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LINGUÍSTICA

AVANÇADA

Debbie Mello
Noble
Priscilla Rodrigues
Simões
Laís Virginia Alves
Medeiros
Revisão técnica:

Laís Virginia Alves Medeiros


Mestra em Letras – Estudos da Linguagem:
Teorias do Texto e do Discurso
Bacharela em Letras – Habilitação Tradutora:
Português e Francês

N747l Noble, Debbie Mello.


Linguística avançada / Debbie Mello Noble, Priscilla
Rodrigues Simões, Laís Virginia Alves Medeiros ; revisão
técnica: Laís Virginia Alves Medeiros. – Porto Alegre :
SAGAH, 2017.
146 p. : il. ; 22,5 cm.

ISBN 978-85-9502-144-0

1. Linguística avançada. I. Simões, Priscilla Rodrigues.


II. Medeiros, Laís Virginia Alves. III. Título.

CDU 81’33

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094

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Marcas discursivas
do sujeito
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer a implicação da noção de sujeito e sentido, na teoria do


discurso, para a análise das marcas discursivas.
 Analisar o funcionamento das formações imaginárias de Pêcheux
(1997) em análises discursivas de exemplos.
 Identificar marcas do posicionamento do sujeito em relação à deter-
minada formação discursiva.

Introdução
Para tratar deste tema, você deve observar que a categoria de sujeito, nas
teorias linguísticas, é elaborada por uma teoria específica, a Análise de
Discurso (AD) – ela é a linha de estudos que atenta para o papel constitu-
tivo do sujeito em relação aos discursos que circulam socialmente. Sujeito
e sentido constituem-se juntos, conforme Pêcheux, pois só é possível
interpretar a partir da materialidade discursiva, ou seja, no momento em
que um discurso é produzido. Na teoria discursiva não há como afirmar a
neutralidade de um sujeito em relação ao que diz, pois sempre restarão
marcas discursivas que determinam a posição do sujeito em relação ao
que ele diz. Também não há como se pensar em total controle do sujeito
sobre aquilo que diz, pois a AD também trabalha com um sujeito dotado
de inconsciente, ou seja, não totalmente consciente de tudo o que faz e diz.
Outra noção que não pode ser pensada a partir dessa teoria é a liber-
dade do sujeito, pois o sujeito sempre fala de um lugar social específico
que determina sua filiação ideológica. Desse modo, sempre há marcas
que podem ser intradiscursivamente ou interdiscursivamente relacio-
nadas ao sujeito, marcas essas que serão encontradas na materialidade
do discurso. Neste texto, você vai conhecer alguns exemplos de como
analisar discursos em busca das marcas discursivas do sujeito.

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Sujeito e sentido na análise de discurso


A noção de sujeito na análise de discurso, proposta por Pêcheux, trata-se de
um lugar determinado na estrutura de uma formação social, ou seja, a categoria
do sujeito só existe no âmbito social. Pêcheux (1997, p. 164), ao propor “[...]
uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica) [...]”, lembra-nos de
que o sujeito é também dotado de inconsciente. Essa característica faz com
que ele atue sob duas ilusões: ser a fonte de seu dizer e ser responsável pelo
que diz, isto é, todo o sujeito imagina que o que diz se origina em si mesmo
(pela sua vontade de dizer algo) e que somente a ele pode ser imputada a
responsabilidade pelo seu dizer. No entanto, sob a perspectiva discursiva,
não há sujeitos autônomos que fazem escolhas de acordo com sua vontade, a
determinação da vontade é pura ilusão, pois todo o sujeito está submetido à
ordem ideológica e ao inconsciente.

Henry (1997) diz que sujeito e sentido constituem-se mutuamente, indicando, assim,
que o sentido não está no sujeito, mas na relação entre o discurso do sujeito e outros
discursos oriundos da formação discursiva (FD) com a qual o sujeito se identifica. Essa
identificação está presente no jogo dos imaginários, processo em que o sujeito atribui
a si e ao seu interlocutor o lugar social que cada um ocupa em relação à sociedade
em que estão inseridos. Não há, portanto, um sujeito intencional que decide sobre
seus atos de forma livre e individual, mas um sujeito constituído no corpo social, que
age de acordo com a ideologia que o determina.

