evidências sobre a desigualdade racial colocaram em xeque o mito


da democracia racial e a ideia de que o racismo e a discriminação desapareceriam com
o tempo por serem arcaísmos sem lugar na sociedade liberal, ou meros epifenômenos
da desigualdade de classe, que seria superada por uma guinada socialista ou comunista.
A escravidão fora abolida há quase um século, e a sociedade urbana e industrial se ins-
talara e se desenvolvia em ritmo forte. Se a raça não importasse, ou se sua importância
estivesse diminuindo, pretos e pardos deveriam progressivamente se distribuir de forma
mais uniforme pelas camadas da estratificação socioeconômica. Mas as novas evidências
mostravam os negros ainda muito concentrados na base da pirâmide social, algo incom-
patível com o mito da sociedade de classes sem racismo.

10
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
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Talvez o primeiro a apontar a reciclagem do racismo no Brasil pós-abolição tenha


sido Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, 2003). Contudo, Carlos Hasenbalg e Nelson
do Valle Silva, munidos de dados inéditos do Censo Demográfico de 1960 e de pesquisas
domiciliares, elaboraram estudos que comprovavam empiricamente a persistência da
desigualdade racial no Brasil, decorrido quase um século desde a abolição (Hasenbalg,
2005; Silva, 1978; Hasenbalg e Silva, 1988; 1992). Esses trabalhos desafiaram tanto o
establishment, que sustentava o mito da democracia racial, quanto a perspectiva hege-
mônica na sociologia da época, de que o racismo era um arcaísmo e que a situação de
classe era o que realmente moldava a desigualdade racial. A persistência da desigualdade
racial não poderia ser explicada sem conferir um papel relevante à discriminação sofrida
nas diferentes fases da vida por pretos e pardos, e às desvantagens que dela resultam.

Não se tratava, contudo, de estabelecer precisamente quantos por cento da desi-


gualdade viriam da classe social de origem e quantos por cento viriam da discrimina-
ção racial. Classe e raça são analiticamente separáveis, mas na realidade brasileira são
indissociáveis. Como na canção de Caetano Veloso, os negros são pretos de tão pobres
e pobres de tão pretos. Hasenbalg e Valle Silva mostraram como, de uma geração para
outra, a desigualdade racial era transmitida como desigualdade de classe, depois refor-
çada por mais discriminação racial, em um ciclo de desvantagens cumulativas. Ou seja,
como são maioria entre os pobres, os negros têm maior probabilidade de nascerem na
pobreza, de sofrerem as consequências da pobreza na primeira infância, na escola, e,
depois, de restrições de oportunidades de ascensão socioeconômica. Sobre todas essas
desvantagens, acumulam-se camadas de discriminação. Essa carga pesada é transmitida
à próxima geração, que reinicia o ciclo.7

Oracy Nogueira, em seu estudo das relações raciais em Itapetininga, foi pioneiro
ao teorizar que, em um regime de baixa mobilidade, uma desigualdade inicial tenderia
a se manter por muito tempo, mesmo sem a presença do que a causara. Com baixa
mobilidade, os negros tenderiam a permanecer por muito tempo nas camadas inferiores
da estratificação social, mesmo que a sociedade fosse completamente indiferente à cor.
Mas ao acompanhar a trajetória de imigrantes brancos, que chegaram em Itapetininga

7. Hasenbalg e Valle Silva organizaram vários volumes e escreveram, juntos e separadamente, solo e com outros coautores,
artigos clássicos apresentando as evidências sobre múltiplas dimensões da desigualdade racial que são leitura obrigatória
para estudiosos do assunto: Hasenbalg (2005), Silva (1978), Hasenbalg e Silva (1988; 1992) e Hasenbalg, Silva e Lima
(1999). Osorio (2009) comenta esses trabalhos.

11
Brasília, maio de 2021

frequentemente em situação pior que a dos negros que lá residiam, Oracy constatou que
o fato de serem brancos os favorecera na competição com os negros, pela possibilidade
de casar na elite local – sequiosa de embranquecimento – e pela preferência que lhes era
conferida nas oportunidades de trabalho e nas relações sociais em geral. Em algumas
décadas, os descendentes de italianos estavam bem mais presentes nas camadas de cima
da estratificação socioeconômica local do que os negros (Nogueira, 1988).

São dois os principais fenômenos que se complementam para produzir a persis-


tência da desigualdade racial. O primeiro é o regime de mobilidade social com muita
movimentação, porém de curta distância. Na sociedade brasileira, muitos sobem pouco
e poucos sobem muito – e o mesmo vale para as descidas. Mesmo que as pessoas estejam,
na estrutura da desigualdade, em posições diferentes das ocupadas por seus pais, não
estão muito melhores ou piores (Pastore, 1979; Scalon, 1999; Pastore e Silva, 2000;
Ribeiro, 2007). O tanto que a renda de alguém está distante da média de sua época é
fortemente relacionado à distância da renda de sua família em relação à média do passa-
do: a persistência intergeracional da renda fica em torno de 70% nos estudos brasileiros
(Ferreira e Veloso, 2006; Pero e Szerman, 2008; Osorio, 2009). Mas a persistência tem
decrescido, ainda que suavemente, com a ampliação da abertura às trocas entre classes
e a redução da parcela da mobilidade induzida pelas mudanças estruturais no trabalho
e em sua divisão que acompanham a modernização (Ribeiro, 2007).

Apenas o regime de mobilidade de elevada persistência intergeracional, sem o


segundo fenômeno, que é a discriminação racial sofrida por pretos, pardos e indígenas
nas várias etapas da vida, resultaria em uma lenta equalização. O regime de mobilidade
sozinho retardaria a redução da desigualdade racial – em relação à velocidade esperada
em uma sociedade sem associação entre origens e destinos sociais –, mas não a impediria.
O Brasil é uma sociedade com elevada transmissão intergeracional de situação socioeco-
nômica, porém não é uma sociedade estamental ou de castas. A mobilidade é de curta
distância, mas não é nula; as oportunidades, apesar de poucas, existem, e histórias de
sucesso e de fracasso não são incomuns. Sem discriminação, a desigualdade racial teria
caído (Osorio, 2009).

Os gráficos 1 e 2 ilustram como a elevada persistência intergeracional de situação


socioeconômica e a discriminação racial contribuem para perpetuar a desigualdade racial.
Nesses gráficos, a origem é a renda das famílias das pessoas quando elas tinham 15 anos,

12
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

e o destino é a renda da família em 1996. No eixo horizontal, os números de 1 a 10


representam o décimo da distribuição de renda de origem: 1 para os 10% mais pobres
e 10 para os 10% mais ricos. Da mesma forma, o eixo vertical representa os décimos
da distribuição de renda no destino. Os pontos na diagonal representam os casos de
imobilidade, pessoas que no destino estão no mesmo décimo que na origem. Os casos
acima da diagonal representam a mobilidade ascendente, pessoas que no destino estão
em um décimo de renda mais rico que o da origem, e os casos abaixo da diagonal, a
mobilidade descendente.8

No gráfico 1A, vê-se o padrão esperado para uma sociedade com igualdade de
oportunidades – “meritocrática” –, na qual haveria total independência entre origens e
destinos. Como são dez os destinos e origens possíveis, cada uma das combinações teria
1% da população. Das pessoas com origem entre os 10% mais pobres, por exemplo, 10%
delas ascenderiam para os 10% mais ricos; e cada um dos décimos do destino teria 10%
de pessoas com origem entre os 10% mais pobres. Todavia, o padrão observado revela
uma sociedade de oportunidades desiguais, na qual a origem abastada oferece proteção
contra a queda da renda e a origem humilde restringe as oportunidades de ascensão.
A imobilidade no décimo mais pobre e no décimo mais rico é cerca de quatro vezes
maior que o esperado (gráfico 1B).

Pessoas com origem nos décimos 1 a 4 têm poucas oportunidades de escapar de


um destino entre os 40% mais pobres: a mobilidade descendente é acima do esperado
para originários dos décimos 3 e 4, e os ascendentes originários do décimo mais pobre
raramente ultrapassam o quarto décimo. No outro extremo, pessoas com origem nos
30% mais ricos têm grande probabilidade de lá permanecerem. Apenas o meio da
distribuição é razoavelmente dinâmico, muito mais próximo do padrão esperado sob
igualdade de oportunidades. Essa maior mobilidade do meio deveria, na sucessão das
gerações, contribuir para a redução da desigualdade racial.

8. Mobilidade de renda dos nascidos de 1957 a 1966. Para maiores detalhes, ver Osorio (2009).

13
Brasília, maio de 2021

GRÁFICO 1
Mobilidade de renda – Brasil (1976-1996)
1A – Esperado 1B – Observado

10 10
<<destino>> Ricos

<<destino>> Ricos
9 9
8 8
7 7
6 6
5 5
4 4
Pobres

Pobres
3 3
2 2
1 1

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Pobres <<origem>> Ricos Pobres <<origem>> Ricos

Fonte: Osorio (2009).

O gráfico 2 exibe o padrão de mobilidade desagregado para a comparação de ne-


gros e brancos. Nos gráficos 2A e 2B, os padrões de mobilidade são representados como
se os grupos fossem totalmente separados em indivíduos de cada grupo na distribuição
de renda de origem e de destino do grupo. O que se nota é que os padrões são muito
parecidos com o observado, exibido no gráfico 1B. Porém, nos gráficos 2C e 2D, vê-se
que, ao juntar os dois grupos, os negros circulam na extremidade pobre da distribuição,
e os brancos, entre os mais ricos. Inobstante, se esse padrão observado de mobilidade
fosse repetido sem considerar a cor de seus participantes, a concentração dos negros na
distribuição de renda de 1986 a 2016 teria caído em torno de um sexto.9 As consequências
das discriminações motivadas por racismo e preconceito são o que bloqueia a pequena
equalização racial que seria produzida pelo regime de baixa mobilidade de renda.

9. A queda teria ocorrido se o padrão de mobilidade observado não sofresse a influência da cor (Osorio, 2009).

14
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

GRÁFICO 2
Mobilidade de renda dos grupos raciais – Brasil (1976-1996)
2A – Somente negros 2B – Somente brancos

10 10
Ricos

Ricos
9 9
8 8
7 7
<<destino>>

<<destino>>
6 6
5 5
4 4
3 3
Pobres

Pobres
2 2
1 1

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Pobres <<origem>> Ricos Pobres <<origem>> Ricos

2C – Negros 2D – Brancos

10 10
Ricos

Ricos

9 9
8 8
7 7
<<destino>>

<<destino>>

6 6
5 5
4 4
3 3
Pobres

Pobres

2 2
1 1

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Pobres <<origem>> Ricos Pobres <<origem>> Ricos

Fonte: Osorio (2009).

3 INDICADORES DA DESIGUALDADE RACIAL DE RENDA

Mas o que aconteceu nas últimas três décadas? A desigualdade racial continua estável?
Entre os indicadores da desigualdade racial, poucos a expressam tão bem quanto a renda.
A renda é fortemente correlacionada com virtualmente todo indicador de bem-estar
que se possa imaginar e indica diretamente o poder de compra dos indivíduos e de suas

15
Brasília, maio de 2021

famílias.10 O nível de renda não define os estilos de vida das pessoas, suas opiniões e
ações, mas é um fator que limita as escolhas dos pobres enquanto amplia as dos ricos.

A desigualdade racial pode ser abordada sob perspectivas distintas a partir da ren-
da. Comparar a renda média das pessoas classificadas como brancas à das pessoas que se
declaram pretas, pardas ou indígenas é um bom ponto de partida. Podem-se calcular as
médias desde 1986, quando o IBGE passou a perguntar anualmente, na PNAD, a cor
dos entrevistados.11 Para permitir a comparação temporal, os valores foram ajustados pelo
Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) para dezembro de 2011. No caso dos
dados de 2012 em diante, os valores da PNAD Contínua anual foram ajustados pelo INPC
do segundo mês do trimestre da entrevista. Dezembro de 2011 é a referência para aplicar
o fator de paridade do poder de compra, usado para a conversão de reais para dólares.12
Por mera coincidência, nesse mês, R$ 50 mensais correspondiam a quase US$ 1 por dia.

O gráfico 3 apresenta a evolução da média da renda domiciliar per capita. O ano


de 1986, por conta do Plano Cruzado, é um ponto fora da curva dos anos 1980, mas,
mesmo naquele momento efêmero, a elevação da renda se deu com desigualdade racial.
Depois, a renda flutuou em níveis mais baixos, até mudar de patamar em 1995, ficando
estagnada em torno de US$ 12 diários por uma década. De 2005 a 2014, a renda cresceu
até sofrer o baque da crise em 2015. Em 2018, a renda média voltou ao nível de 2014.
Mas as variações não contribuíram muito para a redução da desigualdade racial, medida
pela razão entre as rendas. De 1986 a 2001, a renda média dos brancos era em torno de
2,4 vezes maior que a dos negros. De 2002 a 2008, essa razão diminui um pouco, mas
se encontra estável desde 2009, com a renda média dos brancos aproximadamente duas
vezes maior que a dos negros.

10. Sobre as vantagens e desvantagens do uso da renda como indicador de pobreza, ver Atkinson (1987) e Sen (1981).
11. Sobre a classificação racial do IBGE, ver Osorio (2003) e o livro organizado por Petruccelli e Saboia (2013).
12. Os fatores de paridade do poder de compra são calculados pelo Banco Mundial e disseminados como parte dos world
development indicators.

16
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

GRÁFICO 3
Renda domiciliar – Brasil (1986-2019)
3A – Renda domiciliar per capita média
30,00 1.500,00
28,00

25,45
1.400,00

24,98
24,33

23,73
26,00

23,48

23,39
1.300,00

23,7
22,87
24,00 1.200,00

19,84
22,00
19,53

1.100,00

18,97
18,55
17,89
20,00

17,51
1.000,00

16,36

(R$/mês por pessoa)


16,21

16,05
16,02
por pessoa)

15,85
15,82

15,70
15,54
18,00 900,00

15,39

15,00
14,83
14,50

18,25
18,02
17,97
13,99
13,71

16,00

17,32
17,29
800,00

17,17
17,08
16,83
12,72
12,02

14,00 700,00

15,10
14,63

14,20
13,83
12,00 600,00

13,19
12,85

12,73
12,59
(US$/dia

12,39
12,14
12,02

11,95
11,90
11,87

11,86
11,76

11,68
11,68
11,65

11,53
11,52

11,45
11,34
10,00 500,00

11,09
10,91

10,85

10,70
10,38
10,16

9,73
9,43

400,00

9,33
8,00
8,97

8,58
8,34

8,23
7,46
6,00 300,00
6,91

6,93
6,81
6,69

6,67
6,66
6,60

6,50
6,48
6,26
6,13

5,83
5,64

5,42

4,00 200,00
5,29

2,00 100,00
0,00 0,00
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
Brasil Negros Brancos

3B – Razão entre a renda dos brancos e a dos negros


4

3
Brancos /negros

0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020

Fontes: Microdados das PNADs 1986-2011 e microdados anuais da primeira visita da PNAD Contínua 2012-2019. Disponível em: <https://is.gd/LBVeyJ>.
Elaboração do autor.
Obs.: Valores de dezembro de 2011.

Outra forma de abordar a desigualdade racial é estimar a contribuição de cada


grupo para a desigualdade de renda. Os indicadores que medem a entropia na distribui-
ção de renda estão entre os que permitem dimensionar a contribuição das diferenças das
médias dos grupos e da desigualdade dentro de cada grupo para a desigualdade total.
Esses indicadores possuem um parâmetro ajustável ao juízo de valor do analista sobre o
tipo de situação que mais contribui para a desigualdade, a presença de pessoas pobres,
ou a presença de pessoas ricas. O indicador de desigualdade L de Theil, que confere um

17
Brasília, maio de 2021

peso maior para as rendas abaixo da média, é o único indicador de entropia que permite
interpretação contrafactual, razão da sua escolha.13

O gráfico 4 mostra a evolução do indicador L de Theil da desigualdade na distri-


buição de renda, total e calculado separadamente para brancos e para negros. Segundo o
indicador, a desigualdade aumenta na década de 1980, fica relativamente estável e começa
a cair a partir do final da década de 1990, voltando a crescer desde 2015. A desigualdade
total é maior que a entre os brancos, por sua vez maior que a desigualdade entre os negros.

A decomposição da desigualdade total de cada ano (100%) medida pelo L de


Theil, de acordo com as contribuições da desigualdade entre os negros, entre os bran-
cos, e da diferença entre as médias dos grupos, é apresentada no gráfico 5. Refletindo a
estabilidade na razão entre as rendas médias, a desigualdade entre grupos pouco varia.
De 1986 até 2001, ficou em torno de 13%, depois parece ter caído um pouco, até
estabilizar-se novamente em torno de 11% da desigualdade de cada ano. A contribuição
da desigualdade entre os brancos passa de pouco mais da metade para pouco menos
que a metade; com o complementar aumento da contribuição da desigualdade entre os
negros de 34% para 48% da desigualdade total.

Mas o que isso significa? Como o L de Theil permite a interpretação contrafactual,


pode-se dizer que a desigualdade de renda no Brasil seria 11% menor se as rendas médias
de negros e brancos fossem iguais, mantidas a desigualdade dentro de cada grupo e as
frações da população nos grupos. A despeito do decréscimo de sua contribuição relati-
va para o total, houve crescimento da desigualdade entre os brancos a partir de 2015.
A contribuição da desigualdade de renda entre os negros para a desigualdade total, por
sua vez, aumentou. Não por conta do crescimento recente da desigualdade, mas, sim,
por ter acompanhado o crescimento relativo da população negra.

13. Sobre os indicadores de desigualdade e sua decomposição por grupos, ver Cowell (2000).

18
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

GRÁFICO 4
Desigualdade de renda domiciliar per capita – Brasil (1986-2019)
1,00
0,95
0,90
0,85
0,80
0,75
0,70
0,65
0,60
L de Theil

0,55
0,50
0,45
0,40
0,35
0,30
0,25
0,20
0,15
0,10
0,05
0,00
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
Total Negros Brancos

Fontes: Microdados das PNADs 1986-2011 e microdados anuais da primeira visita da PNAD Contínua 2012-2019. Disponível em: <https://is.gd/LBVeyJ>.
Elaboração do autor.

GRÁFICO 5
Decomposição da desigualdade de renda domiciliar per capita – Brasil (1986-2019)
(Em %)
100,0
95,0
90,0
85,0
80,0
75,0
41,8
42,8
42,8
43,3
44,3
45,2
45,2
45,5

70,0
46,3
46,6
47,4
47,6
48,1
48,3
49,0
49,7
50,6

50,8

65,0
51,1
51,3

51,3

51,4

51,3
51,5
52,3
52,5

52,7
53,1

53,3
54,2

60,0
55,0
10,8
10,5
10,9
11,8
10,8
11,3
11,3

50,0
11,2
10,4

9,3
10,8
11,8
12,0
12,1
12,0

45,0
12,9
12,3

13,1
13,4

12,2
12,3

13,3

13,5
13,4
12,5

13,1
12,4
12,6
13,1
12,5

40,0
35,0
475
46,6
46,3

,
44,9
44,8
44,4

30,0
43,5
43,5
43,3
43,0
41,8
40,6
39,9
39,6
39,0

25,0
37,4
36,6

36,5
36,4

36,1
35,9
35,4

35,2
35,1
35,0

34,9

34,6
34,1

20,0
33,8
33,3

15,0
10,0
5,0
0,0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020

Negros Entre negros e brancos Brancos

Fontes: Microdados das PNADs 1986-2011 e microdados anuais da primeira visita da PNAD Contínua 2012-2019. Disponível em: <https://is.gd/LBVeyJ>.
Elaboração do autor.

19
Brasília, maio de 2021

A parcela negra da população aumentou consideravelmente de tamanho, de 44%,


em 1986, para 56%, em 2018. Essa mudança na composição racial deve-se principal-
mente à maior valorização da negritude, pois as diferenças demográficas entre negros e
brancos no Brasil não seriam suficientes para produzir tamanha variação.14 Ao contrário,
considerando a maior mortalidade dos jovens negros (Cerqueira e Coelho, 2017), seria
até razoável esperar a diminuição da parcela negra da população. O aumento da parcela
negra da população pode contribuir para a redução da desigualdade racial, se a tendência
a valorizar a negritude for mais forte entre as pessoas de renda mais elevada, gerando
um aumento na renda média dos negros.

O gráfico 6 oferece uma representação visual da mudança da composição racial


e sua variação com a renda, em anos selecionados. Em cada ano, as pessoas foram
ordenadas da mais pobre para a mais rica e divididas em vinte estratos, cada um com
aproximadamente 5% da população, e depois calculada a proporção de negros em cada
estrato. A maior concentração dos negros nos estratos mais pobres é facilmente notável.
Em todos os anos selecionados, a percentagem da população negra decresce ao serem
considerados os estratos mais ricos.

De 1986 a 1996, a composição racial quase não muda. A partir de 1996, contudo,
a parcela negra da população cresce em todos os estratos de renda: a sociedade brasileira
passa por um enegrecimento acelerado. A comparação entre 1986 e 2018 revela que o
fenômeno da mudança da declaração da cor ou raça não foi restrito a camadas especí-
ficas da distribuição de renda. Em três décadas, dobrou a parcela negra da população
entre os 5% mais ricos (vigésimo 20). O crescimento entre os mais pobres foi menor,
porém partindo de uma base maior. Os negros, que em 1986 eram mais de dois terços,
tornaram-se três quartos dos 10% mais pobres (vigésimos 1 e 2) em 2018. O crescimento
relativamente maior dos pretos e pardos entre os estratos de maior renda é algo a ser
considerado na interpretação da evolução dos indicadores da desigualdade racial de renda.

14. Sobre a impossibilidade de a mudança da parcela de pretos e pardos ser devida a diferenças na dinâmica demográfica
de brancos e negros, ver Soares (2008).

20
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

GRÁFICO 6
Composição racial por vigésimos da renda domiciliar per capita – Brasil
(Em %)
100

90

80

70
População negra (%)

60

50

40

30

20

10

0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
Pobres << Vigésimos da distribuição da renda domiciliar per capita >> Ricos

1986 1996 2006 2016 2019

Fontes: Microdados das PNADs 1986, 1996, 2003 e 2009 e microdados anuais da primeira visita da PNAD Contínua 2019. Disponível em: <https://is.gd/LBVeyJ>.
Elaboração do autor.

Finalmente, uma última forma de abordar a desigualdade racial de renda é pela


análise da concentração dos negros no polo pobre da distribuição. A concentração é
medida por um indicador que varia de 0% a 100% e independe da variação da parcela
da população no grupo (Osorio, 2009).15 O indicador assumiria o valor zero, indepen-

15. Os indivíduos devem estar ordenados pela renda domiciliar per capita, de forma que a renda xi do i-ési-
mo indivíduo seja maior ou igual à do indivíduo que o antecede e menor ou igual à de seu sucessor: [xi-1 ≤ xi ≤ xi+1].
A posição relativa ni do indivíduo na distribuição da renda é a fração acumulada da população N até o indivíduo, obtida a partir
dos pesos de pessoa wi da PNAD:

e .
Mantendo o ordenamento, calcula-se também a distribuição acumulada ngi dos indivíduos de cada grupo, considerando a
sua população Ng e uma variável indicadora gi que assume o valor zero quando o indivíduo não pertence ao grupo e um
quando pertence. O indicador de concentração do grupo g, no caso dos negros, é calculado a partir das posições relativas:
.
Para grupos concentrados no extremo pobre, o valor do indicador é negativo. O valor mínimo ocorre na situação em que o
indivíduo mais rico de um grupo é mais pobre que qualquer indivíduo de outros grupos. O mínimo é o negativo da fração
complementar da fração de população do grupo, representando a maior concentração possível entre os pobres:
.
O indicador relativo de concentração apresentado no gráfico 7 é simplesmente Cg / min(Cg).

21
Brasília, maio de 2021

dentemente do grau de desigualdade de renda, se os negros estivessem uniformemente


dispersos na distribuição de renda, tão presentes entre os ricos quanto entre os pobres.
A concentração máxima de 100% ocorreria se a renda do branco mais pobre fosse supe-
rior à renda do negro mais rico. Nessa situação, se os negros fossem 46% da população,
seriam também os 46% mais pobres.

Portanto, o indicador apresentado no gráfico 7 mede a concentração observada


como porcentagem da máxima possível, que depende da fração de população do grupo
em cada ano. Nota-se que a concentração dos negros entre os pobres ficou em torno
de 40% do máximo de 1986 a 2001. De 2002 a 2008, a concentração cai um pouco.
Desde então, está estagnada em torno de 35%.

GRÁFICO 7
Concentração relativa dos negros na distribuição de renda – Brasil (1986-2019)
(Em %)
100

80

60

40 39 39 38 38 40 40 39 40 40 40 39 37 39 38 37 37 37
40 35 35 36 36 36 35 36 35
33 34 35

20

0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020

Fontes: Microdados das PNADs 1986-2011 e microdados anuais da primeira visita da PNAD Contínua 2012-2019. Disponível em: <xxx>.
Elaboração do autor.

Sob a ótica da renda, portanto, a desigualdade racial é estável. Em três décadas, de


1986 a 2019, a desigualdade racial alimentou mais de um décimo da elevada desigualdade
de renda brasileira. No que toca à razão entre as rendas médias e à concentração da cres-
cente parcela negra da população entre os mais pobres, a desigualdade racial permaneceu
elevadíssima, praticamente intocada. Com boa vontade, pode-se registrar uma pequena
redução dessa desigualdade, todavia deve ser vista com alguma suspeição, pois pode, em
parte, ter sido artificialmente produzida pelo maior aumento relativo da declaração de
cor preta ou parda entre os mais ricos. A renda média dos brancos permanece ao menos

22
Texto para
Discussão
A Desigualdade Racial no Brasil nas Três Últimas Décadas
2 6 5 7

duas vezes maior que a dos negros. E a concentração dos negros entre os mais pobres é
pouco mais que um terço do que seria em uma sociedade com castas raciais de renda,
na qual nenhuma pessoa branca teria renda inferior à de uma pessoa negra.

4 CONCLUSÃO

Nas últimas três décadas, a desigualdade racial de renda persistiu quase intocada no
Brasil, onde não se passa uma semana sem algum caso de racismo e discriminação
exposto. Entretanto, a tolerância social ao racismo parece menor que no passado.
Os casos são noticiados e podem atingir grande repercussão. As vítimas não mais se
calam, e, frequentemente, recebem grande apoio da sociedade. Paralelamente, a valori-
zação da negritude nesse período é inegável, bem como a ampliação da presença negra
em posições sociais destacadas.

Poucas coisas ilustram tão bem essa transformação quanto a alteração da compo-
sição racial da população. Pessoas, que, no passado, poderiam branquear-se, passaram a
assumir-se pretas ou pardas nos levantamentos do IBGE e, no quotidiano, a carregar no
corpo as marcas e os símbolos da valorização da negritude. Em vários sentidos, o Brasil
passou por um processo de enegrecimento nas últimas três décadas.

Porém, se no Brasil assumir-se negro pode não ser mais um grande problema, ser
negro continua sendo. Todas as mudanças, como a valorização da negritude, os incon-
táveis estudos, dissertações e teses acadêmicas, a luta sem fim dos ativistas denunciando
o racismo e a discriminação, e a introdução de políticas públicas, deram-se sem abalar
a desigualdade racial de renda. Sua persistência, a despeito de tantos avanços em outras
searas, é assombrosa. De 1986 a 2019, houve apenas uma ridícula redução dessa desi-
gualdade. E parte da redução pode ter sido produzida pelo aumento da declaração de
cor preta ou parda por pessoas relativamente mais ricas, que teria deslocado parte da
desigualdade outrora capturada entre os grupos e entre os brancos para a desigualdade
entre os negros.

Impávida, a renda média dos brancos persiste sendo o dobro da renda dos negros.
Somente em 2014, quando a renda média dos brancos chegou a US$ 24 por dia, a renda
média dos negros ultrapassou o mínimo histórico dos brancos, de US$ 12 em 1992. Na

23
Brasília, maio de 2021

maior parte do tempo, a pior renda média dos brancos esteve acima da melhor média
dos negros. Apenas em quatro anos, 2015, 2016, 2018 e 2019, a maior renda média dos
negros ultrapassou a menor média dos brancos, sem, contudo, chegar aos US$ 13 diários.

Segundo o indicador de desigualdade escolhido, o L de Theil, que confere maior


peso à desigualdade representada pela presença de pessoas muito pobres, a desigualdade
entre as médias dos grupos responde por pouco mais de 10% da desigualdade brasileira.
Em qualquer momento do período em tela, se negros ou brancos brasileiros vivessem
em países separados, ainda seriam excessivamente desiguais. Como aumentou bastante
a parcela da população que se declara preta ou parda, mas pouco mudou a concentração
dos negros entre os mais pobres, a contribuição da desigualdade entre os negros para a
desigualdade brasileira aumentou.

Essas tristes constatações trazem uma lição importante. Desigualdades racial e


de renda são faces da mesma moeda, e não é possível vencer uma sem atacar a outra.
A valorização da negritude e as políticas para a população negra, dissociadas do combate
às desigualdades socioeconômicas e regionais que afetam a todos, não levarão a grandes
reduções da desigualdade racial em poucas décadas. A inércia provocada pelo regime de
baixa mobilidade de renda, per se, garantiria a transmissão da desigualdade racial, ainda
que amenizada, por muitas gerações. No campo das políticas públicas, da mesma forma
que se avançou na constatação da necessidade de programas e ações de combate ao ra-
cismo e à discriminação, é preciso avançar no entendimento de que todas as iniciativas
que contribuem para a redução da desigualdade de renda constituem políticas para a
população negra e para a superação da desigualdade racial.

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27
Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

EDITORIAL

Chefe do Editorial
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Capa
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Aprimorar as políticas públicas essenciais ao desenvolvimento brasileiro
por meio da produção e disseminação de conhecimentos e da assessoria
ao Estado nas suas decisões estratégicas.
Diversidade étnico-racial
Por um projeto educativo emancipatório1

Nilma Lino Gomes*

RESUMO - A partir da sanção da Lei 10.639/03, algumas


iniciativas de formação de professores para a diversidade
étnico-racial vêm se configurando no Brasil, porém, ainda
não são suficientes para superar a situação de desequilíbrio
presente nos processos de formação inicial e continuada.
Inspirada nos estudos de Santos (2004), a autora discute a
necessidade de uma pedagogia das ausências e das emergên-
cias na formação de professores, como procedimento capaz
de reconhecer as ausências e dar visibilidade às práticas
emergentes, sobretudo, aquelas instigadas e/ou realizadas
pelos movimentos sociais.

Palavras-chave: Formação de professores. Lei 10.639/03. Di-


versidade étnico-racial. Movimento negro.

Introdução

D
esde o ano de 2003, os cursos de pedagogia e de licenciatura, as secretarias
municipais e estaduais de educação, assim como o próprio Ministério da
Educação são responsáveis pela realização de políticas e práticas voltadas
para a formação de professores(as) na perspectiva da diversidade étnico-racial2.
Essa paulatina mudança na educação brasileira, diante das questões que dizem
respeito à população negra no Brasil, insere-se em contexto específico: a lei nº 10.639,
uma medida de ação afirmativa, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Sil-
va, em 09 de janeiro de 20033. A Lei torna obrigatória a inclusão do ensino da História
da África e da Cultura Afro-brasileira nos currículos dos estabelecimentos de ensino
públicos e particulares da educação básica. Trata-se da alteração na Lei de Diretrizes

* Doutora em Antropologia Social. Professora da FAE/UFMG e Coordenadora do Programa Ações Afir-


mativas na UFMG. E-mail: nilmagomes@uol.com.br

Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 95
Nilma Lino Gomes

e Bases da Educação Nacional, que deve ser compreendida como uma vitória das
lutas históricas empreendidas pelo Movimento Negro em prol da educação4.
Após o sancionamento da lei 10.639/03, o Conselho Nacional de Educação apro-
vou a resolução 01 de 17 de março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana5. A partir de então, as escolas da educação básica
passam a ter um documento legal, que discute e aprofunda o teor da Lei, capaz, in-
clusive, de orientar a prática pedagógica.
A implementação da lei 10.639/03 e de suas respectivas diretrizes curriculares
nacionais vem se somar às demandas do Movimento Negro, de intelectuais e de ou-
tros movimentos sociais, que se mantêm atentos à luta pela superação do racismo
na sociedade, de um modo geral, e na educação escolar, em específico. Estes grupos
partilham da concepção de que a escola é uma das instituições sociais responsáveis
pela construção de representações positivas dos afro-brasileiros e por uma educação
que tenha o respeito à diversidade como parte de uma formação cidadã. Acreditam
que a escola, sobretudo a pública, exerce papel fundamental na construção de uma
educação para a diversidade.
Nesse contexto, algumas iniciativas de formação de professores(as) voltadas
para a diversidade étnico-racial vêm se configurando. Em vários estados e municí-
pios brasileiros têm sido organizados e ministrados cursos de extensão, de aperfei-
çoamento e de especialização sobre a questão racial, através da articulação entre as
universidades, as secretarias de educação e os movimentos sociais. Os núcleos de
estudos afro-brasileiros, no interior das universidades públicas e privadas do País,
têm sido solicitados a dar apoio a essas e outras iniciativas, por meio da realização
de cursos, oferta de disciplinas, organização de seminários, produção de material di-
dático e de pesquisas voltadas para a educação básica. No entanto, a movimentação
não é suficiente para superar a situação de desequilíbrio enfrentada pela discussão
sobre a diversidade étnico-racial nos processos de formação inicial e continuada de
professores(as).
Mas em que consiste tal desequilíbrio? Refiro-me ao lugar ocupado pela discus-
são e práticas que tematizem a diversidade étnico-racial nos currículos, principalmen-
te aquelas desenvolvidas pelos centros de formação de professores(as). De um modo
geral, essa discussão não tem conseguido ocupar um lugar relevante nos currículos
de graduação do País nas mais diversas áreas. Mesmo que as universidades públicas
estejam passando por um momento de reestruturação dos cursos de licenciatura e de
pedagogia, em função das diretrizes curriculares nacionais específicas de cada área,
a diversidade étnico-racial enquanto uma questão que deveria fazer parte da forma-
ção docente continua ocupando lugar secundário. Esse lugar secundário se expressa,
inclusive, no texto legal das diretrizes específicas para a licenciatura e a pedagogia.

96 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório

Lamentavelmente, os cursos de formação docente ainda mantêm uma estrutura cur-


ricular de caráter disciplinar, gradeada e fechada à introdução dessas e de outras
questões tão caras aos movimentos sociais e tão presentes em nossa vida cotidiana.
Seria interessante analisar os cursos de licenciatura e de pedagogia das universi-
dades nas quais trabalhamos, a fim de mapear o lugar ocupado pela discussão sobre
a diversidade étnico-racial no seu interior. Ela está presente nos currículos? Como?
Ela está condicionada à oferta de disciplina optativa, a critério dos professores consi-
derados militantes ou simpatizantes da questão racial? A diversidade étnico-racial é
considerada uma questão pedagógica que todos(as) deveremos discutir? Ou ainda é
vista como um “problema dos negros”?
Lamentavelmente, nas faculdades de educação do País, não será difícil constatar
a existência de uma estrutura curricular que sequer inclui o debate sobre as demandas
históricas dos movimentos sociais pela educação. As análises presentes nas diferen-
tes disciplinas curriculares dos currículos de licenciatura e pedagogia ainda tendem
a privilegiar os conteúdos, desconectados dos sujeitos, a política educacional sob o
enfoque único do Estado e seus processos de regulação, e as metodologias de ensi-
no sem conexão com os complexos processos por meio dos quais os sujeitos apren-
dem. O caráter conservador dos currículos acaba por expulsar qualquer discussão
que pontue a diversidade cultural e étnico-racial na formação do educador(a). Assim,
o estudo das questões indígena, racial e de gênero, as experiências de educação do
campo, os estudos que focalizam a juventude, os ciclos da vida e os processos educa-
cionais não-escolares deixam de fazer parte da formação inicial de professores(as) ou
ocupam um lugar secundário nesse processo.
Mas, como o campo educacional é dinâmico e tenso, nessas mesmas institui-
ções, núcleos e/ou grupos de pesquisa e coletivos de intelectuais seguem lutando
por uma outra perspectiva de educação - que tenha como norte a construção de um
projeto educativo emancipatório. Muitos desses grupos e coletivos vêm ofertando
disciplinas optativas na graduação, realizando cursos de extensão, aperfeiçoamento
e especialização e intervêm em práticas alternativas de formação docente (educação
do campo, quilombola, indígena e de pessoas com deficiência), mesmo que elas não
ocupem o eixo central dos currículos. Desta forma, há várias práticas de formação
de professores(as) nas quais a diversidade étnico-racial encontra lugar na formação
continuada e entra com muita dificuldade nos processos de formação inicial.
Tal desequilíbrio nos currículos expressa o quanto a formação de professores(as)
ainda precisa avançar. Ele revela a tensão nas relações de poder frente às diferentes
interpretações e tendências nos debates e nas práticas de formação inicial e conti-
nuada de professores(as) da educação básica. Indo mais longe, a tensão expressa o
predomínio de um certo tipo de racionalidade, que impera nos meios acadêmicos e
afeta a formação docente. Trata-se da concepção que considera e elege o conhecimen-

Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 97
Nilma Lino Gomes

to científico como a única forma legítima de saber e menospreza os outros saberes


construídos na dinâmica social, sobretudo aqueles produzidos e sistematizados pelos
movimentos sociais. Uma visão, enfim, que coloca sob suspeita as análises e refle-
xões que discutem a aprendizagem como prática cultural, o caráter educativo dos
movimentos sociais, a força emancipatória das lutas sociais em prol da educação, no
final do século XX e início do século XXI, e os diferentes espaços nos quais o processo
educativo acontece.
A discussão e a inclusão da diversidade cultural e étnico-racial na formação de
professores(as) participa desse processo tenso. Dentro de contexto mais amplo, o en-
foque específico sobre o segmento negro da população enfrenta uma situação, no
mínimo, peculiar: os(a) próprios(as) formadores(as) de professores(as) revelam total
desconhecimento sobre os processos educativos implementados pela comunidade
negra, bem como sobre as diferentes formas e níveis de inserção dos negros na edu-
cação escolar, ao longo da história da educação brasileira. Processos que não são uni-
formes e sofrem variações no tempo e no espaço.
Atualmente, os dados sobre desigualdades raciais e sociais (Henriques, 2001),
as pesquisas sobre os impactos do racismo na vida, na identidade, na trajetória pes-
soal e coletiva dos negros e negras brasileiros (Gomes, 1995; Munanga, 2004),
dentre outros, atestam que a melhor forma de superar a situação é reconhecer a exis-
tência do racismo e adotar uma postura política e pedagógica que vise a sua supe-
ração. No caso específico da educação escolar, será necessário conhecer e analisar as
experiências significativas de diversidade étnico-racial no interior das escolas, produ-
zir conhecimento sobre o tema, compreender as demandas dos movimentos sociais
e construir práticas pedagógicas de superação do racismo que possam articular o
conhecimento acadêmico com o conhecimento produzido pelos movimentos sociais.
É preciso desnaturalizar o lugar ocupado pela diversidade étnico-racial na escola.
Essa discussão precisa fazer parte da formação inicial de professores e professoras e
não somente das práticas de formação continuada. É também um importante tema de
pesquisa para o campo da formação de professores(as) no Brasil o qual ainda insiste
em se manter distante e neutro em relação à diversidade, mesmo quando se discute
o professor reflexivo, as experiências pessoais e coletivas dos(as) professores(as), (a)
professor(a) como sujeitos da sua própria prática e a condição docente.

