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A Produção Do Sentido Na Leitura Genero e Intencionalidade
A Produção Do Sentido Na Leitura Genero e Intencionalidade
In: MARI, Hugo; WALTY, Ivete; FONSECA, M. N. S.. (Org.). Ensaios sobre leitura 2. Belo
Horizonte: Editora PUC Minas, 2007, v. , p. 11-53.
1. Observações iniciais
Produção do
sentido
Processos Produtos
informação
Fonéticos: prosódicos
Morfológicos: regras verdade
Sintático: relações crítica
sintagmáticas... humor
Semânticos: relações ironia
lexicais... deboche
Processos enunciativos mentira
...
A grande questão que pode ser posta aqui é o tempo que devemos dispor para
colocar uma dada estratégia em funcionamento ou para descartá-la a priori.
Talvez pudéssemos admitir a hipótese de que há estratégias que são acionadas
no instante inaugural da leitura e outras que são inseridas ao longo do seu
processo, no momento em que as atuais se tornam debilitadas diante da
complexidade dos sentidos do texto. Como hipótese, resta indagar sobre a
extensão em que podemos dispor ou não de estratégias apriorísticas: – Será
que dispomos de estratégias a priori para ler um poema? Ou para ler um
anúncio publicitário? Ou para ler a ata de uma reunião? Ou para ler um
editorial de jornal?
Produção do
sentido
Leitura
Condições Condições que
que operam operam com
com a língua outros sistemas
A priori A posteriori
E.S
O esquema acima procura mostrar o percurso do leitor, por algumas categorias
conceituais, como forma de alcançar algum tipo de efeito de sentido [ES].
Inútil dizer que a leitura de nenhum texto está circunscrita apenas a esse
percurso, já que ele representa apenas uma dimensão dos efeitos que podem
ser apurados ou justificados por categorias que operam na língua. Neste texto,
vamos destacar apenas aquelas que estão sendo indicadas no esquema,
admitindo que gênero possa funcionar como matriz a priori para a percepção
de certos efeitos de sentido, enquanto enunciação e intencionalidade devam
ter a mesma funcionalidade, mas numa dimensão a posteriori.
Vamos avaliar com mais detalhes, porque podemos considerar uma diferença
no acionamento de certos mecanismos no processo de leitura. Antes de tudo, é
preciso salientar que a mobilização de mecanismos é uma condição necessária
para a leitura, ou, pelo menos, uma condição de agilização no processo de
obtenção dos sentidos de um texto. Ao iniciar, diariamente, a leitura de um
jornal, deparamos com uma extensão muito grande de gêneros e sub-gêneros
discursivos. Transitamos com facilidade entre reportagens e editoriais; entre
artigos de opinião e crônica, entre entrevistas e resumos de entrevistas, entre
cartas de leitor e publicidade, entre tirinhas e charges, enfim entre tantos
outros contrastes que pudermos construir, assumindo-os como uma estratégia
de decifração de sentido. Por exemplo, ao dispor a priori do gênero
reportagem como estratégia de leitura, criamos a expectativa da descrição de
um acontecimento, recheado de detalhes informativos sobre pessoas, lugares,
objetos diversos, sobre o tempo de ocorrência, sobre relações causais, sobre
medidas tomadas etc; quando dispomos do gênero editorial, acionamos
estratégias para compreender avaliações críticas, julgamentos, tomada de
posição frente a determinado fato. Os dois procedimentos são assumidos
aprioristicamente, pois o formato físico da peça, a sua localização no suporte,
a forma de identificação de autoria, se for o caso, tudo isso já indica para o
leitor uma certa orientação de expectativa para assumir a matriz de um
determinado gênero. Podemos sintetizar o exposto acima no seguinte
esquema:
Gênero
Editorial Reportagem
Texto
Texto [natural] Texto [n-natural]
Sentido Sentido
Sentido intencional
convencional intencional
Lexicais Sintagm.
1 2 3 4 5 6
Aplicações pragmáticas ulteriores
Nem (1) nem (2) para serem lidos vão depender de alguma forma de rearranjo
do código: aqui valem para a sua leitura as relações padrões da língua e ao
leitor cabe a tarefa de entender os objetos que figuram nos textos - biografia,
líder chinês, Mao Tse-tung, esboços, Rio, Debret...-; a natureza das relações
formuladas entre eles - [retratar (biografia), (líder chinês)]; [ser sádico (Mao
Tse-tung)]; [fazer (Debret), (esboços do Rio)]; [reunir (livro), (esboços)]. Por
essa razão, julgamos serem as manchetes acima, na dimensão proposta, uma
leitura de teor puramente convencional, já que o seu sentido pode ser
alcançado por meios convencionais, na dimensão aqui apontada.