Segundo Orlandi (2002, p. 49), o sujeito do discurso tem essa peculiaridade


de, ao mesmo tempo, ser sujeito de e estar sujeito a. Ao dizer que o sujeito é
sujeito de a autora está se referindo ao desejo inconsciente que o constitui, e
estar sujeito a representa a submissão desse sujeito à ideologia através de sua
relação constitutiva com a língua e com a história, pois ele “[...] é afetado por
elas [...]” ao produzir sentidos. Assim, nessa teoria, não temos nem a hipertrofia
do sujeito, caracterizada por concepções que consideram o sujeito centrado,
inteiro; nem sua completa submissão, pois ele não é só reprodutor de sentidos
na medida em que é capaz de alterar sentidos e produzir o novo.

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Marcas discursivas do sujeito 119

As “formações imaginárias” em Pêcheux


Pêcheux (1997, p. 82) vai buscar na teoria lacaniana do imaginário fundamento
para descrever o funcionamento da produção de sentido sobre os discursos,
ele afirma: “[...] o que funciona nos processos discursivos é uma série de
formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um
a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do
outro [...]”. Neste jogo das formações imaginárias (conforme você pode ver
na Figura 1), o sujeito é levado a acreditar que o que diz é seu, ou seja, que
é senhor do seu próprio dizer. Assim, ele é levado a ocupar o seu lugar em
um dos grupos ou classes de uma determinada formação social. A ideia de
liberdade, portanto, trata-se de uma “ilusão” necessária para que o sujeito não
perceba seu assujeitamento ideológico.

Figura 1. Jogo dos imaginários.


Fonte: Sousa (2012, p. 64).

Na tirinha da Turma da Mônica, apresentada na Figura1, você pode ver


como se dá o jogo dos imaginários que Pêcheux elabora para mostrar como
o sujeito sempre enuncia a partir da imagem projetada do seu interlocutor.
No primeiro quadrinho da tira, a personagem Mônica parece estar feliz, pois
expressa um sorriso e, também, um pouco envergonhada devido ao que tem
a dizer para o personagem Cebolinha. Podemos entender que essa atitude,
bem como a escolha das palavras “certas” para formular seu discurso nessa
situação, se sustentam na expectativa de Mônica sobre a possibilidade de
Cebolinha sentir ciúmes dela, caso ela namorasse com outro garoto, pois, no
seu imaginário, Cebolinha poderia ocupar a posição de namorado dela.
No entanto, no segundo quadro da tirinha, a expressão facial de Mônica
muda totalmente para uma expressão de frustração ou indignação, que se dá

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diante da reação de Cebolinha que foi contrária àquela esperada por ela. Em
vez de lamentar a possível “perda” de Mônica para outro menino, lamenta
pelo suposto menino, demonstrando que ele sequer pensava na possibilidade
de ocupar a posição de namorado de Mônica, até mesmo porque revela em seu
discurso que essa seria uma condição que o deixaria “tliste”. A frustração da
personagem é tão evidente que ela sequer responde a Cebolinha, o que pode
indicar que a reação dele foi totalmente inesperada em relação ao sentido que
Mônica pretendia produzir com seu dizer, isto é, provocar ciúmes no amigo.
Nessa breve análise foi explicitado um dos modos de funcionamento do jogo
dos imaginários, a partir do qual o sujeito enuncia produzindo projeções de
seu interlocutor que nem sempre correspondem ao esperado, como aconteceu
com a personagem Mônica. Conclui-se, assim, que não há determinação do
sujeito sobre o sentido de seu dizer, pois ainda que possa ser formulado de
acordo com o suposto sentido que se pretende produzir, não há garantias que
o efeito de sentido produzido corresponda àquele idealizado pelo sujeito que
enuncia. A produção de sentido de um discurso depende sempre do outro que
o interpreta, e não somente daquele que o profere.

Marcas discursivas
Pode-se dizer que buscar as marcas discursivas do sujeito em uma discursivi-
dade específica é fazer uma análise do modo como quem produz um discurso
está se posicionando em relação àquilo que é dito/escrito. Na prática de análise
discursiva, costuma-se perguntar: como foi possível que determinado discurso
viesse a ser produzido? Especificamente, busca-se saber quem produziu esse
discurso e qual sua posição em relação ao tema tratado, a quem foi dirigido
este discurso e por quê, em que condições sociais e históricas este discurso
foi produzido e qual é a relação entre este discurso e a formação ideológica
dominante da sociedade na qual ele circula.
Essas e muitas outras questões podem ser feitas de uma perspectiva discur-
siva, dependendo da investigação que o analista pretende produzir sobre um
discurso tomado como objeto. Você deve lembrar que cada analista só pode
analisar aquilo que lhe inquieta ou motiva enquanto sujeito e, por isso, um
mesmo discurso analisado por diferentes sujeitos (com diferentes perguntas
e motivações) também pode ser interpretado de maneiras distintas. Nessa
teoria, não há nem o primado do sujeito nem o primado do sentido, isto é,
nem o sujeito e nem as linguagens são determinantes para a produção de um
sentido exato, ou correto, tudo depende do ponto de vista de quem empreende

