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Uma palavra de adeus?

Práticas budistas e xintoístas no Japão


NATASHA SELMAN*
Tradução: Eva Paulino Bueno**

Eu abri o meu diário e reli o que tinha escrito no dia 25 de dezembro


de 2001, o dia do funeral da minha amiga e professora Maya Ono:
"Que dia. O sentimento de tristeza e do que eu tinha que fazer me
deixaram agoniada o dia inteiro. Eu fui ao funeral de Maya às três
horas e me encontrei em Jujo, Tokyo, com alguns professores da
escola de japonês. Os aspectos cerimoniais em que eu tinha que
concentrar-me me impediram de dizer adeus à minha amiga, e isso me
deixou com um sentimento de vazio…"

As diferentes culturas não choram e nem conhecimento dos rituais que estavam
enterram seus mortos da mesma forma. tendo lugar à minha volta. Eu sabia que
Nenhuma morte é sentida pela família como uma antiga aluna de Maya,
enlutada de uma forma universal. qualquer faux pas que eu cometesse seria
Nenhuma pessoa, não importando o perdoado, se fosse notado, mas de todas
quanto ela é familiarizada com os rituais formas eu estava bem consciente que eu
da morte da sua própria religião ou tinha um papel a cumprir para marcar o
cultura, ou aquela de outras pessoas, fato desta morte, eu não sabia
pode realmente dizer que não se sente exatamente o que fazer ou dizer. Mas o
desconfortável quando o assunto da meu desejo de entender e explicar se
morte de um ente querido é mencionado. originou do meu desconforto em ser uma
A minha reação, como mulher inglesa pequena parte de um ritual estranho,
indo a um funeral budista da minha feito em uma língua que eu ainda não
jovem amiga japonesa, foi uma mescla tinha dominado. Eu teria sentido o
de tristeza e confusão. A primeira mesmo desconforto participando de um
emoção foi talvez a mais natural, e a enterro cristão no Reino Unido? Não é
segunda foi devido à minha falta de provável. Os japoneses se concentram

* NATASHA SELMAN nasceu e foi criada no Reino Unido. Ela veio para o Japão em 1995 "por um ano",
mas permaneceu feliz e cativada lá desde então. Atualmente, ela ensina Inglês como Língua Estrangeira na
Josai International University, China, Japão.

** EVA PAULINO BUENO, depois de quatro anos trabalhando em universidades no Japão,


leciona Espanhol e Português na St. Mary’s University em San Antonio, Texas. Ela é autora de Mazzaropi,
o artista do povo (EDUEM 2000), Resisting Boundaries (Garland, 1995), Imagination Beyond Nation
(University of Pittsburgh Press, 1999), Naming the Father (Lexington Books, 2001), e I Wouldn’t Want
Anybody to Know: Native English Teaching in Japan (JPGS, 2003).