Nos exemplos (3), (4) e (5), encontramos uma situação diferente da anterior:
seria pouco provável supor que a existência dessas frases não seja uma forma
1
Existem outros mecanismos que interferem nos processos de leitura não-convencionais que não aparecem
aqui especificados, mas que se diluem por todos esses parâmetros. Seria importante destacar, ao menos, dois
que mostram esta característica: (a) a escolha de certos itens lexicais determinada por sua forma significante;
(b) a escolha de certos itens lexicais mapeada a partir de contrastes, inferências que tenham uma relação direta
com significados distribuídos pelo texto. Ao final do texto, faremos um comentário específico sobre esses
fatos.
de provocar no leitor desafios que estariam implicados nos parâmetros (c), (d)
e (e) acima. As frases perderiam o seu potencial de gerar efeitos de sentido se
não fossem lidas levando em conta as possibilidades que estes parâmetros
oferecem. Assim, (3) disponibiliza efeitos de sentido que seriam engendrados
a partir da dimensão polissêmica de droga – [So1: jogador ruim]; [So2: tipo
de entorpecente] – e craque – [So1: jogador muito bom]; [So2: tipo de
entorpecente]. Por sua vez, (4) implica um outro desafio para o leitor: a
reconstrução de relações sintagmáticas possíveis. Pode-se ler (4) com a
recomposição dessas relações, considerando-se a primeira ocorrência do termo
peça e a do termo a, a saber: {N: peça Prep: a > [So: enumeração de tipos
de mecanismos]}; {V: peça Art: a > [So: pedido de um tipo de
mecanismo]}. Por último, é possível pensar que alguém pudesse ler (5) sem
supor o seu intertexto Freud explica, se não o conhecesse, mas é evidente que
a frase é construída para permitir o seu mapeamento neste intertexto e gerar
um efeito de sentido assegurado socialmente pelas dificuldades de explicação.
Aqui estaríamos diante de leituras que geram efeitos de sentido por meios
intencionais.2
2
Considerando exemplos desta natureza, outros serão ainda analisados mais à frente, não nos parece
descabido, como geralmente tem sido afirmado, perguntar sobre a intencionalidade do autor (de algum autor).
Por acaso, essas frases não teriam, em sua origem, uma intencionalidade que prevê a exploração de efeitos de
sentido na dimensão apontada? Se a resposta for afirmativa (e em alguma extensão ele deve ser), que crime
haveria em perguntar sobre a intencionalidade do autor?
3
Reportamos com essa afirmação a um texto de Barthes que aponta um problema semelhante para aquilo que
discute como sentido conotativo: “Ideologicamente, por fim, este jogo assegura vantajosamente ao texto
clássico uma certa inocência; dos dois sistemas, denotativo e conotativo, um deles evidencia-se: o da
denotação; a denotação não é o primeiro dos sentidos, mas finge ser; sob tal ilusão, ela não é, finalmente,
senão a última das conotações (aquela que, simultaneamente, parece inaugurar e fechar a leitura) ...” (Barthes:
1977).
É provável que algumas formas de efeito de sentido sejam produzidas por
meios intencionais de modo mais corrente. Pode ser que elas tenham a sua
eficiência assegurada por se constituir em uma forma não-direta de gerar
efeitos de sentido. Nada impede, porém, que outras tenham, na dimensão do
convencional, uma forma mais eficaz de gerar esses efeitos. As placas de
sinalização, as bulas de remédio e qualquer outro tipo de mensagem que
sinaliza perigo para as pessoas devem ter a pretensão de uma imediatez de
sentido. O tempo gasto para dar conta da intencionalidade numa placa
rodoviária pode nos levar ao abismo. Por fim, as práticas de linguagem
parecem exigir de nós um trânsito eficaz por essas duas dimensões de sentido,
sem que seja possível, a priori, assegurar que sentidos se obtêm por um ou
outro meio.