Formação, emancipação, educação

Inspirada nas reflexões do sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2004) acerca


da sociologia das ausências e das emergências, podemos dizer que o campo da formação
de professores(as) também precisa ser indagado por uma concepção crítica de ciência

98 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório

e de formação6. Uma crítica que compreenda e torne credíveis os saberes produzidos


pelos movimentos sociais e as ações educativas por eles desencadeadas os quais fo-
ram ativamente produzidos como ausências nos currículos, nas pesquisas e nas po-
líticas educacionais. Trata-se, portanto, da construção de uma pedagogia das ausências
e das emergências.
A pedagogia das ausências consiste em um exercício político e epistemológico cujo
objetivo principal é transformar as ausências e a invisibilidade que recaem sobre os
movimentos sociais e seus saberes - no campo da formação de professores(as) - em
presenças. No entanto, não basta apenas dar visibilidade. É preciso reconhecer o que
emerge de novo e de emancipatório dessas práticas. Para tal, precisamos realizar um
segundo e desafiador procedimento: a pedagogia das emergências.
A pedagogia das emergências poderá nos ajudar a lançar indagações mais profun-
das sobre a tensão presente entre os estudos e discursos críticos realizados no campo
da formação de professores(as) e a persistência de currículos lineares e conservadores
dos cursos de formação inicial. Estes últimos acabam por reduzir a formação do(a)
professor(a) ao domínio de competências e habilidades. Além disso, a pedagogia das
emergências poderá contribuir para a reflexão sobre as estratégias e eixos das práticas
de formação continuada que temos realizado.
A pedagogia das emergências tem como norte a investigação das alternativas pedagógi-
cas já existentes nas práticas sociais e políticas dos movimentos sociais, das diversas ações
coletivas e sua articulação com o espaço escolar. Aqui está o seu caráter emancipatório.
É nesse campo que encontramos as práticas significativas voltadas para a diver-
sidade étnico-racial e a lei 10.639/03. No caso específico dessa lei - entendida como
uma medida de ação afirmativa -, o Movimento Negro, ao pleiteá-la, investe estrate-
gicamente na ampliação do presente, juntando, ao real, as possibilidades e as expec-
tativas futuras de superação do racismo e do mito da democracia racial.
Neste contexto, podemos dizer que as ações do Movimento Negro brasileiro,
realizadas pelas suas diversas entidades, têm sido marcadas por uma perspectiva
educacional aguçada, explicitada nos seus diversos projetos e propostas.
O movimento negro brasileiro tem se destacado na história do País como sujeito
político cujas reivindicações conseguiram, a partir do ano 2000, influenciar o governo
brasileiro e os seus principais órgãos de pesquisa, tais como o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)7.
Esse reconhecimento político tem possibilitado, nos últimos anos, a mudança dentro
de vários setores do governo e, sobretudo, nas universidades públicas, como, por
exemplo, o processo de implementação de políticas e práticas de ações afirmativas
voltadas para a população negra.
Das formas de organização dos negros após a Abolição da Escravatura e depois
da Proclamação da República, a literatura mostra que, desde meados do século XX,

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Nilma Lino Gomes

a educação já era considerada espaço prioritário de ação e de reivindicação. Quanto


mais a população negra liberta passava a figurar na história com o status político de
cidadão (por mais abstrato que tal situação se configurasse no contexto da desigual-
dade racial construída pós-abolição), mais os negros se organizavam e reivindicavam
escolas que incluíssem sua história e sua cultura.
Os estudos de Pinto (1994), Gomes (1999), Gonçalves; Gonçalves e Silva (2000),
Silvério (2002), Passos (2004) e Gomes (2006b) revelam que o Movimento Negro, no
Brasil, conquanto sujeito político, tem sido o principal responsável pelo reconheci-
mento do direito à educação para a população negra, pelos questionamentos ao cur-
rículo escolar no que se refere ao material didático com imagens estereotipadas sobre
o negro, pela inclusão da temática racial na formação de professores(as), pela atual
inclusão da história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos escolares via
lei federal e pelas políticas de ação afirmativa nas suas mais diferentes modalidades.
Nesse sentido, é possível afirmar que o Movimento Negro apresenta, historica-
mente, um projeto educativo, construído à luz de uma realidade de luta. Esse projeto
se choca, muitas vezes, com a racionalidade hegemônica que impera na teoria social
e pedagógica, visto que apresenta outro tipo de saber, construído numa história em
que a diversidade étnico-racial sempre esteve presente, em que a alteridade sempre
esteve pautada, não só no reconhecimento do outro, mas na luta política de ser reco-
nhecido como um outro, com o direito de viver a sua diferença e ver sua cultura e sua
identidade respeitadas tanto no cotidiano das escolas e dos seus currículos quanto
na política educacional. Esses “saberes em movimento” questionam a pedagogia e
a teoria educacional acerca da forma como estas se relacionam com os saberes cons-
truídos pelos movimentos sociais. Os espaços políticos dos movimentos sociais são,
portanto, produtores de uma epistemologia tão legítima quanto a que é considerada
hegemônica pela educação e pela teoria social. O acúmulo da experiência política
e de vida da comunidade negra organizada no Brasil se articula, também, com as
iniciativas negras na América Latina, pouco discutidas pela teoria educacional e pela
História da Educação brasileira.
Um ponto que merece ser destacado é que os negros organizados em movimento
sempre enfatizaram o cuidado profundo com a construção da democracia para todos
os segmentos étnico-raciais. No entanto, a comunidade negra organizada não busca
a democracia abstrata, a cidadania para poucos mas, sim, a igualdade e a cidadania
reais, que respeitem a todos na sua diversidade.
Ainda inspirada nas reflexões de Santos (1996), considero os processos e proje-
tos educativos construídos pelo Movimento Negro no Brasil e também na América
Latina como emancipatórios. A emancipação, entendida como transformação social
e cultural, como libertação do ser humano, sempre esteve presente nas ações da co-
munidade negra organizada, tanto no período da escravidão quanto no pós-abolição

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Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório

e a partir do advento da República. O fato de essas ações serem projetos e propostas


construídos por um povo que tem a sua história e a sua cultura desenvolvidas no
contexto da colonização, da dominação, da escravidão, do racismo e da desigualda-
de social e racial atesta o caráter emancipatório das lutas e da organização política
dos negros no Brasil e na diáspora. Esse caráter também é atestado pelas mudanças
sociais, educacionais, culturais e políticas que a comunidade negra em movimento con-
segue imprimir nos vários países da diáspora africana.
Segundo Santos (1996), todo projeto emancipatório está baseado em um perfil
epistemológico que abriga um conflito. O conflito é visto, aqui, ocupando o centro
de toda experiência pedagógica emancipatória. Segundo ele, o conflito serve, antes
de mais nada, para tornar vulnerável e desestabilizar os modelos epistemológicos
dominantes e para olhar o passado através do sofrimento humano, que, por via deles
e da iniciativa humana a eles referida, foi indesculpavelmente causado. Esse olhar
produzirá imagens desestabilizadoras, susceptíveis de desenvolver nos estudantes e
nos professores(as) a capacidade de espanto, de indignação e uma postura de incon-
formismo, necessárias para olhar com empenho os modelos dominados ou emergen-
tes, por meio dos quais é possível aprender um novo tipo de relacionamento entre
saberes e, portanto, entre pessoas e entre grupos sociais. Poderá emergir, daí, um
relacionamento mais igualitário e mais justo, que nos faça apreender o mundo de
forma edificante, emancipatória e multicultural.
Essa dimensão do conflito é explicitada na ação do Movimento Negro, quando
ele pauta a diversidade étnico-racial como realidade e uma questão para a socieda-
de e para a educação brasileiras. É realidade, uma vez que, apesar da existência do
mito da democracia racial, a sociedade brasileira não consegue fugir da negritude,
conquanto diferença inscrita no seu corpo, na sua cultura, na sua história e na sua an-
cestralidade. É uma questão, já que qualquer discussão mais aprofundada sobre a di-
versidade étnico-racial tem de vir acompanhada da compreensão sobre as desigual-
dades raciais. No contexto histórico e político brasileiro, as diferenças étnico-raciais
foram naturalizadas, desnudadas da sua riqueza e transformadas em desigualdade.
Dessa forma, quando a escola, a universidade e a política educacional colocam em
pauta a discussão, as práticas, os projetos e as políticas voltadas para a diversidade
étnico-racial, tendo como foco o segmento negro da população, o contexto da de-
sigualdade se põe na ordem do dia e, em consequência disso, medidas para a sua
superação precisam ser implementadas.

Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 101
Nilma Lino Gomes

Ações afirmativas, confluência de saberes

O acúmulo de saberes produzidos pelo movimento negro faz parte de uma história
ancestral de luta e resistência, que ganha corpo na sua demanda pela educação a partir
do início do século XX. Essa luta se intensifica ainda mais a partir do início do século XXI,
quando este movimento social se organiza em torno das políticas de ações afirmativas.
As ações afirmativas são compreendidas, aqui, não só como políticas e práticas
públicas e privadas que visam à correção e superação das desigualdades impostas,
ao longo da história, a determinados grupos sociais é étnico-raciais. Elas são vistas
como lócus em que confluem princípios gerais de um outro modelo de racionalidade
e saberes emancipatórios produzidos pela comunidade negra e sistematizados pelo
Movimento Negro ao longo dos tempos. Saberes que ainda se fazem ausentes dos
estudos e das práticas de formação de professores(as).
O momento atual de luta pelas ações afirmativas e os impactos que tais políticas
vêm causando na sociedade e, principalmente, na educação superior, pode ser conside-
rado como o espaço-tempo de alargamento desses saberes. Dentre eles, destacarei, nos
limites deste artigo, apenas três: os políticos, os identitários e os estéticos (corpóreos):
a) Os saberes políticos – nunca a universidade, os órgãos governamentais, sobre-
tudo o Ministério da Educação produziram, debateram e aprenderam tanto sobre as
desigualdades raciais como no atual momento da luta pelas ações afirmativas. Tais
ações tocam, de maneira nuclear, na cultura política e nas relações de poder. Seja
para confirmá-las, seja parar refutá-las, a universidade passou a dedicar parte do
seu tempo a perceber que os jovens negros existem, que grande parcela deles não
está presente nos bancos das universidades públicas e que eles lutam pelo direito de
entrar nesse lugar e partilhar desse espaço de produção do conhecimento.
As poucas universidades brasileiras que já implementaram ações afirmativas no
ensino superior brasileiro, mediante políticas de acesso e permanência, têm que lidar
com a chegada de sujeitos sociais concretos, com outros saberes, outra forma de cons-
truir o conhecimento acadêmico e com outra trajetória de vida, bem diferentes do tipo
ideal de estudante universitário hegemônico e idealizado em nosso país. Temas como
diversidade, desigualdade racial e vivências da juventude negra passam a figurar no con-
texto acadêmico, mas sempre com grande dificuldade de ser considerados “legítimos”.
A tensão atinge a própria população negra, que se vê, muitas vezes, reproduzin-
do o discurso da ideologia do dom e se mostra contrária a essa política. Nem sempre,
porém, o próprio Movimento Negro, conquanto protagonista desse processo, possui
tempo e espaço para reflexão de que a sua luta política está contribuindo para a mu-
dança epistemológica na universidade e nos rumos do conhecimento científico. De
tal maneira a universidade se configura, historicamente, como o único lócus de pro-
dução de saber, que, muitas vezes, os próprios movimentos sociais têm dificuldade

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Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório

de compreender que as suas práticas e os saberes por eles produzidos, ao se tornarem


públicos, confrontam a teoria pedagógica e social.
b) Os saberes identitários – as ações afirmativas recolocam o debate sobre a “raça”8
no Brasil, institucionalizam o uso das categorias de cor (preto, branco, pardo, ama-
relo e indígena) nos formulários socioeconômicos dos candidatos aos exames vesti-
bulares, nos censos educacionais, trazendo a auto-declaração racial para o universo
dos brasileiros, sobretudo o das camadas médias, quando os seus filhos precisam se
auto-declarar na política de cotas.
No contexto das ações afirmativas, a discussão sobre quem é negro e quem é
branco, no Brasil, ressurge não somente no interior da militância negra mas nos ór-
gãos do governo, no debate público, na mídia, nas escolas de educação básica e nas
universidades. Em muitas situações, são os ativistas negros (alguns já inseridos na
universidade e outros não) os chamados a falar, a explicar e a expressar todo o saber
que acumularam, na militância, sobre a construção da identidade negra e sobre as
tensas relações entre negros e brancos no Brasil. São, também, os intelectuais e os
ativistas negros convidados a escrever livros didáticos, a publicar suas pesquisas, a
escrever artigos sobre a questão racial, nas mais diversas áreas, e a questão da identi-
dade é colocada em pauta, com todas as contradições e os conflitos que ela acarreta.
c) Os saberes estéticos são pensados, aqui, no que se refere à corporeidade (pode-
mos dizer que as ações afirmativas reeducam os negros e as negras na sua relação
com o corpo). Ao se posicionar favoravelmente a essa política; ou ao participar de
um processo de seleção baseado no critério de cotas raciais; ou ao se identificar como
negro no Brasil - o sujeito participa de um processo de mudança de lógica corporal.
O corpo fala a respeito do nosso estar no mundo, visto que a nossa localização na
sociedade se dá por sua mediação no espaço e no tempo. Estamos diante de uma rea-
lidade dupla e dialética, isto é, ao mesmo tempo em que é natural, o corpo é também
simbólico. Ele pode ser a “referência revolucionária da universalidade do homem no
contraponto crítico e contestador à coisificação da pessoa e à exploração do homem
pelo homem na mediação das coisas” (Martins, 1999, p. 54).
Segundo Gomes (2006a), na construção da sua identidade na sociedade brasi-
leira, o negro, sobretudo a mulher negra, constrói sua corporeidade, através de um
aprendizado que incorpora um movimento tenso e dialético de rejeição/aceitação,
negação/afirmação do corpo.
É possível observar que jovens negros participantes de processos de ações afir-
mativas tendem a estabelecer uma relação diferente com a sua corporeidade. Há,
então, a produção de outro saber sobre o corpo, que passa a ser compartilhado com
pessoas de outros segmentos étnico-raciais e a ser notado pelas famílias. De certa
forma, há uma invasão do corpo negro nos espaços que, antes, não estavam acostu-
mados a lidar com tal corporeidade.

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Nilma Lino Gomes

No caso da universidade, só o fato de esses jovens passarem a frequentar os


espaços acadêmicos traz uma corporeidade outra, acompanhada da produção de ou-
tras experiências e significados. São corpos negros que se contrapõem à ideologia da
cor e do corpo do brasileiro. O saber corpóreo é acompanhado de uma tensão e de um
conflito entre padrões estéticos de beleza e fealdade, que, no Brasil, passam pela dis-
cussão étnico-racial. Estamos, portanto, em uma zona de tensão. É dela que emerge
um padrão de beleza corporal real e um ideal. No Brasil, esse padrão ideal é branco,
mas o real é negro e mestiço.
Portanto, a luta por ações afirmativas enquanto políticas de correção das de-
sigualdades vem se configurando como uma demanda importante do Movimento
Negro brasileiro e como espaço de confluência de saberes. Trata-se de uma reivindi-
cação que vai além das cotas.
Dessa forma, as ações afirmativas possuem o potencial contestatório capaz de
desencadear um processo de re-educação da sociedade, do Estado, da escola e da for-
mação de professores(as) em relação à diversidade étnico-racial. Nesse sentido, elas
trazem em si a esperança e a possibilidade de construção de um projeto educativo
emancipatório, nos dizeres de Santos (1996).
A sanção da Lei 10.639/03 e a implementação das Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana são medidas de ação afirmativa voltadas para a
educação básica que pressionam, também, o ensino superior. Por isso, mais do que
uma legislação ou um elemento a mais na estrutura burocrático-normativa, essa lei
e as suas diretrizes podem ser interpretadas como expressão da luta do Movimento
Negro e como possibilidade de socialização, investigação, divulgação e registro de sa-
beres políticos, históricos, identitários e estéticos/corpóreos por ele sistematizados.
Além disso, o fato de a lei 10.639/03 ter sido incorporada na LDB (lei 9394/96)
revela que ela pode ser considerada a experiência de ação afirmativa que, do ponto
de vista legal, mais se aproxima da concepção da igualdade que contempla a diver-
sidade, pois trata-se de principio orientador para toda a educação básica e é dever das
escolas públicas e privadas. O desafio é transformar esse princípio legal em práticas
pedagógicas efetivas e significativas e introduzi-lo nos currículos de formação inicial
e continuada de professores(as).

Conclusão

A lei 10.639/03 não pode ser interpretada apenas como resposta do Estado à rei-
vindicação de um movimento social. Para realizar uma reflexão que vai além desse
olhar burocrático e estatal, será preciso localizar o surgimento da legislação no con-

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Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório

texto das lutas e dos saberes da comunidade negra, organizados e sistematizados pelo
Movimento Negro. Para tal, faz-se necessário mais do que o reconhecimento da ação
dos africanos(as) escravizados e dos negros e negras brasileiros como sujeitos históri-
cos e sociais e a inclusão desse debate nos processos e práticas de formação docente.
Para tal, somos desafiados a realizar uma mudança epistemológica, no campo
da formação de professores(as) no Brasil, que vá além das velhas dicotomias entre o
escolar e o não-escolar, o político e o cultural, o instituído e o instituinte, ainda pre-
sentes em vários currículos e práticas de formação de professores.
Quem sabe, a educação para a diversidade étnico-racial - e as indagações que
ela traz aos processos de formação inicial e continuada de professores(as) - poderá
ser um dos caminhos para a construção de subjetividades mais democráticas, nos
dizeres de Santos (1996). Poderá ser a indicação de uma mudança nos currículos dos
cursos de licenciatura e de pedagogia, numa perspectiva emancipatória.

Recebido e aprovado em novembro de 2008.

Notas

1 Esse texto é parte das reflexões do pós-doutoramento da autora, realizado no Centro de Estudos Sociais, da Fa-
culdade de Economia da Universidade de Coimbra, sob a supervisão do prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos,
com apoio do CNPq. A continuidade desse trabalho tem sido realizada por meio da pesquisa Educação para a
diversidade, movimento negro e saberes, com apoio do CNPq.

2 Esclareço, desde já, que a expressão diversidade étnico-racial, no presente texto, refere-se às dimensões, aos signifi-
cados e às questões que envolvem a história, a cultura, a política, a educação e a vida social dos negros (pretos e
pardos) no Brasil.

3 Em 2008, a Lei 10.639/03 foi alterada para 11.645 e passou a incluir a história e cultura dos povos indígenas bra-
sileiros. No entanto, como esse artigo enfatizará o primeiro recorte específico da Lei, a saber, o segmento negro e
africano, optou-se por manter a numeração inicial, ou seja, 10.639/03.

4 Portanto, a partir do ano de 2003, a lei 9.394/96 passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos: 26-A, 79-A e 79-B
(Incluído pela Lei nº 10.639, de 9/1/2003):

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currí-
culo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Art. 79-A. (VETADO)

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. (Grifos
da autora).

5 Tal resolução, fundamentada no Parecer CNE/CP 3/2004 dos conselheiros Petronilha Beatriz Gonçalves e

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Nilma Lino Gomes

Silva (relatora), Carlos Roberto Jamil Cury (membro), Francisca Novantino Pinto de Ângelo (membro)
e Marília Ancona-Lopez (membro), aprovado por unanimidade pelo Pleno do Conselho Nacional de
Educação em 10.03.2004 e homologado pelo Ministro da Educação em 19.05.2004.

6 A esse respeito, conferir Gomes (1999; 2006a; 2006b) e Santos (2004 e 2006).

7 Ver: Henriques, 2001.

8 “‘Raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário, de um conceito
que se denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos
sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças li-
mita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite
– ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos –, tal
conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser
travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite” (GUIMARÃES, 1999, p. 9).

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Nilma Lino Gomes

Racial and Ethnical Diversity


For an emancipatory educational project
Abstract: Since the approval of the Law 10.639/03, some initiatives of teachers’ training for the
ethnical and racial diversity have been set up in Brazil; however, they are still not sufficient to overcome
the situation of imbalance in the processes of initial and ongoing training. Based on the studies of
Santos (2004), the author discusses the need for a pedagogy of absences and emergencies in the training
of teachers, as a procedure capable of recognizing the absences and rendering visible the emerging
practices, especially those instigated and / or carried out by social movements.

Keywords: Training of teachers. Law 10.639/03. Ethnical and racial diversity. Black movement.

Diversité ethnique et raciale


Pour un projet éducatif émancipateur
Résumé: À partir de la sanction de la Loi 10.639/03, certaines initiatives pour la formation d’ensei-
gnants pour la diversité ethnique et raciale ont été mis en place au Brésil, elles ne sont pas encore suffi-
santes, cependant, pour surmonter la situation de déséquilibre dans ce processus de formation initiale
et continue. Inspirée dans d’études de Santos (2004), l’auteur discute la nécessité d’une pédagogie des
absences et des situations d’urgence dans la formation d’enseignants, en tant que procédure capable
de reconnaître les absences et de donner la visibilité aux pratiques émergentes, surtout celles qui sont
encouragées et / ou effectuées par les mouvements sociaux.

Mots-clés: Formation d’enseignants. Loi 10.639/03. Diversité ethnique et raciale. Mouvement noir.

Diversidad étnico-racial
Para un proyecto educativo emancipatorio
Resumen: A partir de la sanción de la Ley 10.639/03, algunas iniciativas de formación de profesores
para la diversidad étnico-racial se han presentado en Brasil, sin embargo, no son aún suficientes para
superar la situación de desequilibrio en este proceso de formación inicial y continuada. Basándose en
estudios de Santos (2004), la autora discute la necesidad de una pedagogía de las ausencias y de las si-
tuaciones de emergencia en la formación de los profesores, como procedimiento capaz de reconocer las
ausencias y dar visibilidad a las prácticas emergentes, especialmente a aquellas instigadas y/o llevadas
a cabo por los movimientos sociales.

Palabras clave: Formación de los docentes. Ley 10.639/03. Diversidad étnico-racial. Movimiento negro.

108 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
Accelerat ing t he world's research.

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS,
EDUCAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO
DOS CURRÍCULOS
Nilma Lino Gomes

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Revist a de Ciências do Est ado (REVICE) UFMG, Mariana Cast ro Teixeira

Educacao e Relacoes Ét nico-raciais


Reginaldo Fernandes de Melo

Educação e Relações Et nicorraciais UFRRJ


Jorge Sant os
Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS,
EDUCAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO
DOS CURRÍCULOS
Nilma Lino Gomes
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Resumo
Este artigo discute as tensões e os processos de descolonização dos currículos na escola brasileira.
Enfatiza a possibilidade de uma mudança epistemológica e política no que se refere ao trato da
questão étnico-racial na escola e na teoria educacional proporcionada pela introdução obrigatória
do ensino de História da África e das culturas afro-brasileiras nos currículos das escolas públicas e
particulares do ensino fundamental e médio.
Palavras-chave: Currículo; educação; relações étnico-raciais; descolonização

Abstract
This paper discusses the tensions and the processes of curriculum decolonization in Brazilian
schools. It emphasizes the possibilities of epistemological changes and policies related to ethnic-
racial issues in schools as well as the educational theories derived from the mandatory teaching of
African history and Afro-Brazilian cultures in the curricula of public and private, basic and middle
schools.
Key words: Curriculum, education, ethnic-racial relations, decolonization

ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 98


Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos

Vivemos um momento ímpar no campo do conhecimento. O debate sobre a


diversidade epistemológica do mundo encontra maior espaço nas ciências humanas e
sociais. É nesse contexto que a educação participa como um campo que articula de maneira
tensa a teoria e a prática. Podemos dizer que, embora não seja uma relação linear, os
avanços, as novas indagações e os limites da teoria educacional têm repercussões na prática
pedagógica, assim como os desafios colocados por essa mesma prática impactam a teoria,
indagam conceitos e categorias, questionam interpretações clássicas sobre o fenômeno
educativo que ocorre dentro e fora do espaço escolar.
Esse processo atinge os currículos que, cada vez mais são inquiridos a mudar. Os
dilemas para os formuladores de políticas, gestores, cursos de formação de professores e
para as escolas no que se refere ao currículo são outros: adequar-se as avaliações
standartizadas nacionais e internacionais ou construir propostas criativas que dialoguem,
de fato, com a realidade sociocultural brasileira, articulando conhecimento científico e os
outros conhecimentos produzidos pelos sujeitos sociais em suas realidades sociais,
culturais, históricas e políticas? Compreender o currículo como parte do processo de
formação humana ou persistir em enxergá-lo como rol de conteúdos que preparam os
estudantes para o mercado ou para o vestibular? E onde entra a autonomia do docente? E
onde ficam as condições do trabalho docente, hoje, no Brasil e na América Latina? Como
lidar com o currículo em um contexto de desigualdades e diversidade?
Nesse contexto, é possível dizer que a teoria educacional e o campo do currículo
participam de um movimento apontado por Santos (2006) composto por duas vertentes: a
interna, que questiona o caráter monolítico do cânone epistemológico e se interroga sobre a
relevância epistemológica, sociológica e política da diversidade interna de práticas
científicas dos diferentes modos de fazer ciência e da pluralidade interna da ciência; e a
externa, que se interroga sobre a exclusividade epistemológica da ciência e se concentra nas
relações entre a ciência e outros conhecimentos, ou seja, aquela que diz respeito à
pluralidade externa da ciência. Segundo o autor acima citado, essas vertentes podem ser
compreendidas como dois conjuntos de epistemologias que procuram, a partir de diferentes
perspectivas, responder às premissas culturais da diversidade e da globalização.
Pode-se dizer que, na teoria educacional e na prática do currículo, esses dois conjuntos
de epistemologias são produzidos por um movimento dinâmico: as reflexões internas à
ciência e as questões colocadas pelos sujeitos sociais organizados em movimentos sociais e
ações coletivas ao campo educacional. Quanto mais se amplia o direito à educação, quanto
mais se universaliza a educação básica e se democratiza o acesso ao ensino superior, mais
entram para o espaço escolar sujeitos antes invisibilizados ou desconsiderados como
sujeitos de conhecimento. Eles chegam com os seus conhecimentos, demandas políticas,
valores, corporeidade, condições de vida, sofrimentos e vitórias. Questionam nossos
currículos colonizados e colonizadores e exigem propostas emancipatórias. Quais são as
respostas epistemológicas do campo da educação a esse movimento? Será que elas são tão
fortes como a dura realidade dos sujeitos que as demandam? Ou são fracas, burocráticas e
com os olhos fixos na relação entre conhecimento e os índices internacionais de
desempenho escolar?
Por isso, uma análise que nos permita avançar ou compreender de maneira mais

99
NILMA LINO GOMES

profunda esse momento da educação brasileira não pode prescindir de uma leitura atenta
que articule as duras condições materiais de existência vivida pelos sujeitos sociais às
dinâmicas culturais, identitárias e políticas. É nesse contexto que se encontra a demanda
curricular de introdução obrigatória do ensino de História da África e das culturas afro-
brasileiras nas escolas da educação básica. Ela exige mudança de práticas e descolonização
dos currículos da educação básica e superior em relação à África e aos afro-brasileiros.
Mudanças de representação e de práticas. Exige questionamento dos lugares de poder.
Indaga a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e
educacional, em nossas escolas e na própria universidade.
Mas a escola básica e a universidade não poderão fazer sozinhas a reflexão sobre esse
processo. Para tal, o debate epistemológico sobre o diálogo interno e externo à ciência é
necessário. E é sobre esse debate que o presente artigo se propõe discutir a partir das
reflexões geradas por uma experiência singular: o musical Besouro Cordão-de-Ouro,
dirigido por João das Neves e apresentado no 4º FAN (Festival Internacional de Arte
Negra) no dia 25 de novembro de 2007, em Belo Horizonte, Minas Gerais.1 A peça narra a
trajetória, a história e as lutas daquele que é considerado um dos mais importantes nomes
da capoeira, no Brasil, também conhecido como Besouro de Mangangá. É a partir da
relação entre a peça teatral, a história desse homem negro, a nossa ignorância cultural e
epistêmica sobre as relações étnico-raciais, no Brasil, que as indagações sobre o currículo
serão aqui formuladas. Vamos, então, primeiramente, adentrar o espaço cênico e conhecer a
encenação teatral e o seu personagem central.

As indagações ao currículo que vêem das trajetórias afro-brasileiras

As artes têm reconhecido a centralidade das tensas relações étnico-raciais que


acompanham a nossa formação social e cultural. A peça Besouro Cordão-de-Ouro pode ser
reconhecida com um exemplo.

Somos todos convidados a entrar. O cômodo é pequeno, abafado e pouco


iluminado. O sussurro das vozes, o calor e a penumbra tornam o lugar misterioso
e, ao mesmo tempo, um pouco apavorante. O chão é coberto de areia grossa. Ao
pisarmos, os grãos arranham os nossos pés e sujam os nossos sapatos, causando
incômodo. No centro da sala, deparamo-nos com um caixão. Os amigos e as
amigas do morto nos convidam a olhar pela última vez aquele ilustre capoeirista
cujo corpo, antes tão ágil, permanece agora rígido e frio.
No entanto, qual não foi a nossa surpresa ao olharmos dentro do caixão e nos
depararmos com a nossa própria imagem refletida no espelho que se encontrava
no interior do ataúde. O morto não estava lá. Mas a sua presença impregnada no
espelho e na imagem que o mesmo refletia nos transmitia uma mensagem clara:
a finitude da vida iguala a todos e para a morte não existe poder, credo, raça,
etnia, classe social, geração e nem gênero. Somos todos humanos, ao mesmo
tempo, cheios de potencial de vida e repletos de finitude.
Ainda sem compreender o que acontecia, seguimos os amigos e as amigas do

100
Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos

morto que nos chamaram para uma espécie de “procissão” e nos levaram a um
outro cômodo mais iluminado, cujas paredes estavam cobertas de velhos
engradados de bebida, com algumas cadeiras e muitas almofadas no chão. No
meio um pequeno círculo e ao fundo alguns instrumentos musicais.
De repente, com voz firme, um dos amigos do morto começou a entoar, na
forma de canto, a vida daquele que agora já não estava mais fisicamente entre
nós. Logo em seguida, outros homens e mulheres começam a participar da
narrativa-canto e contam a história daquele homem que logo seria enterrado. A
história era contada por meio da música, da fala, da dança, de gestos e golpes de
capoeira. No decorrer do enterro, todos nós compreendemos não só a história
daquele que seria enterrado, como também um pouco mais da história da
capoeira no Brasil e sua inter-relação com a África e a diáspora africana.

O espetáculo teatral cuja cena de abertura foi acima descrita representou um momento
ímpar e, ao assisti-lo, não tive como deixar de relacionar a experiência ali narrada com a
história de luta da população negra, no Brasil, e os processo de educação e reeducação que
esse segmento implementa a si mesmo e à nossa sociedade. Processos esses ainda
invisibilizados pelos currículos escolares e pela própria teoria educacional. Naquele
momento, talvez poucas pessoas conhecessem a história do Besouro, o qual ganhou maior
visibilidade fora do círculo da capoeira após o sucesso dessa peça teatral exibida em vários
lugares do país. A popularidade do capoeirista também passou a atingir um público maior
quando sua história foi transformada em filme exibido em diversos estados brasileiros e
assistido, inclusive, fora do país.2 Nesse artigo farei menções ao teatro e não me aterei ao
filme. Mas a minha sugestão ao leitor é que o assista para compreender como a história de
Besouro fala muito da trajetória de negros e negras no Brasil, assim como de muitas outras
pessoas que, a seu modo, implementaram vários tipos de luta pela liberdade e pela
dignidade.
A trajetória de Besouro, suas experiências, desafios, luta por justiça, contradições e
coragem vividas nos anos 20 do século passado são conhecidas não só dentro do universo
da capoeira, mas também por aqueles que vivenciam com orgulho a cultura afro-brasileira.
São vivências fortes da trajetória de um homem que remetem a situações específicas da
população negra e, ao mesmo tempo, às lutas das camadas populares no Brasil. Nos dizeres
de Milton Nascimento, “um povo que nunca perde a esperança de ter fé na vida”.
No decorrer da peça, encenada por atores e atrizes negros, cariocas e mineiros, a
trajetória de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão-de-Ouro, lendário capoeirista da
região de Santo Amaro, na Bahia, era narrada, interpretada, vivida, sentida de maneira
interativa entre atores e público. Os jovens atores se misturavam no meio do povo,
assentavam com a platéia, conversavam e olhavam. A reação era imediata: o público ouvia,
via, sentia, vibrava, batia palmas, sorria, chorava, cantava e, até mesmo, jogava capoeira.
A história de Besouro Cordão-de-Ouro era contada e cantada, tocada e sentida com a
fala, a musicalidade, os gestos e a corporeidade. Os jovens atores e atrizes dançavam com
força e intensidade e emitiam vários sons. Por meio da história daquele capoeirista, narrada
de forma artística e ritualística, muito do Brasil pós-abolição, da vida dos negros na Bahia,
da luta e resistência negras, dos encontros e desencontros afetivos, da política, da

101
NILMA LINO GOMES

organização da população negra foi contado e aprendido pela platéia. Para além do objetivo
artístico, a peça trouxe para aquele público uma excelente “aula” na qual se enfatizou a
relação entre conhecimento, cultura e ação política. Talvez de forma mais didática e mais
criativa do que todo o nosso empenho em diversificar as aulas que ministramos nos cursos
de graduação e pós-graduação e na educação básica.
Mas por que será? Não só pela beleza e competência do elenco e da direção, mas
porque aquele espetáculo e o próprio contexto do FAN atuam em outro registro e dialogam
com outro paradigma de conhecimento. Um paradigma que não separa corporeidade,
cognição, emoção, política e arte. Um paradigma que compreende que não há hierarquias
entre conhecimentos, saberes e culturas, mas, sim, uma história de dominação, exploração,
e colonização que deu origem a um processo de hierarquização de conhecimentos, culturas
e povos. Processo esse que ainda precisa ser rompido e superado e que se dá em um
contexto tenso de choque entre paradigmas no qual algumas culturas e formas de conhecer
o mundo se tornaram dominantes em detrimento de outras por meio de formas explícitas e
simbólicas de força e violência. Tal processo resultou na hegemonia de um conhecimento
em detrimento de outro e a instauração de um imaginário que vê de forma hierarquizada e
inferior as culturas, povos e grupos étnico-raciais que estão fora do paradigma considerado
civilizado e culto, a saber, o eixo do Ocidente, ou o “Norte” colonial.
Só compreendendo a radicalidade dessas questões e desse contexto é que poderemos
mudar o registro e o paradigma de conhecimento com os quais trabalhamos na educação.
Esse é um dos passos para uma inovação curricular na escola e para uma ruptura
epistemológica e cultural.

Descolonizar os currículos: um desafio à luz da LDB alterada pela Lei nº


10.639/033

Descolonizar os currículos é mais um desafio para a educação escolar. Muito já


denunciamos sobre a rigidez das grades curriculares, o empobrecimento do caráter
conteudista dos currículos, a necessidade de diálogo entre escola, currículo e realidade
social, a necessidade de formar professores e professoras reflexivos e sobre as culturas
negadas e silenciadas nos currículos.
No entanto, é importante considerar que há alguma mudança no horizonte. A força das
culturas consideradas negadas e silenciadas nos currículos tende a aumentar cada vez mais
nos últimos anos. As mudanças sociais, os processos hegemônicos e contra-hegemônicos
de globalização e as tensões políticas em torno do conhecimento e dos seus efeitos sobre a
sociedade e o meio ambiente introduzem, cada vez mais, outra dinâmica cultural e
societária que está a exigir uma nova relação entre desigualdade, diversidade cultural e
conhecimento. Os ditos excluídos começam a reagir de forma diferente: lançam mão de
estratégias coletivas e individuais. Articulam-se em rede. A tão falada globalização que
quebraria as fronteiras aproximando mercados e acirrando a exploração capitalista se vê
não somente diante de um movimento de uma globalização contra-hegemônica, nos dizeres
Santos (2006), mas também de formas autônomas de reação, algumas delas duras e

102
Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos

violentas. Esse contexto complexo atinge as escolas, as universidades, o campo de


produção do conhecimento e a formação de professores/as. Juntamente às formas novas de
exploração capitalista surgem movimentos de luta pela democracia, governos populares,
reações contra-hegemônicas de países considerados periféricos ou em desenvolvimento.
Esse processo atinge os currículos, os sujeitos e suas práticas, instando-os a um processo de
renovação. Não mais a renovação restrita à teoria, mas aquela que cobra uma real relação
teoria e prática. E mais: uma renovação do imaginário pedagógico e da relação entre os
sujeitos da educação. Os currículos passam a ser um dos territórios em disputa, sobretudo
desses novos sujeitos sociais organizados em ações coletivas e movimentos sociais
(Arroyo, 2011).
Retomo a minha experiência no espetáculo teatral anteriormente descrito. As cenas, a
vivência, as emoções que senti naquele momento foram preciosas. Transformaram-me,
fizeram-me refletir. Naquele dia, ao olhar para o público, vi alunos da graduação, colegas
da universidade, amigos da militância, artistas, pessoas jovens, adultas e velhas, negras e
brancas, com escolarização superior ou sem ela, de vários níveis socioeconômicos que,
juntos, eram movidos pela arte, culminando em um sentimento de estar juntos. A vida do
capoeirista Besouro Cordão-de-Ouro não era percebida como a “história de mais um
homem negro” do interior da Bahia, mas como a história do nosso país e de um povo que
historicamente sempre lutou pela liberdade. O legado da luta do povo negro no Brasil
atinge a todos independentemente do sexo, raça, classe social e idade.
Naquele lugar vi também outros rostos muito conhecidos: eram professoras e
professores da educação básica de várias escolas de Belo Horizonte que participavam não
só daquele espetáculo, mas de todo o FAN. Na saída, uma delas me parou e disse:
- Pois é. Só mesmo a Lei nº 10.639/03 poderia me estimular a ver um espetáculo como
esse!
Aquela fala me causou um impacto. Não era pelo fato de, mesmo em um momento de
lazer, a minha pessoa ser associada ao trabalho acadêmico e à discussão sobre a questão
racial. Quanto a isso, todos nós sabemos que o tempo da escola e o ser professor/a invadem
nossa vida nos momentos mais inusitados. Naquele momento, fui tomada de surpresa ao
refletir sobre o alcance do trabalho realizado por mim e por todos aqueles que investem
político-pedagógica e academicamente no processo de formação de professores/as para a
diversidade étnico-racial. Embevecida como estava com o teatro, não imaginava que
poderia encontrar, ali, alguém que me dissesse ter sido motivada a assistir ao espetáculo por
causa de uma legislação educacional! Ao voltar para casa, passei a refletir sobre a
importância da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96)
através da sanção da Lei nº 10.639/03 e sua regulamentação pelo parecer CNE/CP 03/2004
e pela resolução CNE/CP 01/2004 (BRASIL, 2005), a ponto de suscitar naquela e talvez em
outros docentes o desejo de conhecer, compreender e experenciar a cultura negra e buscar
caminhos diversos para tal, que não somente o conteúdo livresco. A fala daquela professora
estava apontando para algum movimento de mudança que considero um passo importante
na construção de uma ruptura epistemológica e cultural causada pela introdução mais
sistemática da discussão sobre a questão racial e a História da África na escola. Uma
ruptura cuja ampliação tem se dado, com limites e avanços, por força da lei. E uma lei que

103
NILMA LINO GOMES

não é somente mais uma norma: é resultado de ação política e da luta de um povo cuja
história, sujeitos e protagonistas ainda são pouco conhecidos, assim como Besouro Cordão-
de-Ouro, o capoeirista cuja história foi contada durante o espetáculo teatral.

Novas indagações ou um novo contexto?

Diante disso, podemos fazer algumas indagações: como o campo da formação de


professores e professoras lida com essas rupturas? Como a alteração da LDB pela Lei nº
10.639/03 se insere nesse contexto? Que novos paradigmas estão se desenhando no
horizonte pedagógico mediante a inserção cada vez maior do trato da diversidade cultural e
étnico-racial nos currículos? Gostaria de destacar dois pontos para a nossa reflexão.
O primeiro refere-se ao lugar da questão racial nos currículos. As reflexões de Santomé
(1995) sobre a relação entre currículo e culturas negadas e silenciadas ainda têm inspirado
muitas opiniões pedagógicas sobre o trato da questão racial e a diversidade étnico-racial na
escola. Segundo o autor:

Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de


forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado
nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção à arrasadora presença
das culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou vozes dos
grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas
importantes de poder continuam ser silenciadas, quando não estereotipadas e
deformadas, para anular suas possibilidades de reação (p. 163).

Numa perspectiva de descolonização dos currículos e na compreensão das rupturas


epistemológicas e culturais trazidas pela questão racial na educação brasileira, concordo
com o fato de que esse olhar é um alerta importante. A compreensão das formas por meio
das quais a cultura negra, as questões de gênero, a juventude, as lutas dos movimentos
sociais e dos grupos populares são marginalizadas, tratadas de maneira desconectada com a
vida social mais ampla e até mesmo discriminadas no cotidiano da escola e nos currículos
pode ser considerado um avanço e uma ruptura epistemológica no campo educacional. No
entanto, devemos ir mais além.
Gonçalves (1985) já chamava a atenção, na década de 80, para o lugar ocupado pelo
silêncio sobre a questão racial na escola. Na sua dissertação de mestrado, intitulada O
silêncio: um ritual pedagógico a favor da discriminação racial: um estudo acerca da
discriminação racial como fator de seletividade na escola pública de primeiro grau: 1º a 4º
série, o autor atentava para algo mais profundo.
O autor destacava o fato de que a presença da cultura na escola e na sala de aula não se
manifesta somente de forma imaterial nem é um tema capaz de homogeneizar tudo e todos.
Pelo contrário, ela é descontínua, conflituosa e tensa e se materializa por meio de gestos,
palavras e ações, muitas vezes, intencionais. Na escola, no currículo e na sala de aula,
convivem de maneira tensa valores, ideologias, símbolos, interpretações, vivências e

104
Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos

preconceitos. Nesse contexto, a discriminação racial se faz presente como fator de


seletividade na instituição escolar e o silêncio é um dos rituais pedagógicos por meio do
qual ela se expressa. Não se pode confundir esse silêncio com o desconhecimento sobre o
assunto ou a sua invisibilidade. É preciso colocá-lo no contexto do racismo ambíguo
brasileiro e do mito da democracia racial e sua expressão na realidade social e escolar. O
silêncio diz de algo que se sabe, mas não se quer falar ou é impedido de falar. No que se
refere à questão racial, há que se perguntar: por que não se fala? Em que paradigmas
curriculares a escola brasileira se pauta a ponto de “não poder falar” sobre a questão racial?
E quando se fala? O que, como e quando se fala? O que se omite ao falar?
O ato de falar sobre algum assunto ou tema na escola não é uma via de mão única. Ele
implica respostas do “outro”, interpretações diferentes e confrontos de idéias. A introdução
da Lei nº 10.639/03 – não como mais disciplinas e novos conteúdos, mas como uma
mudança cultural e política no campo curricular e epistemológico – poderá romper com o
silêncio e desvelar esse e outros rituais pedagógicos a favor da discriminação racial.
Nesse sentido, a mudança estrutural proposta por essa legislação abre caminhos para a
construção de uma educação anti-racista que acarreta uma ruptura epistemológica e
curricular, na medida em que torna público e legítimo o “falar” sobre a questão afro-
brasileira e africana. Mas não é qualquer tipo de fala. É a fala pautada no diálogo
intercultural. E não é qualquer diálogo intercultural. É aquele que se propõe ser
emancipatório no interior da escola, ou seja, que pressupõe e considera a existência de um
“outro”, conquanto sujeito ativo e concreto, com quem se fala e de quem se fala. E nesse
sentido, incorpora conflitos, tensões e divergências. Não há nenhuma “harmonia” e nem
“quietude” e tampouco “passividade” quando encaramos, de fato, que as diferentes culturas
e os sujeitos que as produzem devem ter o direito de dialogar e interferir na produção de
novos projetos curriculares, educativos e de sociedade. Esse “outro” deverá ter o direito à
livre expressão da sua fala e de suas opiniões. Tudo isso diz respeito ao reconhecimento da
nossa igualdade enquanto seres humanos e sujeitos de direitos e da nossa diferença como
sujeitos singulares em gênero, raça, idade, nível socioeconômico e tantos outros. Refere-se
também aos conflitos, choques geracionais e entendimento das situações-limite vivenciadas
pelos estudantes das nossas escolas, sobretudo aquelas voltadas para os segmentos
empobrecidos da nossa população.
O segundo ponto referente à relação entre a formação de professores/as e as rupturas
epistemológicas e culturais produzidas no contexto da Lei nº 10.639/03, entendida
enquanto LDB e por isso mesmo obrigatória, nos leva a formular mais algumas questões
desafiadoras: como lidar com a diversidade cultural e étnico-racial em sala de aula? É
possível superar o modelo monocultural de conhecimento e de ensino? Juntamente aos
autores Gonçalves e Gonçalves e Silva (2000, p. 62), podemos indagar: é possível aos
professores e professoras incluir a eqüidade de oportunidades educacionais entre seus
objetivos? Como socializar, por meio do currículo e de procedimentos de ensino, para atuar
em uma sociedade multicultural?
Podemos dizer que os movimentos sociais, e, com destaque, os de caráter identitário
(mulheres, negros, indígena, LGBT, quilombolas, povos do campo), há muito vêm tentando
responder a essas questões e têm reivindicado da escola e do campo da formação de

105
NILMA LINO GOMES

professores um posicionamento, reflexões teóricas e práticas pedagógicas que também


respondam a essas demandas sociais e políticas.
É sempre bom destacar que os movimentos sociais têm como intenção política atingir
de forma positiva toda a sociedade e não somente os grupos sociais por eles representados.
Em sociedades pluriétnicas e multirraciais como o Brasil, os avanços em prol da articulação
diversidade e cidadania poderão ser compreendidos como ganhos para a construção de uma
democracia, de fato, que tenha como norte político a igualdade de oportunidades para os
diferentes segmentos étnico-raciais e sociais e supere o tão propalado mito da democracia
racial.
Tais demandas encontram maior ressonância, hoje, em algumas iniciativas dos órgãos
governamentais, em centros de pesquisa, escolas de educação básica e algumas
experiências concretas de formação inicial e continuada de professores/as, porém, ainda
com severas resistências.
No campo do currículo, tais demandas também têm encontrado lugar na medida em
que esse já se indaga sobre os limites e as possibilidades de construção de um currículo
intercultural, o lugar da diversidade nos discursos e práticas curriculares, o peso das
diferenças na relação entre currículo e poder, entre outros.
Mas o trato da questão racial no currículo e as mudanças advindas da obrigatoriedade
do ensino de História da África e das culturas afro-brasileiras nos currículos das escolas da
educação básica só poderão ser considerados como um dos passos no processo de ruptura
epistemológica e cultural na educação brasileira se esses não forem confundidos com
“novos conteúdos escolares a serem inseridos” ou como mais uma disciplina. Trata-se, na
realidade, de uma mudança estrutural, conceitual, epistemológica e política.

Outro paradigma epistemológico?