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a análise e das leituras que esse sujeito será capaz de mobilizar sobre o objeto
discursivo. Sobre a relação entre sujeito e sentido, lemos em Henry (1997, p.
139-140) que:

Enunciar que a apropriação do conceito [...] implica uma noção de forma-


-sujeito equivale a fazer do sentido um efeito ao mesmo tempo ideológico
e subjetivo. Considerar assim o sentido indica que ele não pode estar
relacionado com a forma-sujeito “indivíduo-sujeito”, ser procurado nas
palavras, no texto ou no discurso de um indivíduo, mas na relação desse
texto [...] com outros textos, outras palavras, outros discursos, relação na
qual esse sentido se constitui enquanto efeito ideológico. Ao mesmo
tempo, essas relações com outros textos [...] não se dão com quaisquer
textos.

O sentido, portanto, como efeito ideológico, não seria originado por um ato
individual de utilização da língua por um sujeito para expressar determinado
sentido que lhe convém. A interpretação de um texto, de palavras, ou imagens
utilizadas por um sujeito na formulação de seu discurso será feita por outro
sujeito, que, neste processo de produção de sentido, deve perceber a relação
mantida entre esse discurso com outros textos, palavras ou discursos que
com ele dialogam e que podem estar, ou não, inseridos na mesma formação
discursiva (FD).
Nos estudos enunciativos, fala-se sobre a “função responsiva” do discurso,
para indicar que todo o discurso está inserido em uma cadeia de discursos
que o antecederam e que ajudam a situar um discurso em relação ao sentido
que sobre ele pode, ou deve ser produzido. Na teoria do discurso, esse fun-
cionamento é teorizado por meio da noção de ordem do discurso, que seria
uma continuidade de discursos que se encadeiam sem um limite final ou
início definido.
Se pensarmos nos variados gêneros discursivos (orais, escritos e não ver-
bais), é possível lembrar que eles têm uma estrutura própria que já indica seu
modo de interpretação. Uma notícia de jornal, por exemplo, responde a um
padrão que determina o tipo de linguagem, as informações e o modo narrativo
que serão empregados em sua formulação, pois são previamente determinados
(social e historicamente). Assim, também ocorre com uma receita médica,
cujo texto deverá versar sobre a prescrição e a posologia de determinado
medicamento, utilizado como tratamento de um problema de saúde específico
e para um sujeito específico. O texto narrativo, o poema, a carta, a piada, o
recibo, o artigo científico e tantos outros gêneros de discursos trazem, em sua

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estrutura, marcas que situam o sujeito, tanto sobre o modo de apresentação


ao qual deve obedecer sua formulação como ao modo de interpretação mais
apropriado para determinado gênero de discurso.
Observe a tirinhas da Turma da Mônica, nas Figuras 2, 3 e 4, e relembre
o que leu até aqui sobre as marcas discursivas do sujeito.

Figura 2. Magali.
Fonte: Sousa (2012, p. 19).

Na tirinha, que intitulamos Magali, temos uma ação que é marcada pela
expressão facial da personagem Mônica, desde o primeiro quadrinho, que passa
de tranquila para preocupada e, depois, surpresa. No terceiro quadro, Mônica
revela verbalmente sua angústia à Magali – que permanece serena ao longo
de todos os quadros. Não só o que Mônica diz em seu discurso, mas também
o modo como ela diz, com expressão de surpresa, indicam que ela atua sobre
o pré-construído de que Magali não é capaz de passar dois quadrinhos sem
comer. Essa expectativa de Mônica se deve à característica mais marcante
da personagem Magali, que é ser uma menina comilona e, por isso, aparecer
comendo nos quadrinhos é uma regularidade que reforça essa característica.
O humor, entretanto, não se dá a partir da frustração da expectativa de Mônica
pela atitude de Magali nos dois primeiros quadrinhos, ao contrário, no mesmo
momento em que Mônica expressa sua aflição, Magali aparece comendo um
sanduíche, confirmando a expectativa da amiga e levando o leitor a reconhecer
a marca característica de Magali nas histórias da Turma da Mônica: estar
sempre comendo.

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Figura 3. Cascão.
Fonte: Sousa (2012, p. 56).