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mais que as outras pessoas nas minúcias algodão, antes do corpo ser vestido com
do funeral que eles assistem? um terno ou um quimono. Quando o
quimono é usado ele é amarrado na parte
Duvido. De fato, em Ancestor Worship
de trás. Esta é uma das muitas mudanças
in Contemporary Japan, Robert J. Smith
enumeradas por Jane M. Bachnik em
diz que "um aspecto surpreendente do
Ceremony and Ritual in Japan, e que têm
ritual japonês é a frequência com que os
como função fazer quem que o espírito
participantes e os observadores são
do morto tenha um muen botoke, ou que
incapazes de oferecer qualquer
não se lembre do caminho de volta à sua
explicação da cerimônia... Na verdade,
casa, mas que embarque na sua jornada
isto não deveria surpreender... porque,
espiritual. O corpo é então deitado em
afinal de contas, o comportamento ritual
um único futon, ao invés de dois, voltado
e cerimonial participam de um sistema
para o norte, ao invés do sul e leste como
mais amplo de características dentro dos
fazem os vivos quando vão dormir.
quais eles são aprendidos e ensinados..."
Assim que o corpo está vestido, e em
Os japoneses gostam de dizer que eles
alguns casos maquiado, ele é então
nascem na fé xintoísta, se casam como
colocado em gelo seco, porque
cristãos, e morrem como budistas, e que,
embalsamar ainda não é prática muito
embora funerais xintoístas são feitos às
comum no Japão. Isto é feito na casa
vezes, na verdade eles são relativamente
funerária ou na casa da família. É comum
raros. No entanto, ao explorar as práticas
que membros da família passem a noite
funerárias da tradição budista e ao
no mesmo quarto que o morto. Quando
apontar as formas como elas diferem das
chega a hora de colocar o corpo no
práticas xintoístas, eu espero
caixão, vários objetos são colocados
compreender alguns dos detalhes do que
juntos. Estes tradicionalmente incluem
se passou comigo naquele dia de
cédulas de dinheiro para o falecido pagar
dezembro, no funeral da minha amiga.
o pedágio para atravessar o Rio dos Três
Os ciclos da vida japoneses têm um Infernos, e outras coisas de que a pessoa
papel muito importante na sociedade, da gostava durante a vida, tais como sua
primeira visita a um santuário com o marca favorita de cigarros, e doces. Esta
recém-nascido, à cerimônia da passagem prática também é evidente nos locais de
à maioridade quando a pessoa faz 20 desastres de carro no Japão, onde, além
anos, e dali em diante ao casamento, ao dos tributos florais, é comum ver latas de
funeral e além. A passagem do morto à bebidas abertas, e mesmo cigarros,
sepultura é controlada por uma série de algumas vezes acesos e deixados a
passos claramente determinados. queimar no local.
Embora haja uma nomenclatura
Os arranjos funerários não são
diferente para a tradição budista e a
governados por pressa, mas por atenção
xintoísta, as práticas em si mesmas são
à tradição japonesa do rokuyou, ou a lista
bastante similares.
dos dias de sorte e os de azar. Cada dia
Assim que ocorre a morte, o corpo é do ano pode ter uma de seis
lavado. Tradicionalmente esta limpeza, características, que vão de taian, um dia
ou senrei, era feita pelos membros da auspicioso no qual casamentos e outras
família, entretanto atualmente é mais celebrações de alegria em geral são
comum para os assistentes mortuários celebrados, ao butsumetsu, literalmente a
fazerem isso. Depois os orifícios do morte de Buddha, quando funerais em
corpo são fechados com gaze ou geral são celebrados. Fazer um funeral

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durante tomobiki, o chamado "dia da chamado osakakiryou, ou "dinheiro para
trilha" é tabu, porque os caracteres desta um galho da árvore sempre-verde da
palavra na língua escrita japonesa camélia" porque este é o que é oferecido
significa literalmente "levando os ao invés de incenso durante a cerimônia.
amigos juntos". A fim de acomodar estas Isto difere do galho da mesma árvore
crenças, os funerais em geral são feitos usado no funeral xintoísta, porque ele é
no primeiro butsumetsu depois da morte. envolto em papel branco e chamado
Nesta ocasião o caixão, assim como tamagushi, e a oferta de dinheiro é
refrescos para os participantes, e o altar chamada ontamagushiriyou, ou
funerário, são escolhidos. Coroas de "dinheiro para o galho da sempre-verde
flores artificiais em preto e branco, camélia envolto em branco".
chamadas hanawa, são colocadas na Na tradição budista, o velório é
entrada da casa da família ou na casa conduzido por um sacerdote ou souryo,
funerária. Na noite antes do funeral, os que se vira de frente para o altar, faz uma
parentes se juntam para prestar seus mesura, acende o incenso e depois canta
respeitos ao morto no otsuya, ou velório. uma sutra. Quando a sutra está sendo
A não ser que uma pessoa tenha sido cantada os participantes fazem ofertas de
muito ligada ao falecido, ele ou ela não incenso. Esta parte é conduzida de uma
precisa participar do velório e também maneira estritamente hierárquica,
do funeral. começando com os membros mais
Uma área de recepção, em geral com próximos da família do falecido. Um
uma tenda, é colocada na entrada da casa sacerdote chamado shinkan conduz o
da família ou da funerária. As pessoas velório xintoísta de uma forma bastante
que chegam para prestar seus respeitos similar. Entretanto, ao invés de incenso,
primeiro registram seus nomes e depois os participantes do funeral levam galhos
apresentam o dinheiro da condolência. A da sempre-viva árvore da camélia,
quantia desta doação monetária depende chamada sakaki, e a colocam diante do
da relação de proximidade ao morto, altar. Depois da cerimônia, os
embora a soma de vinte mil iens é participantes são convidados a comer e
comum. Em uma grande diferença de beber. Então os membros da família
ofertas em celebração de alegria em que geralmente passarão a noite com o
shinsatsu – cédulas novas – são morto.
oferecidas à família, no funeral notas O serviço funerário é chamado
velhas são dadas, porque notas novas kokubetsushiki na fé budista, ou
poderiam sugerir que a morte tinha sido shinosousai na xintoísta, e é geralmente
planejada ou premeditada. feito no dia depois do velório. Para
Esta oferta de dinheiro é apresentada em ambas cerimônias os homens se vestem
um envelope especial amarrado com em ternos pretos, e as mulheres em
uma fita branca e preta, e a quantia dada vestidos pretos, e não podem usar mais
e o nome do doador são escritos na frente que um colar de pérolas simples. Em um
do envelope. Há alguma diferença entre funeral budista, o altar é decorado com
os nomes dados nestas oferendas nas vários objetos que incluem uma pequena
crenças budistas e xintoístas. Na tradição lápide na qual está escrito o nome que o
budista o dinheiro de condolência é finado adquiriu depois da morte –
chamado okouden ou gokouryo, kaimyou – uma fotografia do finado
literalmente traduzidos como "dinheiro envolta em uma fita preta, e frutas,
de incenso". Um velório xintoísta é doces, velas, crisântemos, uma tigela de