Estamos, portanto, em um campo de tensões e de relações de poder que nos leva a


questionar as concepções, representações e estereótipos sobre a África, os africanos, os
negros brasileiros e sua cultura construídos histórica e socialmente nos processos de
dominação, colonização e escravidão e as formas como esses são reeditados ao longo do
acirramento do capitalismo e, atualmente, no contexto da globalização capitalista. Como
nos diz Meneses (2007): “Falar sobre África significa pois questionar e desafiar crenças
queridas, pressupostos afirmados e múltiplas sensibilidades” (p. 56).
A autora ainda adverte que civilização, nação, cultura, raça, etnia, tribos são
construções da modernidade. A ligação indelével entre os conceitos de bárbaro e de
civilizado produziu um mapa moderno do mundo onde a humanidade é comparada em
função de uma referência única, considerada universal. Segundo a autora, apesar de terem
sido construídas, essas categorias permanecem elementos essenciais da configuração e
significação atuais da modernidade. A organização do mundo em torno desses conceitos
espaciais é parte central da forma como hoje percebemos o mundo, o que justifica
plenamente o seu significado histórico – o poder para moldar a história (p .57).
E ainda de acordo com a autora: “O mapa cognitivo que estas construções geram

106
Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos

exigem hoje, em contexto de debates pós-coloniais, um processo de desconstrução que


permita revelar as realidades ocultas pela força de qualquer proposta hegemônica” (Santos,
2006; Meneses, 2007, p. 57).
Parafraseando a autora, podemos dizer que a Lei nº 10.639/03, o parecer CNE/CP
03/2004 e a resolução CNE/CP 01/2004 apontam para a escola, o currículo e a formação de
professores/as a necessidade de uma construção alternativa da história do mundo, e não só
da África. Paula Meneses (2007, p. 57) ainda nos alerta para o fato de que tal postura requer
uma história responsável que jogue uma função pedagógica pública (Wrebner, 1996;
Meneses, 2003; Dirlick, 2006). Trata-se de uma (re)construção histórica alternativa e
emancipatória, que procure construir uma história outra que se oponha à perspectiva
eurocêntrica dominante. A autora ainda nos diz que em lugar de generalizações e
simplificações que pretendem “encaixar” a África (e eu acrescentaria, a questão racial no
Brasil) no esquema desenvolvido para explicar de forma linear o progresso civilizatório do
Ocidente, o desafio que se coloca é duplo: explicar a persistência da relação colonial na
construção da história mundial, ao mesmo tempo em que se propõem alternativas à leitura
da história, no sentido de construir histórias contextuais que, articuladas em rede, permitam
uma visão cosmopolita sobre o mundo (Said, 1993; Appadurai, 1996; Appiah, 1998;
Gilroy, 1993; Diouf, 1999, Meneses, 2007).
Nesse sentido, mais do que a efetivação política de uma antiga reivindicação do
Movimento Negro para a educação, a Lei nº 10.639/03, o parecer CNE/CP 03/2004 e a
resolução CNE/CP 01/2004 e os desdobramentos deles advindos nos processos de
formação de professores/as, na pesquisa acadêmica, na produção de material didático, na
literatura, entre outros, deverão ser considerados como mais um passo no processo de
descolonização do currículo. Esse processo resulta na construção de projetos educativos
emancipatórios e, como tal, abriga um conflito, nos dizeres de Santos (1996).
Na perspectiva desse autor, o conflito ocupa o centro de toda experiência pedagógica
emancipatória. Ele serve antes de tudo para tornar vulnerável e desestabilizar os modelos
epistemológicos dominantes e para olhar o passado através do sofrimento humano, que, por
via deles e da iniciativa humana a eles referida, foi indesculpavelmente causado. Esse olhar
produzirá imagens desestabilizadoras, susceptíveis de desenvolver nos estudantes e nos
professores a capacidade de espanto e de indignação e uma postura de inconformismo, as
quais são necessárias para olhar com empenho os modelos dominados ou emergentes por
meio dos quais é possível aprender um novo tipo de relacionamento entre saberes e,
portanto, entre pessoas e entre grupos sociais. Poderá emergir daí um relacionamento mais
igualitário e mais justo, que nos faça apreender o mundo de forma edificante, emancipatória
e multicultural.
Portanto, a descolonização do currículo implica conflito, confronto, negociações e
produz algo novo. Ela se insere em outros processos de descolonização maiores e mais
profundos, ou seja, do poder e do saber. Estamos diante de confrontos entre distintas
experiências históricas, econômicas e visões de mundo. Nesse processo, a superação da
perspectiva eurocêntrica de conhecimento e do mundo torna-se um desafio para a escola, os
educadores e as educadoras, o currículo e a formação docente. Compreender a
naturalização das diferenças culturais entre grupos humanos por meio de sua codificação

107
NILMA LINO GOMES

com a idéia de raça; entender a distorcida relocalização temporal das diferenças, de modo
que tudo aquilo que é não-europeu é percebido como passado (Quijano, 2005) e
compreender a ressignificação e politização do conceito de raça social no contexto
brasileiro (Munanga e Gomes, 2006) são operações intelectuais necessárias a um processo
de ruptura epistemológica e cultural na educação brasileira. Esse processo poderá, portanto,
ajudar-nos a descolonizar os nossos currículos não só na educação básica, mas também nos
cursos superiores.

Finalizando...

Alguns dos elementos abordados neste artigo estavam presentes no contexto do


musical Besouro Cordão-de-Ouro com o qual iniciei as reflexões. A própria existência do
musical, o tema por ele privilegiado, a escolha de atores e atrizes negras e a forma
profissional e artística por meio da qual a música, a dança, as crenças, a corporeidade de
matriz afro-brasileira foram apresentadas no espetáculo, sem o risco da folclorização da
cultura, revela que algo está mudando. Será que tal mudança vem acontecendo – mesmo
que de maneira lenta – na escola brasileira, no campo do currículo e na formação de
professores/as? Será que tal mudança vem ocorrendo com mais força após a alteração da
LDB, mediante a sanção da Lei 10.639/03 e sua regulamentação pelo parecer CNE/CP
03/2004 e pela resolução CNE/CP 01/2004? E será que esse momento pode ser
compreendido como parte de um processo de descolonização dos currículos? Esse ainda é
um campo em aberto a investigar e um desafio para as pesquisas que articulem diversidade
étnico-racial, currículo e formação de professores.

Notas
1
Musical dirigido por João das Neves, que revela a trajetória de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão-de-Ouro,
lendário capoeirista da região de Santo Amaro, na Bahia. O espetáculo tem texto, músicas e letras inéditos do
compositor Paulo César Pinheiro, direção musical de Luciana Rabello e elenco instruído por dois mestres capoeiristas.
Gostaria de agradecer a professora Inês Teixeira, da FAE/UFMG, pelo convite, companhia e oportunidade de assistir o
musical Besouro Cordão-de-Ouro.
2
Filme Besouro, o Cordão de Ouro dirigido por João Daniel Tikhomiroff sobre Besouro Mangangá que estreou no Brasil
no dia 30 de outubro de 2009.
3
Lei que altera a LDBEN, 9394/96, e estabelece a obrigatoriedade do ensino de História da África e das culturas afro-
brasileiras nos currículos das escolas públicas e particulares do ensino fundamental e médio da Educação Básica. Em
10/03/08, a Lei 10.639/03 também foi alterada e passou a incluir a história e a cultura dos povos indígenas, recebendo o
número 11.645/08. Tal legislação foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação pelo Parecer CNE/CP
03/2004 e pela Resolução CNE/CP 01/2004.

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Correspondência

Nilma Lino Gomes – Professora Associada da Faculdade de Educação da UFMG. Doutora em Antropologia
Social/USP e Pós-Doutora em Sociologia – Faculdade de Economia – Universidade de Coimbra.
Coordenadora Geral do Programa Ações Afirmativas na UFMG. Bolsista de produtividade CNPQ.
E-mail: nilmagomes@uol.com.br

Texto publicado em Currículo sem Fronteiras com autorização da autora.

109
Educação
ISSN: 0101-465X
reveduc@pucrs.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul
Brasil

Silva, Petronilha Beatriz


Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil
Educação, vol. XXX, núm. 63, setembro-dezembro, 2007, pp. 489-506
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=84806306

Como citar este artigo


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Aprender, ensinar e relações étnico-raciais... 489

Aprender, ensinar e relações


étnico-raciais no Brasil
Learning, teaching and ethnic-racial relations in Brazil

PETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA*


–––––––––––––––––––––––––––– — ––––––––––––––––––––––––––––

RESUMO – O artigo trata de processos de ensinar e de aprender em meio a relações


étnico-raciais, no Brasil. Aponta desafios para a educação das relações étnico-raciais e
formação para cidadania, bem como busca situar razões históricas e ideológicas de
dificuldades para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.
Descritores – Ensino; aprendizagem; relações étnico-raciais; cidadania.

ABSTRACT – This paper deals with teaching and learning processes regarding ethnic-
racial relations in Brazil. It calls attention to the challenges facing education of ethnic-
racial relations and the promotion of citizenship; it also attempts to situate historically
and ideologically the difficulties educators have to confront to teachAfrican and Afro-
Brazilian history and cultures.
Key words – Teaching; learning; ethnic-racial relatoinship; cityzenship.
––––––––––––––––––––– — –––––––––––––––––––––

Exigências éticas, epistemológicas, pedagógicas desencadeadas pela


implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004a, 2004b)
instigam conhecer, esquadrinhar condições, contextos, redes de relações
em que as mulheres e os homens, ao longo da história da nação, vêm
aprendendo e ensinando a exercer cidadania.
Ciente das desigualdades e discriminações que atingem a população
negra, convicto de sua função mediadora entre o Estado, sistemas de ensino e
demandas da população na sua diversidade social, étnico-racial, o Conselho

* Professora Titular de Ensino-Aprendizagem – Relações Étnico-Raciais da Universidade


Federal de São Carlos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da mesma
universidade. Conselheira, mandato 2002-2006, da Câmara de Educação Superior do Conselho
Nacional de Educação. E-mail: dpbs@power.ufscar.br
Artigo recebido em: setembro/2006. Aprovado em: dezembro/2006.

Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 489-506, set./dez. 2007
490 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Nacional de Educação (CNE) interpretou as determinações da Lei 10.639/


2003 que introduziu, na Lei 9394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura Afro-Brasileira e
Africana. E, ao orientar a execução das referidas determinações, colocou, no
cerne dos posicionamentos, recomendações, ordenamentos, a educação das
relações étnico-raciais. Desta forma, configurou política curricular que toca
o âmago do convívio, trocas e confrontos em que têm se educado os brasi-
leiros de diferentes origens étnico-raciais, particularmente descendentes de
africanos e de europeus, com nítidas desvantagens para os primeiros (HEN-
RIQUES, 2001; JACCOUD, 2002; PAIXÃO, 2006).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, nos termos do Parecer CNE/CP 3/2004
(BRASIL, 2004a) e da respectiva Resolução CNE/CP1/2004 (BRASIL,
2004b), estabelecem a educação das relações étnico-raciais, como um
núcleo dos projetos político-pedagógicos das instituições de ensino de
diferentes graus e como um dos focos dos procedimentos e instrumentos
utilizados para sua avaliação e supervisão. Dizendo de outro modo, ao se
avaliar a qualidade das condições de oferta de educação por escolas e uni-
versidades, tem-se, entre os quesitos a observar, a realização de atividades
intencionalmente dirigidas à educação das relações étnico-raciais.
Salienta, o referido texto legal, que o processo de educar as relações
entre pessoas de diferentes grupos étnico-raciais tem início com mudanças
no modo de se dirigirem umas às outras, a fim de que desde logo se rompam
com sentimentos de inferioridade e superioridade, se desconsiderem julga-
mentos fundamentados em preconceitos, deixem de se aceitar posições
hierárquicas forjadas em desigualdades raciais e sociais.
A educação das relações étnico-raciais tem por alvo a formação de
cidadãos, mulheres e homens empenhados em promover condições de
igualdade no exercício de direitos sociais, políticos, econômicos, dos
direitos de ser, viver, pensar, próprios aos diferentes pertencimentos étnico-
raciais e sociais. Em outras palavras, persegue o objetivo precípuo de
desencadear aprendizagens e ensinos em que se efetive participação no
espaço público. Isto é, em que se formem homens e mulheres comprome-
tidos com e na discussão de questões de interesse geral, sendo capazes de
reconhecer e valorizar visões de mundo, experiências históricas, contri-
buições dos diferentes povos que têm formado a nação, bem como de nego-
ciar prioridades, coordenando diferentes interesses, propósitos, desejos,
além de propor políticas que contemplem efetivamente a todos.
Por isso a educação das relações étnico-raciais deve ser conduzida,
tendo-se como referências os seguintes princípios (BRASIL, 2004b, p. 17):
Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 489-506, set./dez. 2007
Aprender, ensinar e relações étnico-raciais... 491

“consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identida-


des e de direitos; ações de combate ao racismo e a discriminações”.
Para desencadear, executar, avaliar processo de educação das rela-
ções étnico-raciais é preciso que se compreenda como processos de apren-
der e de ensinar têm se constituído, entre nós, ao longo dos 507 anos de
história de formação da nação.
É sabido que aprender-ensinar-aprender, processo em que mulheres e
homens ao longo de suas vidas fazem e refazem seus jeitos de ser, viver,
pensar, os envolve em trocas de significados com outras pessoas de dife-
rentes faixas etárias, sexo, grupos sociais e étnico-raciais, experiências de
viver. Tratar, pois, de ensinos e de aprendizagens, é tratar de identidades,
de conhecimentos que se situam em contextos de culturas, de choques e
trocas entre jeitos de ser e viver, de relações de poder.
Nós, brasileiros oriundos de diferentes grupos étnico-raciais – indí-
genas, africanos, europeus, asiáticos –, aprendemos a nos situar na socie-
dade, bem como o ensinamos a outros e outras menos experientes, por meio
de práticas sociais em que relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas nos
acolhem, rejeitam ou querem modificar. Deste modo, construímos nossas
identidades – nacional, étnico-racial, pessoal –, apreendemos e transmiti-
mos visão de mundo que se expressa nos valores, posturas, atitudes que
assumimos, nos princípios que defendemos e ações que empreendemos.
Estes complexos processos, na nossa experiência brasileira, se desen-
volvem com a finalidade de manter ou superar projeto de nação racializado,
no qual, conforme Seyferth (2002, p. 36), não há espaço para negros,
indígenas e mestiços, classificados ao longo dos séculos, cada vez com
maior sutileza, como pertencentes a raças bárbaras. Contraditoriamente,
salienta, a referida autora, “aspectos significativos de suas culturas têm
sido incorporados como expressões da cultura popular singular necessária
ao princípio da nacionalidade”. A nação brasileira se projetou branca
conforme mostram proposições e argumentos de Romero (1943) e Vianna
(1938); por isto, explica Seyffert (2002, p. 37), a migração européia teve
entre seus objetivos “o clareamento da população (que também significa
ocidentalização), supondo-se que, num processo histórico de mestiçagem
fossem prevalecer as características da ‘raça branca’”.
Fortalecida por políticas desta natureza, se estabelece, no Brasil, a
branquitude como norma inquestionável, da mesma maneira que em outras
sociedades que tentam se universalizar como brancas e, portanto, herdeiras
do mundo ocidental europeu. É o que apontam estudos como os de Tatum
(2003, p. 93), em relação à experiência estadounidense, e os de MacDonald
(2006), no que diz respeito à sulafricana. Neste sentido, de acordo com
Educação
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492 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Bento (2002, p. 48), ao discutir racialidade e produção de conhecimentos,


em nosso país:
É oportuno salientar que branquitude é o reconhecimento de que raça,
como um jogo de valores, experiências vividas e identificações
afetivas, define a sociedade. Já raça é uma condição de indivíduo
e é a identidade que faz aparecer, mais do que qualquer outra, a
desigualdade humana.(grifo meu)
Estudos como os de Piza (2000, citado por BENTO, 2002, p. 49) e de
Tatum (2003, p. 93-95), realizados em contextos diferentes, são esclarece-
dores quando mostram que pessoas brancas não costumam sentir-se per-
tencentes a um grupo étnico-racial, ou dão pouca atenção para sua iden-
tidade racial, uma vez que ser e viver como brancos é a norma aceita pela
sociedade. Segundo Piza (2000, apud Bento 2002, p. 49), “aspectos da
atitude branca – neutra, não reconhecível, negada, expurgada do seu poten-
cial político – envolvem séculos de pensamentos e atos racistas”. E no
entender de Bento (2002, p. 48), não poderia ser diferente, pois “pessoas
criadas numa sociedade racializada têm uma visão de mundo marcada por
essa racialidade”.
Por tal razão, entre outras, salienta MacDonald (2006, p. 50), embora os
cidadãos, com base em determinações legais sejam iguais na perspectiva
do Estado, seguindo a lógica liberal, podem ser desiguais na sociedade. É
nesta perspectiva, segundo Schaub (2002, p. 53), que se costuma incentivar
alguns “desiguais” a educar-se em níveis superiores de escolarização, a fim
de que possam fazer parte de “uma aristocracia no interior da massa social
democrática” e que se reforça, junto a eles, “a convicção de que pertencem
a uma classe de excelência e de grandeza humana”.
Os que se deixam assimilar por essas idéias, costumam expressar o
sentimento de que seus méritos e qualidades são proeminentes, se julgam
mais persistentes e esforçados do que a maioria dos integrantes do grupo
social ou étncio-racial a que pertencem. Assim, não é raro que oriundos de
grupos marginalizados pela sociedade, entre eles negros, qualifiquem
pessoas de seus grupos de origem como preguiçosos, incompetentes, sem
ambição. Revelam, eles, desconhecer, ou conveniência em ignorar, as es-
truturas e relações que mantêm as desigualdades sociais e étnico-raciais.
Como se vê, é complexa, mas não impossível, a tarefa de tratar de pro-
cessos de ensinar e de aprender em sociedades multiétnicas e pluriculturais,
como a brasileira. Abordá-los pedagogicamente ou como objeto de estudos,
com competência e sensatez, requer de nós, professores(as) e pesquisado-
res(as): não fazer vista grossa para as tensas relações étnico-raciais que “na-
turalmente” integram o dia-a-dia de homens e mulheres brasileiros; admitir,

Educação
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Aprender, ensinar e relações étnico-raciais... 493

tomar conhecimento de que a sociedade brasileira projeta-se como branca;


ficar atento(a) para não reduzir a diversidade étnico-racial da população a
questões de ordem economico-social e cultural; desconstruir a equivocada
crença de que vivemos numa democracia racial. E, para ter sucesso em tal
empreendimento, há que ter presente as tramas tecidas na história do
ocidente que constituíram a sociedade excludente, racista, discriminatória
em que vivemos e que muitos insistem em conservar.
A sociedade brasileira sempre foi multicultural, desde os 1500, data
que se convencionou indicar como de início da organização social e política
em que vivemos. Esteve sempre formada por grupos étnico-raciais distintos,
com cultura, língua e organização social peculiares, como é o caso dos povos
indígenas que por aqui viviam quando da chegada dos portugueses e
de outros povos vindos da Europa. Também os escravizados, trazidos
compulsoriamente para cá, provinham de diferentes nações e culturas afri-
canas conhecidas por pensamentos, tecnologias, conhecimentos, inclusive
acadêmicos1, valiosos para toda a humanidade. No entanto, esta diversidade
não foi e hoje o é, com muita dificuldade, aceita. Fala-se e pensa-se como se a
realidade fosse meramente uma construção intelectual; como se as desigual-
dades e discriminações, malgrado as denúncias e reivindicações de ações e
movimentos sociais não passassem de mera insatisfação de descontentes.
Antes de prosseguir, cabe ilustrar, com texto didático divulgado em
escola primária nos anos 1920, um dos meios com que se foram formando e
reforçando representações negativas dos marginalizados pela sociedade, no
caso os povos indígenas. O trecho citado do livro Historia resumida do
Brasil; programa completo do primário (1927) ensinava palavras e atitu-
des preconceituosas que, em diferentes formas e conotações, ainda se
manifestam em nossa sociedade. Sobre os primeiros habitantes do Brasil,
assim discorre o mencionado livro:
O Brasil, antes de ser descoberto não tinha cultura de espécie alguma;
não havia villas nem cidades; estava pelo contrário todo coberto
de matos e era habitado por numerosas tribus de Índios selvagens
(p. 7, grifo do livro)
Como se teria, enquanto sociedade, chegado a estas compreensões e
conseqüentes posturas?
As idéias e iniciativas dos europeus expansionistas, no seculo XVI,
criaram um sistema mundo cujos valores e objetivos, embora, é claro, com
novos contornos, ainda perduram nas relações entre pessoas, grupos sociais
e étnico-raciais, entre nações (DUSSEL, 2000). A visão segura de que eram
superiores permitiu, aos europeus, consolidar projetos de domínio de civili-
zações não européias (LIAUZU, 1992). Por meio da ocupação de terras, da
Educação
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494 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

exploração de riquezas, nos diferentes continentes, buscaram transformar


povos e suas culturas, em constructos europeus (RODNEY, 1981).
Em seus próprios territórios tratavam, os colonialistas, de convencer
os demais cidadãos quanto à inferioridade e até mesmo animalidade dos
indígenas, africanos e aborígenes. Entre outros recursos, valeram-se dos
zoos humanos que, segundo Blanchard (2001), foram comuns na França,
Alemanha, Inglaterra, no final do século XIX. Em jardins zoológicos, ao
lado das jaulas dos animais, expunham-se “seres exóticos” que, no seu
pensar, “até assemelhavam-se a humanos”.
No que convencionaram chamar de colônias, tentaram, tendo-o
conseguido até certo ponto, desnortear os habitantes que lá estavam quando
da sua chegada, fosse pelo extermínio físico, fosse por meio da educação
oferecida na nova instituição que introduziram, a escola.
Quanto às conseqüências da eliminação física de pessoas e comu-
nidades são contundentes as palavras do Chefe Riruako relativamente à
experiência de povos da Namíbia, durante a colonização alemã, no início
do século XX:
Alguns pensam que somente os mortos foram vítimas. Quando
crianças perdem seus pais, esta perda não é sentida apenas pela família e
comunidade, mas também pelas gerações que se seguem. Quando um povo
é deslocado de seus territórios, perde o sentido de segurança e de
pertencimento. Sofre experiências de medo, ansiedade e perde a esperança
no futuro. Disto resulta privação de conhecimentos, objetivos e aspirações
que poderiam auxiliar a construir o futuro de prosperidade para suas
famílias e comunidades (KUAMBI, 2006, p. 47).
Nas escolas, o convencimento para adesão à visão de mundo, jeito de
ser e viver do colonizador era violenta. Segundo depoimentos ouvidos de
pessoas que cursaram o ensino fundamental entre os anos 1940-1960, no
Mali e na Namíbia: as crianças malienses tinham de cantar hinos em que
repetiam ser “descendentes dos gauleses”; jovens namíbios, ao dissertar
sobre as características das raças humanas, se viam obrigados, se desejas-
sem aprovação, a salientar que os negros eram “ignorantes por natureza”
(SILVA, 2003, p.190). Da mesma forma, na Nigéria, de acordo com
Adeyinka Olanrewaju (2006), nas escolas considerava-se uma ofensa, os
alunos se manifestarem na língua de seus povos e se o fizessem, eram
punidos. Lamentável é constatar, salienta o referido autor, que ainda hoje, em
estabelecimentos do ensino secundário, a norma persiste. Estes fatos levam a
concluir que os tormentos do passado de escravidão e colonialismo ainda são
perceptíveis na África, conforme observa Kaké (1998, p. 27) ao defender a
necessidade do conhecimento e estudo dessas formas de relações entre povos.
Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 489-506, set./dez. 2007
Aprender, ensinar e relações étnico-raciais... 495

No Brasil, os povos indígenas, primeiramente nas escolas dos jesuítas,


mais tarde nas públicas, viram-se constrangidos por tentativas de fazê-los
esquecer sua língua, religião, cultura. Segundo Kreutz (1999), no Rio Grande
do Sul as primeiras escolas públicas que se criaram, destinaram-se a crianças
guaranis, que ao matricular-se perdiam seus nomes próprios e passavam a ser
chamadas por um nome português. Esperava-se que esquecessem sua cultura,
a ponto de adotar o cristianismo e de rejeitar hábitos costumes, arquitetura de
seus povos, passando a preferir o jeito português, dito “mais civilizado”.
Cabe aqui um parênteses, para lembrar que o conceito de civiliza-
ção2 , que se consolida no século XVIII, foi criado pelos europeus para
referir-se a suas culturas, ou melhor, à cultura, avaliada por eles próprios
como superior, a única civilizada. Conforme ensina Taylor (2000, p. 151),
o termo passa a ser usado no plural, quando admitiu-se que outros povos
também construíam conhecimentos consistentes; mas o plural era e é
indicativo de inferioridade em relação à civilização no singular.
Com justificativas, inclusive reforçadas por argumentos bíblicos e
pela meta cristã de salvar a todos, propunham, os colonizadores, civilizar
povos que tinham costumes, religiões, comportamentos, mentalidades,
estranhos do seu ponto de vista de europeus.
Em texto de 1942, Fernando Ortiz, rememorando a chegada de Colombo
ao Caribe, destaca o quanto foi valioso, para uns e outros, o encontro de povos
tão diferentes. Segundo estima o antropólogo cubano, nativos e espanhóis
aprenderam e enriqueceram seus saberes, embora o tenham feito em trocas
nada amistosas. Conclui que o “século das luzes” somente foi possível porque
os europeus descobriram, nos territórios que ocuparam, culturas distintas das
suas e, sobretudo, “modos diferentes de ser humano” (ORTIZ, 1993).
A civilização européia é, pois, fruto de conhecimentos genuinamente
europeus, mas também de outros que se formaram graças à importante
contribuição material e simbólica das culturas que colonizaram.
Voltemos às considerações sobre as tentativas de assimilação, por
meio da escola, dos povos submetidos política e ideologicamente aos sis-
temas dos colonizadores europeus. Na experiência brasileira, além do que
se passou com os indígenas, deve-se ter presente a situação dos africanos
escravizados, de seus filhos e descendentes. A eles foi negada a possi-
bilidade de aprender a ler, ou se lhes permitia, era com o intuito de incutir-
lhes representações negativas de si próprios e convencê-los de que deve-
riam ocupar lugares subalternos na sociedade. Ser negro era visto como
enorme desvantagem, utilizava-se a educação para despertar e incentivar o
desejo de ser branco. Além de cor da pele, destaca Santos (2000), tratava-
se também de lugar a ocupar na sociedade, de poder.
Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 489-506, set./dez. 2007
496 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Apesar de medidas para impedir que negros freqüentassem bancos


escolares, estudos documentais recentes (FONSECA, 2002) vêm mostran-
do que no Brasil do século XIX escravizados e libertos, pelo menos nas
Minas Gerais, tinham algum acesso às letras. Ali, em meados do século
XIX, a maioria dos matriculados nas escolas isoladas, ou salas-escolas,
estabelecimentos particulares, mantidos por letrados com vocação de ensi-
nar, eram crianças e jovens negros. Estes estudos chamam a atenção para o
fato de que à medida que o ensino se tornou público, nas mesmas Minas
Gerais, a população negra diminuiu nos bancos escolares. Como se vê, a
instrução pública, entre nós, nasce excludente, racista.
A discrepância entre valores proclamados e valores reais da educação
brasileira, apontada por Anísio Teixeira (1961) e também por Sander
(1977), é persistente ao longo da história. Esta situação não é diferente em
outras sociedades ocidentais nos últimos cinco séculos, onde, conforme
afirma o pesquisador espanhol Santomé (1997), a escola, embora conce-
bida, nos termos dos textos legais e objetivos pedagógicos, para garantir e
divulgar princípios de justiça e igualdade, tem divulgado e reforçado visão
unitária e não plural de sociedade. Tem propiciado a formulação de repre-
sentações que desvalorizam os diferentes, aqueles que não se encaixam nos
padrões difundidos pela referida visão unitária. Tem propiciado repre-
sentações que geram, junto aos diferentes, tidos como não iguais, per-
cepção de inferioridade que lhes seria inata e quase sempre incorrigível.
É claro que sentimentos e percepções de superioridade, inferioridade,
relações de imposição e de submissão não se constroem nem única, muito
menos primeiramente nas escolas. Relações sociais, de modo notável
relações de trabalho, relações étnico-raciais fazem parte da vida das pessoas,
tanto pela vivência direta, quanto pela experiência de outros que as expõem
em relatos, em recomendações. De acordo com estudos de Lopes (1985),
relações de opressão, no Brasil, vêm desde a constituição e exploração da
colônia produzindo processos educativos. Nas Minas Gerais, ensina, a autora
referida, os colonizadores, mantenedores da exploração das minas, com
estruturas hierárquicas, modos de tratar, exigências, buscavam garantir o
avassalamento, a submissão, a dependência dos colonizados. Empenhavam-
se também em instruí-los para se tornarem opressores dos escravizados e
assim educá-los para sujeição. No entanto, ressalta a pesquisadora, os
colonizados também educavam seus opressores com rebeliões, revoltas,
inconfidências, compelido-os a recuar, conceder, conformar-se.
Não se entenda o conformar-se dos colonizadores como acolhimento
das lutas dos oprimidos, pois ainda que cedendo às pressões, não deixavam
de interpretá-las como subversão da ordem. Não é, hoje, diferente o sentido
Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 489-506, set./dez. 2007
Aprender, ensinar e relações étnico-raciais... 497

atribuído às reivindicações e propostas dos movimentos sociais, por parte


dos que assumem valores e atitudes similares aos dos antigos coloniza-
dores. Esperam dos que consideram subalternos, agradecimentos, gosta-
riam que eles se sentissem em dívidas por benefícios recebidos. Tais
sentimentos e atitudes levam a considerar os atuais marginalizados pela
sociedade, como o foram colonizados e escravizados, “potenciais inimigos
que precisam ser vigiados” (CONSCIENTIZACIÓN, 1973).
De certa forma, é nesta perspectiva que pensadores e políticos
brasileiros, do final do século XIX e início do XX, entre eles Ruy Barbosa,
viam nas causas dos males que atingiam o Brasil, a “ignorância do povo,
grande ameaça contra a existência constitucional e livre da nação” (Ruy
citado por VALLE, 1997, p. 51). Por isso pregava a importância do ensino
primário obrigatório e insistia na necessidade de impô-lo:
De que serve, contra a resistência indolente da ignorância, inveterada e
satisfeita na cegueira inconsciente, proverdes a que a escola seja acessível
a todos, se não adstringirdes todos à necessidade irresistível de apro-
veitarem as vantagens dessa acessibilidade? (BARBOSA, 1957, p. 35).
No entender de Ruy, como de outros intelectuais latino-americanos do
mesmo período, a escola era meio para reformar ou eliminar a mencionada
ignorância, ou seja, os jeitos de ser, pensar, viver do povo diferentes das auto-
denominadas elites. Com entendimento semelhante, Varela ([1887?]), no
final do século XIX, formulou um plano educacional para o Uruguay, com o
objetivo de que ou bem se assimilavam os indígenas à sociedade, ou se
exterminava com eles. Os resultados foram, até certo ponto, eficientes, pois
há uns anos atrás, alguns intelectuais uruguaios diziam não haver mais índios
no Uruguay. Hoje o movimento Indígena, neste país, mostra o contrário.
Como já vimos anteriormente, é nesse clima de não reconhecimento dos
diferentes e de tentativas de assimilá-los a padrões europeus ou europeizados,
no que nem sempre houve sucesso, que se inventa a diversidade. Em imagens
produzidas a partir do século XVI para representar a diversidade, chama a
atenção o fato de europeus não estarem representados, ou se estiverem,
ocupam posição privilegiada – primeiro plano, nível de localização mais alto.
Mas, se estão localizados no mesmo nível, ocupam o centro da imagem e
estão cercados por indígenas, aborígenes, africanos em atitude de adoração,
agradecimento, todos distantes de cenas representadas ao fundo, em que os
não civilizados engalfinham-se em lutas tidas como selvagens. Nestas repre-
sentações, os colonizadores portam instrumentos que simbolizam “a civili-
zação”: a bíblia, armas de fogo, máquina a vapor (WOOD, 2003).
Ao longo deste texto, é feita a tentativa de mostrar que a diversidade
é, como bem argumentam Abramowicz e Silvério (2004, 2005), uma cons-
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trução social, cultural, histórica das diferenças. MkGoba (1996) destaca


que diversidade de pessoas, idéias, perspectivas, interpretações, culturas,
estilos de vida e experiências é o que permite, aos educadores, estudantes,
pesquisadores refletir sobre e relacionar-se com a sociedade em que vivem,
com a(s) cultura(s) em que estão inseridos. No entender deste professor
universitário sulafricano, a habilidade de criticar o universo onde se vive e
os dos outros, só se torna possível por meio do reconhecimento e valo-
rização da diversidade.
A problemática da diversidade no Brasil, embora apareça nas dis-
cussões educacionais nos anos 1990, é antiga, acompanha a história de
lutas por inserção cidadã na sociedade, empreendidas por indígenas,
negros, sem-terra, empobrecidos, outros marginalizados pela sociedade
(SILVA, 1993, 2002; 2004).
O Brasil, como outras sociedades ocidentais se descobre multicultural
quando os oprimidos, que alguns designam como “minorias inúteis”,
reagem. O multiculturalismo seja como movimento artístico, seja como
ações políticas nas ruas (GONÇALVES; SILVA, 2003, 2006) surge como
reação contra a ideologia da assimilação (DEEKKER; LEMMER, 1993);
muito mais tarde chega ao pensamento e iniciativas educacionais (GON-
ÇALVES; SILVA, 2003; 2006). E como bem o mostram (WINTER, 1992;
STEIMBERG, 2001), tem servido tanto para encorajar assimilação, como
para propor diálogo aberto entre culturas.
Nesta última perspectiva é relevante a contribuição dos professores
indígenas e das escolas indígenas, na América Latina, notadamente no
Brasil, com a proposta e esforço de desenvolver educação intercultural
(entre outros, MONTE, 1996; GRUPIONI, 2000). As propostas e projetos
em andamento, longe de recortes de diferentes culturas agrupadas em
situações artificiais, atribuem aos professores e à educação escolar, a
função de elos fortalecedores das tradições de cada um dos povos, e
também de elos entre os estudantes e a sociedade fora da aldeia, com o
mundo dos brancos, que apesar, das garantias legais (BRASIL, 1988;
BRASIL, 1999) ainda lhes é adverso (XAVANTE, 2002).
O ocultamento da diversidade no Brasil vem reproduzindo, tem cul-
tivado, entre índios, negros, empobrecidos, o sentimento de não pertencer à
sociedade. Visão distorcida das relações étnico-raciais vem fomentando a
idéia, de que vivemos harmoniosamente integrados, numa sociedade que não
vê as diferenças. Considera-se democrático ignorar o outro na sua diferença.
O ocultamento da diversidade produz a imagem do brasileiro cordial,
que trata a todos com igualdade, ignorando deliberadamente as suas nítidas
e contundentes diferenças. Imagem esta difundida desde os anos 1930 nas
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obras de Freyre (1963) e nos anos 1950, reforçada pelas teses, argumentos,
estudos, entre outros de Cassiano Ricardo (1959). Tais pensametos têm
constrangido a participação nos espaços públicos daqueles chamados de
excluídos, e ao mesmo tempo têm atribuído sua ausência a pretendida
falta de qualidades e competência.
No entanto, não se pode dizer que o Estado brasileiro sempre ignore
as discriminações provocadas pelo ocultamento da diversidade da popu-
lação, nem os conseqüentes problemas que acarretam. Ciente disto, a Cons-
tituição Nacional de 1934 repudiou a discriminação racial, embora tenha
prescrito a eugenia. Destaque-se que a “Constituição Cidadã”, de 1988,
embora tardiamente, reconhece a diversidade da população brasileira, ga-
rante o direito à cultura própria e ao conhecimento das demais formadoras
da nação, torna o racismo um crime inafiançável e imprescritível.
Sabe-se que da lei à nova mentalidade e à ação efetiva, há muito que
desfazer, refazer e fazer. De qualquer forma, seja em virtude de pressões
internas feitas pelos movimentos sociais, seja pelos preceitos constitucionais,
seja por força de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil,
particularmente na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, transcorrida em 2001, temos, em
nossas plagas, cada vez com mais clareza, a compreensão de que as socie-
dades multiculturais terão dificuldades de se tornarem justas e democráticas,
se não resolverem os problemas causados por opressões e discriminações; se
não estiverem dispostas a integrar lutas contra injustiças, sem paliativos que
visem mera inclusão, novo termo, para designar assimilação.
Não é, pois, por acaso que o Ministério da Educação (1997) institui os
Parâmetros Curriculares Nacionais, incluindo como tema transversal a
Pluralidade Cultural. Desta forma, reconhece, admite a diversidade como
parte da identidade nacional, como marca da vida social brasileira. Diver-
sidade, no entanto, ainda tratada como diferenças étnico-raciais que se
realizam em convivência harmoniosa, mesmo diante das inúmeras provas em
contrário na sociedade e em suas instituições, dentre elas, as escolas.
Mas, os legisladores da educação e o Ministério da Educação, cada
vez mais sensíveis às denúncias e propostas do Movimento Negro, avan-
çaram. Formularam e têm tomado providências para implantar e acompa-
nhar a execução da importante política curricular estabelecida pela Lei
10639/2003, devidamente interpretada e orientada pelo Parecer CNE/CP
003/2004 (BRASIL, 2004a) e Resolução CNE/CP 001/2004 (BRASIL,
2004b), anteriormente referidos, bem como por instruções legais formula-
das por sistemas de ensino municipal ou estadual3 . É importante também
lembrar que, desde 1988, leis municipais e estaduais, determinaram o
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ensino de história e cultura afro brasileira e africana. É o caso, por


exemplo, dos municípios de Santa Cruz do Sul/RS, de Florianópolis,
Aracaju, Belém, São Paulo.
As dificuldades para implantação dessas políticas curriculares assim
como a estabelecida no art. 26º da Lei 9.394/1996, por força da Lei 10.639/
2003, se devem muito mais à história das relações étnico-raciais neste país e
aos processos educativos que elas desencadeiam, consolidando preconceitos e
estereótipos, do que a procedimentos pedagógicos, ou à tão reclamada falta de
textos e materiais didáticos. Estes, hoje, já não tão escassos, mas nem sempre
facilmente acessíveis. No entanto, não há como desconhecer experiências
desenvolvidas por professores negros e não negros, na sua grande maioria
contando com apoio do Movimento Negro e que com certeza proporcionaram
apoio para a formulação do Parecer CNE/CP 3/2004, bem como serviram de
exemplo e suporte para que se execute esta determinação legal.4
Não cabe aqui alongar-me, mas é importante destacar que entre as
dificuldades estão as relações que muitos de nós, docentes, mantemos com
as administrações dos sistemas de ensino e também com nossos alunos. O
mais sério é que pretendemos educar nossos alunos para serem cidadãos
participativos e democráticos, capazes de combater discriminações e não
poucas vezes não nos sentimos encorajados a combater as discriminações
que se arremetem contra nós: condições de trabalho não favoráveis, baixos
salários, desqualificação da profissão e da formação.
Neste texto, tentei chamar a atenção, de um lado, para as tramas
históricas de que faz parte nosso fazer pedagógico; de outro, para a nossa
nem sempre ágil possibilidade de reagir; de outro ainda, para as difi-
culdades que temos de enxergar e de lidar com os diferentes.
Somos oriundos de uma formação que atribui, aos brancos, aos
europeus, a cultura que dizem clássica, pois permanece no tempo, desco-
nhecendo-se culturas dos povos não europeus que também têm permane-
cido no tempo. Ignoramos, por exemplo, que os egípcios, povo também
negro, ou melhor, os conhecimentos que eles produziram, estão no nasce-
douro da filosofia e das ciências o que se costuma atribuir aos gregos e a
outros europeus. Somos levados a confundir cultura com ilustração,
civilização com o hemisfério norte, ao lado de outros tantos equívocos.
Tratamos a experiência de ser europeu como uniforme e desconhe-
cemos as experiências dos diferentes povos que vieram para o Brasil. Kreutz
(1999, 2000a, 2000b), nos mostra, ao discorrer sobre as escolas étnicas em
nosso território, os diferentes projetos de vida e de inserção de alemães,
italianos, poloneses e japoneses. Destaca que esses imigrantes viam a escola
como um meio para manter sua raiz cultural, o vínculo com as origens.
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Aprender, ensinar e relações étnico-raciais... 501

O desconhecimento das experiências de ser, viver, pensar e realizar de


índios, de descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, faz com
que ensinemos como se vivêssemos numa sociedade monocultural. Isto nos
torna incapazes de corrigir a ilusão da democracia racial, de vencer
determinações de sistema mundo centrado em cosmovisão representativa
de uma única raiz étnico-racial. Impede-nos de ter acesso a conhecimentos
de diferentes origens étnico-raciais, e ficamos ensinando um elenco de
conteúdos tido como o mais perfeito e completo que a humanidade já teria
produzido. Tornamo-nos incapazes de perceber as vozes e imagens ausen-
tes dos currículos escolares: empobrecidos, mulheres, afro-descendentes,
africanos, indígenas, idosos, homossexuais, deficientes, entre outros.
Para superar a tudo isto, precisamos ultrapassar estereótipos, extin-
guir preconceitos, e como disse Senghor, em um de seus poemas, proceder a
uma “desintoxicação semântica”, isto é, redefinir termos e conceitos, por
exemplo, no nosso caso do campo educacional, a começar por educação,
aprender, ensinar, saber, educar, educar-se.
Para tanto, precisamos, antes de mais nada, prestar a atenção nas formas
e meios que nossos alunos utilizam para aprender. Se atentarmos para
experiências educativas entre povos indígenas, quilombolas e habitantes de
outros territórios negros, veremos que não é somente com a inteligência que se
tem acesso a conhecimentos. Que é com o corpo inteiro – o físico, a inteli-
gência, os sentimentos, as emoções, a espiritualidade – que ensinamos e apren-
demos que descobrimos o mundo. Corpos negros, brancos, indígenas, mestiços,
doentes, sadios, gordos, magros, com deficiências, produzem conhecimentos
distintos, todos igualmente humanos e, por isso, ricos em significados. Produ-
zem também conhecimentos científicos, quando decidem realizar pesquisas
deste cunho, que têm em conta as circunstâncias e suas condições de ser e viver.
Desta forma, vamos confirmar o que há muito aprendemos, ou seja,
que ensinar e aprender implicam convivência. O que acarreta conflitos e
exige confiança, respeito não confundidos com mera tolerância.
Vamos descobrir que pessoas espezinhadas, economicamente despos-
suídas, culturalmente desvalorizadas, mesmo vivendo situações de opres-
são, são capazes de reconstruir positivamente seus jeito de ser, viver,
pensar, apoiados em valores próprios a seu pertencimento étnico-racial
(SILVA et al., 2006), à sua condição social. São os valores de refúgio que
permitiram a muitos colonizados sobreviver a toda e qualquer tentativa de
aniquilação (MEMMI,1973). Valores esses que garantiram aos africanos
escravizados, arrancados de seus povos, constrangidos física e moralmente
a fazer a viagem que se dizia sem retorno, viessem a edificar outros povos,
os africanos da diáspora.5
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O tema aprender e ensinar em meio a relações étnico-raciais, portanto


em contextos de sociedades multiculturais como a nossa, é amplo, vasto e
permite muitas aproximações. A que aqui venho de apresentar é uma, feita
a título de introdução à temática que deve ser tratada desde múltiplas
perspectivas, coordenadas, encadeadas. No Brasil, temos de tratar juntos
indígenas, afrodescendentes, descendentes de europeus e de asiáticos,
sem medo das tensões, abertos a nossa diversidade, sem querer ninguém
ser o melhor, o superior.