Na Figura 3, que intitulamos Cascão, as amigas Mônica e Magali imaginam


à qual raça de cachorro gostariam de pertencer, caso fossem cachorros. Ao
verem o personagem Cebolinha, elas supõem jocosamente também uma raça
para ele, a partir da identificação com seu cabelo. No entanto, ao se referirem
ao Cascão, não expressam verbalmente a raça que elas estavam atribuindo a
esse personagem, pois, a partir da atitude de Cascão (que aparece mexendo
em uma lixeira) tanto as amigas como o leitor podem interpretar que a raça
atribuída ao Cascão seria a de vira-lata (expressão comumente utilizada para
se referir a animais sem uma raça definida). Note que essa interpretação só
é possível por meio do reconhecimento de uma regularidade discursiva do
personagem Cascão, que é a aversão à água.

Figura 4. Mônica.
Fonte: Sousa (2012, p. 51).

Na Figura 4, que intitulamos Mônica, a personagem sorridente dirige a


um espelho a reiterada pergunta dos contos de fadas no primeiro quadrinho.

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A resposta do espelho, no segundo quadrinho, leva à mudança de expressão


facial e corporal de Mônica, que parece incomodada com o imaginário do
espelho sobre ela. No entanto, advertindo-a de que “[...] dá azar quebrar espe-
lhos!”, o espelho retoma uma marca da personagem: reagir de forma violenta
sempre que é contrariada. A advertência também indica que a resposta do
espelho não coincidiria com a expectativa de Mônica ao lançar a pergunta.
Ao mesmo tempo, essa resposta, junto à reação de Mônica de não reconhecer
um traço característico de sua subjetividade, a agressividade, geram o efeito
de humor da tirinha.
Note que cada personagem da Turma da Mônica é caracterizado de modo
a se diferenciar dos demais, mas personagens de histórias em quadrinho
não têm uma existência na realidade empírica, sua existência é ficcional,
embora suas marcas discursivas sejam passíveis de serem analisadas, pois há
uma materialização desses personagens e de suas características no plano da
linguagem dos quadrinhos por meio de um discurso que pode ser analisado.
Analisar marcas discursivas do sujeito significa analisar tudo o que é material-
mente produzido para gerar interpretações. Como já foi dito, o sentido de um
discurso depende de um sujeito que o interprete e, assim, com ele estabeleça
uma relação dialógica.

Exemplo de análise das marcas discursivas do


sujeito no artigo A memória na cena do discurso
Indursky (2011), no artigo A memória na cena do discurso, propõe uma análise
discursiva tomando o discurso do descobrimento do Brasil como uma forma-
ção discursiva. A partir do recorte de uma materialidade verbal, a Carta de
Caminha (1500) ao rei de Portugal, informando a respeito do descobrimento
do Brasil; da representação pictórica da Primeira Missa no Brasil na tela
de Victor Meirelles (1861), apresentada na Figura 5, que retoma uma cena
da carta de Caminha; de uma marchinha de carnaval, intitulada História
do Brasil, composta por Lamartine Babo (1934); e de um cartoon de Uberti
(2000), intitulado A Primeira Árvore, que é uma manipulação sobre a pintura
de Meirelles, a autora produz uma análise contrastiva entre as diferentes obras
para explicitar o posicionamento do sujeito em relação ao imaginário sobre o
descobrimento do brasil apresentado em cada uma delas.

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Marcas discursivas do sujeito 125

Você encontra a carta de Pero Vaz de Caminha é


considerada hoje o mais importante documento a
respeito do Descobrimento do Brasil no link a seguir:

https://tinyurl.com/4yr93zzh

Figura 5. Primeira missa no Brasil, na tela de Victor Meirelles (1861).


Fonte: Meirelles (1861).

A autora faz sua análise em três tempos. O primeiro deles é a apresentação


da obra de Meirelles (1861), para remeter o primeiro e segundo planos da tela
Primeira missa no Brasil a sequências discursivas de referência recortadas
da Carta de Caminha (1500). Sequências estas que estabelecem um “lugar
de memória”, para que Meirelles pudesse produzir sua paráfrase pictórica da
primeira missa rezada no Brasil por meio de sua tela. Indursky (2011, p. 75) diz
que essa tela representa o imaginário no Brasil sobre a “descoberta”, apresentada
como um discurso que se inscreve no “regime de repetibilidade”, gerando a
regularização de saberes que passaram a fazer parte da “memória coletiva”
(HALLBAWACS, 1950) nacional devido a sua repetição ao longo do tempo.