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incenso e um sininho. O altar xintoísta uma última reverência. As palmas não
tem a fotografia do morto e outras emitem som, e são chamadas shinobite.
decorações tais como uma espada ou um No fim de um funeral budista os
espelho, comidas cruas e uma tigela de participantes fazem a referência
água. Na tradição xintoísta o nome pós- enquanto o sacerdote termina a sutra e
morte é chamado reiji, mas serve os sai do templo. Na tradição xintoísta uma
mesmos propósitos do kaimyou: ao oração chamada norito marca o fim da
empregar um nome diferente para a cerimônia.
pessoa morta, se crê que isto impedirá o
A fase final dos rituais funerários tanto
espírito de voltar a cada vez que seu
em budismo como em xintoísmo é a
nome é mencionado. O número de
cremação, porque no Japão,
caracteres usados em um nome pós-
especialmente nas áreas urbanas a
morte tende a ser maior na tradição
porcentagem de cremação é de quase
budista1.
100%. O caixão é transferido ao
A localização do funeral é da maior crematório ou kasoujou em um carro
importância porque, enquanto que na fúnebre ornamentado, e depois é
tradição budista ele pode ser conduzido colocado em uma esteira rolante
em um templo, ou otera, em casa ou num conectada com o forno. Nesta altura, a
salão de cerimônias, o funeral nunca é chave da porta do crematório em uso é
conduzido em um santuário xintoísta, o dada a um membro da família do morto,
jinja, porque a fé xintoísta detesta a e eles recebem instruções de quando
poluição e seus santuários são devem voltar para receber os restos. A
considerados sagrados e puros, e, família retorna a sua casa ou à casa
portanto, não deve ser manchado pela funerária e todos fazem uma refeição
morte. juntos. Quando é hora de voltar para
Assim como no caso do velório, o buscar os restos mortais, eles são
sacerdote budista começa a cantar uma devolvidos à família durante uma
sutra e dentro de alguns momentos cerimônia chamada kotsuage, que
oferece incenso mais uma vez. Os significa literalmente "levantar os
participantes carregam o jyuzu, ou o ossos". Cada pessoa presente usa
rosário budista. Então, os participantes pauzinhos longos para remover os ossos,
se levantam e juntos vão até a urna com e dois membros da família pegam o
o incenso, colocam suas mãos juntas em mesmo osso juntos e o colocam na urna
oração (gasshou) e então fazem uma juntos. Esta parte tem que ser feita em
reverência. Cada participante pega uma perfeita ordem, os ossos dos pés antes do
pitada do incenso, leva até a testa, e crânio, e uma grande importância é dada
depois coloca em uma urna preparada ao nodobotoke, ou o pomo de Adão, que,
para este propósito. Como regra geral, se acredita parecer com a forma do
isto é feito três vezes. Em um funeral Buddha, sentado em meditação. O pomo
xintoísta os participantes carregam um é colocado diretamente sob o fragmento
galho da sempre-viva camélia do crânio.
embrulhado em papel (tamagushi) e Quando se completa o rito do kotsuage,
levam até o altar. Onde o participante a urna ikotsu é embrulhada com um pano
budista junta as mãos em oração, o branco e retornada à casa da família,
xintoísta faz o que é conhecido como onde ela permanece até ser enterrada no
nirei nihakushu ichirei: faz duas trigésimo-quinto dia, ou mesmo até o
reverências, bate palmas duas vezes e faz serviço memorial dos 49 dias, chamado