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1 A título de exemplo cabe mencionar Universisidade de Tombuctu, que entre outras,


funcionaram no Mali, do século XIII ao XIX.
2
O substantivo – civilização – surge na França por volta de 1770; designa um certo grau de
desenvolvimento, ou seja, o conjunto de aquisições técnicas, sociais e intelectuais que o progresso
contínuo da razão teria permitido acumular. A trajetória histórica unilinear que leva a esta etapa é

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concebida a partir do modelo de formação do indivíduo, a qual é conduzida pela idéia de


distância crítica em relação aos dados da natureza ou do meio ambiente. Da mesma forma que o
trabalho da educação permite ao homem escapar de sua natureza animal e às idéias recebidas de
seu meio, o processo de civilização permite às sociedades se libertar da prisão do que é próprio
ao estágio de selvageria (TAYLOR, 2000, p.151).
3
Tenho notícias dos seguintes conselhos de educação: O Conselho Municipal de Educação de
Belo Horizonte aclimatou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Parecer CNE/
CP 3/2004 e Resolução CNE/CP1/2004) a seu respectivo sistema de ensino, por meio do
Parecer 83/2004. O Conselho Estadual de educação de Mato Grosso do Sul, também manifes-
tou-se por meio do Parecer Orientativo, em 2005. O Conselho Estadual de Educação do Paraná ,
manifestou-se em 2006.
4
Para maiores detalhes, ver por exemplo CEERT – Centro de Estudos do Trabalho e da Desi-
gualdade <http://www.ceert.org.br/principal.php>.
5
Conteúdo de mensagem registrada no livro dos visitantes no Museu da Ilha de Gore, antigo
porto de tráfico de escravizados, no Senegal.

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O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO INDAGA E DESAFIA AS
POLÍTICAS EDUCACIONAIS

Nilma Lino Gomes1

Resumo: O artigo discute os limites e os avanços do Movimento Negro brasileiro em prol de


uma educação antirracista. Analisa as mudanças e o aprimoramento da capacidade de
articulação desse movimento social com base no processo de redemocratização do Brasil,
principalmente nos momentos de aprovação da Constituição Federal de 1988 e da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Aponta a reconfiguração do Movimento Negro diante
das disputas políticas travadas no Brasil democrático para que a questão racial fosse
reconhecida como legítima e incorporada àpolítica educacional. Ressalta duas características
importantes do Movimento Negro que indagam e desafiam as políticas educacionais, a saber: o
seu caráter educativo e a resistência democrática.

Palavras-chave: Educação; Movimento Negro; Política Educacional; Antirracismo;


Democracia.

THE BRAZILIAN BLACK MOVEMENT INQUIRIES AND CHALLENGES


EDUCATIONAL POLICIES

Abstract: The article discusses the limits and advances of the Brazilian Black Movement in
favor of an antiracist education. It analyzes the changes and the improvement of the capacity of
articulation of this social movement based on the process of redemocratization of Brazil, mainly
in the moments of approval of the Federal Constitution of 1988 and of the Law of Guidelines
and Bases of Education (LDB). It points to the reconfiguration of the Black Movement in the
face of political disputes in democratic Brazil, so that the educational politics recognized as
legitimate and incorporated the racial question. It highlights two important characteristics of the
Black Movement that investigate and challenge educational policies, namely their educational
character and democratic resistance.

Key-words: Education; Black Movement; Educational Politics; Anti-racism; Democracy.

LE MOUVEMENT NOIR BRÉSILIEN ENQUIERT ET DÉFIS LES POLITIQUES


ÉDUCATIVES

Résumé: L’article traite des limites et des avancées du Mouvement Noir brésilien en faveur de
une éducation antiraciste. Il analyse les changements et l’amélioration de la capacité
d’articulation de ce mouvement social en basé sur le processus de redémocratisation au Brésil,
principalement au moment de l’approbation de la Constitution Fédérale de 1988 et de la Loi sur
les Directives et les Bases de l’Éducation (LDB). Il évoque la reconfiguration du Mouvement
Noir face aux conflits politiques travées dans un Brésil démocratique pour que la question
raciale soit reconnue comme légitime et intégrée dans la politique de l’éducation. Il met en
évidence deux caractéristiques importantes du Mouvement Noir qui enquièrent et défient les
politiques éducatives, à savoir: leur caractère éducatif et la résistance démocratique.

1
Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de Coimbra (Portugal) e pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar). Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Integrante do Programa Ações Afirmativas na UFMG. Bolsista de Produtividade
Científica do CNPq. E-mail:
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Mots-clés: Éducation; Mouvement Noir; Politique Éducative; Antiracisme; Démocratie.

EL MOVIMENTO NEGRO BRASILEÑO INDAGA Y DESAFIA LAS POLÍTICAS


EDUCACIONALES

Resumen: El artículo discute los límites y los avances del Movimiento Negro brasileño en
favor de una educación antirracista. Se analiza los cambios y el perfeccionamiento de la
capacidad de articulación de ese movimiento social con base en el proceso de redemocratización
de Brasil, principalmente en los momentos de aprobación de la Constitución Federal de 1988 y
de la Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Ley de Directrices y Bases de la Educación).
Apunta la reconfiguración del Movimiento Negro ante las disputas políticas trabadas en el
Brasil democrático para que la cuestión racial fuera reconocida como legítima e incorporada a la
política educativa. Resalta dos características importantes del Movimiento Negro que indagan y
desafían las políticas educativas, a saber: su carácter educativo y la resistencia democrática.

Palabras-clave: Educación; Movimiento Negro; Política Educativa; Anti-racismo; Democracia.

UM PROTAGONISMO QUE VEM DAS LUTAS COTIDIANAS

As lutas sociais nos reeducam. É por meio delas que a resistência à opressão é
construída e se retroalimenta. E é nesse tipo de resistência, no Brasil, que foram e são
forjados os ensinamentos e os aprendizados advindos dos movimentos sociais.
Mesmo em tempos de democracia em crise, não podemos deixar de contabilizar
as muitas conquistas dos movimentos sociais em prol de uma sociedade mais justa.
Destaco, dentre essas, os avanços alcançados pela luta antirracista e pelos direitos da
população negra, no Brasil, tais como: a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana (Lei n.9.394/96, alterada pela Lei n.10.639/03),a
regularização das terras quilombolas (Decreto n.4.887/03), o Estatuto da Igualdade
Racial (Lei n.12.288/10), o princípio constitucional das ações afirmativas aprovado por
unanimidade pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, a Lei de
Cotas Sociorraciais nas instituições públicas federais de ensino médio e superior (Lei
n.12.711/12), a Lei de Cotas Raciais nos Concursos Públicos (Lei n.12.990/14), a
ampliação das denúncias de violência religiosa, o reconhecimento social do genocídio
da juventude negra e do feminicídio negro, as iniciativas governamentais em prol da
saúde da população negra(Política Nacional de Saúde Integral da População Negra,
instituída pela Portaria n. 992, de 13/5/95), dentre outras.
Nada disso aconteceu por mérito do Estado brasileiro. Pelo contrário, ele foi e
continua sendo duramente pressionado e tensionado pelo Movimento Negro,
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Quilombola, de Mulheres Negras e pela juventude negra a implementar, de fato,
políticas antirracistas e ações afirmativas. Será destacado, neste artigo, o principal
protagonista dessa luta que indaga o Estado e, por conseguinte, as suas políticas na
construção de um Brasil que tenha a superação do racismo como um dos seus principais
objetivos democráticos: o Movimento Negro.
O Movimento Negro brasileiro pode ser considerado um sujeito coletivo e um
ator político que, juntamente com outros movimentos sociais operários e populares,
surge a partir da década de 70 do século XX, com a forte marca de politização do
cotidiano, com formas diferenciadas de expressão e experiências (Gomes, 2017, p. 47-
55). Um dos ensinamentos desse e dos outros movimentos sociais de caráter identitário
que herdamos (mulheres, indígenas, povos do campo, lutas ambientais) é a valorização
do cotidiano e da experiência. Eles compreendem que é na luta cotidiana que se trava a
resistência.
Como afirma Cardoso (2002, p. 14):

[...] os movimentos populares repudiavam a forma instituída da prática política


– vista como manipulação – e privilegiavam as ações diretas para manifestar a
sua vontade política.A partir da luta contra as desigualdades sociais e apoiando-
se na solidariedade entre os oprimidos, os movimentos sociais fizeram da
dignidade construída na própria luta o reconhecimento do seu valor e a
afirmação da própria identidade: só com a luta se conquista direitos.

O Movimento Negro é composto de várias entidades, de coletivos, grupos e


núcleos que dão sentido e significado às lutas antirracistas nacional e internacional. Ele
é capaz de reordenar enunciados, articular lutas e desafios. Na sua organização, existem
conflitos, contradições, consensos, dissensos, reconhecimento, construção de outros
enunciados, ressignificação de palavras e atribuição de novos conceitos e a construção
de outra gramática política para falar sobre as relações raciais, o racismo, a diáspora
africana, a ancestralidade e a igualdade racial (Gomes, 2017, p. 47-50).Reitera-se neste
artigo o que já se disse em outros trabalhos (Gomes, 2017, 2012,2011): o surgimento do
Movimento Negro no contexto dos novos movimentos sociais, principalmente os de
caráter identitário, trouxe especificidades no contexto das lutas e das reivindicações
desencadeadas no Brasil, a partir dos anos 1970. Uma dessas especificidades apontadas
por Cardoso (2002) é o olhar e a releitura da História. Segundo o autor:

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Para o Movimento Negro, o cotidiano da população negra é determinado pela
estrutura do racismo da sociedade brasileira. Ao emergir na cena nacional a
partir da especificidade da luta política contra o racismo que marcou os anos 70,
o Movimento Negro teve que buscar na história a chave para compreender a
realidade da população negra brasileira. Impelido pela necessidade de negar a
história convencional (oficial) e contribuir para a construção de uma nova
interpretação da trajetória do povo negro no Brasil é que o Movimento Negro se
distinguiu dos demais movimentos sociais e populares. Na verdade, o
Movimento Negro é fruto de uma negatividade histórica” (Cardoso, 2002,
p.17).

O Movimento Negro é, portanto, um educador. É ele que fez e faz a tradução


intercultural das teorias e das interpretações críticas realizadas sobre a temática racial no
campo acadêmico para a população negra e pobre fora da universidade; que articula
com intelectuais comprometidos com a superação do racismo encontros, palestras,
publicações, minicursos, workshops, projeto de extensão, ciclos de debates, abertos à
comunidade; que inspira, produz e ajuda a circular as mais variadas publicações,
panfletos, folders, revistas, livros, sites, canais de YouTube, blogs, páginas do
Facebook, álbuns, artes, literatura, poesia, abordando a temática racial em sintonia com
a diáspora africana. É ele quem pressiona o Estado para adotar políticas de igualdade
racial (Gomes, 2017, p.17-18). No seu papel educativo, tal movimento educa e reeduca
a sociedade, o Estado e a si mesmo sobre as relações raciais, o racismo e a diáspora
africana. E, se é um educador, ele constrói pedagogias. E, se constrói pedagogias,
interfere nos processos educativos e nas políticas educacionais. Inspirada pelas
reflexões de Arroyo (2003), afirmo que o Movimento Negro brasileiro faz parte do
processo de produção da pedagogia dos movimentos sociais. A principal tarefa desse
movimento social é a luta contra um fenômeno que o Brasil ainda insiste em dizer que
não existe ou, se existe, dá-se de forma mais branda em nosso país do que em outros: o
racismo.Se concordamos com o fato de que o Movimento Negro participa e desenvolve
processos educativos, identitários, de lutas, transgressões e conflitos, também
concordaremos com a afirmação de que ele possui a capacidade de indagar e desafiar as
elites do poder, o Estado e suas políticas. E, dentre essas políticas, encontram-se as
educacionais.

O MOVIMENTO NEGRO INDAGA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS

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A política educacional pertence ao conjunto das políticas sociais, que se
materializam por meio da legislação, das práticas, dos planos e dos projetos
educacionais. 2
Apesar de serem de responsabilidade do Estado, as políticas sociais não se
reduzem a ele. São demandadas, discutidas, pleiteadas e acompanhadas pela população,
pelos organismos políticos, internacionais, pelos movimentos sociais, pelos sindicatos,
pelas associações e por outros coletivos da sociedade.
A política educacional, conquanto parte constitutiva das políticas sociais,
envolve interesses e disputas diversos e abarca contradições e tensões.3 Ela não se
desenvolve sozinha, mas no complexo contexto das relações de poder. Em países muito
desiguais como o Brasil, essas políticas trazem em si as tensas relações entre raça,
gênero, classe e desigualdade regional. Elas são uma confluência de forças progressistas
e conservadoras.Os principais focos de orientação nacionaldas políticas educacionais no
Brasilsão a Constituição Federal (CF), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e
o Plano Nacional de Educação (PNE).Embora a política educacional esteja articulada à
aplicação do PNE, destaca-se que, apesar da sua importância, cabe lembrar que o Plano
está previsto na CF, e a sua regulamentação é determinada pela LDB. Com duração de
dez anos, o PNE deve ser revisto e atualizado.
Segundo a Constituição Federal:

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração


decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime
de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de
implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em
seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos
poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a
I - erradicação do analfabetismo;

2
De acordo com Ferreira e Nogueira (2015, p.105): “Na esfera educacional,várias políticas públicas foram
lançadas por todos os setores dogoverno federal para se alcançar os objetivos propostos pela Constituição
Federal. A título de exemplo, dentre outras políticas,podem ser citadasas seguintes:a)Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério(FUNDEF);b)
Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE); c)Programa de Dinheiro Direto na Escola (PDDE); d)
Programa Bolsa Família; e) Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); f) Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD); g) Programa Nacional de Transporte Escolar (PNATE); h) Exame Nacional
do Ensino Médio(Enem); i) Sistema de Seleção Unificada(Sisu); j) Programa Universidade para
Todos(ProUni); k) Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede
Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância).OPlanoNacional de Educação é a política públicamais
atual e tem como objetivo a melhoria da educação [...]”.
3
Uma observação importante: as políticas educacionais aqui citadas e analisadas correspondem ao período
dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), a saber, de 2003 a 2016.
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II - universalização do atendimento escolar;
III - melhoria da qualidade do ensino;
IV - formação para o trabalho;
V - promoção humanística, científica e tecnológica do País;
VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação
como proporção do produto interno bruto. (Brasil, 1988, grifos nossos)

De acordo com a LDB:

Art. 9º. A União incumbir-se-á de:


I - elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios;
Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de:
III - elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com as
diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas
ações e as dos seus Municípios;
Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de:
I - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus
sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e
dos Estados (Brasil, 1996, grifos nossos)

Ou seja, a CF e a LDB são os documentos legais que preveem e regulamentam o


PNE. Apesar de também sofrerem alterações advindas do Executivo e do Legislativo,
impulsionadas pela articulação entre as demandas da sociedade civil organizada e os
interesses diversos, ambas apresentam mudanças mais lentas do que o próprio Plano, as
quais são acompanhadas de tensões, debates e polêmicas. Quando querem privatizar a
educação ou diminuir a ação e a abrangência da educação pública, as forças
conservadoras atacam em primeiro lugar a Constituição Federal e propõem mudanças à
LDB. Da mesma forma, quando as forças progressistas querem ampliar direitos
educacionais e sintonizá-los com a dinâmica das lutas sociais são esses mesmos
documentos legais que vão buscar.
É com o olhar na LDB 9.394/06 que pretendo discutir a relação entre o
Movimento Negro, as demandas por educação e as políticas educacionais.
No contexto das lutas por direitos e antirracistas, a educação formal sempre foi
um foco de atenção e atuação do Movimento Negro brasileiro desde a Abolição da
Escravatura. Várias autoras e vários autores já se dedicaram a esse assunto (Gomes,
2011, 2009; Gonçalves, 2011; Lima, 2010; Pereira, 2008; Domingues, 2007; Cruz,
2005; Gonçalves; Silva, 2000, dentre outros).

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Alguns desses autores destacam que as várias iniciativas desenvolvidas pelas
entidades negras no século XX inicialmente tinham o caráter de ações mais coletivas,
com enfoque nas estratégias de resistência familiares, comunitárias, atreladas a uma
visão de integração dos negros e das negras na sociedade de classes. No decorrer dos
anos, a ideia de “integração” começa a ser problematizada, e as próprias entidades
mudam o seu discurso e a forma de ação política para a denúncia incisiva da presença
do racismo na sociedade brasileira. Racismo esse que, na realidade, nunca desejou e
admitiu essa tão falada “integração” e interpôs (e ainda interpõe!) uma série de limites a
ela. Até mesmo a imigração estrangeira foi implementada como estratégia de Estado no
fim do século XIX e início do século XX, na tentativa de embranquecer a nação e torná-
la “civilizada” aos olhos do mundo, livrando o país da insistente presença das pessoas
negras (Gomes, 2017, p.103).
Viver esse processo perverso resultou no amadurecimento político das entidades
negras sobre os impactos do racismo ao longo do tempo. Aos poucos, os militantes
perceberam que o Estado tinha um papel segregador, racista e excludente, escamoteado
pelo discurso de uma igualdade entre as diferentes raças. Essa constatação impôs outra
estratégia de luta. O Movimento Negro passa, então, a tensionar ainda mais a relação
com o Estado e a sociedade e também cobra desse a responsabilidade pública de
combate e de superação do racismo. Exige do Estado a implementação de políticas
públicas e, dentre elas, as educacionais, com o foco na garantia do direito de todos e,
dentre esses, a população negra. Ou seja, ao universalizar as políticas, o Estado deveria
considerar a situação de desigualdade racial e o racismo que incidia sobre as negras e os
negros.
Foi a partir dos anos 70 do século XX, na luta contra a ditadura militar e contra o
racismo, que o Movimento Negro, na sua organização mais contemporânea, voltou os
seus esforços políticos e reivindicatórios de forma mais contundente ao Estado. O
combate ao racismo somou-se à luta pela retomada do Estado democrático e de direito.
A maior compreensão das imbricações entre raça e classe passou a fazer parte com mais
força das reflexões, das denúncias e das demandas desse movimento social. E passou a
se incluir também nas negociações e tensões internas entre o Movimento e os demais
movimentos populares que, naquela época, ainda não reconheciam a especificidade
racial presente na luta contra as desigualdades.

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Com o processo de queda da ditadura militar, da reabertura política no Brasil nos
anos 80 do século XX, da realização da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e da
promulgação da Constituição Federal, em 1988 (CF), as entidades do Movimento Negro
compreenderam melhor os desafios presentes na relação entre a luta antirracista, a
democracia e as políticas públicas. O acúmulo das ações e iniciativas negras em relação
à educação é redimensionado pelo Movimento Negro como demandas específicas e
políticas ao Estado brasileiro e suas instituições. A questão racial, o combate ao racismo
na sociedade e na escola, antes pautas específicas do Movimento Negro, começam a
emergir na cena pública e política nacional como parte da demanda por um Brasil e uma
escola democráticos.
Dessa forma, a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro, os
Congressos Afro-Brasileiros, as experiências de escolas construídas em terreiros de
candomblé, as intervenções nos currículos escolares, a formação pedagógica para
docentes junto com entes federados, os projetos pedagógicos desenvolvidos por blocos
afros e escolas de sambas, a introdução do estudo da História da África e das Culturas
Afro-Brasileiras nos currículos, a releitura crítica dos manuais didáticos denunciando os
estereótipos raciais, dentre outras, foram algumas iniciativas educacionais
desenvolvidas pelo Movimento Negro ao longo do século XX como forma de combater
o racismo e de implicar o poder público nessa luta.

O ESTADO BRASILEIRO E SUA RESPONSABILIDADE NA LUTA


ANTIRRACISTA

Na década de 1980, no período de término da ditadura militar e início da


redemocratização do país, o Movimento Negro participou de um intenso processo de
mobilização, pressionando para que o Estado brasileiro assumisse publicamente que o
racismo é crime epara que todas as instituições do Estado democrático que se
reconstituía se comprometessem com a sua superação.
Na convivência com os demais movimentos sociais, com o novo sindicalismo e
diante da emergência de partidos progressistas, após a ditadura militar, o Movimento
Negro compreendeu que era necessário garantir que a nova Constituição Federal, a ser
construída por meio de um esforço nacional, considerasse a prática do racismo como um
crime, além de incluir na Carta Magna uma série de direitos para a população negra
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como forma de construir um país realmente democrático.Nesse processo, a decisão de
que a questão racial teria de ser abordada durante a Assembleia Nacional Constituinte
(ANC) foi uma reivindicação do Movimento Negro, que passou a organizar eventos
preparatórios de participação na Constituinte.
Segundo Rodrigues (2005, p. 49):

O movimento negro, a partir de 1985, organizou encontros municipais e


estaduais com o objetivo de refletir a participação do negro no processo
constituinte. Entre esses, destaca-se o Primeiro Encontro Estadual ‘O negro e a
constituinte’, realizado em julho de 1985 na Assembleia Legislativa de Minas
Gerais. Essas reflexões prolongaram-se por todo o ano de 1986, culminando
com a realização, em Brasília, da Convenção Nacional ‘O Negro e a
Constituinte’, da qual se originou um documento sintetizando os Encontros
Regionais ocorridos em várias unidades da Federação.

Ainda de acordo com a autora:

A articulação do Movimento Negro que deu origem à determinação pelo


Regimento Interno da Constituinte de que a temática racial seria abordada
agradou às organizações do movimento negro, que acompanhavam esse
processo com expectativa, mesmo com a percepção de que o espaço destinado a
essa discussão de início mostrava-se bastante limitado e da errônea abordagem
da temática como minoria, como uma questão de menor importância.
A discussão seria feita na ‘Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias’, que integrava a Comissão Temática “Da
Ordem Social” (Rodrigues, 2005, p.51).

A autora destaca, com justiça, a importância do papel desempenhado por alguns


interlocutores do Movimento Negro,que, durante o debate e a articulação políticos,
estavam mais próximos e atuavam, de alguma forma, representando os interesses da
comunidade negra, como a senadora Benedita da Silva e os deputados federais Luiz
Alberto Caó, Edmilson Valentim e Paulo Paim (Rodrigues,2005, p.52).
Ao final de um longo processo, lamentavelmente o documento final da CF
acabou por reduzir as pautas da questão racial levadas pelo Movimento Negro e pelos
aliados da luta antirracista. Para Rodrigues (2005, p. 55-56), o texto constitucional:

[...] apenas sinalizou a necessidade de que o currículo escolar refletisse a


pluralidade racial brasileira, mas retirou as propostas de obrigatoriedade do
estudo da Cultura e História da África dos currículos nos três níveis de ensino e
a proposta de reformulação dos currículos de História do Brasil.
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As reivindicações do movimento negro para a educação de alteração curricular
foram consideradas muito específicas devendo ser tratadas em leis ordinárias,
restando a recomendação de que o currículo escolar refletisse a pluralidade
racial brasileira, como sugeriu a emendaapresentada pelo constituinte Geraldo
Campos (PMDB), que caracterizou a ênfase do ensino de história das
populações negrascomo discriminatória.
De forma integral, na CF/1988, permaneceram no texto as propostas sobre
quilombos e a criminalização do racismo,mesmo assim, a última só foi
aprovada devido à mobilização do movimento negro em torno da questão e
pelas intensas articulações políticas realizadasprincipalmente por Carlos Alberto
Caó na Comissão de Sistematização, onde inicialmente a proposta foi rejeitada
por ser considerada uma ameaça à liberdade de expressão.

Embora todas as articulações e tentativas do Movimento Negro por uma pauta


emancipatória da questão racial na Constituição de 1988 tenham sido empreendidas, o
resultado não foi o que se esperava. A tensão entre o universal e o particular, a raça e a
classe novamente venceu e está expressa na lei até hoje.As lutas históricas do
Movimento Negro apontadas por Rodrigues (2005) e debatidas desde a ANC pelo
Movimento Negro e seus aliados, tais como o reconhecimento, por parte do Estado, das
comunidades negras remanescentes de quilombos e o título de propriedade definitiva de
suas terras, a criminalização da prática do racismo, do preconceito racial e de qualquer
discriminação atentatória aos direitos humanos e uma educação comprometida com o
combate ao racismo e a todas as formas de discriminação, que valorizasse e respeitasse
a diversidade, assegurando a obrigatoriedade do ensino da história das populações
negras do Brasil, foram parcialmente contempladas. Ao final, ficaram restritas aos
art.5º, inciso XLII, 215, 216 e 242, bem como ao art. 68 das Disposições
Constitucionais Transitórias (p.52, 53).
Segundo o art. 5º, inciso XLII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
XLII –a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito
à pena de reclusão, nos termos da lei; (Brasil, 1988)

Sem dúvida, tornar a prática do racismo um crime fez avançar a luta antirracista.
Foi uma conquista que ultrapassou o que estava previsto na Lei n.1.390, Lei Afonso
Arinos, criada em 1951, e que proibia a discriminação racial no país. Apesar do mérito

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da sua existência, é consenso entre os juristas e os advogados de que esta lei não era
suficiente, uma vez que não era rigorosa com as punições. Casos explícitos de
impedimento dos direitos das pessoas negras a adquirir um emprego, a transitar e a
entrar em locais públicos e privados, escolas, a ter acesso a serviços públicos não eram
cobertos pela Lei Afonso Arinos.
Tornar o racismo como crime inafiançável também vai além da Lei n.7.716/89,
mais conhecida como “Lei Caó”, criada em 1989, segundo a qual seriam punidos os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional.
Retomar as leis que antecederam o inciso XLII do art. 5º da Lei Caó é
reconhecer que a sua existência, hoje, mesmo com os limites que possui, é resultado da
atuação do Movimento Negro, de parlamentares e dos demais partícipes da luta
antirracista durante o processo da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).
No país no qual o mito da democracia racial age na estrutura e no imaginário
social conseguir que o Estado reconhecesse a existência do racismo como um grave
impedimento do exercício de direitos dos cidadãos e cidadãs brasileiros é um passo
significativo, que deu origem a uma série de demandas, jurisprudência e empenho pelo
aprimoramento da lei.
Apesar desse importante passo, avançamos pouco na efetivação de um texto
constitucional emancipatório no que se refere à questão racial, de modo geral, e à
educação, em específico. A histórica demanda do Movimento Negro para que o
currículo das escolas reconhecesse a importância do estudo da história da África e das
questões afro-brasileiras como uma das formas de superação do racismo não foi
contemplada pela CF.
Como resultado, o texto constitucional aprovado contemplou o tema da maneira
mais genérica e universal possível: “Art. 242 – § 1º O ensino da História do Brasil
levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do
povo brasileiro” (Brasil, 1988).
A questão racial também não foi contemplada no texto específico da Seção I, Da
Educação. Ela só aparece na Seção II desse capítulo, quando esse se refereà Cultura.
Vejamos:

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Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação
para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual,
visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder
público que conduzem à:
Inciso V: valorização da diversidade étnica e regional; (BRASIL, 1988).

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material


e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos. (Brasil, 1988, grifos nossos)

Embora não seja uma referência específica à educação, o art. 68, do Ato das
Disposições Constituições Transitórias, também foi fruto de demandas e articulações do
Movimento Negro. Ele deu força à aprovação do Decreto n.4.887/03 (regularização dos
territórios quilombolas) e, posteriormente, à demanda de construção das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Parecer CNE/CEB
16/2012 e Resolução CNE/CP 08/2012): “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (Brasil, 1988).
O que a princípio pode parecer uma perda, ou seja, a questão racial somente ser
contemplada em lugares específicos e pouco expressivos no texto final da Constituição
Federal, tem também a possibilidade de ser entendido como a estratégia possível do
Movimento Negro no contexto das disputas travadas durante o processo da Assembleia
Nacional Constituinte e de aprovação da CF.
Ao perceber que o campo de forças não estava totalmente do lado da luta contra
o racismo, foi necessário aos militantes do Movimento Negro negociar para que a
questão racial não fosse totalmente invisibilizada na lei. Algo teria de ser garantido para
que fosse viável continuar a luta mais à frente, com outros contornos e demandas pelo
seu aprimoramento.
Essa estratégia produziu resultados. Após a promulgação da CF, os setores
políticos e sociais se organizaram em torno das Leis Ordinárias, a fim de aprimorar o
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que havia sido institucionalizado na Carta Magna. Os Estados, os Municípios e o
Distrito Federal se organizaram na construção das Constituições Estaduais e Leis
Orgânicas, as quais deveriam seguir as orientações da Constituição Federal, tendo
liberdade de proposições regionais e locais.
Sendo assim, ter o racismo como crime inafiançável, garantir um lugar da
questão racial como parte do patrimônio cultural brasileiro e garantir a propriedade
definitiva aos remanescentes de comunidades quilombolas que estivessem ocupando
suas terras como dever do Estado brasileiro foram conquistas estratégicas e possíveis do
Movimento Negro, à época, e que não devem ser desprezadas.

A QUESTÃO RACIAL E A LDB

Contudo, isso não significou acomodação. Logo após a sanção do novo texto
constitucional, desencadeou-se o processo de elaboração das Leis Complementares e
Ordinárias. Iniciou-se, portanto, o processo de discussão de uma importante Lei
Ordinária: a nova Lei de Diretrizes de Bases da Educação. As negras e os negros
organizados no Movimento Negro, nos sindicatos e nos partidos políticos voltaram os
seus esforços para a inserção do estudo da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira
na LDB como eixos da educação nacional e forma de combate ao racismo. A atuação se
deu, a partir de então, no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na LDB. Assim
como no processo da Assembleia Nacional Constituinte, o embate político centrava-se
entre o Fórum, formado por 26 entidades (científicas, sindicais e estudantis, de
especialistas de educação, de secretários estaduais de educação e de dirigentes
municipais de educação), e as entidades que representam o ensino privado, a
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), do lado do grupo
empresarial, e do lado do grupo confessional, a Associação de Educação Católica
(AEC), congregando escolas e professores dos ensinos fundamental e médio, e a
Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas (ABESC), congregando
educadores e escolas superiores católicas (Oliveira, 1997).
É ainda Rodrigues (2005, p. 67-69) que analisa como ocorreu a disputa política
pela inserção da questão racial na Lei n.9.394/96. Ela foi marcada pela não aprovação
pelas entidades formadoras do Fórum da participação do Movimento Negro e de outros
movimentos sociais. Somente as organizações “clássicas” continuaram presentes, o que
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significou uma redução do espírito democrático de um fórum com os objetivos para os
quais ele foi organizado. Segundo a autora, durante as discussões e as negociações,
houve semelhança entre o resultado da análise de conteúdo do projeto de lei da LDB do
Senado, no que diz respeito à abordagem da questão racial, e a proposta consolidada na
Câmara dos Deputados. O diferencial se estabeleceu na segunda fase de elaboração da
lei. Houve a participação da senadora Benedita da Silva, representando o Movimento
Negro, na apresentação e na defesa de propostas de reformulação do ensino de História
do Brasil e da obrigatoriedade em todos os níveis educacionais da “História das
Populações Negras do Brasil”. Contudo, ambas as proposições foram negadas com a
justificativa de que haveria uma base nacional comum para a educação, o que tornaria
desnecessária a existência de garantia de um espaço exclusivo para a temática racial
(RODRIGUES, 2005, p.69).4
A conclusão da autora supracitada é de que a negação dos efeitos perversos do
racismo na sociedade, somada à concepção unicultural do Brasil, defendida pelo último
relator da LDB, Darcy Ribeiro, não só reafirmou o mito da democracia racial no texto
da lei, como também negou o compromisso do Estado brasileiro com a correção de
desigualdades raciais históricas e violentas (Rodrigues, 2005, p.68-69).Rodrigues (2005,
p.70) ainda nos alerta para as ambiguidades do racismo brasileiro. Ela analisa que o
parecer negativo às propostas defendidas pela senadora Benedita da Silva foi
apresentado concomitantemente à realização da Marcha Zumbi dos Palmares em
Brasília, no ano de 1995, em que foram denunciados o racismo, o eurocentrismo, a
cultura eurocêntrica e homogeneizadora do Brasil e as formas como afetam e se fazem
presentes na educação brasileira. Ou seja, a demanda por uma educação antirracista e
pelo ensino de história da África e das populações negras no Brasil, que fazia parte das
reivindicações do coletivo de entidades negras durante a Marcha Zumbi dos Palmares,
ocorreu no mesmo momento em que o tema era debatido e recebido com resistência no
contexto das discussões da nova LDB. Fico a imaginar a sensação de frustração e raiva
dos militantes negros quando o texto da LDB foi finalizado e aprovado, em 1996, com a

4
Guardadas as devidas proporções, algo semelhante acontece atualmente nas discussões sobre a Base
Nacional Comum Curricular estabelecidas pelo Ministério da Educação (MEC) (após o golpe parlamentar
de 2016), o Conselho Nacional de Educação e as entidades organizadas da sociedade civil. O discurso
universalista novamente se sobrepõe em detrimento do trato específico e afirmativo do cumprimento da
LDB alterada pela Lei n.10.639/03, com a introdução da história e da cultura afro-brasileira e africana nos
currículos.
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diluição das principais pautas pelas quais tanto lutaram. E como deve ter sido difícil
admitir que o discurso de que a especificidade da questão racial na educação seria
contemplada pela Lei Ordinária, dito durante o processo da Assembleia Nacional
Constituinte por vários parlamentares, não passou de uma estratégia para desviar a
atenção ao tema e diminuir a pressão. Na realidade, houve total descompromisso dos
políticos e da política.

RESISTÊNCIA E LUTA... SEMPRE!

Essa situação da educação se repetiu com outros temas nacionais nos quais o
Movimento Negro atuou na busca de legislações que garantissem direitos dos negros no
trabalho, na saúde, na política de moradia. A ideia de que a questão racial estaria
contemplada nas políticas universais e, principalmente, no combate às desigualdades
sociais se tornou o mote da esquerda e da direita após a promulgação da Constituição de
1988. Lamentavelmente, nisso as duas alas concordaram, e alguns grupos continuam
concordando até hoje, em pleno século XXI e após o golpe parlamentar de 2016.Esse
processo resultou em uma inflexão do Movimento Negro nas suas estratégias de luta.
Não mais a defesa da ideia deinserção dos negros na sociedade de classes e tampoucoa
aposta de que a questão racial e o combate ao racismo seriam contemplados se
estivessem inseridos nas políticas públicas universais.
O Movimento Negro reformulou a sua narrativa e suas reivindicações e passoua
requerer políticas específicas de combate ao racismo na educação, na saúde, no mercado
de trabalho, dentre outros. O contato com as organizações negras norte-americanas e o
conhecimento das políticas de ações afirmativas nos EUA e em outros países trouxeram
novos aprendizados para esse movimento social no fim dos anos 1990. O acirramento
do neoliberalismo e do capitalismo impôs o aumento da pobreza, do desemprego e da
fome de forma contundente na vida das pessoas negras, o que exigiu forte atuação das
entidades negras no Brasil e no mundo. Essa recebeu apoio internacional, protagonizado
pela ONU, a qual passa a cobrar e a fazer pressão sobre os Estados-membros por um
posicionamento público quanto ao combate ao racismo e a toda forma de discriminação.
Tudo isso contribuiu para uma mudança de rumo e para tornar a ação do Movimento
Negro mais incisiva. A realização da Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, deixou
ensinamentos importantes para a nova articulação política desse movimento. Além
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disso, os anos que sucederam 1995 foram marcados por mudanças nacionais
importantes, culminando, em 2002, com a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) e a
ascensão da esquerda pela primeira vez ao Executivo federal. Em 2001, o Brasil se fez
representar na Conferência de Durban, na África do Sul, e pela primeira vez os dados de
raça/cor foram desagregados pelos pesquisadores do Ipeae tornados públicos. Uma
profunda desigualdade racial foi revelada em todas as áreas e setores abordados pela
investigação. Não havia como negar o racismo e a desigualdade racial, já que os dados
oficiais confirmavam a denúncia histórica do Movimento Negro (Henriques,
2001).Foram esses dados que a diplomacia brasileira levou para Durban, seguida por
militantes do Movimento Negro e outros movimentos sociais. Tais dados, já discutidos
previamente pela militância nas conferências preparatórias pré-Durban, foram um
importante instrumento político de negociação do Movimento Negro com as forças de
esquerda que almejavam ganhar as eleições presidenciais.
Foi nesse processo de articulação de forças que o então candidato, Luiz Inácio
Lula da Silva, saiu vitorioso das eleições presidenciais. Em continuidade às pressões, o
Movimento Negro lutou para que, no conjunto dos ministérios e das políticas de Estado
do primeiro governo de esquerda do Brasil, contemplasse a questão racial e o combate
ao racismo em lugar de destaque. E é assim que se configura a alteração da Lei
n.9.394/96 (LDB) pela Lei n.10.639/03 (obrigatoriedade do ensino de História da África
e das Culturas Afro-Brasileiras) nas escolas públicas e privadas dos ensinos
fundamental e médio. A lei foi sancionada, em 2003, junto com a criação da Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Mesmo assim, esta última só foi
criada na segunda rodada de ministérios apresentados pelo então presidente, sob nova
pressão do Movimento Negro. Em 2004, assistimos à criação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) no Ministério da Educação (MEC), a
qual mais tarde passou a incorporar as questões da inclusão e se tornou Secadi.
Fruto das reivindicações de vários movimentos sociais pelo reconhecimento das
suas questões nos programas e políticas educacionais, a Secadi foi a secretaria do MEC
responsável pela implementação de uma série de ações voltadas não somente à
alfabetização de jovens e adultos, mas também à educação dos povos do campo, negros,
indígenas, quilombolas e de temas como meio ambiente, sexualidades, educação
integral. Uma série de editais, programas, projetos e pesquisas promovidos pelo MEC

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ou impulsionados por esse ministério foi desenvolvida a partir de então. E a Secadi
viveu no interior do MEC todas as tensões, disputas e luta por reconhecimento pelas
quais os sujeitos que essa representava viviam na sociedade e no campo educacional.
A alteração da LDB pela Lei n. 10.639/03 é, portanto, de uma importância
simbólica e política que extrapola os próprios artigos nela explicitados. 5 Ela representa
o fechamento de um ciclo de lutas antirracistas do Movimento Negro na educação e
marca o início de outro, voltado para a implementação dessas políticas, de maneira
oficial, no campo da educação básica e superior. A sua regulamentação pela Resolução
CNE/CP n. 01/2004 e pelo Parecer CNE/CP n. 03/2004, sob a relatoria da professora
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (UFSCar), quando esta ocupou uma cadeira na
Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), indicada pelo
Movimento Negro, coroou uma longa trajetória desse movimento social e dos demais
parceiros da luta antirracista pela inclusão, pelo direito e pela legitimidade da questão
racial nas políticas educacionais.
Embora reconheça que a radicalidade dessa alteração da LDB e todo o histórico
de lutas, esforços e articulações que ela congrega ainda não estão contemplados com a
radicalidade necessária na educação brasileira, não há como deixar de reconhecer os
avanços advindos após a sanção da lei e a aprovação do parecer e da resolução do CNE
que a regulamentaram. Assistimos a mudanças nas práticas pedagógicas, na produção
de material didático qualificado e na literatura infanto-juvenil voltada às pessoas negras,
com personagens e situações vividas por elas, iniciativas de formação continuada de
professores da educação básica, tais como cursos de especialização, aperfeiçoamento,
extensão, atualização, desenvolvimento de pesquisas, editais do MEC para o
fortalecimento dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros nas universidades, incremento
da realização de pesquisas, encontros e seminários sobre a temática, introdução de
disciplinas na educação básica e superior com ênfase nas questões africanas e afro-
brasileiras, maior reconhecimento da desigualdade racial na sociedade e na educação,
visibilidade aos professores negros como sujeitos de conhecimento, dentre outros.A
alteração da LDB pela Lei n.10.639/03 causou inflexão quer na discussão quer na

5
Em 2008, foi sancionada a Lei n.11.645/08, que incluiu também as populações indígenas no art. 26 A,
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
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relação entre políticas educacionais, desigualdade racial, reconhecimento e superação
do racismo.

UM NOVO CICLO DO MOVIMENTO NEGRO

É possível dizer que a trajetória histórica do Movimento Negro em prol da


educaçãofechou um ciclo com a aprovação da alteração da LDB pela Lei n.10.639/03.
Depois disso, de 2003 a 2016, abriu-se e fechou-se outro. A partir de 2003, vivemos o
contexto de implementação dessa legislação (ainda que de maneira irregular) e de uma
série de ações, programas e políticas de igualdade racial, coordenadas pelo governo
federal e sob a responsabilidade da Seppir e da Secadi (Carreira, 2017).Nesse novo ciclo
das políticas, também se configura outro perfil do Movimento Negro, e suas ações se
tornam mais focadas. Trata-se de um Movimento Negro mais jovem, com maior
presença no campo educacional como docente e discente da educação básica e do
ensino superior. Um movimento no qual os seus integrantes pertencem a novos
coletivos, e não somente às entidades políticas históricas. Um Movimento Negro mais
fluido, com uma inserção cultural na periferia, com fortes vínculos com o universo da
cultura, das artes, das tecnologias e das redes sociais.
Nesse processo, a ampliação do conceito de Movimento Negro se faz necessária
se a ele queremos incluir, além das entidades tradicionais ligadas ao mundo da política,
da defesa dos povos quilombolas, de matriz africana e grupos do Movimento Hip-Hop,
a juventude negra e periférica, as jovens militantes negras, inseridas nas redes sociais,
com domínio e presença nas mídias alternativas e os universitários negros cotistas ou
não. Se a nossa concepção de Movimento Negro se alargar em sintonia com os
movimentos sociais e as ações coletivas do nosso tempo e do nosso século,
entenderemos que o fato de serem homens e mulheres negros, que se posicionam
publicamente na luta antirracista com uma postura de denúncia, reivindicação e
propostas de superação do racismo, nos coloca diante do Movimento Negro do século
XXI.
Movimento esse que incorpora diferentes gerações, identidades negras, formas
de ação, mas que mantém consenso sobre o reconhecimento da nossa ancestralidade
africana, a perversidade estrutural do racismo e sua repercussão violenta na vida das
pessoas negras. Também tem concordância em relação à responsabilidade do Estado de
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continuar implementando políticas de igualdade racial e de ações afirmativas como uma
das formas de correção de desigualdades históricas. É ainda consenso a urgente
superação do genocídio da juventude negra e da violência contra a mulher negra.
Esse Movimento Negro do século XXI luta contra o racismo, o patriarcado, o
machismo, a LGBTfobia e o epistemicídio. Ele é muito marcado pela luta das mulheres
negras, principalmente as jovens, na construção da pauta de luta do feminismo negro, o
qual foi amplamente visibilizado, em 2015, com a realização da Marcha das Mulheres
Negras, no mês de novembro, em Brasília, os eventos de empoderamento crespo nas
diferentes cidades do país, as marchas de orgulho crespo, as várias performances afros
que envolvem a articulação entre gênero, raça e sexualidades.
Tal Movimento Negro do século XXI impacta, indaga e desafia as políticas
públicas brasileiras, em especial, as educacionais. Ele cobra dos governos e do Estado o
cumprimento dos acordos internacionais voltados para a superação do racismo, a
garantia dos direitos humanos e das mulheres, enfatizando o recorte racial de todas essas
pautas.