Texto 1:
De textos naturais, como vimos acima, em geral derivamos uma leitura com
um sentido convencional, em razão de serem os efeitos de sentido dele
decorrentes uma combinação entre propriedades lexicais canônicas e relações
sintagmáticas. Todavia, mesmo para textos naturais para os quais uma
instância de leitura pode ser obtida por meios convencionais é possível que
aplicações pragmáticas possam reverter este processo, constituindo efeitos de
sentido intencionais. Uma aplicação pragmática capaz de reverter um processo
de compreensão do sentido de um texto para uma dimensão intencional
fundamenta-se na existência de vestígios disseminados no texto. É o que
pretendemos mostrar no texto seguinte:
Texto 2:
A porca
4
Diferentemente de Eco que distingue conhecimento enciclopédico – conhecimento sobre os objetos do
mundo - de conhecimento lingüístico – conhecimento sobre os fatos da língua -, estamos abandonando esta
distinção e admitindo que algum conhecimento que o falante tem de um objeto do mundo como ONU já se
mostra incorporado na língua. Por exemplo, a personificação do termo não é apenas um conhecimento do
mundo, já que grande parte das predicações que usamos para pessoas, por um ajuste metonímico, podemos
usar para ONU: A ONU pensa, julga, solicita, proíbe, faz papel de palhaço ...
Perceba a perfídia de uma burguesia
de seu olho vesgo. cuspida e escarrada.
Sob a banha troncha Enquanto deglute
eis a carnadura, iguaria rara,
Controlando o gesto se esquece, a megera,
de sua impostura. de livrar a cara.
Quase não se move, Para sua gula
fardo da gordura. não existe limite
Na água, na lama, quanto mais devora
ela se refresca. maior o apetite.
Inventa sua cama
pra curtir a sesta. Quem engorda a porca?
Dormir e comer - Milhões de sem-nada.
é o seu ofício. E a bicha no ponto
No ócio resume de ser devorada.
prazeres e vício. O forno está quente,
E vai engordando a lenha, queimada.
essa enorme lesma. O jantar de hoje:
Não percebe o mundo, uma porca assada.
centrada em si mesma.
Texto 3:
Cada uma das frases tem uma dimensão intencional pela exploração que é
feita da polissemia de certos termos. No exemplo (a), podemos descrever o
termo papel da seguinte forma (entre outras possibilidades):
Texto 4:
Texto 5:
A Baposa e o Rode
Millôr Fernandes
Por um azino do destar, uma rapiu caosa, certo dia, num pundo
profoço, do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando,
algois tum depempo e vosa a rapendo foi mordade pela curiosidido.
"Comosa rapadre" -- perguntou -- "que ê que vocé esti faza aendo?".
"Voção entê são nabe?" respondosa a mapreira rateu. "Vem aí a
mais terrêca sível de tôda a histeste do nordória. Salti aquei no foço
dêste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Mas, se vocér
quisê, como e mau compedre, per me fazia companhode". Sem
pensezes duas var, o bem saltode tambou no pundo do foço. A
rapaente imediatamosa trepostas nas coulhes, apoifre num dos xides
do bou-se e salfoço tora do fou, gritando: "Adrade, compeus".
MORAL: Jamie confais em quá estade em dificuldém.
FOPOS DE ESÁBULA
Palavra-1: xx Palavra-2: yy
língua
Regra raposa, azar, poço bode, destino, profundo
básica
Palavra-1a: xy Palavra-2a: yx
texto
rode, azino, pundo baposa, destar, profoço
Texto 6:
Texto: 7
Alegria contagiante
Doença epidêmica transmite-se pelas antenas de
televisão. Os principais agentes transmissores são os
mosquitos, o Gugu Liberato e o Sérgio Mallandro.
Poucos minutos depois de ligar o aparelho, o paciente
começa a sentir coceira e uma profunda irritação. Essa
doença não tem cura, mas mesmo assim, os médicos
recomendam ferver a televisão.
Texto
Esses dois campos são associados no texto através de termos que permitem
certa transição entre si: assim podemos destacar contagiante, transmitir e
agentes transmissores que serão responsáveis por metaforizar um dos campos
semânticos em detrimento do outro. A função da intencionalidade é, então,
dirigir esta metaforização para um dos campos e é o que acontece quando,
fazemos migrar os termos do campo das doenças para o da televisão,
propiciando um efeito de crítica à televisão, assumida em seu caráter de
doença epidêmica. Esta assunção do campo semântico da televisão dos termos
de doença justifica, em conseqüência, o ajuste que devemos fazer: (a) para a
expressão ferver a televisão, isto é, o de metaforizar o termo ferver - e não
televisão – que assume o sentido de purificar, descontaminar, higienizar; (b)
para o título alegria contagiante, que representa uma síntese dos dois campos
semânticos, justificada pela migração que foi acima proposta. Nesta dimensão
é que estamos afirmando que os efeitos de sentido aqui produzidos – crítica à
televisão – não foram obtidos por meios convencionais, mas por meios
predominantemente intencionais.
Referências:
PLANETA DIARIO