Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Critic A
Critic A
Figura 2: Yemonjá (2015). Tambor de mina para Iemanjá: encerramento das festividades da
D. Tereza Légua Bogi Buá – Kwê Mina Dan Axé Bocô Dá-Hô. Fotografia de Marcos Palhano.
o terreiro, vivencia sua religiosidade junto com a família. Um dos motivos que
o levou a fotografar menos foi que, ao passar para o “lado de dentro da co-
munidade”, ou seja, ao ser iniciado, mudou muito a sua relação com as pes-
soas da comunidade religiosa, influenciada muitas vezes por uma “questão de
hierarquia”, conforme afirma o fotógrafo (PALHANO, 2020, p. 171).
Palhano conta que o interesse pelos toques e pela fotografia o motivou a bus-
car o tambor de mina em São Paulo. Segundo o fotógrafo, na religião, cos-
tuma-se dizer que “[…] é o próprio orixá que acaba te levando sem tu saber.”
(2020, p. 169). Ao frequentar a comunidade religiosa, sua fotografia passa a
ser resultado de um processo de observação e de participação mútuas, onde
expressão estética e espiritualidade se misturam e acabam influenciando uma
à outra:
[…] eu acabava indo sempre para fotografar e também por gostar dos toques. Só
que, nesse meio tempo de sempre ir, acabei entrando em alguns transes, o meu
orixá acabava vindo. Era bem interessante, eu estava lá no meio fotografando e
sentia. Uma vez eu até pedi: “Tu pode vir a hora que tu quiser, mas não me der-
ruba com minha câmara na mão, me avisa”. Às vezes eu sentia a presença de
Ogum por perto. Geralmente, quando eu entregava a minha câmara, a pessoa já
sabia que eu não ia mais estar ali, eu sempre fazia isso. (PALHANO, 2020, p. 169).
A partir do meu primeiro transe dentro da casa, passei a fotografar menos, não
dava. É vento, tu não consegue parar o vento. A gente costuma dizer que as en-
tidades são ventos, ora estão aqui, ora estão lá, ora podem estar em São Luís.
Sempre quando eu sentia, passava a câmera para a minha esposa, que estava
próxima. Ao entregar, eu já sabia que eu não ia mais estar por ali. É bem interes-
sante isso. […] Às vezes, me pedem para fotografar, mas eu já não tenho mais o
meu querer quando estou lá dentro, eu perco o meu querer, não depende de
mim. Se Ogum deixar eu fotografar, eu fotografo mas se ele não deixar, não fo-
tografo. Isso porque, se eu virar, ficarei apagado por umas quatro horas. Não de-
pende mais só de mim, acabou tendo uma interferência. (PALHANO, 2020,
p. 169-171).
O ato de passar a câmara mostra-se como um gesto consciente do fotógrafo
prestes a entrar em transe. No entanto, entre o gesto fotográfico e o gesto
religioso, há o posicionamento do corpo, a reação entre o “vento” – invisível –
e o imaginário de Palhano. No momento em que seu corpo é tocado, não há
escolha a não ser abandonar a máquina e passar a ver com outros olhos, os
olhos do orixá, ou seja, outro olhar, afastado da câmera. Destaca-se nesse
momento a distinção entre seu “eu-fotógrafo” e seu “eu-espiritual”, separa-
dos por diferentes compromissos com a imagem (fotográfica) e com a religião.
Figura 3: Atoto Obaluaiê Sapatá (2010). Casa das Minas de Thoya Jarina (Diadema, SP).
Fotografia de Marcos Palhano.
Figura 4: Kwe Mina Dan Axé Boçô Dá-Hô (2014). Série Tambor de Mina do Terreiro Kwe
Mina Dan Axé Boçó Dá-Hó. Fotografia de Marcos Palhano.
As oferendas são dádivas, presentes, ofertas que são feitas com o objetivo de agradar aos orixás. Ao
mesmo tempo são indícios, fragmentos de um encontro sagrado entre o homem e aquilo que o
transcende. Na umbanda e candomblé, as oferendas tem um papel primordial, pois através delas
alcança-se o favor dos orixás. A visão religiosa africana concebe a dinâmica do dar e receber como
meio de troca de axé. Através dessa troca (a oferenda), a harmonia é estabelecida, o equilíbrio entre
céu e a terra - chamados de orum e aiye - é alcançado. As oferendas sacralizam o espaço ao seu
redor e estendem uma ponte até a transcendência, possibilitando a conexão do homem com o
divino. Para as religiões de origem africana, fé e natureza estão imbricadas. Isso nos põe frente à
dificuldade do homem urbano, desprovido de ambientes adequados, em atuar sua crença. As praças,
parques locais e pequenas áreas verdes, tornam-se então cenários sacralizados. Este ensaio
fotográfico descortina também a face estética das oferendas. A presença de alguidares, flores, velas
e outros itens, em meio aos elementos urbanos compõe um quadro de fruição estética, uma
instalação-acontecimento na paisagem da metrópole.
A série do fotógrafo Marcos Palhano chama a atenção por tratar das dinâmicas que envolvem os
ritos de oferta no ambiente urbano, incluindo aí as ações posteriores à entrega. São oferendas que
agora evidenciam as consequências do tempo, intervenções animais e humanas. Atos sagrados
posteriormente maculados por eventos profanos.
Referências:
PEREIRA, André Luiz Bueno. A fotografia como expressão da identidade: o olhar ancestral e a
observacao participante de Marcos Palhano. In: SILVA, Wagner Sousa e (org.). Tecnoimagética:
vida esparramada em superfícies. São Paulo : ECA-USP, 2021.
207 p.
Para acessar o texto original do autor, segue o link
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/666
PEREIRA, André Luis Bueno Alves. Fotografia e Identidades: expressão pessoal e representação
social. 185f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação - Escola de Comunicações e Artes.
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2020.