CONCLUINDO

Por isso, após 30 anos da publicação de Caderno de Pesquisa n. 63, pela


Fundação Carlos Chagas, ao nos perguntarmos sobre o que mais poderemos fazer nessa
caminhada de luta pela educação antirracista, o nosso olhar se volta para a trajetória
dinâmica e corajosa do Movimento Negro, entendida como parte da resistência
democrática. Mas o que vem a ser a resistência democrática? Para o povo negro, é
aquela que combina a força da herança ancestral africana e afro-brasileira, a luta
histórica do Movimento Negro e dos negros em movimento, os conhecimentos
produzidos e sistematizados pelo Movimento Negro, as novas formas de lutas negras do
século XXI, o acúmulo teórico-acadêmico dos negros e das negras intelectuais, a
energia e a criatividade da juventude negra, a garra das mulheres negras do passado e do
presente.Elase alicerça em alguns princípios e se configura em algumas ações, a saber:

- reconhecer a sabedoria e as lutas ancestrais;


- reconhecer as novas formas de organização negra e suas pautas de luta;
- superar a visão de que temos hierarquias entre desigualdades e opressões nas lutas
emancipatórias, compreendendo como a questão da diversidade e das diferenças tem
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sido manipulada no contexto das relações de poder a ponto de levar os próprios
coletivos progressistas a disputar entre si direitos e emancipação;
- compreender que capitalismo, racismo, patriarcado e pobreza possuem o mesmo
passado colonial, mas operam de forma e intensidades diferenciadas. Por isso, a sua
superação tem de ter como ponto comum a emancipação social, considerando como
cada coletivo sofre e vive as opressões e as desigualdades específicas, reconhecendo sua
trajetória de lutas, incorporando suas reivindicações específicas;
- continuar lutando pelo enraizamento das políticas de ações afirmativas voltadas para a
população negra, pressionando o Estado brasileiro para que ele invista recursos
públicos, de fato, para a sua efetividade;
- lutar contra o racismo religioso, o recrudescimento das formas de racismo on-line e
off-line, o genocídio da juventude negra, a violência contra a mulher negra e a
população afro-LGBT;
- construir outras alianças com movimentos sociais, ações coletivas, partidos de
esquerda e forças emancipatórias na luta contra o racismo, a pobreza, o machismo, o
ataque aos quilombolas, aos indígenas e aos povos do campo que lutam historicamente
pelo seu direito à terra;
- lutar a fim de que o Estado reconheça que, para a superação do racismo, não basta
apenas buscar a igualdade social. Elatem de estar articulada com a equidade, a
igualdade racial, a justiça social e cognitiva.

Estamos em tempos de reedição do racismo no mundo, que acompanha o


desenvolvimento da sociedade atual, a globalização capitalista, o avanço da lógica de
mercado, a quebra das fronteiras possibilitada pelo universo web, pelas redes sociais,
pelas novas tecnologias. Reedição da aversão às diferenças, ao povo, aos pobres, aos
negros, aos movimentos LGBT, aos deficientes, às mulheres, aos indígenas, aos
quilombolas, aos povos do campo e das florestas. Aversão à democracia.
Nesse contexto, muitas pessoas se mostram desanimadas, desiludidas e sem
esperança. Momentos de abatimento também incidem, por vezes, sobre mim. O
contexto de retrocessos é especialmente duro para quem vive na pele (literalmente!) o
saber-se negra. Mas, para aquelas e aqueles que, além de saberem-se negros, saboreiam
o fato de sermos frutos de uma história ancestral de resistência, herdeiros de povos que
foram obrigados, à força, a deixar a sua terra e atravessar o oceano Atlântico no porão
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escuro e insalubre de um navio negreiro, não há espaço para a desistência. Temos de
reinventar o presente e continuar a resistir. Uma das formas de resistir é investir no
momento presente e compreender que somos chamados a agir nele. Rememorar a nossa
ancestralidade africana não pode nos imobilizar no saudosismo. E projetar um futuro
melhor significa ter os pés firmes no presente, a fim de construir um porvir mais digno.
Conhecer e compreender a trajetória do Movimento Negro na sociedade, principalmente
as formas como ele tem indagado e reconfigurado as políticas educacionais – em meio a
tantos limites e desafios –, é um convite à reflexão sobre as interconexões possíveis
entre passado, presente e futuro, com o olhar sempre voltado para a emancipação social.

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contribuições à política educacional nas décadas de 1980 e 1990. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) –Instituto de Ciências da Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de
São Carlos, São Carlos, 2005.

Recebido em janeiro de 2019


Aprovado em março de 2019

162
Revista da ABPN • v. 11, Ed. Especial - Caderno Temático: Raça Negra e Educação 30
anos depois: e agora, do que mais precisamos falar? • abril de 2019, p.141-162
DOI 10.31418/2177-2770.2019.v11.c.1.p141-162
205

RELAÇÕES ao combate à pobreza e à miséria. A sociedade


racista molda instituições racistas. O racismo
RACIAIS, RACISMO institucional é a forma mais acabada de mecanismo
de exclusão e de negação da igualdade. Em um
E POLÍTICAS projeto de sociedade democrática e pluralista o
Estado deve funcionar como um potencializador
PÚBLICAS das mudanças. E essas mudanças só ocorrerão

NO BRASIL na medida em que as ações afirmativas forem


utilizadas de forma efetiva e associadas ao

CONTEMPORÂNEO conjunto das ações governamentais, sem o que


continuaremos a reproduzir desigualdades, ainda
que em patamares menores de pobreza e miséria.
Mário Theodoro
Senado Federal e Pesquisador Visitante do Palavras-chave: Racismo, questão racial,
departamento de Sociologia - Universidade políticas públicas, ações afirmativas
de Brasília/
Brasil

RESUMO: RESUMEN:

Este artigo parte da constatação de que a Este artículo parte de la constatación de que las
desigualdade no Brasil tem como cerne a desigualdades en Brasil  tienen en la cuestión
questão racial. E exatamente por seu conteúdo racial su punto neurálgico. Justamente por su
racial essa desigualdade é naturalizada pela contenido racial, las desigualdades han sido
sociedade. Programas como o Bolsa Família e o naturalizadas por la sociedad. Programas como
Brasil Sem Miséria trouxeram uma significativa « Bolsa Familia » y «Brasil Sin Miseria »
redução da pobreza e da miséria, ainda que os generaron una reducción significativa de la
níveis de desigualdade e da própria incidência da pobreza y la miseria, a pesar de que los niveles
pobreza e da miséria continuem extremamente de desigualdad y de la incidencia de la pobreza
altos. A continuidade dessa trajetória, não y la miseria siguen siendo extremadamente
apenas de erradicação da pobreza e da miséria, altos. La continuación de esta tendencia, no
mas de construção de uma sociedade de iguais sólo para la erradicación de la pobreza y la
só será garantida se enfrentarmos o cerne dessa miseria, sino para construir una sociedad de
desigualdade: o racismo e seus desdobramentos. iguales sólo se garantizará si nos enfrentamos a
Há, portanto, a necessidade de que se dê a real la esencia de esta desigualdad: el racismo y sus
importância às políticas de ação afirmativa consecuencias. Por tanto, existe la necesidad
como complemento indispensável das políticas de darle una importancia real a las políticas
sociais clássicas e mesmo daquelas direcionadas de acción afirmativa como un complemento
206

necesario de las políticas sociales clásicas e Neste novo contexto, referências jurídicas
incluso de las destinadas a la lucha contra la e normativas foram alteradas, ao mesmo
pobreza y la miseria. Una sociedad racista tempo em que o quadro institucional e as
produce instituciones racistas. El racismo iniciativas no campo das políticas públicas
institucional es el mecanismo más eficaz de sofreram importantes inflexões. Da instituição
la exclusión y la negación de la igualdad de e disseminação de cotas para acesso às
condiciones. En un proyecto de sociedad universidades públicas à adoção de uma
democrática y pluralista, el Estado debe actuar legislação nacional na forma abrangente de um
como un potenciador de los cambios. Y estos Estatuto da Igualdade Racial, passando pela
cambios se producirán en la medida en que la criação de organismos estatais específicos para
acción afirmativa sea utilizada con eficacia y operar as políticas públicas para a promoção da
asociada al conjunto de acciones del gobierno, Igualdade Racial, um conjunto de inovações
sin lo cual vamos a seguir reproduciendo las políticas e institucionais foi levado a cabo nos
desigualdades, aunque con niveles más bajos de últimos dez anos e marcou uma nova etapa no
pobreza y miseria.” enfrentamento do tema racial no país.

Palabras-clave: Racismo, problemática racial, Na base desse conjunto de mudanças esteve


políticas públicas, acciones afirmativas o processo de desconstrução do mito da
democracia racial, formulação que imperou
no país no último meio século. A idéia de
democracia racial enfatizava a dimensão
positiva da mestiçagem, em torno da qual teria
Introdução se constituído a unidade racial e cultural do
povo brasileiro, propiciando uma convivência
O Brasil presenciou na primeira década do
harmônica que permitiria ao país escapar dos
século XXI uma expressiva mudança no
problemas raciais observados em outros países.
debate público sobre as relações raciais, assim
A crítica a esta formulação dominante ganhou
como no formato e abrangência das políticas
força nas últimas duas décadas do século XX.
públicas voltadas para a população negra. No
Neste período, fortaleceu-se o Movimento Negro
que tange ao debate público, o tema ganhou
e suas denúncias da vigência do racismo como
destaque inédito, mobilizando movimentos
ideologia ativa e da discriminação como prática
sociais, intelectuais, imprensa, partidos
social sistemática. Ao mesmo tempo, ganhavam
políticos e movimentando o conjunto das
fôlego as análises sobre as desigualdades raciais
instituições do Executivo Federal bem como
no país, ampliando a compreensão sobre o papel
do Legislativo e Judiciário, aonde chegou a
do racismo e dos processos discriminatórios de
suscitar o envolvimento do próprio Supremo
cunho racial.
Tribunal Federal.
207

Assim, o tema das desigualdades raciais se Na próxima seção são discutidos o racismo e
afirmou no Brasil no bojo de um ampliado sua centralidade na conformação da sociedade
debate sobre a questão social. Em torno brasileira. Na sequência, a segunda seção
deste tema sobrepuseram-se as demandas de discute a evolução recente no campo de ação das
enfrentamento ao racismo e à discriminação políticas voltadas à igualdade racial e sua relação
racial e as demandas de Combate às com as demais políticas públicas. Na terceira
desigualdades sociais. O cruzamento das duas seção são apresentados alguns indicadores
pautas foi realizado por meio do progressivo sobre as desigualdades raciais no país, os
reconhecimento do racismo como mecanismo quais sedimentam e justificam as políticas de
de produção e reprodução das hierarquias enfrentamento á questão racial. Na parte final
sociais e fator de restrição da mobilidade são sistematizadas as conclusões tendo em vista
social da população negra, opondo assim os principais desafios para a consolidação deste
poderosos obstáculos à dinâmica da igualdade campo da política pública no Brasil.
de oportunidades, e marcando fortemente a
natureza da desigualdade social brasileira.
1. O racismo e as suas diferentes
Dessa forma, para além de uma resposta configurações na sociedade
a demandas de cunho identitário ou brasileira
compensatório, a trajetória brasileira recente O racismo transforma diversidade em
representa uma inflexão no debate e nos desigualdade. Operando a partir de uma escala
instrumentos de enfrentamento da desigualdade de valores que torna socialmente aceitável,
social. Ela expressa o reconhecimento de que e mesmo justificável, a distribuição desigual
as desigualdades raciais constituem o eixo das posições sociais privilegiadas, o racismo
estratégico da gramática da desigualdade social reafirma e consolida a subalternidade da
no país, e não mero fruto de trajetórias históricas população negra. Reproduzido histórica e
e de déficits acumulados no campo da pobreza estruturalmente, este mecanismo perpassa as
e da educação. relações sociais e inscreve no país uma forma
Contudo, o processo de afirmação da temática particular de convivência entre desiguais. Sua
racial como cerne da questão da desigualdade vigência naturaliza a desigualdade e reforça o
brasileira não se deu de forma linear ou isento processo de legitimação e de engessamento da
de resistências, contestações e dificuldades, hierarquia social, contribuindo para a escassa
como se verá nas próximas páginas. Este artigo mobilidade racial que ainda caracteriza o país.
tem como objetivo resgatar a trajetória recente Assim, o racismo constitui-se em um importante
do debate sobre a questão social no Brasil, com obstáculo ao enfrentamento da pobreza e da
ênfase na temática racial. Ele é composto de desigualdade social.
quatro partes, além desta introdução. Dito de outro modo, como ideologia que
208

diferencia e hierarquiza os indivíduos em função atraso em relação às demais nações do


de sua aparência, o racismo molda uma sociedade ocidente seria então explicado pela grande
que se assenta na existência e naturalização da incidência do sangue negro nas veias de
desigualdade e faz desta hierarquia uma base nossa população.
específica de apoio e funcionamento. Opõe-
Essa perspectiva, a despeito de algumas
se não apenas a uma dinâmica social mais
importantes vozes contrárias como Manuel
igualitária, mas também ao princípio político da
Querino e Manuel Bonfim, foi norteadora da
República, que em seu molde clássico, ancora-
crença das elites nacionais, desde os círculos
se no reconhecimento pleno da igualdade entre
intelectuais aos ideólogos e dirigentes
os cidadãos. A desigualdade racial organiza o
governamentais, de que o Brasil padeceria
acesso diferenciado às liberdades básicas, como
de um déficit civilizatório advindo da
as de circulação, de culto, de manifestação;
expressiva presença negra. 1 Autores como
influi no acesso e tratamento junto ao sistema
Nina Rodrigues e Silvio Romero e, mais
judiciário, e mesmo no direito à vida.
tarde, Oliveira Viana e Azevedo Amaral,
Mas se a questão racial ainda se conjuga preconizaram a necessidade de se proceder
como um dilema para o país, isto não se a políticas de branqueamento como solução
deve à invisibilidade demográfica, social ou para o país.
política da população negra. Ao contrário, a O problema étnico brasileiro – chave de
história do Brasil republicano é perpassada todo o destino da nacionalidade – resume-
pelo debate e pelas formulações referentes se na determinação de qual virá a ser o
fator da tríplice miscigenação que aqui se
às formas de integração dessa população opera a que caberá impor a ascendência
negra, debate este visto como parte no resultado definitivo do caldeamento.
integrante da busca do desenvolvimento, do É claro que somente se tornará possível
progresso e da modernização do país. assegurar a vitória étnica dos elementos
representativos das raças e da cultura
Nas décadas que antecederam a Abolição da Europa se os reforçarmos pelo afluxo
contínuo de novos contingentes brancos
essas questões ganharam relevo. Por volta de (AMARAL, 1981, p.137).
1850, em face dos primeiros embates acerca
do fim da escravidão, as discussões em torno A adesão governamental à estratégia de estímulo
da figura do negro e de seu papel no futuro à imigração européia sustentou durante quatro
do país adquiriram maior densidade. Com o décadas uma política de branqueamento do
advento das teorias eugênicas importadas da 1 O primeiro recenseamento nacional, realizado em 1872,
identificava 58% da população como negra (preta e parda) (Instituto
Europa, notadamente nas últimas décadas Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Censo demográfico
1872. Disponível em: phed@cedeplar.ufmg.br. Acesso: 26. jun.
do século XIX, o racismo recebe um verniz 2014. Em 1940 a participação de negros e brancos na população
brasileira havia praticamente se invertido, com 36% da população
de cientificidade. A academia corroborava a se declarando negra. (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
idéia da inferioridade da raça negra: nosso - IBGE. Censo demográfico 1940. Disponível em biblioteca.ibge.gov.
br. Acesso: 26. jun. 2014)
209

país.2 Paralelamente, as teses eugênicas foram influenciado pela queda do nazifacismo. Cai
sendo progressivamente contaminadas pela por terra o mote da superioridade racial e ganha
perspectiva de que não apenas a imigração, força a visão ensejada por um novo autor,
mas também a miscigenação, a diluição do inspirador do discurso oficial: Gilberto Freyre.
sangue deletério do negro em face de uma O maior legado da obra de Gilberto Freyre foi
maioria populacional branca, poderia ser a sedimentação da noção de democracia racial.
uma estratégia importante para o processo de A visão positiva do autor de Casa Grande
embranquecimento da população brasileira. e Senzala sobre a miscigenação não apenas
fortalecia a perspectiva da existência de um
Tal discurso não apenas integrou um projeto
povo brasileiro, mas a dotava de positividade.
político de construção nacional do qual a
Para Freyre, o caldeamento das três raças foi
população negra estava afastada como, mais
responsável pela aparição de uma mestiçagem
concretamente, constrangeu a participação
positiva, porquanto preservadora das qualidades
dos negros nos espaços públicos e na própria
e das virtudes da raça adiantada. Ainda se fazia
dinâmica social. Como já descrito em trabalho
presente em Freyre a crença na hierarquia
anterior (THEODORO, 2008), a marginalização
das raças: “O que houve no Brasil (...) foi a
do negro no mercado de trabalho é parte
degradação das raças atrasadas pelo domínio da
constitutiva deste processo. O trabalho escravo,
adiantada.” (FREYRE, 2006, p. 515)
organizador do sistema produtivo do Brasil
Colônia, foi gradativamente substituído pelo De todo modo, a ideia de um Brasil visto
trabalho livre no decorrer dos anos 1800. Essa como uma democracia racial, amparada
substituição, no entanto, se dá de uma forma no estereótipo de uma nação constituída
particularmente excludente. Mecanismos de população mestiça, racialmente e
legais, como a Lei de Terras, de 1850, a Lei culturalmente integrada e isenta de qualquer
da Abolição, de 1888, e mesmo o processo de forma de racismo, foi largamente difundida
estímulo à imigração, forjaram um cenário no pelo discurso oficial governamental a partir
qual a mão-de-obra negra passa a uma condição da segunda metade dos anos 1940. O Brasil
de força de trabalho excedente, sobrevivendo, passa a se apresentar ao mundo – e a se
em sua maioria, dos pequenos serviços ou da representar - como lugar de convivência
agricultura de subsistência. harmoniosa e salutar entre pessoas de todas
as raças, credos e culturas. Um país sem
A partir da década de 1940 observa-se
embates raciais, exemplo de integração
uma guinada importante no debate, com o
racial. Nas décadas seguintes a imagem do
desaparecimento do discurso da eugenia,
Brasil como paraíso das raças foi, não apenas
2 A influência do racismo científico espraiou-se pela América preservada, como fortalecida. No período
Latina, influenciando políticas migratórias, segregacionistas e
repressivas (ANDREWS, 2005). Segundo Costa (2011) este representa da ditadura militar, assistiu-se ao reforço
o primeiro dos cinco regimes de coexistência adotados na America
Latina para operar com a presença dos afrodescendentes na região. desse discurso, que pode ser resumida pelo
210

lacônico e peremptório relatório brasileiro 2. As políticas públicas face


enviado pelo Itamaraty ao Comitê para aos problemas das relações
etnorraciais
a Eliminação da Discriminação Racial
(CEDR), da Organização das Nações Unidas O século XXI iniciou-se presenciando um
(ONU), em 1970: patamar inédito de reconhecimento, por largas
parcelas da população, de que a sociedade
brasileira convive com o racismo. A persistente
Tenho a honra de informar-lhe que,
uma vez que a discriminação racial não leitura das desigualdades raciais como
existe no Brasil, o Governo brasileiro resultado da pobreza, do acúmulo de carências
não vê necessidade de adotar medidas da população negra e de seu despreparo para
esporádicas de natureza legislativa, participar do mercado de trabalho moderno,
judicial e administrativa a fim de
assegurar a igualdade das raças havia se consolidado gradativamente no país,
(SILVA, 2008). mas começava a ser contestada. Longe de
meras heranças acumuladas, as desigualdades
Mas é bom que se diga que essa ideologia raciais brasileiras passaram a ser amplamente
da democracia racial não se consolidou sem reconhecidas como sendo legitimadas pelo
oposição. Ainda no início dos anos 1950, racismo (difuso ou ativo), e como sendo
tal formulação já era objeto de criticas, influenciadas por mecanismos ativos de
contraposta ao mundo real das relações discriminação racial.
sociais. Os estudos realizados no bojo do
Projeto da Organização das Nações Unidas O Movimento Negro, atuando historicamente na
para a Educação, a Ciência e a Cultura abertura do espaço para o debate da questão racial,
(UNESCO), por pesquisadores como Oracy foi fortalecido pelos ventos da democratização
Nogueira e Florestan Fernandes, inauguraram que começaram a soprar no final dos anos 1970.
uma vertente critica, reconhecendo o racismo Em 1978, a fundação do Movimento Negro
como fator relevante na reprodução das Unificado (MNU) representou a retomada do
desigualdades raciais e restringindo o lugar ativismo pela igualdade racial. Contudo, a
social dos negros no Brasil (MAIO, 2000). bandeira da igualdade racial não foi plenamente
Contudo foi apenas na década de 1980 que assumida pelos demais segmentos organizados
o discurso da democracia racial passou a ser da sociedade brasileira, permanecendo até o
questionado no âmbito do Estado brasileiro, final do século XX como tema quase exclusivo
dando espaço ao debate sobre políticas do movimento social negro.3 E sua constituição
especificas voltadas a população negra.
3 Segundo Bento (2000), entre 1990 e 1995, o movimento
Até então, a democracia racial legitimou a sindical passou a incluir a temática racial em sua pauta de
preocupações e reivindicações. Este processo refletiu no
inserção subordinada da população negra. aparecimento de órgãos internos específicos sobre o tema, como a
Secretaria de Pesquisas e Desenvolvimento da Igualdade Racial da
Força Sindical ou a Comissão Nacional contra a Discriminação
Racial da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
211

como objeto de políticas públicas aguardou Ancoradas na Constituição de 1988, um


ainda mais, só se impondo no inicio do século conjunto de iniciativas no campo legislativo
XXI, quando o tema da desigualdade se afirma viu a luz neste período, visando regulamentar
como incontornável para a consolidação de um o texto constitucional que havia reconhecido
projeto de modernização e de democratização o racismo como crime inafiançável e
nacional. imprescritível, com destaque para a chamada
Lei Caó, aprovada ainda em 1989. 6 Também
De fato, durante os anos 1980 e 1990,
a cena internacional propiciou avanços. Em
algumas iniciativas tiveram lugar sem,
2001, a III Conferência Contra o Racismo,
contudo, lograr maiores êxitos. Em
a Discriminação Racial, a Xenofobia e
alguns estados, os governadores eleitos
Outras Formas de Intolerância, organizada
patrocinaram a criação de instâncias
pela ONU, teve grande impacto no país.
estaduais na forma de Conselhos, em atenção
Seus resultados e deliberações funcionaram
à problemática racial. Isso se deu em função
como mote para que o movimento negro
do apoio do movimento negro àquelas
veiculasse a necessidade de criação
candidaturas. (SANTOS, 2010). Em nível
de instâncias executivas destinadas à
federal, pela veia culturalista, a temática
concepção e implementação de políticas
racial desembarcara em 1988 com a criação
de igualdade racial, influenciando também
da Fundação Cultural Palmares, ligada ao
para que a pauta das ações afirmativas
Ministério da Cultura e tendo por objetivo a
fosse incluída entre as principais opções de
promoção e preservação das manifestações
políticas públicas para o enfrentamento do
da presença negra na sociedade brasileira.
preconceito racial. Contudo, as iniciativas
Em 1995, já na gestão Fernando Henrique
continuavam tímidas no âmbito das políticas
Cardoso, foi criado o Grupo de Trabalho
públicas. Somente em 2003, o recém-eleito
Interministerial (GTI) de Valorização da
Presidente Lula, resgatando compromisso
População Negra, com a incumbência de
de campanha, cria a Secretaria Especial de
dar resposta às demandas apresentadas pela
Políticas de Promoção da Igualdade Racial
Marcha Zumbi 4 que trazia para as ruas a
(SEPPIR).
mobilização nacional em prol da igualdade
racial. 5 Um conjunto relevante de avanços foi
4 A Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela instituído na seqüência da instalação
Cidadania e a Vida realizada em Brasília, reuniu mais de 30 mil
pessoas, entre elas cinco mil dirigentes sindicais, pressionando o da Seppir. Governos estaduais também
governo a um compromisso público contra a discriminação racial brasileira contou com grande participação expressiva de lideranças
(BENTO, 2000, p. 325). reconhecidas do Movimento Negro, cuja participação nos debates
5 Fernando Henrique foi o primeiro Presidente da República e deliberações também repercutiu no fortalecimento de uma nova
a admitir a existência do racismo e da desigualdade racial. Como agenda onde o papel das ações afirmativas passa a ganhar relevo.
intelectual integrante do grupo de Florestan Fernandes que se 6 De autoria do deputado federal Carlos Alberto Oliveira, a
debruçara sobre a temática racial ainda nos anos 50, o então Lei no 7.716, de 1989, realiza a tipificação de atos motivados pelo
presidente apoiou a participação do Brasil na III Conferência preconceito de cor ou raça e prevê sua punição. Jaccoud e Beghin
Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Outras (2002) registram outras três leis promulgadas durante a década de
Formas de Intolerância, realizada em Durban, em 2001. A delegação 1990 tendo como objetivo a coerção e punição de crimes raciais.
212

criam secretarias de promoção da sobretudo, da área econômica do Governo


igualdade racial e centenas de prefeituras Federal, impediram que o Estatuto contivesse
municipais, notadamente nas cidades de aquele que nos parece um de seus principais
maior contingente populacional, também o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade
estabelecem instâncias municipais racial, fonte estável e perene de recursos
congêneres. 7 Esta rede de instituições que garantiria a plena execução de ações no
passou a ser organizada, desde 2010, no âmbito da Seppir, como a consolidação do
Fórum Intergovernamental de Promoção Sistema Nacional de Promoção da Igualdade
da Igualdade Racial (FIPIR). 8 A instituição Racial (SINAPIR), e a criação de uma rede
do Conselho Nacional da Igualdade Racial, de entidades não governamentais de apoio às
composta por representantes governamentais políticas de igualdade racial. Infelizmente,
e não governamentais também constitui o Estatuto veio sem o Fundo, o que fragiliza
marco relevante. 9 Por fim, há ainda a sobremaneira a consolidação da Política de
Conferência Nacional de Promoção da Promoção da Igualdade Racial no Brasil.
Igualdade Racial (CONAPIR), precedida
De todo modo, esse aparato institucional
das conferências estaduais e locais. 10
montado nos últimos anos mantém como
Entre os esforços normativos destaca-se a objetivo a implementação da Política
criação do Estatuto da Igualdade Racial, de Promoção da Igualdade Racial. Esta,
instrumento legal que busca consolidar a entretanto, até pelas razões aqui já apontadas,
legislação sobre a temática, além de normatizar ainda não logrou consolidar-se como um
a Política Nacional de Igualdade Racial. conjunto de programas e ações compatíveis,
O Estatuto entrou em vigência em 2010. em dimensão e em volume de recursos, com
Infelizmente, pressões políticas advindas, a importância e a pujança da problemática
racial no Brasil.
7 Os números oficiais sobre o FIPIR indicam uma adesão
de todos os estados e do Distrito Federal, além de cerca de 700
municípios em todo o Brasil. No caso dos municípios, entretanto,
há fortes indícios de superestimação, de acordo com informações 3. Desigualdades raciais: avanços
obtidas junto à própria SEPPIR.
8 “O Fórum tem o objetivo de promover uma ação e impasses
continuada entre as três esferas de governo (federal, estaduais
e municipais) com a finalidade de articulação, capacitação, A despeito de alguns impasses, o
planejamento, execução e monitoramento das ações para a
implementação da política de promoção da igualdade racial. desenvolvimento de uma importante
Assim, o Fórum constitui-se num espaço de articulação dos
organismos públicos, onde a efetiva participação das/os
institucionalidade no campo das políticas
gestoras/es é fundamental para sua estruturação.” (SEPPIR, púbicas no Brasil suscitou positivas alterações
online).
9 O Conselho Nacional tem representação paritária com nos indicadores sociais em prol da redução
22 representantes do governo e 22 representantes de entidades da
sociedade civil, com maior peso do movimento negro. das desigualdades raciais. Algumas destas
10 São três as Conferencias Nacionais de Promoção da
Igualdade Racial já realizadas, respectivamente, em 2005, 2009 e
melhorias decorrem diretamente das políticas
2013, reunindo milhares de delegados em provenientes de todo o adotadas. É o caso do crescimento no acesso
país.
213

dos estudantes negros ao ensino superior, que, desigualdade de oportunidades. Além disso,
em função de programas como o Programa certos índices têm demostrado uma piora no
Universidade para Todos (PROUNI), bem que se refere ao aumento das desigualdades,
como a política de cotas para estudantes negros apontando para o reconhecimento de que a
instaladas por diferentes instituições de ensino questão racial permanece como ponto nodal
superior em todo o país. O contingente de do debate social brasileiro. E aqui o caso mais
estudantes negros no ensino superior passou emblemático se refere ao aumento da violência
de 10,2% em 2001, para 35,8%, em 2011, de contra a população negra.
acordo com os dados da Pesquisa Nacional
Os indicadores de mortalidade são o sinal mais
por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE.
pujante da dramaticidade da desigualdade racial
Outras políticas refletem dinâmicas que organiza a dinâmica social brasileira. Como
positivas no quadro econômico e social mostra a evolução dos dados sobre homicídios
geral, como é o caso da redução da pobreza por cor/raça organizados por Oliveira Junior
entre a população negra. Dos 22 milhões de e Lima (2013), entre 2002 e 2009, enquanto a
pessoas que saíram da condição de pobreza taxa de homicídios para a população branca se
entre 2002 e 2012, cerca de 15 milhões são reduziu de 20,4 para 16,1 por 100 mil habitantes,
negros, de acordo com a PNAD/IBGE. Do entre a população negra esta taxa cresceu de 33,7
mesmo modo assistiu-se a uma expressiva pra 34,2. Ou seja, em 2009 a taxa de homicídios
melhoria da inserção do Negro no mercado entre a população negra era mais que o dobro
de trabalho. Dados do Departamento da observada entre os bancos. A situação é
Intersindical de Estudos e Estatísticas ainda mais dramática entre os jovens de 15 a 29
Socioeconômicas (DIEESE) sobre a Região anos. Enquanto a taxa de homicídios de jovens
Metropolitana de São Paulo apontam uma brancos reduziu-se de 32,4 para 30,4 por mil
queda do desemprego entre os negros de habitantes, para jovens negros o crescimento
15,7% para 7,5% entre 2000 e 2012. observado foi de 68,7 para 72,4.

Observou-se ainda uma significativa e O alto índice de homicídios que assola a


generalizada redução da informalidade na última população negra brasileira não se reduz ao
década, que passou de 55,4% para 43,1% da força contexto de pobreza. Analisando as taxas de
de trabalho ocupada no Brasil, de acordo dom os homicídio por anos de estudo da população,
dados do IBGE. Nesse mesmo período, houve observa-se que a desigualdade permanece
aumento real do rendimento médio do trabalho presente em todas as faixas de escolaridade. E
de 27,1%, beneficiando negros e brancos. ela cresce proporcionalmente para os grupos
Contudo, alguns indicadores persistem como de maior escolaridade.11 A ampliação da
11 Segundo Oliveira Junior e Lima (2013, p. 125), os negros e
sinais de que as desigualdades raciais continuam os brancos com até sete anos de estudo estão submetidos a taxas de
operando como sinalizadores de hierarquias e homicídio de 28,9 e 14,0 por 100 mil habitantes, respectivamente. Na
faixa de 8 a 11 anos de estudo, as taxas de homicídio são de 15,9 e
214

desigualdade racial entre faixas de renda e de 4. Racismo, discriminação e


escolaridade mais altas não contrastam, mas, preconceito: delimitando o
raio de ação das políticas de
ao contrário, reforçam conclusões já divulgadas
promoção da igualdade racial.
em outros campos.
O racismo é uma ideologia que, em linhas gerais,
Tais dados permitem distinguir os diversos
classifica e hierarquiza indivíduos em função de
processos que sustentam a reprodução da
seu fenótipo, numa escala de valores que tem o
desigualdade no contexto da dinâmica de
modelo branco europeu ariano como o padrão
produção e reprodução da desigualdade social
positivo superior e, do outro lado, o modelo
e racial brasileira. A ausência de negros em
negro africano como o padrão inferior. O racismo
postos de chefia e direção, seja no governo,
está presente no cotidiano das relações sociais,
seja na iniciativa privada, nos altos postos das
funcionando como um filtro social, fortalecendo
instituições de hierarquias mais formalizadas,
ou cerceando oportunidades, moldando e
como Forças Armadas, Igreja, área de Relações
reforçando os pilares de acesso e exclusão. E
Exteriores, compõe um mosaico característico
com a operação de clivagens raciais, o racismo
do Brasil.
alimenta as bases de uma sociedade desigual. .
Aos negros, no Brasil, o legado da pobreza e
A sociedade racista desenvolve mecanismos
o lugar cativo nos estratos sociais inferiores.
diversos - uns mais sutis, outros nem tanto, de
As penas mais pesadas no Judiciário, o
restrição, limitação e exclusão social. Sujeita
maior assédio policial, a absoluta falta de
o indivíduo negro a barreiras que limitam ou
oportunidades de ascensão social. Todo esse
bloqueiam suas condições de mobilidade social,
processo tem como elemento fulcral a existência
associa-os à pobreza e à miséria, banaliza situações
do racismo. O racismo como relação social
graves de constrangimento e violação de direitos
que molda e determina o perfil da sociedade
que levam à alienação e, no limite, à morte. É o que
brasileira. O racismo e seus desdobramentos, na
demonstram os indicadores mortes por assassinato
forma da discriminação e do preconceito devem
de jovens negros. Em trajetória crescente essas
ser o alvo principal não apenas das políticas de
mortes explicitam não apenas a banalidade da
promoção da igualdade racial, como de resto, da
desigualdade, mas a ação não constrangida da
toda política social brasileira.
violência contra a população negra.

O racismo se desdobra em duas grandes vertentes.


A discriminação e o preconceito racial.

A discriminação é o racismo em ato. Pode


9,5. Para os que têm mais de 12 anos de estudo, a diferença entre os ser um xingamento, uma agressão física, um
grupos se acentua: os negros estão submetidos a taxas de homicídio
de 13,2 por mil habitantes, enquanto que no caso dos brancos a taxa impedimento de circulação em determinados
é de 5,6 por 100 mil habitantes.
215

ambientes tidos como privilegiados, entre institucional. Atuando no plano macro, o racismo
outros. A discriminação geralmente é um ato institucional é o principal responsável pela
personalizado. Um indivíduo ou um grupo reprodução ampliada da desigualdade no Brasil.
submete outro indivíduo ou grupo a um ato
Também é certo que em muito contribui o
direto de constrangimento ou cerceamento. No
racismo como ideologia, pois, por seu intermédio,
Brasil, desde a década de 1950, a discriminação
naturaliza-se a condição de pobreza e de miséria.
é tipificada como ilícito penal. Primeiramente
A desigualdade é normalizada por uma hierarquia
como contravenção, com a Lei Afonso
racial, tornando invisíveis situações iniquidade
Arinos de 1951, e mais tarde nos anos 1980,
e mesmo de violações de direitos. Pobreza,
como crime imprescritível e inafiançável
mendicância, populações habitando lixões, são
(Constituição Federal e Lei Caó, de 1989).
inúmeras as situações que não são identificadas
Ainda que a legislação atual fale em preconceito
como algo a ser enfrentado. Ao contrário, tudo
racial, ela está direcionada para as práticas de
isso faz parte da paisagem social brasileira. O
discriminação racial.
racismo impede o reconhecimento dos pobres e
O preconceito é um fenômeno menos miseráveis como iguais, sugerindo a existência
explícito que, ao contrário da discriminação, de categorias distintas de pessoas. Para um grupo
não consubstancia ato manifesto. Antes, o a cidadania plena, para outros, “a vida como ela
preconceito se associa à introjeção dos valores é”... Está criado assim o caldo de cultura para a
racistas, que dão sentido a práticas e leituras perpetuação da desigualdade. E o racismo e seus
cotidianas em torno das diferenças raciais. Do desdobramentos tem papel central nesse processo.
preconceito, também se percebe resultados: a
Se o enfrentamento a discriminação, como
não ascensão profissional do indivíduo negro
visto, tem amparo legal, é um caso de polícia, o
a despeito de suas qualidades profissionais,
preconceito, sua contraparte mais perversa, é um
a escolha recorrente de alunos brancos como
caso de política: Política de Ação Afirmativa.
representantes de sala, etc. Por sua natureza
Inscrito no rol das chamadas Políticas de Promoção
indireta, de ação que se desenvolve de forma
da Igualdade Racial, esse conjunto de ações tem
subliminar, encoberta, o preconceito atinge
existência recente e sua própria consolidação
grandes dimensões em sua velatura. A ausência
pressupõe o enfrentamento do racismo................
de negros em posições de comando nas grandes
empresas, a inexistência de negros em postos
de destaque no Estado ou na Igreja são marcas 5. Os desafios da consolidação
da Política de Promoção da
indeléveis do preconceito em sua dimensão Igualdade Racial no Brasil
maior, também conhecida como racismo
institucional. O racismo institucional pode ser A construção de uma Política de Promoção da
identificado como a forma mais sofisticada do Igualdade Racial que se coadune com a grandeza
preconceito, envolvendo o aparato jurídico- da problemática racial necessita o enfrentamento
216

de cinco desafios que topicamente serão de base, reforma agrária e reforma tributária
apresentados a seguir. progressiva) e construção de um Estado Social
de Bem-Estar. Os países que assim o fizeram,
- a construção de uma base conceitual de
acabaram com a pobreza e a miséria.
sustentação das ações e delimitação do campo
de atuação: Na verdade essa é uma questão de A política para a população negra é, contudo,
fundo. A perspectiva deve ser de que a Política de outra natureza. Mas ela é fundamental para
de Igualdade Racial deve enfrentar as causas e a eliminação da pobreza e o enfrentamento
não apenas as consequências dos fenômenos. dos patamares insustentáveis de desigualdade
Nesse sentido, o foco deve ser o enfrentamento social do Brasil Em um país marcado por tão
do racismo notadamente em sua vertente do forte (ou expressiva) hierarquia racial, sem o
preconceito racial. Desse modo, seu principal combate ao racismo, não se conseguirá avançar
instrumento de atuação se dá mediante a adoção substancialmente nas políticas redistributivas.
das chamadas ações afirmativas. Trata-se de Sem enfrentar o preconceito, a pobreza e os
ações de cunho valorativo, políticas de cotas, pobres vão continuar a fazer parte da paisagem,
além de arranjos institucionais cujo objetivo é naturalizados, como integrantes subalternos
a reversão de estereótipos. As ações afirmativas de uma sociedade congenitamente desigual.
combatem diretamente o preconceito, a faceta É essa a dimensão de complementaridade
mais perversa do racismo. Esse é o campo de face às políticas sociais clássicas que deve ser
ação das Políticas de Igualdade Racial. enfatizada como característica das Políticas de
Igualdade Racial. Sem elas o Brasil não muda.
- a desconstrução da ideia de que a política
para população negra se confunde com a - o enfrentamento do racismo institucional: O
política para população pobre: É fato que racismo institucional deve ser percebido um
a maioria dos pobres é negra. Isso vale em objetivo estratégico da política de promoção
uma proporção ainda maior para a população da igualdade racial. Operando no corpo das
miserável. Entretanto, é importante distinguir instituições públicas e privadas, ele pode
o enfrentamento à pobreza do enfrentamento inviabilizar, quando não proscrever, as iniciativas
ao racismo. O preconceito e a discriminação de Políticas de Igualdade Racial. A percepção
racial aprofundam os mecanismos de sociais e ainda fortemente presente nas organizações de
econômicos de reprodução da pobreza. Mas se que a temática racial é suplementar e mesmo
as duas agendas se cruzam e se interpenetram, acessória, faz com que a efetivação dessas
precisam ser analisadas e operadas em suas políticas seja uma tarefa árdua e penosa. O
especificidades. A pobreza se enfrenta – e se governante público deve estar consciente da
elimina – com crescimento econômico associado importância e do lugar privilegiado que as
a políticas de distribuição da renda e de ativos Políticas de Igualdade Racial devem ocupar. De
(política de gradativo aumento real dos salários fato, a busca de uma sociedade democrática e
217

republicana pressupõe a percepção geral de que Mais importante aqui a destacar é a centralidade
se é uma sociedade de iguais, independentemente das Políticas de Igualdade Racial no âmbito de
das diversidades existentes. um projeto de desenvolvimento com equidade e
democracia. Esse cenário só pode se realizar em
- o dimensionamento dos programas e ações
uma sociedade de iguais.
tendo em vista a grandeza da problemática
racial no Brasil: Até em função da existência do Viver a diversidade eliminando a desigualdade
racismo institucional, há uma tendência de que esse é a meta para qual a Política de Igualdade
ações e programas de Promoção da Igualdade Racial constitui elemento fundamental.
Racial assumam um caráter residual. Em geral,
são iniciativas pontuais, localizadas que não têm
o condão de enfrentar o racismo. Pelo contrário,
ações desse quilate corroboram a percepção de
Bibliografia
inutilidade das Políticas de Igualdade Racial.
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- estabelecimento de um sólido sistema de nacional. Brasília: Ed. UnB, 1981. (Pensamento
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BENTO, Maria Aparecida. Racismo no trabalho: o
fadada ao insucesso. O volume de recursos
movimento sindical e o Estado. In: GUIMARÃES,
orçamentários é maior indicador das prioridades
Antônio Sérgio Alfredo; HUNTLEY, Lynn (orgs.).
governamentais. Atualmente, as Políticas de
Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil.
Igualdade Racial conta com parcos recursos,
São Paulo: Paz e Terra, 2000.
inexistindo uma fonte estável de financiamento.
A retomada da ideia da criação do Fundo de BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe
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retirada quando da tramitação do Projeto de Lei Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
do Fundo, deve ser retomada. Essa será a única Leis/L0601-1850.htm>. Acesso: 25. jun. 2014.
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e de proporcionar ao país efetivas condições de BRASIL. Lei nº 1.390, de 3 de julho de
mudança na direção de uma sociedade mais justa 1951 (Lei Afonso Arinos). Inclui entre as
e verdadeiramente democrática. contravenções penais a prática de atos
resultantes de preconceitos de raça ou de côr.
As mudanças são necessárias, mas nem sempre Diário Oficial da União, Poder Executivo,
de fácil implementação. O velho conhecido, o Brasília, DF, 10 jul. 1951. Disponível em:
racismo, presente nas relações sociais e na própria <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
estrutura institucional, é, ao mesmo tempo, objeto Leis/L1390.htm>. Acesso: 25. jun. 2014.
de ação e obstáculo a ser transposto.
218

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contravenções penais a prática de atos
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resultantes de preconceito de raça, de cor,
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do Senado Federal, v.27).
1. HISTÓRICO: CONSTRUINDO UMA INTERVENÇÃO PÚBLICA
PARA O ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES RACIAIS
NO BRASIL

1.1 Antecedentes
Os avanços obtidos até o momento em benefício da população afrodescendente
são resultado de conquistas do Movimento Negro, que vem a ser o movimen-
to social mais antigo no Brasil, pois atua desde os primórdios do escravismo,
isto é, desde meados do século XVI. A discriminação racial foi, desde o início,
interna ao sistema. Abolida a escravidão em 1888, os afrodescendentes conti-
nuaram a sofrer uma exploração específica graças aos mecanismos de exclusão
que acompanham o racismo. Romper com essa inércia, reverter o estigma,
recuperar a auto-estima, afirmar a igualdade dos direitos, agir para que a lei
garanta as mesmas oportunidades a todos têm sido algumas das principais
bandeiras do Movimento Negro.
Na realidade, e particularmente a partir da década de 1970, esse movi-
mento denuncia com veemência a democracia racial como mito, segundo o
qual a mestiçagem seria vocação peculiar brasileira; não existiriam conflitos
raciais; a escravidão teria sido benigna; e, por fim, o desenvolvimento econô-
mico haveria de desmanchar os resíduos do preconceito e do racismo e pro-
mover a inclusão da população negra. O Movimento Negro manifesta-se,
pois, contra uma sociedade que oculta, esconde e legitima o estigma, o pre-
conceito e a discriminação. No entanto, até os anos 1980 não houve espaço
para que o Movimento Negro atuasse no âmbito do Estado. Estado que,
historicamente, se tem mostrado refratário e hostil a qualquer ação que
desmistifique a ideologia da democracia racial brasileira. Atitude semelhante
é encontrada ainda nos sindicatos e nos partidos, para os quais a temática
racial não é percebida, ao menos até os anos 1990, como relevante.
Com relação ainda ao período militar, faz-se mister destacar que, apesar
da ditadura ignorar a problemática racial no plano interno, o Brasil era, já à
época, signatário de três importantes tratados internacionais
antidiscriminatórios, quais sejam: a Convenção 111 da Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT) Concernente à Discriminação em Matéria de Em-
prego e Profissão (1968); a Convenção Relativa à Luta Contra a Discrimina-
ção no Campo do Ensino (1968); e a Convenção Internacional sobre a Elimi-
nação de todas as Formas de Discriminação Racial (1969). Ademais, o gover-
no brasileiro fez-se presente na duas conferências mundiais contra o racismo
realizadas em 1978 e 1983, respectivamente.
16 desigualdades raciais no Brasil...