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shijukunichi, no túmulo da família. Os Jisei nado
costumes associados com o dia do Zansetsu ni ka mo
enterro próprio variam de região a Nakarikeri
região. (Bokusai)
Depois destas cerimônias, o falecido é Uma palavra de adeus?
lembrado nos serviços memoriais A neve que se dissolve
chamados hoji. É costume de os Não tem perfume.
japoneses visitarem os túmulos de seus
ancestrais durante o período de obon, na Este poema, que reúne a simplicidade e a
metade de julho ou agosto, no força dos melhores haicais, me ajudou a
aniversário da morte, e durante as compreender o que senti, do vazio, da
semanas do equinócio de inverno ou incompletude, depois do funeral de
outono, um período de tempo chamado minha amiga Maya Ono. Algumas dores
de ohigan. Um pequeno altar ou não podem ser facilmente expressas,
butsudan na casa da família é estocado assim como é impossível descrever o
com ofertas ao morto, em alguns lugares perfume da neve se dissolvendo.
diariamente, em outros somente em
ocasiões especiais. Se o morto é visto
como alguém que deixou este mundo e Referências
agora se encontra na Terra Pura como Alldritt, Leslie D. ‘The Burakumin: The
discípulo de Buddha, a família reza por Complicity of Japanese Buddhism in Oppression
ele para que atinja o status de Buddha, and an Opportunity for Liberation (First Part)’,
from The Burakumin Liberation News
ou, na tradição xintoísta, os mortos são (September 1996, no. 92):10.
venerados como guardiães da família ou
Bachnik, Jane M. ‘Orchestrated reciprocity:
deuses familiares, os rituais que Belief versus practice in the Japanese funeral
subsequentemente ligam o morto aos ritual’, in Jan van Breman and D.P. Martinez,
vivos são parte integral da sociedade (eds) Ceremony and Ritual in Japan: Religious
japonesa.2 Practices in an Industrialized Society, London:
Routledge, 1995. 122 -123.
Para terminar esta apresentação dos ritos
Smith, Robert J. "Foreword: the eclipse of the
funerários do Japão, quero registrar aqui CommunalRitual in Japan". In: Yamamoto
um haicai sobre a morte, de autoria de Yoshiko, The Namahage: A Festival in the
Bokusai, que eu encontrei durante a Northeast of Japan. Philadelphia: Institute for the
pesquisa para este artigo: Study of Human Issues, 1978. 1-8.

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Em um interessante detalhe histórico, a Human Rights Research Institute, diz que até os
pesquisa mostra que no caso dos burakumin, ou anos 40, "Os nomes [dos Burakumin mortos]
"intocáveis" do Japão, estes nomes pós-morte incluem ideogramas que significam ‘besta,’
eram algumas vezes usados para discriminar ‘humilde,’, ‘ignóbil,’ ‘serviçal,’ e muitas outras
contra o morto. Em um artigo sobre a formas de palavras derrogatórias."
discriminação contra os buraku e o budismo, uma 2
A autora agradece a Noriko Abe por sua ajuda
edição do Buraku Liberation News, uma
na pesquisa para escrever este artigo.
publicação bimensal do Buraku Liberation and

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