1.2 Anos 1980: as primeiras respostas do poder público e os avanços


obtidos na Constituição Federal
É preciso esperar os anos de 1980 para que o poder público comece a dar
algumas primeiras respostas. Com o processo de redemocratização do país,
medidas concretas são tomadas em algumas localidades. Em São Paulo, o go-
verno Franco Montoro cria, em 1984, o Conselho de Participação e Desenvol-
vimento da Comunidade Negra com o objetivo de desenhar e implementar
políticas de valorização que facilitem a inserção qualificada da população ne-
gra. A instalação desse conselho é um marco importante, pois, por seu inter-
médio, o Estado reconhece – após negar sempre – que há discriminação racial
na sociedade e cabe ao setor público uma ação retificadora.
A partir da experiência de São Paulo, vários conselhos estaduais (i.e., Bahia,
Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal) e
municipais (Rio de Janeiro, Belém, Santos e Uberaba) estabelecem-se. Ade-
mais, multiplicam-se pelo país coordenadorias e assessorias afro-brasileiras – a
maioria delas de cunho cultural. Segundo avaliações,2 essas instâncias públicas
criadas para lidar com a questão negra apresentam, contudo, um conjunto de
problemas, tais como: a) a difícil interação entre militantes e funcionários
públicos; b) a falta de uma estratégia comum de atuação que possibilite a
socialização de experiências exitosas; c) a descontinuidade provocada pelas
mudanças administrativas; d) a ausência de uma precisa definição do papel
dos órgãos; e e) a insuficiência de recursos orçamentários.
Ressalte-se que nos primeiros anos de 1980 o IBGE publica estudo3
que, de forma inédita, permite visualizar as desigualdades entre brancos e
negros no mercado de trabalho.
Ainda na década de 1980, são tombados pelo patrimônio histórico dois
símbolos da cultura negra: o terreiro de candomblé Casa Branca, na Bahia
(1984), e a Serra da Barriga (1986), em Alagoas, sede do Quilombo dos Palmares.
Note-se que, como resultado do trabalho do Movimento Negro, o dia 20 de
novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares (1695), é considera-
do oficialmente como o Dia Nacional da Consciência Negra, hoje comemora-
do em todo o país. Destaque-se, ainda, a fundação do Memorial Zumbi, orga-
nização nacional que reúne representantes do Movimento Negro, da academia
e de setores governamentais ligados ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal (Iphan), que pretendia implantar na Serra da Barriga um Pólo da Cultura
de Libertação Afro-Brasileira.

2. Ver, a esse respeito, Hélio Santos (1998).

3. Ver, a esse respeito, Oliveira et alii (1981).


Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 17

No final dos anos 1980, outros fatos pontuam os avanços obtidos na


questão racial. O governo do presidente José Sarney cria, em 1987, a partir de
decreto presidencial, o Programa Nacional do Centenário da Abolição da Es-
cravatura, a ser executado durante o ano de 1988. Nesse contexto, o negro e a
questão racial atraem as atenções do país e trazem à tona esse lado pouco
visível e menos falado do Brasil. Pode-se dizer que o ano de 1988 foi de alta
densidade simbólica, constituindo, desse modo, momento favorável para de-
bater as relações raciais.
No mesmo ano, aprova-se a Constituição Federal, que, pelo menos no
plano formal, traz avanços indiscutíveis no que se refere à questão racial.
A Constituição Cidadã, como foi batizada por Ulysses Guimarães, institui um
Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimen-
to, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade justa,
fraterna, pluralista e sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e sem
qualquer forma de discriminação. Tal Estado Democrático de Direito é ainda
reforçado pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e pelo repúdio
ao racismo. Como resultado dos ativismos social e político do Movimento
Negro, podem ser destacadas as seguintes conquistas no âmbito da Carta Mag-
na: o reconhecimento das contribuições culturais dos diferentes segmentos
étnicos, considerando-as em pé de igualdade com a sociedade envolvente; a
criminalização do racismo4 e o direito das comunidades remanescentes de
quilombos ao reconhecimento da propriedade definitiva de suas terras, deven-
do o Estado emitir-lhes os títulos de propriedade.
Observa-se, ainda, o reconhecimento constitucional da necessidade de o
Estado brasileiro adotar medidas em favor de grupos da população excluídos e
discriminados em função do preconceito, possibilitando-lhes total participa-
ção em todas as áreas da vida em sociedade.5 De fato, há muito que se fazer
para garantir a igualdade: o contraste entre os instrumentos legais e as evidên-
cias do cotidiano elucida a insuficiência da legislação criminal para enfrentar a
reprodução das práticas discriminatórias. A ineficácia das normas
antidiscriminação reflete uma constelação de fatores, tais como: as resistências
do próprio Poder Judiciário em implementar a legislação sobre a matéria por
razões de natureza ideológica (já que muitos ainda têm a falsa crença do mito
da democracia racial brasileira); a imprecisão e a ambigüidade da linguagem

4. A Lei Afonso Arinos, promulgada em 1951, primeiro instrumento jurídico de repressão a atos de discriminação racial, enquadra-
va-os como contravenção . A criminalização dos atos de discriminação racial é fruto da Constituição de 1988 e das leis
infraconstitucionais que se seguiram.

5. Sobre o tratamento da questão racial na Constituição de 1988, ver Silva Jr. (2000).
18 desigualdades raciais no Brasil...

legal, que dificultam as interpretações; e o enfoque excessivamente centrado


no direito penal. Nesse sentido, são facilmente demonstráveis as limitações da
técnica da força no enfrentamento da discriminação, na medida em que a
técnica da força tende a atacar sobretudo o resultado da discriminação, afetan-
do pouco as suas causas (o preconceito, o estereótipo, a intolerância e o racis-
mo). Esses são argumentos que se somam para a necessária implementação de
outras respostas para a valorização do direito à igualdade da população negra.
A mobilização que se criou em torno da Constituinte e do Centenário da
Abolição contribui para a criação, ainda no governo José Sarney, no âmbito do
Ministério da Cultura (MinC), inicialmente, de uma Assessoria para Assuntos
Afro-Brasileiros e, posteriormente, em 1988, da Fundação Cultural Palmares.
Apesar de representar um avanço – pois, pela primeira vez, tem-se dentro do
Executivo Federal uma instituição voltada especificamente para a defesa dos
interesses da população negra –, sua vinculação ao MinC reflete a visão, então
prevalecente no governo, do caráter marcadamente cultural da problemática
negra brasileira. É preciso ressaltar, contudo, que, atualmente, as atividades
da Fundação Cultural Palmares vão além do aspecto cultural, podendo-se des-
tacar a regularização das terras remanescentes de quilombos.
Em 1989, desencadeia-se uma campanha maciça de visibilização do ne-
gro nos dados estatísticos cujo tema foi “Não Deixe Sua Cor Passar em Bran-
co”. O movimento de estudos sobre o negro, que já vinha ocorrendo há algum
tempo, empreendido, na maior parte, por centros de estudos e intelectuais
negros, revela a opção de filiar a questão do negro à problemática nacional, ou,
antes, tomar a negritude como manifestação essencial de brasilidade, para só
então, contra esse pano de fundo, desenhar o perfil do negro. Em que pese o
risco de generalizações de trabalhos tão diversos, esses podem ser agrupados
nas seguintes áreas: história (papel do negro na história do Brasil); economia
(mercado de trabalho, salário, qualificação profissional, “economia invisível”)
e antropologia social (quilombos, família negra, religião, estratégias de sobre-
vivência). Tais estudos apresentam um caráter interativo, isto é, visam situar o
negro na perspectiva nacional, ao contrário dos estudos sobre cultura negra
prevalecentes anteriormente, mais interessados no que o negro tinha de parti-
cular e, até mesmo, de exótico.

1.3 Anos 1990: descortinando a invisibilidade da questão racial


Na década de 1990, no que diz respeito ao poder público, novas respostas são
dadas à problemática racial brasileira. No Estado do Rio de Janeiro, o governo
Leonel Brizola implementa, em 1991, a Secretaria de Defesa e Promoção das
Populações Negras. A despeito de ter tido à sua frente nomes de envergadura
do Movimento Negro, a Secretaria foi fechada em 1994 pelo governo Marcelo
Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 19

Alencar, não tendo sido capaz de resistir às dificuldades que o tema da questão
racial enfrenta no Brasil: a invisibilidade, a falta de experiência e de vocação do
setor público para lidar com a questão negra e, também, a falta de adesão de
grande parte da sociedade ao tema.
O governo Leonel Brizola também inaugura, em 1991 e de forma inédi-
ta, a primeira Delegacia Especializada em Crimes Raciais na cidade do Rio de
Janeiro. Na esteira dessa experiência, outros estados criam instituições seme-
lhantes (São Paulo, Sergipe e Distrito Federal). O fato que confirma a dificul-
dade em se combater o racismo no Brasil é que todas essas delegacias foram
extintas. É importante destacar, contudo, que em 1998 a prefeitura de Belo
Horizonte, na gestão de Célio de Castro, teve uma importante iniciativa ao
criar a Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra, primeiro
órgão do gênero no país. O objetivo dessa instituição é implementar projetos
nas áreas de trabalho e emprego, saúde, promoção da diversidade racial e rea-
lizar campanhas que elevem a auto-estima negra. Mas essa instituição, assim
como as outras, também não resistiu ao tempo e foi extinta.
A partir da segunda metade da década de 1990, um novo impulso é
dado à questão racial quando o poder público federal começa a tomar uma
série de medidas. Uma das alavancas desse novo impulso pode ser creditada à
“Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”,
realizada em 20 de novembro de 1995, e da qual participam dezenas de mi-
lhares de pessoas em homenagem ao tricentenário da morte de Zumbi dos
Palmares. Os organizadores da Marcha entregam ao presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso, um documento sobre a situação do negro no
país e um programa de ações para a superação do racismo e das desigualdades
raciais no país. É importante destacar a abertura em relação ao tema por parte
do chefe do Executivo Federal: já em seu discurso de posse, o presidente reco-
nhece a existência e a relevância do problema racial bem como a necessidade
de interlocução política com o Movimento Negro brasileiro.
Na mesma data da Marcha, é criado, por decreto presidencial, o Grupo
de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI Popula-
ção Negra), ligado ao Ministério da Justiça. A proposta nasce dentro do gover-
no a partir da articulação de setores do Movimento Negro que defendem uma
atuação mais incisiva do governo federal no estabelecimento de políticas pú-
blicas e sem a marca culturalista que muitas vezes prevalece no âmbito do
Estado quando se pensa no segmento negro. Em paralelo à instalação do GTI
População Negra, que ocorre em 1996, é lançado pelo Ministério da Justiça o
I Programa Nacional dos Direitos Humanos (I PNDH), que contém um tópi-
co destinado à população negra, para a qual se propõe a conquista efetiva da
20 desigualdades raciais no Brasil...

igualdade de oportunidades. É com esse espírito que o GTI População Negra


se constitui, a partir dos seguintes objetivos: (i) propor ações de combate à
discriminação racial; (ii) elaborar e promover políticas governamentais; (iii)
estimular ações da iniciativa privada; (iv) apoiar a elaboração de estudos
atualizados; e (v) estimular iniciativas públicas e privadas que valorizem a in-
serção qualificada dos negros nos meios de comunicação. 6

A constituição do GTI População Negra é a de um colegiado formado


por oito representantes da sociedade civil (oriundos do Movimento Negro) e
dez representantes governamentais. O GTI População Negra organiza-se em
torno de 16 áreas7 e, em 1998, os principais resultados8 do grupo são apre-
sentados à Presidência da República. Até hoje, o GTI População Negra não foi
extinto oficialmente, porém encontra-se desativado, não se reunindo há al-
gum tempo.
Note-se ainda que, nos primeiros anos de 1990, organizações sindicais
de trabalhadores encaminham denúncia à Organização Internacional do Tra-
balho (OIT) sobre a existência no país de discriminação racial no mercado de
trabalho. Em face da denúncia, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
desencadeia uma série de medidas e ações voltadas para o enfrentamento dessa
questão. A partir de 1995, inicia-se uma parceria com a OIT, por meio do
Programa para a Implementação da Convenção 111, na qual se busca colocar
em prática ações e políticas que promovam a igualdade de oportunidades e de
tratamento e combatam a discriminação no emprego e na profissão. No ano
seguinte, um decreto presidencial cria, no âmbito do MTE, o Grupo de Tra-
balho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação
(GTDEO). Esse grupo de composição múltipla (i.e., representantes governa-
mentais, de trabalhadores, de empregadores e do Ministério Público do Tra-
balho) tem a missão de elaborar um plano de ações para a eliminação da dis-
criminação no mercado de trabalho. Destaque-se, contudo, que há algum tempo
o GTDEO não se reúne. Em 1997, é lançado no âmbito da Assessoria Inter-
nacional do MTE o Programa Brasil, Gênero e Raça, que tem como um de
seus principais produtos a implementação, nas Delegacias e nas Subdelegacias
Regionais do Trabalho, de Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportuni-

6. Ministério da Justiça (2000).

7. 1) Informação-quesito Cor; 2) Trabalho e Emprego; 3) Comunicação; 4) Educação; 5) Relações Internacionais; 6) Terra (Remanes-
centes de Quilombo); 7) Políticas de Ação Afirmativa; 8) Mulher Negra; 9) Racismo e Violência; 10) Saúde; 11) Religião; 12) Cultura
Negra; 13) Esportes; 14) Legislação; 15) Estudos e Pesquisas; e 16) Assuntos Estratégicos.

8. As principais realizações alcançadas desde a época de constituição do GTI População Negra até o presente momento são apre-
sentadas na seção 5 do presente documento.
Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 21

dades e de Combate à Discriminação no Emprego e na Profissão. Esses núcleos,


além de receberem denúncias sobre práticas discriminatórias no acesso e
no curso das relações de trabalho, promovem ações preventivas, educativas
e de conciliação entre empregados e empregadores por meio da
conscientização da ilegalidade da prática de qualquer forma de discrimina-
ção nas relações de trabalho. Ressalte-se, contudo, que a questão racial
ainda ocupa pouco espaço na agenda dos núcleos; estes se voltam, sobretu-
do, para as pessoas portadoras de deficiência.
É importante destacar também o papel do Ministério Público do Tra-
balho (MPT), que, além de constituir-se em importante parceiro do MTE,
tem entre suas cinco metas institucionais a eliminação de todas as formas
de discriminação racial. Em 1999, o MPT assinou um Protocolo de Coo-
peração com a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério
da Justiça com o objetivo de trocar informações, receber denúncias e noti-
ciar os resultados das investigações procedidas no campo da proteção dos
direitos dos trabalhadores contra a discriminação no emprego e na profis-
são. O Ministério Público do Trabalho tem atuado orientando emprega-
dos e empregadores, investigando denúncias, reprimindo com o ajuizamento
de ações na Justiça do Trabalho e celebrando parcerias com órgãos do go-
verno, com instituições da sociedade civil e com conselhos.

Por fim, destaque-se que foi na década de 1990 que Zumbi dos Palmares
foi reconhecido pelo governo brasileiro Herói Nacional, tendo seu nome
inscrito no Pantheon dos Heróis Nacionais, monumento em Brasília, onde
até então constava apenas o nome de Tiradentes.

1.4 Os novos ventos vindos de Durban

A partir de 2000, intensificam-se os debates dentro do governo federal. Com


efeito, com a preparação da participação do Brasil à III Conferência Mundial
contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,
promovida pela ONU e a ser realizada em Durban, na África do Sul, no ano
seguinte, uma série de eventos sucederam-se no biênio 2000-2001, recolocando
a temática racial na agenda nacional. Em 8 de setembro, é criado o Comitê
Nacional para a Preparação da Participação Brasileira a Durban, que envolve,
de forma paritária, representantes governamentais e não-governamentais. Com
o intuito de subsidiar os trabalhos do Comitê, são realizados, no segundo
semestre de 2000, em todo o país, pré-conferências e encontros promovidos
22 desigualdades raciais no Brasil...

tanto pela Fundação Cultural Palmares9 como pela Secretaria de Estado dos
Direitos Humanos.10 O processo de preparação culmina com a realização da I
Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância, que teve lugar no Rio
de Janeiro entre 6 e 8 de julho de 2001, da qual participaram cerca de 1.700
delegados oriundos das mais diversas regiões do país. Por fim, entre 31 de
agosto e 7 de setembro de 2001, acontece, em Durban, a III Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlata, que conta com cerca de seiscentos participantes brasileiros repre-
sentando instituições governamentais e não-governamentais.
É importante destacar, ao longo de todo o processo preparatório da Con-
ferência de Durban, a participação do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
cada (Ipea), particularmente no que diz respeito à produção de diagnósticos
inéditos sobre a magnitude das desigualdades raciais no Brasil: o governo re-
conhece, a partir de números oficiais, as imensas distâncias que existem entre
negros e brancos. Merece menção, também, a iniciativa do Ministério do De-
senvolvimento Agrário (MDA), que, em 2001, cria seu Programa de Ações
Afirmativas voltado tanto para o público interno como para os beneficiários
das políticas e das ações sob responsabilidade do Ministério. Note-se, ainda,
que o MDA, em parceria com o Ipea, deu início a um processo de diálogo com
o setor empresarial com o intuito de promover o debate sobre o respeito à
diversidade de mão-de-obra empregada no mercado de trabalho privado.
Na esteira da iniciativa do MDA, outros ministérios (i.e., Justiça, Cultu-
ra, Educação e Relações Exteriores) desencadeiam uma série de medidas espe-
cíficas voltadas para afrodescendentes. No Judiciário, um passo importante é
dado pelo Supremo Tribunal Federal ao considerar constitucional o princípio
da ação afirmativa. Ademais, o próprio Tribunal passa a implementar algumas

9. A Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, promoveu os seguintes eventos para subsidiar a formulação do documento
brasileiro à Cúpula de Durban:

Eventos Local/data
1. Reunião de trabalho de especialistas Brasília/DF, agosto de 2000
2. Audiência pública na Câmara dos Deputados Brasília/DF, agosto de 2000
3. Pré-conferência regional sobre cultura e saúde da população negra Brasília/DF, setembro de 2000
4. Pré-conferência regional sobre racismo, gênero e educação Rio de Janeiro/RJ, outubro de 2000
5. Pré-conferência regional sobre cultura, educação e políticas de ações afirmativas São Paulo/SP, outubro de 2000
6. Pré-conferência regional sobre desigualdades e desenvolvimento sustentável Macapá/AP, outubro de 2000
7. Pré-conferência regional sobre o novo papel da indústria da comunicação e Fortaleza/CE, outubro de 2000
entretenimento
8. Pré-conferência regional sobre direito à informação cultural histórica Maceió/AL, novembro de 2000
9. Congresso brasileiro de pesquisadores negros Recife/PE, novembro de 2000
10. Conferência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP Belo Horizonte/MG, novembro de 2000
11. Conferência com as embaixadas dos países africanos Brasília/DF, novembro de 2000

10. A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, com o apoio do Instituto de Pesquisa em Relações
Internacionais (Ipri) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), realizou três pré-conferênci-
as em novembro de 2000: em São Paulo, Belém e Salvador.
Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 23

medidas de ações afirmativas. O mesmo se verifica no âmbito do Tribunal


Superior do Trabalho ( TST), que, a partir de 2002, implementa reserva legal
de vagas nos contratos com serviços de terceiros que garante uma participação
de, no mínimo, 20% de trabalhadores afrodescendentes. O TST também de-
senvolve atividades de sensibilização e divulgação por meio de publicações
oficiais e de realização de seminários.
Salienta-se, também, o importante papel do Ministério Público Fe-
deral, que, por intermédio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cida-
dão, cria o Grupo Temático de Trabalho sobre Discriminação Racial. Entre
outras atividades, a reflexão desse grupo de trabalho tem levado os procu-
radores da República a preocuparem-se, especialmente, com o fenômeno
do racismo institucional.
No retorno de Durban, é criado, por decreto presidencial, o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), no âmbito da Secretaria de
Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. O Conselho tem, entre
seus objetivos, o incentivo à criação de políticas públicas afirmativas de promo-
ção da igualdade e da proteção dos direitos de indivíduos e de grupos sociais e
étnicos afetados por discriminação racial e por demais formas de intolerância.
No que se refere ao Poder Legislativo, estão em tramitação vários projetos
de lei referentes à questão, e, entre eles, tem ganho destaque o PL no 3.198 de
2000 de autoria do deputado Paulo Paim, que “Institui o Estatuto da Igualda-
de Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função
de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências”. Com efeito, em setem-
bro de 2001, é instalada uma Comissão Especial destinada a apreciar e a pro-
ferir parecer sobre o referido projeto. Entre suas atividades, a Comissão realiza
audiências públicas e, em maio de 2002, promoveu o seminário A Igualdade
Racial: como Corrigir os Problemas Gerados pela Exclusão.
Em 2002, é lançado o II Plano Nacional de Direitos Humanos (II
PNDH). As metas do II PNDH ampliam as fixadas em 1996 no tocante à
valorização da população negra, consagrando o termo “afrodescendente”,
oriundo da Declaração e Plano de Ação de Durban. Ademais, o II PNDH
inova ao propor uma série de medidas que visam equilibrar e melhorar os
indicadores econômicos e sociais dos grupos raciais menos favorecidos. As ações
propostas dizem respeito sobretudo às áreas de justiça, educação, trabalho e
cultura. Há também no II PNDH o reconhecimento dos males causados pela
escravidão e pelo tráfico transatlântico de escravos, que constituem crime
contra a humanidade e cujos efeitos, presentes até hoje, devem ser combati-
dos por meio de medidas compensatórias.
24 desigualdades raciais no Brasil...

Em 13 de maio de 2002, nas comemorações do aniversário da Abolição,


é criado, por decreto presidencial, o Programa Nacional de Ações Afirmativas,
sob a coordenação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministé-
rio da Justiça. Esse Programa tem por objetivo implementar uma série de
medidas específicas no âmbito da administração pública federal que privile-
gie a participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de defi-
ciência.
O governo atual, ao divulgar diagnósticos, ao criar colegiados, tais
como o GTI População Negra e o CNCD, e ao implementar algumas medidas
de valorização da população afrodescendente e de promoção de igualdade de
oportunidades para os negros (como será visto mais adiante), reconhece a exis-
tência de profundas desigualdades sociais de que padece esse grupo da popu-
lação e procura agendar a questão como tema nacional. Contudo, a velocidade
e a abrangência das ações empreendidas até o momento ainda estão aquém do
desejado. As distâncias sociais entre negros e brancos continuam injustificáveis.
Enfrentá-las constitui-se, pois, um grande desafio para todos aqueles que lu-
tam pela efetivação da democracia racial no país. A seguir é apresentado um
diagnóstico dessa situação no Brasil.
4. AÇÃO AFIRMATIVA: UM BALANÇO DO DEBATE

As ações afirmativas entram no debate político brasileiro durante a década de


1990. De um lado, nesse período, a demanda por políticas específicas volta-
das para a população negra torna-se um item central da pauta de reivindica-
ções do Movimento Negro. Como registra o documento entregue ao Presi-
dente da República pelos organizadores da “Marcha Zumbi dos Palmares contra
o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, o Movimento Negro considera então
que já havia feito todas as denúncias, destruindo o mito da democracia racial;
passaria agora a exigir ações efetivas do Estado: “É dever do Estado Democrá-
tico de Direito esforçar-se para favorecer a criação de condições efetivas que
permitam a todos beneficiar-se da igualdade de oportunidade, assegurando a
eliminação de qualquer fonte de discriminação direta ou indiretamente e
reorientando o sistema educacional no sentido da valorização da pluralidade
étnica que caracteriza nossa sociedade”.30
De outro lado, no final dos anos 1990, o processo de preparação da
conferência de Durban promove a intensificação do debate sobre o tema e
estimula a apresentação de propostas em torno de políticas de ação afirmati-
va.31 Contudo, em que pesem os esforços já realizados, o entendimento do que
sejam ações afirmativas está longe de um consenso, sendo ainda identificada
em amplos setores como uma simples política de concessão de cotas. Procura-
se aqui retomar essa discussão para melhor definir o conceito e contribuir com
o debate em curso sobre políticas públicas contra a desigualdade e a discrimi-
nação racial.

4.1 Características de uma nova proposta de políticas públicas: as ações


afirmativas
O surgimento de propostas de ação afirmativa assenta-se em uma crítica ao
ideal da igualdade de direitos como instrumento eficaz para a promoção da
igualdade. O reconhecimento de que a igualdade formal não garante aos que
são socialmente desfavorecidos o acesso às mesmas oportunidades que têm

30. “Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” (1996), p. 23.

31. Deve-se lembrar, entretanto, que é de muito antes a adesão do Brasil a instrumentos internacionais que propunham a
implementação desse tipo de políticas compensatórias. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, promulgada pelo Brasil em 1969, já afirmava em seu artigo 2o: “Os Estados signatários tomarão medidas de
ação afirmativa conforme necessário para garantir o desenvolvimento e a proteção dos indivíduos pertencentes a certos grupos
raciais, com a finalidade de garantir-lhes o pleno e igual desfrute dos direitos humanos”.
46 desigualdades raciais no Brasil...

aqueles que são socialmente privilegiados promoveu um esforço de ampliação


não apenas do conteúdo jurídico e moral da idéia de igualdade, mas das pró-
prias possibilidades jurídicas de concretizá-la. Assim, as políticas de ação afir-
mativa ancoram-se em uma crítica ao princípio de igualdade formal perante
a lei e organizam-se em torno de uma demanda concreta de igualdade – a
igualdade de oportunidade. As ações afirmativas visam, com efeito, restituir
a igualdade de oportunidades32 entre os diferentes grupos raciais, promoven-
do um tratamento diferenciado e preferencial àqueles historicamente margi-
nalizados.
No Brasil, a crítica à igualdade formal de direitos perante a lei tem-se
organizado em torno do diagnóstico de que a desigualdade racial se alimenta
de um poderoso e dissimulado fenômeno de discriminação racial que impede
os negros de usufruir das mesmas oportunidades oferecidas aos brancos. Em
razão da assimetria que marca as situações de brancos e negros no país, somen-
te uma ação focalizada na forma de ações afirmativas pode vir a promover um
nível igualitário de acesso às oportunidades oferecidas a todos os cidadãos do
país. Esse tipo de política permitiria tratar desiguais de forma desigual com o
objetivo de promover a igualdade de oportunidades hoje negada aos grupos
racialmente discriminados.
Nesse sentido, o documento formulado pelos organizadores da “Marcha
Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” apresentou
uma série de demandas organizadas sob o título “Programa de Superação do
Racismo e da Desigualdade Racial”. O objetivo de tal programa seria, segun-
do o documento, “tornar a igualdade formal, a igualdade de todos perante a
lei, em igualdade substancial: igualdade de oportunidade e tratamento”.33
É também esse o objetivo expresso na definição de ações afirmativas assu-
mida pelo GTI População Negra que tem sido largamente adotada: “Ações
afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou
pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de
eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade
de oportunidade e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas
pela discriminação e marginalização, por motivos raciais, étnicos, religiosos,
de gênero e outros”.34

32. “O princípio da promoção da igualdade de oportunidades tem como objetivo colocar todos os membros de uma sociedade na
condição de participar da competição pela vida, ou pela conquista do que é vitalmente mais significativo, a partir de posições
iguais”, Ministério do Trabalho e Emprego (2001), p. 10.

33. “Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” (1996), p. 24.

34. Ministério da Justiça (1996), p. 10.


Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 47

A igualdade de oportunidades e de tratamento associa-se diretamente,


mesmo que não exclusivamente, à igualdade de chances e à igualdade de
capacitação. Como explicou Hélio Santos,35 coordenador do GTI, “a chave da
questão é exatamente essa: que as pessoas sejam capacitadas igualmente para
que possam ter as mesmas chances em todos os campos em que a vida flui”,
quebrando a assimetria que divide o Brasil branco do Brasil negro. Assim,
continua ele, “a idéia da igualdade e oportunidade está, primeiramente, em
capacitar, e num segundo momento, flexibilizar, facilitar a entrada, facilitar o
acesso para que o negro possa disputar em igualdade de condições e dar à
sociedade brasileira um caráter de maior justiça”.36
No mesmo sentido, expressam-se estudiosos do tema no Brasil. Para Joa-
quim Barbosa, ação afirmativa consiste em “dar tratamento preferencial, favo-
rável, àqueles que historicamente foram marginalizados, de sorte a colocá-los
em um nível de competição similar ao daqueles que historicamente se benefi-
ciaram da sua exclusão”. Essas políticas têm caráter “redistributivo e restaura-
dor, destinadas a corrigir uma situação de desigualdade historicamente com-
provada, em geral se justifica pela sua natureza temporária e pelos objetivos
sociais que se visa com elas atingir”.37
Tais definições permitem uma primeira análise das características das
políticas de ações afirmativas. Elas são caracterizadas pelo fato de serem tem-
porárias e focalizadas, ou seja, visam tratar de forma diferenciada e privilegiada
por um espaço de tempo restrito os grupos historicamente discriminados. Seu
objetivo é buscar garantir a igualdade de oportunidades adotando um trata-
mento preferencial para permitir que tais grupos alcancem um nível de
competitividade similar aos demais grupos sociais. Outras características po-
dem ainda ser observadas: as ações afirmativas podem ser produto de iniciativa
do Estado ou da iniciativa privada e podem ter um caráter espontâneo ou
compulsório.
Dessa forma, aparecem como centrais nas políticas de ação afirmativa
aquelas medidas que objetivam preparar, estimular e promover a ampliação da
participação dos grupos discriminados nos diversos setores da vida social, es-
pecialmente nas áreas de educação, mercado de trabalho e comunicação. 38
Seriam políticas de ação afirmativa, visando à igualdade de oportunidades,
aquelas que têm por meta beneficiar os membros de minorias discriminadas:

35. Santos (1997), p. 42-43.

36. Idem, p. 47.

37. Gomes (2001), p. 22.

38. Fundação Cultural Palmares (2001), p. 17.


48 desigualdades raciais no Brasil...

(1) aumentando sua qualificação; (2) promovendo a melhoria de seu acesso ao


mercado de trabalho; (3) apoiando as empresas de sua propriedade ou empre-
sas que promovam a diversidade; e (4) garantindo sua participação nos meios
de comunicação.
Essas diferentes medidas podem ou não ser implementadas por meio da
adoção do critério de cotas, ou seja, a adoção de um percentual numérico para
garantir a presença de minorias em diversas esferas da vida social.39 No Brasil,
verifica-se a existência de ambas as experiências. No campo da educação, por
exemplo, com o objetivo de qualificar a população negra, tem-se implementado
políticas de ação afirmativa organizadas sob a base de cotas – como no caso de
medidas de reserva de certo número de vagas nas universidades para alunos
negros – ou sem o estabelecimento de cotas – como no caso da instalação de
cursinhos para jovens negros preparatórios, seja para vestibulares, seja para
concursos públicos.
Partindo das características já descritas, certas definições tendem a espe-
cificar ainda mais o conceito de ação afirmativa, enfatizando outros aspectos
do problema a ser enfrentado pelas ações compensatórias voltadas à promoção
da população negra. É o caso da definição adotada por George Andrews, para
quem “ação afirmativa indica uma intervenção estatal para promover o aumen-
to da presença negra – ou feminina, ou de outras minorias étnicas – na educa-
ção, no emprego e nas outras esferas da vida pública”.40 Contudo, para esse
autor, a ação afirmativa caracteriza-se ainda pela “continuação do uso da cor
como um critério, mas em sentido contrário ao seu uso histórico”. Tal defini-
ção adiciona uma nova qualificação aos objetivos da ação focalizada orientada
para os segmentos racialmente discriminados da população: a de que a ação
afirmativa não vise somente aumentar o número de negros em certos setores
da vida social, mas também promover tal aumento em um sentido diferente
do que foi historicamente observado. Considerando-se válida tal definição,
pode-se concluir que o uso do critério numérico pode não ser suficiente para
que uma ação afirmativa realize seu objetivo, qual seja, o de alterar a forma
histórica de inserção de um grupo racial discriminado ampliando as oportuni-
dades de ascensão social, continuamente bloqueadas.
Alguns exemplos podem ajudar a perceber os limites das formulações
numéricas, quer estejam ancoradas em princípios universalistas, quer em de-

39. As cotas referenciam-se em uma razão numérica baseada em algum princípio de representação. Falando sobre a experiência
americana, Skidmore distingue duas possibilidades para o estabelecimento de cotas: “Um método era mediar a razão de minorias
e mulheres na população local e estabelecê-la como cota. Outro era estabelecer a porcentagem de mulheres e minorias no universo
de candidatos aceitáveis e estabelecer a cota”, Skidmore (1996), p. 130.

40. Andrews (1996), p. 137.


Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 49

mandas estritas de representação racial. Nas novelas, por exemplo, o preenchi-


mento de cotas para negros em postos subalternos como domésticas e segu-
ranças não resultará, desse ponto de vista, em uma medida satisfatória de ação
afirmativa, na medida em que reforça os estereótipos já existentes. Por outro
lado, os baixos índices de progressão e de desempenho dos negros na escola,
em que pese seu igual acesso decorrente da recente universalização de acesso
ao ensino fundamental, é, como já foi observado, um exemplo eloqüente dos
limites das políticas universalistas em face do problema da inclusão social dos
grupos racialmente discriminados.

4.2 O debate sobre a ação afirmativa


Em que pese a crescente aceitação da necessidade de implementação de medi-
das de ação afirmativa no Brasil, uma expressiva gama de analistas, assim como
setores importantes da opinião pública, ainda vêm se manifestando contrários
a tais políticas. Santos41 resume em quatro os argumentos básicos levantados
contra a adoção de políticas de ação afirmativa, conforme a seguir.
1. Isonomia: a política de ação afirmativa fere o princípio da isonomia,
que pede tratamento igual a todos.
2. Mérito: as sociedades contemporâneas não podem abrir mão da exce-
lência; no mundo de alta competitividade, essa capacidade pessoal
revela-se fundamental.
3. Pobreza: a verdadeira questão a ser enfrentada é a econômica; deve-se
desenvolver políticas voltadas para os pobres, esquecendo o aspecto
racial.
4. Miscigenação: o processo de miscigenação que marcou a história do
país torna muito difícil definir quem é negro e quem não é negro, o
que impediria a adoção de critérios claros de inclusão nos grupos
beneficiados.
Outras críticas agregam-se a essas. Certos autores levantam a questão da
fragilidade do Estado na ordem social moderna. É o caso de Sansone, que
questiona a propriedade de se “pensar em retificar desigualdades raciais
sedimentadas durante séculos, por meio de medidas públicas, em um país
onde a lei se faz, mas seu cumprimento é deficiente e onde o Estado conta
menos do que antes”. Colocando o problema de outra maneira, o autor per-
gunta-se: “Ademais, pensar que o quadro de discriminação racial possa ser
revertido, sobretudo a partir da criação de uma categoria a ser protegida pelo

41. Santos (1997), p. 43-44.


50 desigualdades raciais no Brasil...

Estado, não corresponde à convicção de que o poder público, bastante enfra-


quecido pela contingência econômica e política atual, possa pilotar as relações
raciais?”. Como alternativa a políticas de ação afirmativa, o autor propõe, por
exemplo, campanhas de opinião e de intervenção na mídia, e, inspirado em
slogan dos partidos verdes, propõe “pensar globalmente, agir localmente”.42
Uma outra vertente crítica assenta-se em análises da experiência america-
na e centra-se em dois pontos principais.43 Sublinham, de um lado, o fato de
que as políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos teriam beneficiado ba-
sicamente a classe média negra, não tendo alterado a situação social da grande
maioria dos afrodescendentes. De outro lado, destacam o aguçamento do con-
flito racial decorrente da implementação dessas políticas.
Por fim, levantando uma questão de princípio, outra linha argumentativa
sustenta que qualquer iniciativa que busque diminuir os efeitos da discrimina-
ção racial por meio de medidas de privilégio racial inverteria a questão sem
resolvê-la. Esse esforço configuraria uma discriminação “ao contrário”, mas
igualmente odiosa, como qualquer forma de discriminação. 44
Em suma, pode-se afirmar que aqueles que se opõem a políticas de ação
afirmativa, ou não creditam ao racismo e à discriminação racial a existência de
desigualdades sociais entre os grupos branco e negro ou, reconhecendo a im-
portância daqueles fenômenos na construção das desigualdades raciais obser-
vadas no Brasil, não consideram as políticas compensatórias instrumentos ade-
quados para combater tal fenômeno.
Contudo, um número importante de trabalhos e de instituições vêm-se
mobilizando para responder àquelas críticas e para defender a necessidade de
adoção de medidas de ação afirmativa no país. Respondendo aos quatro argu-
mentos básicos contra a adoção de políticas de ação afirmativa – isonomia,
mérito, pobreza e miscigenação –, Hélio Santos45 defende o que se segue.
1. Não é possível combater a enorme diferença entre brancos e negros
no Brasil a partir de políticas universalistas. Somente se tratando di-
ferentemente os desiguais pode-se alcançar maior igualdade entre os
grupos.
2. É necessário aumentar a qualificação e as oportunidades dos setores
negros da população. Isso permitirá não apenas incrementar o pro-

42. Sansone (1998).

43. Ver, a respeito, Andrews (1996), p. 138-139.

44. Bossuyt (2002).

45. Santos (1997), p. 43-44.


Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 51

cesso de inclusão da população negra na sociedade como possibilitará


ao país ganhar em excelência, aumentando o número de pessoas ca-
pazes de desenvolver plenamente suas potencialidades. Hoje, somen-
te um estrato pequeno da população está capacitado a competir e a
desenvolver seus talentos.
3. É necessário implementar uma política específica para os negros in-
dependentemente da política de combate à pobreza. Em razão do
seu alto grau de marginalização e baixa auto-estima, uma política
voltada aos mais pobres sem articulação com a questão racial não
conseguirá alavancar os segmentos negros da população.
4. As políticas compensatórias ligadas à raça devem atingir tanto pretos
como pardos, pois os dados socioeconômicos demonstram que as di-
ficuldades educacionais e econômicas são similares para os dois gru-
pos.
Em resumo, a defesa de políticas de ação afirmativa parte do reconheci-
mento da urgência que envolve o tema: não é mais possível postergar o
enfrentamento da exclusão social de caráter racial que existe no país. A exigên-
cia de respeito ao princípio da igualdade racial encontra um poderoso instru-
mento na adoção de políticas afirmativas. De fato, a ação afirmativa nada mais
é do que uma forma de expressão do princípio da igualdade. Ela busca, por
meio do tratamento desigual, enfrentar a desigualdade injustificada, arbitrá-
ria. Não se trata de desvalorizar o princípio do mérito, mas sim de sua
reafirmação. Se a prática cotidiana e os dados estatísticos indicam que diante
de qualificações iguais existe preferência em favor do branco, cabe à política
pública intervir no sentido de reverter tal ação. Ante a desigualdade arbitrária
ancorada na ação discriminatória, a neutralidade estatal, como afirmou o pre-
sidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio, fracassou.46
O enfrentamento desse problema passa, assim, pelo reconhecimento dos fenô-
menos que lhe são associados – o preconceito racial, o racismo, a discrimina-
ção racial – e pela implementação de políticas públicas específicas e diferen-
ciadas.
Os argumentos em favor das políticas de ação afirmativa e da necessidade
de sua implementação no Brasil assentam-se, assim, em três pressupostos cen-
trais.47 O primeiro considera que as iniqüidades sociais no Brasil têm um forte
componente racial. As profundas desigualdades sociais organizam-se, em larga
medida, em torno do critério cor/raça. O segundo pressuposto é o de que tais

46. Mello (2001), p. 21.

47. Ver, a respeito, Guimarães (1996), p. 21.


52 desigualdades raciais no Brasil...

desigualdades raciais se assentam em causas históricas e sociais, entre as quais


o preconceito racial e a discriminação racial: “Os fatores que impedem a as-
censão social de determinados grupos estão imbricados numa complexa rede
de motivações, explícita ou implicitamente, preconceituosas”.48 O terceiro pres-
suposto é o de que para promover a inserção desse grupo excluído por tão
pesada teia de preconceitos as políticas públicas universais e as leis do merca-
do são insuficientes.
O reconhecimento de que o preconceito racial e a discriminação racial no
Brasil são fenômenos presentes e ativos, comprometendo a eqüidade de trata-
mento entre os cidadãos e exacerbando os níveis de desigualdade no país, é,
pois, central nesse debate. A ausência de um processo de segregação racial
legal e institucionalmente organizado não teria minimizado o impacto da dis-
criminação e, segundo alguns autores, até o maximizaria: “A força do racismo
no Brasil, até os dias atuais, deve-se ao fraco e leve impacto que ainda causa à
consciência da maioria das pessoas”,49 construindo uma situação oposta à que
foi vivida na África do Sul e nos Estados Unidos. “A força do racismo é a
fraqueza com que muitas vezes ele se abate, é a maneira com que ele se mani-
festa, sempre com suas mil caras, como um caleidoscópio, de uma maneira
extremamente eficaz em manter o negro onde este sempre esteve, à margem.
Isso não é uma vocação, do negro estar à margem, está à margem por dificul-
dades seculares, por um processo de marginalização que dificulta a sua
ascensão”.50
As políticas de ação afirmativa não esgotam as iniciativas necessárias à
promoção de maior igualdade racial no país. Mas elas seriam imprescindíveis
para alcançar objetivos que não poderiam ser alcançados por medidas repressi-
vas de combate à discriminação, por políticas universalistas ou por ações
valorizativas. Promovendo uma maior presença da população negra nos dife-
rentes setores públicos e privados na vida nacional, as políticas de ação afirma-
tiva atuariam como “correntes de solidariedade”, com vistas a inverter proces-
sos históricos de exclusão. O combate aos inaceitáveis índices de desigualdade
racial e a promoção da igualdade de oportunidades devem fazer frente aos atos
discriminatórios que perpassam decisões institucionais e individuais que se
concretizam em preferências racistas, seja no campo da educação, no campo
da contratação ou progressão profissional, ou no campo da imagem pública.

48. Sant’Anna e Paixão (1998), p. 116.

49. Santos (1997), p. 47.

50. Santos (1997), p. 47.


Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin 53

Respondendo às críticas do benefício desigual das políticas de ação afir-


mativa sobre diferentes setores da população negra, alguns autores vêm ressal-
tando que políticas de ação afirmativa não devem ser confundidas com políti-
cas de combate à pobreza ou com políticas de universalização da cidadania. As
próprias características das ações afirmativas (ações de caráter temporário, com
objetivo bastante específico, qual seja, privilegiar o acesso dos indivíduos ne-
gros naqueles âmbitos da sociedade em que eles estão comprovadamente sub-
representados) não permitem que elas sejam entendidas como políticas de
enfrentamento da pobreza. Elas devem ser compreendidas, em seu sentido
estrito, como políticas de inclusão social de segmentos discriminados. Nesse
sentido, seus impactos não serão uniformes para toda a população
afrodescendente. De fato, tais ações terão impacto particularmente positivo
nos espaços mais privilegiados da sociedade – espaços marcados por uma “acu-
mulação racializada de oportunidades atribuídas ao mérito” 51 – e nos grupos
negros mais capacitados a disputar o acesso a tais espaços.52
Assim consideradas, as políticas de ação afirmativa devem ser incluídas
no rol das políticas necessárias para fazer reverter o quadro de desigualdade,
exclusão e injustiça a que foram e são submetidos os negros no Brasil. O perfil
a ser adotado por essas políticas, contudo, ainda deve ser mais bem discutido
no âmbito da sociedade brasileira.
O debate já começou, centrado especialmente na questão da
implementação de cotas. Um primeiro ponto a ressaltar nesse sentido é que a
instituição de cotas em benefício de grupos discriminados não representa uma
novidade no país. São vários os exemplos de políticas de cotas em vigor:53 a Lei
no 9.100/95 obriga que ao menos 20% das candidaturas às eleições munici-
pais sejam reservadas às mulheres; a Lei no 9.504/97 estabelece que cada par-
tido político ou coligação deve reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70%
para candidaturas de cada sexo; a Lei n o 9.799/99 possibilita o estabelecimen-
to de “políticas de igualdade” para garantir o acesso da mulher ao mercado de
trabalho, cumprindo o artigo 7o, inciso XX da Constituição, que prevê incen-
tivos específicos para a proteção do mercado de trabalho da mulher; o artigo
37, inciso VIII, da Constituição prevê reserva percentual de cargos e empregos
públicos para pessoas portadoras de deficiência; e a Lei no 8.213/91 determi-
na cota para contratação de pessoas portadoras de deficiência em empresas de
mais de cem empregados.

51. Guimarães (1996), p. 44.

52. O mesmo argumento é válido para as ações afirmativas que visam beneficiar outros segmentos discriminados da população, como
mulheres ou deficientes.

53. Piovesan (2002), p. 80.


54 desigualdades raciais no Brasil...

Para enfrentar a discriminação assentada na cor, a instituição de cotas


tem sido defendida por amplos setores sociais e já começa a ser implementada
em órgãos públicos, conforme detalhado na seção 5 deste documento. É im-
portante lembrar, contudo, que as políticas de ação afirmativa não se limitam
à implantação de cotas nos campos da educação, do mercado de trabalho ou
da comunicação. Tais políticas são mais amplas, e o debate em torno desse
assunto deve ser realizado considerando a necessidade, de um lado, de incluir
ações afirmativas não ancoradas em sistemas numéricos, e, de outro, de associar
as ações afirmativas a outras políticas, em especial àquelas de combate ao racis-
mo e preconceito racial.
As práticas
pedagógicas com
as relações étnico-
raciais nas escolas
públicas: desafios
e perspectivas

Nilma Lino Gomes

A
Lei n.º 10.639/03 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional (Lei n.º 9.394/96) e pode ser considerada uma reivindicação do
Movimento Negro e de organismos da sociedade civil, de educadores e
intelectuais comprometidos com a luta antirracista. Pode também ser
entendida como uma resposta do Estado às demandas em prol de uma educação
democrática, que considere o direito à diversidade étnico-racial como um dos pila-
res pedagógicos do País, especialmente quando se consideram a proporção signifi-
cativa de negros na composição da população brasileira e o discurso social que apela
para a riqueza dessa presença.
De Norte a Sul do País, a presença negra é divulgada discursivamente como
um forte componente da diversidade cultural brasileira. Todavia, do ponto de vista das
políticas, das práticas, das condições de vida, do emprego, da saúde, do acesso e da per-
manência na educação escolar, a situação ainda é de desigualdade, preconceito e discri-
minação. Segundo dados divulgados na Pesquisa Nacional por Amostra de Municípios
(BRASIL, 2007), 49,4% da população brasileira se autodeclaram ser da cor ou raça
branca, 7,4% preta, 42,3% parda e 0,8% de outra cor ou raça.1 Quando se tomam, por
exemplo, os dados sobre escolarização, observam-se as dinâmicas dessa desigual distri-
buição de oportunidades. Apesar dos avanços oriundos das políticas públicas, o fenômeno

1 Considera-se como população negra aquela composta por pessoas que se autodeclaram pretas e pardas,
de acordo com as categorias de cor do IBGE, as quais se encontram em situação de profunda desigual-
dade em comparação ao segmento branco.
social do analfabetismo apresenta-se diferentemente nos segmentos negros e brancos da popu-
lação.
Segundo o levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
de 2009, feito com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apesar
da redução da distância entre os dois grupos, o índice de analfabetismo entre jovens
negros ainda é duas vezes maior do que entre os jovens brancos. Em 1998, o analfa-
betismo entre jovens negros era quase três vezes maior do que entre os jovens brancos.
Consideram-se jovens os habitantes entre 15 e 29 anos, uma população que soma
hoje 49,7 milhões de pessoas, cerca de 26,2% da população brasileira.
No ensino médio, o número de jovens brancos que frequenta a escola é 44,5%
maior em comparação ao número de negros. Já no ensino superior, a frequência de
brancos é maior cerca de três vezes. O IPEA destaca, no entanto, que houve signifi-
cativa melhora no nível de adequação educacional entre os jovens negros nos últimos
anos. Se entre os brancos se observou certa estagnação, entre os negros a melhoria
na frequência ao ensino médio é bastante significativa: em dez anos, quase duplicou.
No que diz respeito à renda, é alarmante a disparidade: de 2004 a 2008, a dife-
rença entre a renda média dos negros e dos brancos no Brasil aumentou R$ 52,92. O
estudo revela também que a renda média dos brancos aumentou 2,15 vezes no perío-
do, ao passo que o índice de aumento na renda média dos negros foi de apenas 1,99.
De acordo com o documento, as regiões mais ricas do Brasil meridional apre-
sentam maior porcentagem de pessoas brancas que as regiões do Brasil setentrional.
Do Oiapoque ao Chuí, a população embranquece, e a renda aumenta.
O IPEA alerta que, juntas, a desigualdade entre regiões e a desigualdade racial,
respondem por algo entre um quarto e um quinto da desigualdade de renda domici-
liar per capita de todo o País. Em 2008, esses dois índices respondiam por 22,3%, ou
seja, 5,7% de desigualdade racial dentro das regiões e 16,6% de desigualdade regional.
O IPEA reconhece que o racismo e a discriminação são causas importantes
da desigualdade racial no Brasil, mas não as únicas. Elas caminham lado a lado com
o elevado nível de desigualdade regional. Portanto, as políticas específicas para a
população negra precisam caminhar junto com políticas que visem corrigir também
as profundas desigualdades regionais do País.
A pesquisa também destaca que apenas a metade dos jovens brasileiros de
15 a 17 anos frequenta o ensino médio na idade adequada e que 44% ainda não
concluíram nem mesmo o ensino fundamental. Nas regiões Nordeste e Norte, as

20
taxas de frequência, 36,4% e 39,6%, respectivamente, são bem mais baixas do que
no Sudeste e no Sul, 61,8% e 56,5%, respectivamente.
O acesso ao ensino superior é ainda mais restrito, com frequência de apenas
13,6% dos jovens de 18 a 24 anos. Uma boa parcela dos que têm mais de 18 anos,
cerca de 30%, conseguiu completar o ensino médio, mas sem buscar a continuidade
de estudos no ensino superior.
O IPEA ressalta também que a proporção de jovens fora da escola cresce de
acordo com a faixa etária: 15,9%, entre os jovens de 15 a 17 anos; 64,4%, de 18 a
24 anos; e 87,7%, de 25 a 29 anos.
No entanto, também há avanços. Como principal o IPEA destaca que os
jovens atualmente conseguem passar mais tempo em sala de aula e têm maior es-
colaridade que os adultos. Em 1998, a média de anos de estudo entre pessoas de 15
a 24 anos era de 6,8. Em 2009, a média era de 8,7 anos de estudo entre jovens de
18 a 24 anos. No grupo de 25 a 29 anos, a média chegou a 9,2, o que corresponde
a 3,2 anos de estudo a mais que na população acima dos 40 anos.
Um destaque positivo apontado na pesquisa é que o maior nível de escolari-
dade também se reflete na menor taxa de analfabetismo entre os jovens. Na faixa de
15 a 17 anos a queda foi de 8,2% em 1992 para 1,7% em 2008, e na faixa de 18 a
24 anos foi de 8,8% para 2,4% no mesmo período.
Ainda que se considere o processo de universalização da educação básica de-
sencadeado nos últimos anos, o que possibilitou o acesso de variados grupos sociais
antes desconsiderados e excluídos do processo de escolarização, esse processo não sig-
nifica mudanças diretas no modo como se organiza essa instituição. De acordo com
Theodoro (2008), as políticas públicas têm proporcionado mais acesso à educação de
forma universal, mas ainda de uma forma desigual quando se analisa a questão racial.
Historicamente os negros têm menos acesso a serviços e ações governamentais, o que
indica a necessária realização de políticas direcionadas a esse segmento.
Diante do exposto, observa-se uma imbricação entre diversidade étnico-racial,
desigualdade social e desigualdade regional, também refletida nesta pesquisa. Na
análise das práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na Escola
na perspectiva da Lei n.º 10.639/03, observa-se que o potencial das redes de ensino,
as condições de trabalho nas escolas, o desenvolvimento de formas participativas de
gestão do sistema e das escolas, a presença ou não de formação continuada dos(as)
educadores(as) apresentam nuances significativas quando se considera a localização
regional das escolas participantes. A compreensão mais aprofundada dessa questão
exigirá novos estudos e pesquisas específicas.

21
Da implantação à implementação de políticas para a
educação das relações étnico-raciais
O caráter da Lei n.º 10.639/03 e suas formas de regulamentação atribuem
ao MEC a responsabilidade de induzir a implementação de uma educação para as
relações étnico-raciais em parceria com os sistemas de ensino, para todos os níveis
e todas as modalidades. Existe uma dinâmica própria das políticas públicas, que vai
do reconhecimento de uma problemática social sobre a qual se quer intervir até sua
adoção e transformação da realidade ao lado do conjunto maior da sociedade. E
a eficácia desse processo segue o caminho da implantação à implementação. Uma
educação voltada para a produção do conhecimento, assim como para a formação
de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos para (e na) diversidade étnico-
-racial, significa a compreensão e a ampliação do direito à diferença como um dos
pilares dos direitos sociais. Implica também a formação de subjetividades incon-
formistas diante das práticas racistas e com conhecimento teórico-conceitual mais
aprofundado sobre a África e as questões afro-brasileiras.
No entanto, sabe-se que a criação e a implementação de políticas sociais se
realiza num terreno conflitivo da vida social, especificamente quando se toma a
herança histórica e social forjada no período da ditadura no campo da formulação
e implementação de políticas educacionais, que imprimiu profundas marcas nesse
contexto. Algumas dessas marcas autoritárias são as determinações centralizadoras,
o esvaziamento dos currículos, a apologia à diversidade e a negação das desigualda-
des de classe, raça, gênero e diversidade sexual. Essas ações começaram a se deses-
tabilizar a partir dos anos 1980, quando o processo de reconstrução da sociedade
brasileira, as demandas por participação e convivência democrática começaram a
ganhar força, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e
tendo continuidade nos anos seguintes. Quanto mais a sociedade brasileira se or-
ganiza politicamente em busca da concretização da democracia, maiores são os de-
safios a ser superados por meio da implementação de políticas sociais e programas
de iniciativa do Estado.
Essa rearticulação da sociedade tem os movimentos sociais como um dos
seus principais protagonistas ao lado de outras frentes, organizações e instituições
de caráter democrático e progressista. Os movimentos sociais – que resistiram e
se desenvolveram paralelamente às ações de um governo ditatorial, organizando-
-se fora do controle do Estado, especialmente aqueles que focalizaram o caráter
identitário de grupos sociais com histórico de profunda exclusão e discriminação
(as mulheres, os negros, os povos indígenas, os homossexuais, os quilombolas e os

22
moradores do campo) – evidenciaram uma problemática historicamente apagada
por setores conservadores da sociedade e até por setores progressistas: o direito à
diferença e a necessidade de políticas públicas que contemplem a diversidade.
O Movimento Negro é o protagonista central que conseguiu dar maior vi-
sibilidade ao racismo e sua dinâmica de apagamento no conjunto da sociedade, ao
mito da democracia racial, demandando a implicação do Estado para a efetivação
da paridade de direitos sociais. Colaboram, para o reconhecimento dessa problemá-
tica social e para a construção de uma política para a diversidade e para educação
das relações étnico-raciais na escola, nesse contexto, a Marcha Zumbi dos Palmares
(1995), os dados sociodemográficos que demonstram a condição de desigualdade
racial divulgados pelo IPEA (2001), a realização da 3.a Conferência de Durban, a
criação da SEPPIR (2003) e da SECAD (2004).
Esse contexto histórico, político, social e educacional justifica a necessidade
da sanção da Lei n.º 10.639/03, do Parecer do CNE/CP 03/2004 e da Resolução
CNE/CP 01/2004. Do ponto de vista da política educacional, a existência de tais
dispositivos legais, cuja abrangência diz respeito aos sistemas de ensino, escolas e
sociedade civil, orientou a construção de um planejamento para a sua implementa-
ção em âmbito nacional: o Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009). Esse plano não teria sentido se não arti-
culasse atores institucionais (MEC, gestores de sistemas de ensino e de escolas),
movimentos sociais, sobretudo, o Movimento Negro. No caput do art. 3.º, a citada
Resolução afirma:

A Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e Cultura


Afro-Brasileira e História e Cultura Africana será desenvolvida por meio de
conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos pelas Ins-
tituições de ensino e seus professores, com apoio e supervisão dos sistemas
de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas
as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP
01/2004. (BRASIL, 2004, p. 32).

Entretanto, do papel para a vida social, há uma grande distância a ser trans-
posta, e o desencadeamento desse processo não significa sua efetiva adoção, tam-
pouco seu completo enraizamento no chão das escolas públicas e privadas do País.

23
A efetivação e a implementação de leis no campo educacional dependem em grande
medida de um conjunto de condições que lhes permitam a realização plena. Nesse
cenário, a escola tem sido considerada historicamente um espaço de repercussão e
reprodução do racismo. Como mostra sua história e revelam as dinâmicas sociais
produzidas nesse lócus, trata-se de uma instituição que dificilmente consegue lidar
com identidades forjadas num contexto de diversidade, reconhecendo-as e tratan-
do-as de forma igualitária e digna, e com saberes e patrimônios culturais produzidos
pelos grupos étnico-raciais do País.
Além disso, todos esses dispositivos legais entram em confronto direto com
o imaginário e as práticas de racismo e com o mito da democracia racial extrema-
mente arraigados no bojo do processo de escolarização e no imaginário de profis-
sionais da educação em todos os níveis da educação brasileira. Esse contexto produz
subjetividades, interfere na construção das identidades e autoestima dos sujeitos
negros, brancos, indígenas, entre outros. A educação escolar, como espaço-tempo
de formação humana, socialização e sistematização de conhecimentos, apresenta-se
como uma área central para a realização de uma intervenção positiva na superação
de preconceitos, estereótipos, discriminação e racismo. Portanto, a adoção da Lei e
sua concretização em práticas pedagógicas baseadas na educação para (e na) diver-
sidade demandam a reorganização desse lócus numa perspectiva emancipatória, a
revisão da cultura escolar, de currículos, de práticas pedagógicas e de relações sociais
entre os envolvidos nesse processo, enfatizando a especificidade do segmento negro
da população. Tal transformação diz respeito ao reconhecimento da educação, so-
bretudo a escolar, como um direito de todos e, por conseguinte, da população negra.
A tarefa de uma política educacional voltada para a diversidade étnico-racial
está perpassada por uma radicalidade política e pedagógica. A complexidade do
tema tratado nesta pesquisa se agudiza em decorrência dos aspectos e dos desdo-
bramentos culturais, políticos, econômicos, técnicos, científicos, éticos e subjetivos
que envolvem a questão étnico-racial no Brasil e na educação escolar pública. É
certo que a implementação da Lei n.º 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Na-
cionais, nesse contexto, aponta para o aspecto relevante do reconhecimento da forte
presença da questão afro-brasileira e africana na construção do imaginário social e
pedagógico e a sua visibilidade ou invisibilidade na política educacional. Esse pro-
cesso não pode ser interpretado apenas na sua dimensão pedagógica nem de forma
isolada dentro do campo educacional.
A implementação da Lei n.º 10.639/03 depende não apenas de ações e
políticas intersetoriais, articulação com a comunidade e com os movimentos
sociais, mudança nos currículos das Licenciaturas e da Pedagogia, mas também

24
de regulamentação e normatização no âmbito estadual e municipal, de formação
inicial, continuada e em serviço dos profissionais da educação e gestores(as) do
sistema de ensino e das escolas.
Como se trata de um tema arraigado historicamente na estrutura social, cul-
tural, política e pedagógica do País seria um equívoco interpretar que a sua efetiva-
ção como política pública em educação, bem como a superação dos seus limites de
implementação estivessem restritos ao campo educacional e isolados em si mesmos.
É por essa razão que uma pesquisa como esta se faz necessária, para saber o estado
em que se encontra a temática e verificar, afinal, se a Lei tem sido adotada e como
vem sendo implementada.

Princípios e conceitos consensuados


A pesquisa trabalhou com os conceitos de “reparação, reconhecimento e
ações afirmativas” constantes no texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-brasileira e Africana. No entanto, outros conceitos se apresentam importantes
para a compreensão da orientação dada na presente investigação. E “raça” é um
deles. Segundo Gomes (2005), os militantes e intelectuais que adotam o termo
raça não o fazem no sentido biológico. Pelo contrário, todos sabem e concordam
com os atuais estudos da genética – não existem raças humanas. Na realidade eles
trabalham o termo raça atribuindo-lhe um significado político e social construído
a partir da análise do tipo de racismo que existe no contexto brasileiro e conside-
rando a dimensão histórica e cultural à qual esse termo nos remete. Por isso, ao
se referir ao segmento negro, alguns intelectuais utilizam às vezes o termo “étni-
co-racial”, demonstrando que estão considerando multiplicidade de dimensões e
questões que envolvem a história, a cultura e a vida dos negros no Brasil. Essa é
a perspectiva adotada nesta pesquisa.
No contexto desta investigação, raça é um termo compreendido como uma
construção social, política e cultural produzida e imbricado nas relações sociais e
nas relações de poder ao longo do processo histórico brasileiro e na experiência
da diáspora. Não significa, de forma alguma, um dado da natureza. É no contexto
das classificações sociais que assistimos a operacionalidade da raça, entendida na
sua dimensão social e cultural. Isso significa que as pessoas aprendem a ver negros
e brancos como diferentes na forma como são educados e socializados a ponto de
essas ditas diferenças serem introjetadas na forma de ser e ver o Outro, na subjeti-
vidade e nas relações sociais mais amplas.

25
Na cultura e na sociedade, aprende-se a perceber, comparar, classificar, avaliar
essas diferenças positiva ou negativamente. O problema é que, no contexto das rela-
ções de poder e de dominação, as classificações criam hierarquias, além de legitimar
uns em detrimento de outros. Nesse processo, as diferenças são transformadas em
desigualdades.
Outra noção à qual esta pesquisa se filia é a “regulamentação”. A Resolução
CNE/CP 01/2004 determina, em seu art. 2º, § 3º, que é função dos Conselhos
Municipais e Estaduais de Educação desenvolver as Diretrizes Curriculares Na-
cionais por ela instituídas, preservando a autonomia relativa dentro do regime de
colaboração entre os entes federados e seus respectivos sistemas de ensino. Essa
medida induz a uma leitura contextual dessa Resolução, das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana (CNE/CP 03/2004) e da Lei n.º 10.639/03,
de modo a aproximar as determinações da política municipal e estadual das delibe-
rações de âmbito federal. É papel dos Conselhos Municipais e Estaduais articular
o processo de implantação – apresentação dos novos determinantes legais – e de
implementação. Nesse sentido, a regulamentação diz respeito aos dispositivos legais
que expressam as ações a serem adotadas pelos Conselhos e pelas Secretarias de
Educação para desencadear e realizar a implementação da Lei n.º 10.639/03. Em
geral, a exemplo do caso do governo federal, esse processo demanda diretrizes curri-
culares estaduais e municipais, assim como resoluções que introduzam e garantam a
inserção da educação das relações étnico-raciais no âmbito das políticas municipais
e estaduais já previstas ou que criem novos mecanismos.
Em decorrência da regulamentação, há dois conceitos assumidos e presentes
ao longo das análises realizadas: a “implantação” e a “implementação”. Esses con-
ceitos referem-se a dois importantes momentos na construção de políticas. O início
de toda e qualquer política pública atravessa um momento inaugural, uma etapa de
apresentação de uma perspectiva que se abre à sociedade, denominado implantação.
Em geral, nessa fase, a regulamentação do que está proposto pela política ou pela
legislação dela decorrente ainda se encontra em debate e dependente da análise das
condições que dificultam ou facilitam essa fundação – identificação dos recursos
necessários, parcerias na sociedade civil, posicionamentos políticos sobre o tema,
identificação de tensões.
Decorrente dessa etapa inaugural é a capacidade de implementação da polí-
tica, da execução de um plano, programa ou projeto que leve à sua prática por meio
de providências concretas. Ao distinguir esses dois momentos não se pretende rea-
lizar uma passagem estanque e linear entre a implantação e a implementação. São

26
momentos interdependentes, que, conforme a concepção da legislação em questão,
podem se dar como movimentos contínuos. À medida que se apresentam as tensões
da implantação, se estabelece um conjunto de ações articuladas para a implemen-
tação, em resposta aos problemas identificados. Exemplos disso são as políticas que
articulam fóruns permanentes de debate com participação de diversos segmentos
da sociedade, os processos de indução por meio da produção de material, da forma-
ção continuada, de pesquisas, de composição de equipes de trabalho, de comissões
de acompanhamentos, entre outras táticas. Essa concretização exige esforços mais
variados e articulações entre o Estado, os movimentos sociais e as demais organiza-
ções da sociedade civil.
Outro conceito trabalhado na pesquisa é “enraizamento”. Refere-se à capa-
cidade de o trabalho desenvolvido na escola na perspectiva da Lei n.º 10.639/03 e
das suas Diretrizes Curriculares Nacionais se tornar parte do cotidiano escolar, ou
seja, da organização, da estrutura, do Projeto Político-Pedagógico, dos projetos in-
terdisciplinares, da formação continuada e em serviço dos profissionais, indepen-
dentemente da atuação específica de um(a) professor(a) ou de algum membro da
gestão e coordenação pedagógica. Trata-se de a educação das relações étnico-raciais
se tornar um dos eixos norteadores da proposta político-pedagógica desenvolvida
pelo coletivo dos profissionais da educação que atuam na instituição escolar. Nesse
sentido, importa saber se as práticas pedagógicas realizadas são mais sustentáveis
ou menos sustentáveis. Esse conceito está interligado aos demais, contudo mantém
uma dinâmica própria.

Visibilidade às práticas pedagógicas na perspectiva da Lei


n.º 10.639/03
Um desafio inerente aos objetivos desta pesquisa foi o modo como se focaliza-
riam as práticas pedagógicas na perspectiva da Lei. A primeira decisão tomada pela
coordenação em conjunto com a UNESCO e o MEC/SECADI para enfrentá-lo foi
não atribuir juízo de valor às práticas em análise, classificando-as como “boas”, “más”,
“significativas”, “inovadoras”, entre outras apreciações. Embora essa seja uma tendên-
cia natural na gramática educacional, tentou-se não cair nessa armadilha.
Essa opção deveu-se, em primeiro lugar, ao fato de se saber que as classifica-
ções são arbitrárias e dependentes do crivo tanto daqueles que as realizam quanto
dos que as analisam. No caso da educação das relações étnico-raciais, o campo da
política educacional articulado à teorização das relações raciais e ao pedagógico, vê-
-se desafiado a construir critérios e indicadores que contribuam para compreender

27
e analisar os elementos conceituais, éticos e políticos que compõem uma prática
consonante com a apregoada pelos dispositivos legais.
Numa investigação de tal abrangência é preciso ir além de uma classificação
baseada em impressões e no lugar sociopolítico-identitário de quem a realiza. Por-
tanto, fizeram-se presentes para a equipe algumas indagações advindas da percepção
da complexidade do tema e do campo, tais como: quais indicadores comuns ado-
tar e baseados em quais critérios de caráter objetivo? Quais indicadores poderiam
apontar a existência de práticas pedagógicas na perspectiva da educação das relações
étnico-raciais nas escolas? Quais indicadores poderiam ser aplicados às escolas pú-
blicas estaduais e municipais das cinco regiões do País, considerando as especifici-
dades, a diversidade e as desigualdades regionais? Quais indicadores se colocariam
sensíveis aos diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino?
A decisão da equipe da pesquisa foi fundamentar suas escolhas no texto das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, extraindo as orientações de
caráter nacional e legal que se referem ao aprofundamento do conteúdo indicado no
texto da Lei n.º 10.639/03. Considerou-se que as Diretrizes inserem-se em um con-
texto político-social mais amplo, portanto fazendo parte das “políticas de repara-
ções, de reconhecimento e valorização de ações afirmativas” (BRASIL, 2004, p. 11)
e referindo-se ao novo processo vivido no âmbito da política educacional. Assim:

[...] os sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis converterão


as demandas dos afro-brasileiros em políticas públicas de Estado ou institu-
cionais ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações, reconheci-
mento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à constituição de
programas de ações afirmativas, medidas estas coerentes com um projeto de
escola, de educação e de formação de cidadãos que explicitamente se esbocem
nas relações pedagógicas cotidianas. Medidas que, convém, sejam comparti-
lhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de formação de
professores, comunidade, professores, alunos e pais. (BRASIL, 2004, p. 13).

Ainda segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais cabe ao Estado promover


e incentivar políticas de reparações, no que cumpre ao disposto na Constituição
Federal, Art. 205, entendidas como

28
medidas que visam a concretização de iniciativas de combate ao racismo e a
toda sorte de discriminações que possam ressarcir os descendentes de africa-
nos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais
sofridos sob o regime escravista. (BRASIL, 2004, p. 11).

Apontam ainda que, por políticas de reconhecimento nas quais as práticas


pedagógicas na perspectiva da Lei se inserem, entendem-se aquelas que implicam
justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a valoriza-
ção da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem
a população brasileira. Isso requer mudança nos discursos, nos raciocínios, nas lógi-
cas, nos gestos, nas posturas, no modo de tratar as pessoas negras. Requer também
que se conheça a sua história e sua cultura apresentadas, explicadas, buscando-se
especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira
(BRASIL, 2004, p. 11-12).
Segundo as Diretrizes, as políticas de reparações e de reconhecimento formarão
“programas de ações afirmativas”, isto é, conjuntos de ações políticas dirigidas à corre-
ção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferen-
ciado com vistas a corrigir as desvantagens e a marginalização criadas e mantidas por
uma estrutura social excludente e discriminatória. As ações afirmativas atendem ao
determinado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, bem como aos compro-
missos internacionais assumidos pelo Brasil no combate ao racismo e discriminação,
tais como a Convenção da UNESCO, de 1960, direcionada ao combate ao racismo
em todas as formas de ensino, bem como a Conferência de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações Correlatas, de 2001.
Saliente-se ainda que tal contexto apresenta alguns atores sociais e institucio-
nais responsáveis pela implementação dessas políticas, os quais esta pesquisa tentou
contemplar. Eles se inserem nas três principais instâncias político-pedagógicas res-
ponsáveis pela implementação da educação das relações étnico-raciais. Nas escolas
são os(as) gestores(as), coordenadores(as) pedagógicos, orientadores(as) educacio-
nais, professores(as) e comunidade; na sociedade, o Movimento Negro, os NEABs
(ou seja, as universidades) e, no sistema, o MEC, as Secretarias Estaduais, as Secre-
tarias Municipais, os Conselhos Estaduais e os Conselhos Municipais de Educação.
Mas, afinal, do ponto de vista das Diretrizes Curriculares Nacionais, o que são
práticas pedagógicas na perspectiva da Lei n.º 10.639/03? O retorno ao texto legal
possibilitou afirmar que se trata de práticas pedagógicas que apresentam as seguin-
tes características:

29
Dependem necessariamente de condições físicas, materiais, intelectuais e
afetivas favoráveis para o ensino e para as aprendizagens. São ações por
meio das quais todos os alunos negros e não negros, bem como seus
professores(as), precisam sentir-se valorizados e apoiados. Dependem tam-
bém de maneira decisiva da reeducação das relações entre negros e brancos,
o que se está designando como relações étnico-raciais.
Dizem respeito aos projetos empenhados na valorização da história e cultura
dos afro-brasileiros e dos africanos, bem como comprometidos com a edu-
cação de relações étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem con-
duzir. Valorizam e respeitam as pessoas negras, a sua descendência africana,
sua cultura e sua história.
Questionam relações baseadas em preconceitos que desqualificam os negros
e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou ex-
plicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação
aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual. São práticas
de reconhecimento.
Valorizam, divulgam e respeitam os processos históricos de resistência negra
desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descen-
dentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas.
Colocam em questão as formas de desqualificação: apelidos depreciativos,
brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando
os traços físicos das pessoas negras, a textura de seus cabelos, fazendo pou-
co das religiões de raiz africana.
Criam condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em vir-
tude da cor da sua pele, menosprezados porque seus antepassados foram
explorados como escravos, tampouco sejam desencorajados de prosseguir
estudos e estudar questões que dizem respeito à comunidade negra.
Realizam-se no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de
ensino, como conteúdo de disciplinas, particularmente, Educação Artística,
Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das demais.
São regidas por meio de um trabalho conjunto, de articulação entre proces-
sos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que
as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-
-raciais não se limitam à escola.

30
São esclarecedoras de equívocos em relação à acusação de que o negro discri-
mina a si mesmo, à atuação do Movimento Negro e ao mito da democracia
racial e ao racismo.
Visam negros e brancos, pois oferecem aos negros conhecimentos e segu-
rança para se orgulharem da sua origem africana. E aos brancos permitem
identificar as influências, a contribuição, a participação e a importância da
história e da cultura dos negros no seu jeito de ser, de viver, de se relacionar
com as outras pessoas, notadamente as negras.
Atuam no nível do conhecimento e no nível dos conteúdos escolares, pois se
incluem no contexto dos estudos e atividades escolares. Referem-se também
às contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descenden-
tes de asiáticos, além das advindas de povos de raízes africana e europeia.
Portanto, estabelecem conteúdos de ensino, unidades de estudos, realizam
projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares.
Estão baseadas em fontes variadas, em material bibliográfico e outros mate-
riais didáticos, realizados por docentes e alunos, que incluem personagens
negros e de outros grupos étnico-raciais. Valorizam a oralidade, a corpo-
reidade e a arte, por exemplo, a dança, marcas da cultura de raiz africana,
ao lado da escrita e da leitura. Atuam no campo da educação patrimonial
visando o aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro e sua
preservação.
Inserem-se no PPP da escola, em cumprimento ao art. 26A da Lei n.º
9.394/1996, pois tais práticas se estabelecem em colaboração com as comu-
nidades a que a escola serve, com o apoio direto ou indireto de especialis-
tas, de pesquisadores e do Movimento Negro, com os quais estabelecerão
canais de comunicação, encontrarão formas próprias de incluir as temáticas
em questão nas vivências promovidas pela escola, inclusive em conteúdos
de disciplinas.
Identificam, com o apoio dos NEABs, fontes de conhecimentos de origem
africana, a fim de selecionar conteúdos e procedimentos de ensino e de
aprendizagens.
Exigem dos docentes e das escolas a crítica à forma como os negros e outras
minorias são representados nos textos, materiais didáticos e a tomada de provi-
dências para corrigi-las. Exigem também a construção de condições para pro-
fessores e alunos pensarem, decidirem e agirem, assumindo responsabilidade

31
por relações étnico-raciais positivas, enfrentando e superando discordâncias,
conflitos, contestações, valorizando os contrastes das diferenças.
Exigem um nível de normatização via sistematização, em documentos e no
planejamento dos estabelecimentos de ensino de todos os níveis – estatutos,
regimentos, planos pedagógicos, planos de ensino –, de objetivos explícitos,
assim como de procedimentos para sua consecução, visando ao combate do
racismo e das discriminações e ao reconhecimento, valorização e respeito da
história e da cultura afro-brasileira e africana.
Exigem a previsão, nos fins, responsabilidades e tarefas dos conselhos escolares e
de outros órgãos colegiados, do exame e do encaminhamento de solução para
situações de racismo e de discriminações, buscando criar situações educativas
em que as vítimas recebam o apoio requerido para superar o sofrimento e os
agressores, além de orientação para que compreendam a dimensão do que
praticaram e ambos recebam educação para o reconhecimento, valorização e
respeito mútuos.
A conceituação e o esclarecimento sobre as práticas pedagógicas apresentadas
no texto das Diretrizes orientaram a construção dos instrumentos da pesquisa, dos
roteiros de entrevista e de observação, a realização do grupo de discussão com os
estudantes, o olhar dos(as) pesquisadores(as) em campo e, mais do que isso, guiaram
a análise dos dados obtidos.
É sabido que as Diretrizes apontam para um tipo ideal de práticas – aquelas
cuja realização demonstra a excelência de um trabalho de educação das relações
étnico-raciais. Nesse sentido, a conceituação de práticas pedagógicas na perspectiva
da Lei n.º 10.639/03 apontada pelas Diretrizes orienta para a realização de ações,
atividades, projetos, programas, avaliação, posturas pedagógicas avançadas e eman-
cipatórias, que deveriam acontecer nas escolas.
Pesquisas e estudos anteriores a este, assim como a percepção do MEC/SE-
CADI sobre a implementação da Lei, revelam a grande dificuldade dos sistemas
de ensino e das escolas de realizar práticas com tamanha radicalidade e efetividade
como suscita o texto legal. Essa situação confirma ainda mais a urgência e a neces-
sidade de construção de políticas e práticas e de investimento de recursos públicos
não só nos processos de formação continuada como, também, na formação inicial e
em serviço dos docentes e demais profissionais da educação e na produção, circula-
ção, socialização e análise de material didático e paradidático na perspectiva da Lei
n.º 10.639/03, do Parecer CNE/CP 03/04, da Resolução CNE/CP 01/04 e suas
respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais.

32
Referências

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em:


<http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 15 dez. 2008.

TEODORO, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos


após a abolição. Brasília, DF: IPEA, 2008.

BRASIL. Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africa-
na. Brasília, DF: SECAD; SEPPIR, jun. 2009.

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PEDAGOGIA DECOLONIAL E EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E INTERCULTURAL NO BRASIL

Luiz Fernandes de Oliveira*


Vera Maria Ferrão Candau**

RESUMO: O texto situa-se no âmbito da pesquisa "Multiculturalismo, Direitos Humanos e


Educação: a tensão entre igualdade e diferença", que vem sendo desenvolvida desde 2006,
tendo como um de seus principais objetivos analisar a problemática da educação intercultural
no contexto latino-americano. No percurso investigativo realizado, foi privilegiada a produção
do grupo Modernidade-Colonialidade, por seu potencial crítico para a discussão das relações
entre interculturalidade, relações étnico-raciais e educação no Brasil. Em primeiro lugar, é feita
uma breve análise dos principais conceitos que fundamentam as reflexões desse grupo. Em
seguida, são apresentadas as noções de pedagogia decolonial e interculturalidade crítica. Por
último, são discutidas possíveis confluências entre as propostas da pedagogia decolonial e
intercultural e as das "Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana".
Palavras-chave: Modernidade/Colonialidade; Pedagogia Decolonial; Educação Intercultural.

DECOLONIAL PEDAGOGY AND ANTI-RACIST AND INTERCULTURAL EDUCATION IN BRAZIL


ABSTRACT: This text falls within the scope of the research field known as "Multiculturalism,
Human Rights and Education: the tension between equality and difference", which has been
developed since 2006, having as one of its objectives the study of issues related to intercultural
education in Latin America. In the research process, special emphasis was given to the
production of the "Modernity/Coloniality" working group for its critical potential in the
discussion of the relationship between interculturality, ethnic-racial relations and education in
Brazil. Firstly, a brief analysis of the main concepts, which are the basis of their work, is
carried out. Then, the notion of decolonial pedagogy and critical interculturality is presented.
Finally, the possible intersections between the propositions of decolonial and intercultural
pedagogy and the National Curriculum Guidelines for the education of Ethnic-racial relations
and for the teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture are discussed.
Keywords: Modernity/coloniality; Decolonial pedagogy; Intercultural education.
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio); Mestre em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Especialista em História
da África e do Negro no Brasil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM); Professor Assistente da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professor de Sociologia da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado
do Rio de Janeiro (FAETEC). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s) (GECEC;
PUC-Rio.). E-mail: axeluiz@uol.com.br
** Doutora em Educação pela Universidad Complutense de Madrid; Professora Titular do Departamento de Educação
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq); Coordenadora do Grupo de Pesquisas sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s)
(GECEC - PUC-Rio). Membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. E-mail: vmfc@puc-rio.br

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Introdução

Nos últimos anos, a problemática das relações entre educação e


diferenças culturais tem sido objeto de inúmeros debates, reflexões e pes-
quisas, no Brasil e em todo o continente latino-americano. As questões e
os desafios se multiplicam. As buscas de construção de processos educa-
tivos culturalmente referenciados se intensificam.
Nesse universo de preocupações, os estudos sobre relações
étnico-raciais vêm se projetando no espaço acadêmico e nos movimentos
sociais, a ponto de interferir de forma concreta em políticas públicas e
ações governamentais. De fato, essa constatação pode ser melhor com-
preendida a partir do crescimento das lutas dos movimentos negros e da
emergência de novas produções acadêmicas sobre questões relativas à
diferença étnica, ao multiculturalismo e às identidades culturais.
Situando-nos nessa perspectiva, vimos desenvolvendo, desde
2006, um projeto de pesquisa1 intitulado “Multiculturalismo, Direitos
Humanos e Educação: a tensão entre igualdade e diferença”, orientado a
aprofundar a discussão sobre a problemática da educação intercultural em
diferentes países latino-americanos, por considerá-la um espaço privi-
legiado para se refletir sobre a tensão entre igualdade e diferença.
Nesse contexto, localizamos a produção do grupo “Modernidade/
Colonialidade”, formado por intelectuais de diferentes procedências e
inserções, que busca construir um projeto epistemológico, ético e político
a partir de uma crítica à modernidade ocidental em seus postulados
históricos, sociológicos e filosóficos. Consideramos as contribuições desse
grupo de especial relevância e originalidade, apresentando potencial insti-
gante para a reflexão sobre interculturalidade, relações étnico-raciais e
educação, no contexto atual do continente latino-americano e, especi-
ficamente, no nosso país.
É a partir dessas observações preliminares que situamos o
presente trabalho, que tem por objetivo analisar as principais contri-
buições do grupo “Modernidade-Colonialidade” para as discussões sobre
as questões étnico-raciais no campo da educação no Brasil.
Em primeiro lugar, faremos uma breve análise das ideias e
principais formulações teóricas desse grupo. Em seguida, situaremos o
desenvolvimento de processos educacionais da educação a partir das
noções de pedagogia decolonial e interculturalidade crítica. Num terceiro

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e último momento, entraremos nos debates sobre as questões raciais em


educação no Brasil, analisando as possíveis confluências entre as propostas
da pedagogia decolonial e intercultural e as políticas públicas de reformulação
curricular no Brasil, tendo como referência as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana2.

O grupo “Modernidade/Colonialidade”:
referências fundamentais

Em julho de 2002, Arturo Escobar, antropólogo colombiano e


professor da Universidade da Carolina do Norte, apresentou um trabalho
no terceiro Congresso Internacional de Latinoamericanistas, em Amsterdã,
intitulado “Mundos e conhecimentos de outro modo”, no qual fazia
referência ao grupo de pesquisa “Modernidade/Colonialidade”. O trabalho
apresentado analisava e relatava a perspectiva de um grupo que busca um
mundo melhor e um projeto epistemológico novo. Trata-se, em síntese,
de uma construção alternativa à modernidade eurocêntrica, tanto no seu
projeto de civilização quanto em suas propostas epistêmicas.
O grupo é formado predominantemente por intelectuais da
América Latina e apresenta caráter heterogêneo e transdisciplinar. As
figuras centrais desse grupo são: o filósofo argentino Enrique Dussel, o
sociólogo peruano Aníbal Quijano, o semiólogo e teórico cultural
argentino-norte-americano Walter Mignolo, o sociólogo porto-riquenho
Ramón Grosfoguel, a linguista norte-americana radicada no Equador
Catherine Walsh, o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Torres, o
antropólogo colombiano Arturo Escobar, entre outros. Cabe ressaltar que
esse grupo mantém diálogos e atividades acadêmicas conjuntas com o
sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein.
O postulado principal do grupo é o seguinte: “a colonialidade é
constitutiva da modernidade, e não derivada” (MIGNOLO, 2005, p. 75).
Ou seja, modernidade e colonialidade são as duas faces da mesma moeda.
Graças à colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas
como modelo único, universal e objetivo na produção de conhecimentos,
além de deserdar todas as epistemologias da periferia do ocidente.

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Segundo Quijano (2007), colonialismo e colonialidade são dois


conceitos relacionados, porém distintos. O colonialismo se refere a um
padrão de dominação e exploração no qual:

O controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de


uma população determinada possui uma diferente identidade e as suas sedes
centrais estão, além disso, em outra jurisdição territorial. Porém nem sempre,
nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O Colonialismo é,
obviamente, mais antigo; no entanto a colonialidade provou ser, nos últimos
500 anos, mais profunda e duradoura que o colonialismo. Porém, sem dúvida,
foi forjada dentro deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser imposta à
inter-subjetividade de modo tão enraizado e prolongado. (QUIJANO, 2007,
p. 93)

Também Nelson Maldonado Torres (2007), de forma que consi-


deramos mais esclarecedora, diferenciou os dois conceitos da seguinte
forma:

O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania


de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida
nação em um império. Diferente desta idéia, a colonialidade se refere a um
padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas
em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou
nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade
e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado
capitalista mundial e da idéia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder
a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém
viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na
cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos
sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste
sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente.
(TORRES, 2007, p. 131).

Assim, o colonialismo é mais do que uma imposição política,


militar, jurídica ou administrativa. Na forma da colonialidade, ele chega às
raízes mais profundas de um povo e sobrevive apesar da descolonização
ou da emancipação das colônias latino-americanas, asiáticas e africanas
nos séculos XIX e XX. O que esses autores mostram é que, apesar do fim
dos colonialismos modernos, a colonialidade sobrevive.
É preciso lembrar que, com a emancipação jurídico-política da
África e da Ásia, processos que culminam nos anos 1970, foram produ-

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zidas densas e consistentes reflexões sobre uma época denominada pós-


colonial (BHABHA, 1999; SAID, 2001; HALL, 1997; entre outros),
indicando que o colonialismo teria terminado. Apesar de o colonialismo
tradicional ter chegado ao fim, para os autores do grupo “Modernidade/
Colonialidade” as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização
epistemológica ainda estão fortemente presentes.
Quijano (2005) vai propor o conceito de colonialidade do poder
para referir-se a essa situação. Esta seria uma estrutura de dominação que
submeteu a América Latina, a África e a Ásia, a partir da conquista. O termo
faz alusão à invasão do imaginário do outro, ou seja, sua ocidentalização.
Mais especificamente, diz respeito a um discurso que se insere no mundo do
colonizado, porém também se reproduz no lócus do colonizador. Nesse
sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invizibilizando-o e
subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário. Assim, a
colonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento, os
saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos. Opera-
se, então, a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalter-
nização epistêmica do outro não-europeu e a própria negação e o esquecimento
de processos históricos não-europeus. Essa operação se realizou de várias
formas, como a sedução pela cultura colonialista, o fetichismo cultural que o
europeu cria em torno de sua cultura, estimulando forte aspiração à cultura
europeia por parte dos sujeitos subalternizados. Portanto, o eurocentrismo
não é a perspectiva cognitiva somente dos europeus, mas torna-se também
do conjunto daqueles educados sob sua hegemonia.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a colonialidade do poder
construiu a subjetividade do subalternizado, necessitando, portanto,
segundo Quijano (2007), pensar historicamente a noção de raça.

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão


mundial do poder capitalista. Se funda na imposição de uma classificação
racial/étnica da população mundial como pedra angular deste padrão de
poder (QUIJANO, 2007, p. 93).

Quijano explicita que o conceito de raça é uma abstração, uma


invenção que nada tem a ver com processos biológicos. É no século XVI
que se cria a união entre cor e raça, e, mais, esse conceito, para o autor,
exerce papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo moderno a
partir do século XIX.

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Além disso, esse conceito operou a inferiorização de grupos


humanos não-europeus, do ponto de vista da produção da divisão racial
do trabalho, do salário, da produção cultural e dos conhecimentos. Por
isso, Quijano fala também da colonialidade do saber, entendida como a
repressão de outras formas de produção de conhecimento não-europeias,
que nega o legado intelectual e histórico de povos indígenas e africanos,
reduzindo-os, por sua vez, à categoria de primitivos e irracionais, pois
pertencem a “outra raça”.
Essa afirmação da hegemonia epistemológica da modernidade
europeia, que se traduz num racismo epistêmico ou, como afirma Grosfoguel
(2007), sobre como a “epistemologia eurocêntrica ocidental dominante,
não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de
pensamento crítico nem científico” (GROSFOGUEL, 2007, p. 35).
Walter Mignolo (2005), nessa linha de raciocínio, vai afirmar que
as ciências humanas, legitimadas pelo Estado, cumpriram papel
fundamental na invenção do outro. Além disso, segundo esse mesmo
autor, essas ciências, incluindo a história, criaram a noção de progresso.
Com a ideia de progresso se estabeleceu uma linha temporal em que a
Europa aparecia como superior. Isso significou que, como afirma Castro-
Gomez (2005) sobre a história e as áreas afins, como a etnografia, a
geografia, a antropologia, a paleontologia, a arqueologia, etc., ao estudar o
passado das civilizações, seus produtos culturais e institucionais, muitas
vezes foram realizadas comparações com o mundo europeu e, nesse
sentido, justificaram o colonialismo3. Para esse autor, os cânones, o
modelo, o padrão de comparação, são o “centro” da História Mundial, ou
seja, a Europa. Aqui, o outro foi visto como mera natureza, uma visão que
se popularizou no século XVIII e que teve suas repercussões na obra de
Hegel sobre a Filosofia da História4.
Mignolo (2003) escreve que os espanhois julgavam e hierar-
quizavam a inteligência e a civilização dos povos tomando como critério
a escrita alfabética. Porém, nos séculos XVIII e XIX, o critério de ava-
liação passa a ser a história. Ou seja, os povos “sem história” situam-se
em um tempo “anterior” ao “presente”.
Assim, com base na colonialidade do poder:

(...) o eurocentrismo torna-se, portanto, uma metáfora para descrever a


colonialidade do poder, na perspectiva da subalternidade. Da perspectiva
epistemológica, o saber e as histórias locais européias foram vistos como
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projetos globais, desde o sonho de um Orbis universalis christianus até a crença


de Hegel em uma história universal, narrada de uma perspectiva que situa a
Europa como ponto de referência e de chegada. (MIGNOLO, 2003, p. 41)

Para Mignolo, a expansão ocidental após o século XVI não foi


somente econômica e religiosa, mas também das formas hegemônicas de
conhecimento, de um conceito de representação do conhecimento e
cognição, impondo-se como hegemonia epistêmica, política e historio-
gráfica, estabelecendo, assim, a colonialidade do saber.
Se a colonialidade do poder criou uma espécie de fetichismo
epistêmico (ou seja, a cultura, as ideias e os conhecimentos dos colo-
nialistas aparecem de forma sedutora, que se busca imitar), impondo a
colonialidade do saber sobre os não-europeus, evidenciou-se também
uma geopolítica do conhecimento, ou seja, o poder, o saber e todas as
dimensões da cultura definiam-se a partir de uma lógica de pensamento
localizado na Europa. Assim, Mignolo (2005) também vai afirmar que
esses processos, marcados por uma violência epistêmica, conduziram
também a uma geopolítica linguística, já que as línguas coloniais ou
imperiais, cronologicamente identificadas no grego e no latim na Anti-
guidade, e no italiano, no português, no castelhano, no francês, no inglês
e no alemão na modernidade, estabeleceram o monopólio linguístico,
desprezando as línguas nativas e, como consequência, subvertendo ideias,
imaginários e as próprias cosmovisões nativas fora da Europa.
Entretanto, é no conceito de colonialidade do ser, segundo os
vários autores aqui expostos, que mais se explicita a força dos conceitos
vistos anteriormente. Catherine Walsh (2005) vai recordar as palavras de
Frantz Fanon (1983) para relacionar colonialismo a não-existência:

Em virtude de ser uma negação sistemática da outra pessoa e uma


determinação furiosa para negar ao outro todos os atributos de humanidade,
o colonialismo obriga as pessoas que ele domina a perguntar-se: em realidade
quem eu sou? (FANON apud WALSH, 2005, p. 22).

E mais:

O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colonizador


limitar fisicamente o colonizado, com suas polícias e seus exércitos, o espaço
do colonizado. Assim, para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial,
o colonizador faz do colonizado uma quinta-essência do mal. A sociedade

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colonizada não somente se define como uma sociedade sem valores (…) O
indígena é declarado impermeável à ética, aos valores. É, e nos atrevemos a
dizer, o inimigo dos valores. Neste sentido, ele é um mal absoluto. Elemento
corrosivo de tudo o que o cerca, elemento deformador, capaz de desfigurar
tudo que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas.
(FANON, 2003, p. 35-36).

A colonialidade do ser é pensada, portanto, como a negação de


um estatuto humano para africanos e indígenas, por exemplo, na história
da modernidade colonial. Essa negação, segundo Walsh (2006), implanta
problemas reais em torno da liberdade, do ser e da história do indivíduo
subalternizado por uma violência epistêmica.
Podemos afirmar, concordando com Mignolo (2003), que o
discurso da história do pensamento europeu é, de um lado, a história da
modernidade europeia e, de outro, a história silenciada da colonialidade
europeia. Pois, enquanto a primeira é uma história de autoafirmação e de
celebração dos sucessos intelectuais e epistêmicos, a segunda é uma
história de negações e de rejeição de outras formas de racionalidade e
história.

Colonialidade e educação

A partir desses conceitos fundamentais, desde o final dos anos


1990, o grupo vem se ampliando e afirmando suas reflexões sobre as
relações entre colonialidade e modernidade. Segundo Catherine Walsh, a
partir de 2001, com o convênio entre a Universidade Duke, a
Universidade da Carolina do Norte, a Universidade Javeriana de Bogotá e
a Universidade Andina Simon Bolívar de Quito, com a participação de
intelectuais da Bolívia, da Colômbia, do Peru, do Equador, da Venezuela,
da Argentina, do México e dos EUA, estabeleceu-se um intenso diálogo
que influenciou as grandes questões abordadas pelo primeiro Programa
de Doutorado em Estudos Culturais Latinoamericanos da Universidade
Andina Simon Bolívar do Equador (WALSH, 2005). Em outubro de
2007, realizamos um seminário presencial, no Rio de Janeiro, com a
professora Catherine Walsh, em que discutimos e aprofundamos a
perspectiva desenvolvida pelo grupo “Modernidade/Colonialidade”,
especialmente em suas relações com a educação.

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A questão central num projeto de emancipação epistêmica é a


coexistência de diferentes epistêmes ou formas de produção de
conhecimento entre intelectuais, tanto na academia, quanto nos
movimentos sociais, colocando em evidência a questão da geopolítica do
conhecimento. Como visto anteriormente, entende-se geopolítica do
conhecimento como a estratégia da modernidade europeia que afirmou
suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades
universais e invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem conhe-
cimentos “outros”5. Foi esse o processo que constituiu a modernidade que
não pode ser entendida sem se tomar em conta os nexos com a herança
colonial e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu.
Segundo Arturo Escobar (2003), a modernidade como globa-
lização atualmente está em todas as partes, já que esta é a radicalização e
a universalização da modernidade europeia em todos os cantos do
planeta. Porém, hoje emerge uma série de noções que colocam em crise a
centralidade da perspectiva eurocêntrica. Por exemplo, a perspectiva de
que a modernidade não é um fenômeno europeu, mas um fenômeno
global, com distintas localidades e temporalidades.
Essa perspectiva considera a colonialidade como constitutiva da
modernidade, ou seja, segundo Mignolo (2003), “nos ombros da moder-
nidade está o peso e a responsabilidade da colonialidade” (MIGNOLO,
2003, p. 38). Daí surge a perspectiva de introduzir epistêmes invisibi-
lizadas e subalternizadas, fazendo-se a crítica ao mesmo tempo da
colonialidade do poder.
Como vimos, a colonialidade do poder, do saber e do ser são
conceitos centrais dentro do projeto de investigação do grupo
“Modernidade/Colonialidade”. Outro conceito central, introduzido por
Mignolo, é a diferença colonial, entendida como pensar a partir das ruínas,
das experiências e das margens criadas pela colonialidade do poder na
estruturação do mundo moderno/colonial, como forma não de restituir
conhecimento, mas de reconhecer conhecimentos “outros” em um
horizonte epistemológico transmoderno, ou seja, construído a partir de
formas de ser, pensar e conhecer diferentes da modernidade europeia,
porém em diálogo com esta.
A perspectiva da diferença colonial requer um olhar sobre
enfoques epistemológicos e sobre as subjetividades subalternizadas e
excluídas. Supõe interesse por produções de conhecimento distintas da

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modernidade ocidental. Diferentemente da pós-modernidade, que con-


tinua pensando tendo como referência o ocidente moderno, a construção
de um pensamento crítico “outro”, parte das experiências e histórias
marcadas pela colonialidade. O eixo que se busca é a conexão de formas
críticas de pensamento produzidas a partir da América Latina, assim
como com autores de outros lugares do mundo, na perspectiva da
decolonialidade da existência, do conhecimento e do poder.
Assim, neste enfoque crítico, Catherine Walsh vai refletir sobre
os processos educacionais a partir de conceitos como: pensamento-outro,
decolonialidade e pensamento crítico de fronteira.
Pensamento-outro provém do autor árabe-islâmico Abdelkebir
Khatibi, que parte do princípio da possibilidade do pensamento a partir
da decolonização, ou seja, a luta contra a não-existência, a existência
dominada e a desumanização. É uma perspectiva semelhante à proposta
pelo conceito de colonialidade do ser, uma categoria que serve como
força para questionar a negação histórica da existência dos não-europeus,
como os afrodescendentes e indígenas da América Latina.
Contestando as concepções de que diversos povos não-
ocidentais seriam não-modernos, atrasados e não-civilizados, decolonizar-
se cumpre papel fundamental do ponto de vista epistemológico e político.
Walsh afirma, tendo como referência os movimentos sociais
indígenas equatorianos e dos afro-equatorianos, que a decolonialidade
implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos
historicamente subalternizados pela existência, para a construção de
outros modos de viver, de poder e de saber. Portanto, decolonialidade é
visibilizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas
práticas sociais, epistêmicas e políticas.
A decolonialidade representa uma estratégia que vai além da
transformação da descolonização, ou seja, supõe também construção e
criação. Sua meta é a reconstrução radical do ser, do poder e do saber.
Walter Mignolo (2003) destaca que o pensamento-outro caracte-
rizado como decolonialidade se expressa na diferença colonial, isto é, um
reordenamento da geopolítica do conhecimento em duas direções: a
crítica da subalternização na perspectiva dos conhecimentos invisibi-
lizados e a emergência do pensamento liminar como uma nova moda-
lidade epistemológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade
de categorias suprimidas sob o ocidentalismo e o eurocentrismo.

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Mignolo (2003) cita um exemplo quando descreve o marxismo


modificado pelas línguas e pela cosmologia ameríndia do movimento
zapatista e a epistemologia ameríndia transformada pela linguagem do
marxismo, ou seja, um diálogo trans-epistemológico que reescreve uma
história de quinhentos anos de opressão.
Outro exemplo citado pelo autor é quando Fanon, no livro Peles
negras e máscaras brancas, afirma que para um negro que trabalha numa
plantação de açúcar a única solução é lutar, mas que ele “embarcará nessa
luta, e a levará adiante, não como resultado de uma análise marxista ou
idealista, mas simplesmente porque não pode conceber a vida de outra
maneira” (FANON apud MIGNOLO, 2003, p. 126).
Mignolo quer destacar aqui que Fanon “não está negando a
poderosa análise da lógica do capitalismo efetuada por Marx”, mas está
“chamando a atenção para a força da consciência negra, e não apenas da
consciência de classe” (MIGNOLO, 2003, p. 126).
Nesse processo, também se encontra a estratégia da intercultura-
lidade como princípio que orienta pensamentos, ações e novos enfoques
epistêmicos. O conceito de interculturalidade é central na (re)construção
do pensamento-outro. A interculturalidade é concebida, nessa perspec-
tiva, como processo e como projeto político.
Amadurecendo esse pensamento, Walsh (2005) considera
também a questão do “posicionamento crítico de fronteira” na diferença
colonial, ou seja, um processo em que o fim não é uma sociedade ideal,
como abstrato universal, mas o questionamento e a transformação da
colonialidade do poder, do saber e do ser, sempre tendo consciência de
que estas relações de poder não desaparecem, mas que podem ser recons-
truídas ou transformadas, conformando-se de outra maneira.
O pensamento de fronteira significa tornar visíveis outras lógicas
e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica dominante. O
pensamento de fronteira se preocupa com o pensamento dominante,
mantendo-o como referência, como vimos em Fanon, mas sujeitando-o
ao constante questionamento e introduzindo nele outras histórias e modos
de pensar. Walsh considera essa perspectiva como componente de um
projeto intercultural e decolonizador, permitindo uma nova relação entre
conhecimento útil e necessário na luta pela decolonização epistêmica.
Além disso, o pensamento crítico de fronteira permite construir
variadas estratégias entre grupos e conhecimentos subalternos, como, por

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exemplo, entre povos indígenas e povos negros. A autora coloca também,


como exemplo, o estabelecimento de lugares epistêmicos do pensamento-
outro, como a Universidade Intercultural Indígena do Equador ou a etno-
educação afro (WALSH, 2006). Esses espaços, como posições críticas de
fronteira, podem oferecer possibilidades de propor outros conhecimentos
e cosmovisões num diálogo crítico com os conhecimentos e modos de
pensar tipicamente associados ao mundo ocidental.
Esse pensamento crítico pode se constituir desde a colonialidade
e propõe que se crie novas comunidades interpretativas que ajudem a ver
o mundo de uma perspectiva “outra”. Esse enfoque quer se constituir
como um projeto alternativo ao racismo epistêmico e à colonialidade do
ser, do saber e do poder. Walsh (2007) afirma que a denominada peda-
gogia decolonial poderia servir no campo educativo para aprofundar os
debates em torno da interculturalidade, ou seja,

ao problema da” ciência” em si; isto é, a maneira através da qual a ciência,


como um dos fundamentos centrais do projeto Modernidade/Colonialidade,
contribuiu de forma vital ao estabelecimento e manutenção da ordem hie-
rárquica racial, histórica e atual, na qual os brancos e especialmente os homens
brancos europeus permanecem como superiores. (WALSH, 2007, p. 9)

Aqui, faz-se necessário discutir um pouco mais sobre os con-


ceitos de interculturalidade crítica e sua incidência no campo educacional
e a pedagogia decolonial.
Para Catherine Walsh, a interculturalidade significa:

- Um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e


aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua,
simetria e igualdade.
- Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e
práticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido
entre elas na sua diferença.
- Um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais,
econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não
são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados.
- Uma tarefa social e política que interpela ao conjunto da sociedade, que
parte de práticas e ações sociais concretas e conscientes e tenta criar modos
de responsabilidade e solidariedade.
- Uma meta a alcançar. (WALSH, 2001, p. 10-11)

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Outro estudo da autora destaca que:

O conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um


pensamento crítico-outro - um pensamento crítico de/desde outro modo -,
precisamente por três razões principais: primeiro porque está vivido e
pensado desde a experiência vivida da colonialidade [...]; segundo, porque
reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da
modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma
volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no
norte global. (WALSH, 2005, p. 25)

Para a autora, a interculturalidade tem um significado


intimamente ligado a um projeto social, cultural, educacional, político,
ético e epistêmico em direção à decolonização e à transformação. É um
conceito carregado de sentido pelos movimentos sociais indígenas latino-
americanos e que questiona a colonialidade do poder, do saber e do ser.
Enfim, ele também denota outras formas de pensar e se posicionar a
partir da diferença colonial, na perspectiva de um mundo mais justo.
É nesse sentido que a interculturalidade não é compreendida
somente como um conceito ou termo novo para referir-se ao simples
contato entre o ocidente e outras civilizações, mas como algo inserido
numa configuração conceitual que propõe um giro epistêmico capaz de
produzir novos conhecimentos e outra compreensão simbólica do
mundo, sem perder de vista a colonialidade do poder, do saber e do ser.
A interculturalidade concebida nessa perspectiva representa a construção
de um novo espaço epistemológico que inclui os conhecimentos
subalternizados e os ocidentais, numa relação tensa, crítica e mais
igualitária.
Segundo a autora, no campo educacional essa perspectiva não
restringe a interculturalidade à mera inclusão de novos temas nos
currículos ou nas metodologias pedagógicas, mas se situa na perspectiva
da transformação estrutural e sócio-histórica. Aqui, portanto, a autora
expressa uma crítica às formulações teóricas multiculturais que não
questionam as bases ideológicas do Estado-nação, partem de lógicas
epistêmicas eurocêntricas e, no campo educacional, sob o pretexto de
incorporar representações e culturas marginalizadas, apenas reforçam os
estereótipos e os processos coloniais de racialização.
Para Walsh, muitas políticas públicas educacionais na América
Latina (incluindo o Brasil) vêm se utilizando dos termos interculturalidade
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e multiculturalismo como forma de somente incorporar as demandas e os


discursos subalternizados pelo ocidente, dentro do aparato estatal em que
o padrão epistemológico eurocêntrico e colonial continua hegemônico.
Na contramão dessa concepção meramente inclusiva, Walsh
(2007) vai propor a perspectiva da interculturalidade crítica como a forma
da pedagogia decolonial:

A interculturalidade crítica (...) é uma construção de e a partir das pessoas que


sofreram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Uma
proposta e um projeto político que também poderia expandir-se e abarcar
uma aliança com pessoas que também buscam construir alternativas à
globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela
transformação social como pela criação de condições de poder, saber e ser
muito diferentes. Pensada desta maneira, a interculturalidade crítica não é um
processo ou projeto étnico, nem um projeto da diferença em si. (...), é um
projeto de existência, de vida. (WALSH, 2007, p. 8)

Essa perspectiva é pensada a partir da ideia de uma prática


política contraposta à geopolítica hegemônica monocultural e
monorracional do conhecimento, pois se trata de visibilizar, enfrentar e
transformar as estruturas e instituições que têm como horizonte de suas
práticas e relações sociais a lógica epistêmica ocidental, a racialização do
mundo e a manutenção da colonialidade do poder.
Assim afirma Walsh (2007, p. 9): “assumir esta tarefa implica um
trabalho de-colonial dirigido a tirar as correntes e superar a escravização
das mentes (como diziam Zapata Olivella y Malcolm X); a desafiar e
derrubar as estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade”.
Portanto, a autora elabora, a partir dessa construção teórica, a
noção de pedagogia decolonial, ou seja, uma práxis baseada numa
insurgência educativa propositiva – portanto, não somente denunciativa –
em que o termo insurgir representa a criação e a construção de novas
condições sociais, políticas, culturais e de pensamento. Em outros termos,
a construção de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito além
dos processos de ensino e de transmissão de saber, que concebe a
pedagogia como política cultural.
Walsh afirma que essa perspectiva ainda está em processo de
construção, tanto do ponto de vista teórico quanto do da construção de
práticas nos sistemas escolares e em outros âmbitos educativos. Cita como
inspiração e referência para o seu desenvolvimento as formulações e

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práticas educacionais de Paulo Freire, além das teorizações de Frantz


Fanon sobre a consciência do oprimido e a necessidade de humanização
dos povos subalternizados.
No próximo item, discutiremos possíveis relações e
aproximações entre as contribuições da pedagogia decolonial e
intercultural, no contexto das questões raciais na educação brasileira atual.

É possível desenvolver uma pedagogia decolonial,


intercultural e antirracista na educação brasileira hoje?

Para esta análise, propomo-nos ter como ponto de partida o ano


de 1988, que, segundo Silva Jr. (2000), foi um marco para a redefinição do
papel da África na concepção da nacionalidade brasileira. Nesse ano, foi
assegurado, na Constituição - artigos 215 e 242 -, o reconhecimento da
pluralidade étnica da sociedade brasileira e a garantia do ensino das
contribuições das diferentes etnias na formação do povo brasileiro.
Tal reconhecimento de caráter jurídico atende a uma antiga
reivindicação dos movimentos negros, que há anos sinalizavam a
importância da inclusão da história dos negros nos currículos escolares,
assim como o reconhecimento do caráter pluriétnico da nação brasileira.
Essas discussões se intensificaram nos anos 1990, quando o conceito de
afrodescendência ganha força enquanto fator de mobilização social e
categoria histórica definidora de um pertencimento étnico. Ao mesmo
tempo, nesse mesmo período, a categoria cultura, associada a categorias
como identidade e etnia, passa a ser fundamental nas discussões no
campo do currículo e da educação em geral.
Durante os anos pós-promulgação da Constituição, novos e
velhos debates ocuparam o cenário acadêmico e social. Aprofundou-se a
ruptura com o mito da democracia racial e avançou-se para as discussões
no campo das ações afirmativas, com a polêmica acerca das cotas,
principalmente raciais, nas universidades. Além disso, os chamados temas
de interesse dos afrodescendentes adquirem maior visibilidade no
universo das pesquisas acadêmicas em várias áreas do conhecimento.
Nas reformas educacionais dos anos 90, o Ministério de
Educação elabora os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que,
embora criticados por muitos docentes, incorporaram os chamados temas
transversais, entre os quais o relativo à diversidade cultural. Em seguida à
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sua promulgação, as escolas e os professores receberam os PCNs, entre


os quais o da área curricular de História, que destaca a importância social
do conhecimento histórico e, a partir da análise da trajetória do ensino de
história, critica a visão eurocêntrica que instituiu determinado modelo de
identidade nacional. Apresenta ainda, como um de seus objetivos especí-
ficos, a construção da noção de identidade, relacionando identidades
individuais, sociais e coletivas e propondo a apresentação de outros
sujeitos históricos diferentes daqueles que dominaram o ensino dessa área
curricular no Brasil.
É importante ressaltar também que o longo caminho de
reivindicações dos movimentos negros relativos à área de educação dá
origem à Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003, que afirma:

Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinente à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.

A lei provoca inicialmente intensa polêmica: para alguns


significava imposição, para outros, uma concessão. Porém, com a
realização de diversos fóruns estaduais e nacionais promovidos pelo
Ministério da Educação e o empenho de diversos educadores e dos
movimentos negros, os debates sobre o ensino da História da África e dos
negros no Brasil nos currículos escolares vêm conquistando espaços
como uma das formas de luta antirracista mais presente no contexto atual
da sociedade brasileira.
Publicações começam a tomar corpo no cenário acadêmico, em
revistas de divulgação científica e também na mídia. A iniciativa da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)
de formação de um Grupo de Estudos Afro-brasileiros e Educação, a
partir de 2002, a recorrência de artigos nas principais revistas acadêmicas
de educação a partir de meados dos anos 90 e, principalmente, a fundação
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da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, em 2000, são


realidades que se vêm afirmando nos últimos anos. Destaca-se também a
ampliação, principalmente após a publicação da Lei 10.639/03, de cursos
de especialização sobre História da África, relações étnico-raciais e
educação em diversas universidades, assim como grupos de pesquisa e
disciplinas vinculadas a diferentes programas de doutorado e mestrado
que abordam questões vinculadas e essa temática.
Em 2005, é editado o projeto “A Cor da Cultura”, veiculado pela
TV Futura, em parceria com o governo federal, que, através de programas
educativos, contribuiu para divulgar ações e iniciativas de educadores,
escolas e ONGs no campo das relações raciais e da educação, dando
prioridade às metodologias pedagógicas para aplicação das diretrizes
curriculares para a educação das relações étnico-raciais. Cabe destacar que
esse projeto foi desenvolvido por uma equipe de profissionais selecio-
nados junto aos movimentos sociais negros e a diversos especialistas
ligados às principais universidades do país. Como vemos, se vêm
desenvolvendo e afirmando redes envolvendo instituições acadêmicas,
pesquisadores, educadores e movimentos sociais que há anos priorizam
essas discussões.
No entanto, as polêmicas sobre as questões raciais e suas
relações com a educação continuam fortemente presentes na sociedade e
nos universos acadêmicos e pode-se afirmar que os debates incorporam
inclusive certa geopolítica do conhecimento nas disputas sobre a noção de
identidade nacional.
Quando a Lei 10.639/03 foi regulamentada, em junho de 2004,
ela passou a representar mais um passo nas políticas de ações afirmativas
e de reparação para a educação básica. Nos fundamentos teóricos da
legislação, afirma-se que o racismo estrutural no Brasil explicita-se através
de um sistema meritocrático, agrava desigualdades e gera injustiça.
Destaca também que há uma demanda da comunidade afro-brasileira por
reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito
à educação, e que esse reconhecimento requer estratégias de valorização
da diversidade. Além disso, esse reconhecimento passa pela
ressignificação de termos como negro e raça, pela superação do
etnocentrismo e das perspectivas eurocêntricas de interpretação da
realidade brasileira e pela desconstrução de mentalidades e visões sobre a
história da África e dos afro-brasileiros.

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As diretrizes formulam explicitamente uma perspectiva de


políticas de reconhecimento da diferença nos aspectos políticos, culturais,
sociais e históricos, mas também propõem, como obrigatórios, conteúdos
pedagógicos nos sistemas de ensino, que, por sua vez, se caracterizam
enquanto uma perspectiva nada tradicional na educação brasileira.
Nos debates em torno da Lei 10.639/03, podemos observar
algumas semelhanças com as reflexões sobre a colonialidade do poder, do
saber e do ser e a possibilidade de novas construções teóricas para a
emergência da diferença colonial no Brasil e de uma proposta de
interculturalidade crítica e de uma pedagogia decolonial.
Numa leitura atenta das novas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana e do parecer 03 do Conselho Pleno
do Conselho Nacional de Educação, de 10 de março de 2004,
identificamos que, entre os objetivos, estão a garantia do igual direito às
histórias e culturas que compõem a nação brasileira e a afirmação de que
os conteúdos propostos devem conduzir à reeducação das relações
étnico-raciais por meio da valorização da história e da cultura dos afro-
brasileiros e dos africanos.
Essa demanda, destinada aos sistemas de ensino, escolas e
professores, responde às reivindicações de políticas de ações afirmativas,
reparações, reconhecimento e valorização de histórias, culturas e
identidades dos movimentos sociais negros. Busca combater o racismo a
partir do reconhecimento estatal e propõe a divulgação e a produção de
conhecimentos que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico com direitos garantidos e identidades valorizadas.
Por outro lado, o termo reconhecimento implica: desconstruir o
mito da democracia racial; adotar estratégias pedagógicas de valorização
da diferença; reforçar a luta antirracista e questionar as relações étnico-
raciais baseadas em preconceitos e comportamentos discriminatórios.
As diretrizes determinam também algumas condições para sua
realização como: condições objetivas de trabalho para os profissionais da
educação, reeducação das relações entre brancos e negros; ressignificação
dos termos raça e etnia como categorias de análise e no sentido
estritamente político, a superação do etnocentrismo eurocêntrico, a
discussão do tema por toda a comunidade escolar e a perspectiva da
interculturalidade em educação ou, como afirma o documento do CNE,

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“a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens entre


brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças,
projeto conjunto para a construção de uma sociedade justa, igual,
equânime” (BRASIL Parecer do CNE, 2004a, p. 6).
Essas orientações, segundo o texto do CNE, constituem uma
decisão política, com fortes repercussões pedagógicas e que dizem
respeito a todos os cidadãos numa sociedade multicultural e pluriétnica.
Trata-se de ampliar o foco dos currículos para o reconhecimento da
diferença. Mais do que uma inclusão de determinadas temáticas, supõe
repensar enfoques, relações e procedimentos em uma perspectiva nova.
Assim, as noções básicas que fundamentam o texto do CNE
dizem respeito à igualdade entre os sujeitos de direitos e o
reconhecimento dos grupos étnico-raciais. A nova legislação associa
nação democrática com o reconhecimento de uma sociedade multicultural
e pluriétnica, com o objetivo de educar na pluralidade para a intercultu-
ralidade e a valorização das identidades:

A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e


produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que
eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de
interagir e de negociar objetivos comuns que garantam a todos respeito aos
direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da
democracia brasileira. (Brasil, 2004b, p. 01)

O objetivo das Diretrizes é claro. Entretanto, uma questão se


apresenta nas diversas experiências docentes (OLIVEIRA, 2007) e na
literatura acadêmica: como aplicar um dispositivo legal, que traz uma
fundamentação teórica e epistemológica não-eurocêntrica, numa realidade
em que enfoques teóricos e epistemológicos eurocêntricos vêm
tradicionalmente fundamentando a prática de ensino da maioria dos
docentes?
Segundo Pereira (2007), por um lado, há uma disputa
epistemológica quanto à interpretação da história e as perspectivas de
análise social das relações raciais. Por outro, o campo do conhecimento
histórico no Brasil vivencia profundas mudanças interpretativas que ainda
não chegaram às salas de aula.
Nesse sentido, o impasse epistemológico é um dos mais
evidentes, na medida em que os conteúdos propostos pelas diretrizes

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curriculares se encarregam de tentar construir uma nova interpretação da


própria história em geral e do Brasil.
Para Moore (2007) as diretrizes Curriculares Nacionais
estabelecem, por exemplo, algumas determinações de conteúdo no ensino
de história que, além do fato de estarem ausentes nas formações inicias
dos docentes, mobilizam uma reorientação epistemológica da
interpretação da história:

Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia da


miséria e discriminações que atingem o continente, nos tópicos pertinentes se
fará articuladamente com a história dos afrodescendentes no Brasil e serão
abordados temas relativos: - ao papel dos anciãos e dos griots como guardiãos
da memória histórica; - à história da ancestralidade e religiosidade africana; -
aos núbios e aos egípcios, como civilizações que contribuíram decisivamente
para o desenvolvimento da humanidade; - às civilizações e organizações
políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; -
ao tráfico e à escravidão do ponto de vista dos escravizados; - ao papel dos
europeus, dos asiáticos e também de africanos no tráfico; - à ocupação
colonial na perspectiva dos africanos; - às lutas pela independência política
dos países africanos; - às ações em prol da união africana em nossos dias, bem
como o papel da União Africana para tanto; - às relações entre as culturas e
as histórias dos povos do continente africano e os da diáspora; - à formação
compulsória da diáspora, vida e existência cultural e histórica dos africanos e
seus descendentes fora da África; - à diversidade da diáspora, hoje, nas
Américas, Caribe, Europa, Ásia; - aos acordos políticos, econômicos, educa-
cionais e culturais entre África, Brasil e outros países da diáspora. (BRASIL,
Parecer do CNE, 2004a, p. 12)

Segundo este mesmo autor (MOORE, 2007), contar a história


da África é dar um estatuto epistemológico aos povos subalternizados e
deslocar o foco de constituição e dinâmica da própria formação do
ocidente europeu e da nação brasileira.
Essa desconstrução, ainda segundo o autor, pode gerar
confusões e até uma reação conservadora, pois se trata de um profundo
questionamento a uma interpretação histórica hegemônica que perpetrou
uma “rejeição ontológica do outro” (MOORE, 2007).
Outro ponto, nesse aspecto, tem consequências na construção
do conhecimento histórico, na medida em que se propõe:

O ensino de Cultura Africana abrangerá: - as contribuições do Egito para a


ciência e filosofia ocidentais; - as universidades africanas Tambkotu, Gao,

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Djene que floresciam no século XVI; - as tecnologias de agricultura, de


beneficiamento de cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos
escravizados, bem como a produção científica, artística (artes plásticas,
literatura, música, dança, teatro) política, na atualidade. (BRASIL, Parecer do
CNE, 2004ª, p. 12)

Ou seja, falar de contribuição científica e filosófica para o


ocidente ou de tecnologias como a mineração, é de fato desconstruir, por
exemplo, as bases epistemológicas do papel civilizatório dos africanos
escravizados no Brasil. Segundo Costa e Silva (2007), a época da mineração no
Brasil só foi possível devido aos conhecimentos milenares dos africanos
das técnicas de metalurgia, fundição de metais e extração de minérios no
subsolo. Ressalta ainda que até a revolução industrial os europeus não
dominavam com tanta propriedade as técnicas da metalurgia, como
faziam algumas sociedades africanas há milhares de anos.
Portanto, do ponto de vista da construção do conhecimento
histórico, fica evidente que novas interpretações, com base em pesquisas
internacionais recém-publicadas, estão sendo propostas aos sistemas de
ensino e principalmente aos docentes, no que tange à interpretação da
história da humanidade e da constituição da nacionalidade brasileira.
Essas propostas já estão presentes, inclusive, em publicações oficiais do
Ministério da Educação e Cultura: “Em todo o continente e em diversas
épocas, os povos africanos desenvolveram sistemas de escrita e de altos
conhecimentos na astronomia, na matemática, na agricultura, na nave-
gação, na metalurgia, na arquitetura e na engenharia” (NASCIMENTO,
E. L., 2006, p. 33).
Em outra publicação do MEC, Educação anti-racista: caminhos
abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03, uma coletânea de artigos de diversos
estudiosos das questões que envolvem relações raciais e educação e têm
como objetivo “planejar, orientar e acompanhar a formulação e a
implementação de políticas educacionais, tendo em vista as diversidades
de grupos étnico-raciais como as comunidades indígenas, a população
afrodescendente dos meios urbano e rural (...)” (BRASIL, 2005, p. 7),
afirma-se, em nome do Estado brasileiro, que: “A história da espécie
humana se confunde com a própria história da África, onde se originaram,
também, as primeiras civilizações do mundo” (MOORE, 2005, p. 136).
“O novo empreendimento docente preconizado na Lei 10.639/03 não
poderá prescindir da historiografia especificamente produzida por

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africanos, sem ferir gravemente as exigências de rigor e de respeito pela


verdade cientificamente elaborada e demonstrada” (Moore, 2005, p. 158).

Reconhece-se hoje que dentre os principais fatores que fizeram com que os
povos europeus se voltassem para a África e a transformassem no maior
reservatório de mão-de-obra escrava jamais imaginado pelos seres humanos,
estava a tradição dos povos africanos de bons agricultores, ferreiros e
mineradores. (ANJOS, 2005, p. 171)

Como avaliar o impacto da diferença entre o postulado de Hegel


de que a África não possui história, que influenciou gerações de filósofos
e historiadores, e essas descrições históricas transformadas em
orientações para a formação de professores e o currículo de história?
Nas reflexões da literatura acadêmica, principalmente a partir
dos anos 1990, faz-se cada vez mais presente a questão da identidade
nacional e da reescrita das histórias do povo negro no Brasil, possibi-
litando a mobilização do debate sobre a colonialidade do saber, do poder
e do ser, pois a história dos negros no Brasil foi invisibilizada na pers-
pectiva da construção de uma nacionalidade em bases eurocêntricas.
Perguntamo-nos: será que o resgate dessas histórias, numa
perspectiva de políticas públicas de reconhecimento da diferença colonial
– isto é, história da África como elemento condicionador na formação da
nação brasileira e as propostas oficiais de reparações –, pode mobilizar
um projeto de emancipação epistêmica, na perspectiva de produção de
conhecimentos “outros”?
Essas perspectivas se apresentam como possibilidades, já que o
denominado giro epistêmico (TORRES, 2007) é um processo em disputa
que se desenvolve em diferentes espaços, tanto do âmbito estatal quanto
no da academia e dos movimentos sociais.
Nesse sentido, a proposta de uma pedagogia decolonial e de
interculturalidade crítica requer a superação tanto de padrões epistemoló-
gicos hegemônicos no seio da intelectualidade brasileira quanto a afirma-
ção de novos espaços de enunciação epistêmica nos movimentos sociais.
No entanto, entendemos que, apesar do grande avanço das dis-
cussões e dos debates públicos da questão racial negra no Brasil, em torno
do resgate da ancestralidade africana, da reparação, das ações afirmativas,
etc., para a grande maioria dos afrodescendentes no Brasil ainda está
muito presente o mito da democracia racial, que postula a miscigenação

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como uma ordem harmoniosa nas relações raciais brasileiras e estabelece,


silenciosamente, um padrão branco de identidade e a necessidade de se ter
referenciais eurocêntricos para o reconhecimento social e cultural.
Segundo Munanga (1999), a situação do negro é aquela de refém
de um sonho de embranquecimento, de um desejo de fazer aquele passing
em direção à cultura branca. Para esse autor, o negro teve sua identidade
(referindo-se às suas raízes africanas) impedida de se manifestar. A
pressão psicológica sobre ele se estabelece no momento em que toma
consciência de que sua invisibilidade aumenta em razão da cor de sua pele,
da mais clara à mais escura.
Portanto, além de uma luta decolonial de poder e de saber, para
os afrodescendentes a colonialidade do ser é fator relevante nas disputas
epistêmicas no campo educacional. Nesse sentido, a partir do pensamento
de Catherine Walsh (2006), é possível afirmar que as disputas em torno da
Lei 10.639/03 no campo educacional além de apresentarem caráter
epistemológico e político, também se caracterizam como um “projeto de
existência e de vida”.

Concluindo

A partir da análise realizada, concluímos afirmando que os


referenciais presentes na nova legislação possibilitam a abertura a uma
crítica decolonial, na medida em que expõem a colonialidade do saber e,
ao mesmo tempo, propiciam a explicitação da colonialidade do ser, ou
seja, possibilitam a mobilização em torno das questões veladas do racismo
presente nas práticas sociais e educacionais no nosso país.
Outro aspecto que pôde ser evidenciado é o fato de pôr em
discussão, nos sistemas de ensino e no espaço acadêmico, a questão do
racismo epistêmico, ou seja, a operação teórica que privilegiou a afir-
mação dos conhecimentos produzidos pelo ocidente como os únicos legí-
timos e com capacidade de acesso à universalidade e à verdade.
O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-
ocidentais como inferiores. No entanto, atualmente já não é possível
negar a existência de histórias e epistêmes fora dos marcos conceituais e
historiográficos do ocidente. Almejar desenvolver uma reflexão sobre o
ensino de história e suas bases epistemológicas a partir da perspectiva

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“outra” proposta pelo grupo “Modernidade/Colonialidade” requer


operar uma mudança de paradigma como precondição para o reexame da
interpretação da história brasileira. Essa mudança de paradigma implica
também a construção de uma base epistemológica “outra” para se pensar
os currículos propostos pela nova legislação, ou seja, novos espaços
epistemológicos, interculturais, críticos e uma pedagogia decolonial.
Por fim, podemos considerar que a lei 10.639/03 pode criar
condições, dependendo das perspectivas adotadas pelos sujeitos
envolvidos, para o estabelecimento, no contexto educacional brasileiro, de
conflitos, confrontos e negociações epistêmicas, pondo em evidência a
diferença através do pensamento crítico de fronteira, como funda-
mentado por Walter Mignolo, pois essa legislação permite a visibilidade de
outras lógicas históricas, diferentes da lógica dominante eurocêntrica,
além de pôr em debate a descolonização epistêmica.

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Notas
1 Este projeto conta com o apoio do CNPq. No seu desenvolvimento, realizamos ampla
revisão da bibliografia, produzida a partir de 2000 no continente, sobre educação
intercultural, assim como participamos de diferentes seminários, congressos e encontros,
entrevistamos professores/as universitários/as e militantes de movimentos sociais e
organizações não-governamentais de diversos países.
2 Resolução n. 01 do Conselho Nacional de Educação, aprovada em 17 de junho de
2004.
3 Devemos relativizar um pouco esta afirmação de Castro-Gomez, pois essas áreas de
conhecimento não foram totalmente hegemonizadas por uma visão colonialista ou
eurocêntrica.
4 É famosa a afirmação de Hegel de que: “A África não é uma parte histórica do mundo.
Não tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer
isto dizer que sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que
entendemos precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito não
desenvolvido, ainda envolto em condições da natureza e que deve ser aqui apresentado
apenas como no limiar da história do mundo” (HEGEL, 1999, p. 174).
5 Os autores do grupo “Modernidade/Colonialidade” usam frequentemente expressões
como: “pensamento-outro”, conhecimento-outro”, etc. Neste contexto, a palavra
“outro” quer se referir não somente a qualquer perspectiva alternativa, que pode estar
inserida em uma lógica de fundo que não é posta em questão. Quer significar uma
mudança de ótica, de lógica, de paradigma.

Recebido: 04/02/09
Aprovado: 13/07/09

Contato:
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Centro de Teologia e Ciências Humanas
Departamento de Educação
Rua Marques de São Vicente, 225 - Gávea
CEP 22453-900
Rio de Janeiro/RJ

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