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Segundo a autora, os livros didáticos consolidaram esse imaginário, pos-


sibilitando o jogo de repetição discursiva, até sua cristalização em redes de
memória atualizadas em redes discursivas de formulações (INDURSKY,
2011, p. 76). No entanto, o sentido não só se repete, ele também se desloca.
Pêcheux (2015), no texto Papel da Memória, diz que a memória não é um espaço
regularizado, mas um espaço móvel de contradição, disjunção e retomadas.
O interessante, como Indursky (2011, p. 77) explicita, é perceber que, mesmo
após 300 anos, um discurso pode se inscrever na mesma formação discursiva
sustentada pela mesma matriz de sentido, produzindo um efeito de retorno,
ainda que as posições-sujeito tenham se alterado ao passar dos tempos.
No segundo tempo da análise, o objeto discursivo analisado é uma marchinha
de carnaval, História do Brasil, composta por Lamartine Babo (1934), na qual
há o retorno do discurso do descobrimento consolidado pelos livros didáticos;
mas, diferentemente destes, a música produz deslizamentos na interpretação do
evento. Ao dizer que “Cabral inventou o Brasil”, em vez de “descobriu o Brasil”,
tradicionalmente repetido em livros didáticos. Babo parece não se inscrever na
mesma posição sujeito de Meirelles quando este produziu sua tela.

No link ou no código a seguir, você pode ouvir a


marcha de carnaval História do Brasil, de Lamartine
Babo (1934):

https://goo.gl/3ZPqkg

A partir da palavra “inventou” (INDURSKY, 2011, p. 78) outros sentidos


podem ser produzidos sobre o evento histórico do descobrimento, além daqueles
possíveis com base no discurso fundador. O discurso ao qual a marchinha remete
é o mesmo e, inclusive, está filiado a mesma formação discursiva, o que surgiu
de novo foi um deslocamento com relação à posição-sujeito frente ao discurso
fundador, gerando, no interior de uma mesma FD (a do discurso do descobri-
mento) duas posições, uma de identificação com o discurso do descobrimento;
e outra de contra identificação com relação a este discurso, questionando os
saberes dominantes da FD do descobrimento (INDURSKY, 2011, p. 79).

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Marcas discursivas do sujeito 127

Resumindo, há um efeito de identificação do sujeito com os saberes da FD


do descobrimento, quando tomamos os posicionamentos de sujeito evidenciados
na Carta de Caminha e na tela Primeira missa no Brasil. Essas discursividades,
carta e tela, atuam como pré-construídos desse discurso dominante, o discurso
do colonizador do Brasil, o mesmo reproduzido através dos livros didáticos
nas escolas do país. No entanto, o posicionamento da marchinha de carnaval
questiona os saberes da FD do descobrimento, possibilitando que novas redes
de sentido atravessem o discurso fundador. Assim, percebe-se que o trabalho
da memória pode tanto fazer retornar como emergir novos sentidos.
No terceiro tempo da análise, Indursky apresenta uma nova rede de saberes
a respeito do discurso do descobrimento, a partir de um material que reproduz
a exposição de cartoon em comemoração aos 500 anos do “descobrimento”,
do qual ela recorta um cartoon de Uberti (2000). Nesse cartoon, o autor
renomeia a obra Primeira missa do Brasil, de Meirelles, como A Primeira
Árvore, desencadeando uma nova rede de sentidos que pode se relacionar ao
discurso da devastação das florestas, iniciado pela retirada de madeira para
a produção da cruz da primeira missa.
Uberti fez, além da alteração do título da obra de Meirelles, a introdução
de uma motosserra na cena, a qual aparece na mão de um português, que antes
segurava um chapéu (INDURSKY, 2011, p. 81-82). Nas redes de memória atu-
alizadas pela contradição posta no discurso de Uberti sobre a primeira missa,
emerge a extinção do pau-brasil, a extorsão das riquezas naturais brasileiras,
dos minerais de nosso solo, das nossas florestas e da fauna. Instituir uma nova
rede de sentidos, produz o deslizamento dos saberes do discurso fundador do
colonizador, que faz do “descobrimento” um evento memorável, para um discurso
do brasileiro que conhece as consequências negativas do processo de coloniza-
ção, ou seja, estabelece outra formação discursiva. Segundo Indursky (2011),
essa interpretação do cartunista produz uma tensão, que resulta na desidenti-
ficação dessa posição sujeito com relação à FD do discurso do descobrimento,
identificando-se, a partir dos saberes que mobiliza, com outra memória: aquela
que instaura a ruptura com o discurso regularizado, estabilizado.
A análise de Indursky sobre a substituição do chapéu por uma motosserra
explicita o processo, denominado por Pêcheux (1997) “ponto de encontro
entre uma atualidade e uma memória”, pois no cartoon é proposto um des-
locamento temporal que tira o sujeito português, situado no século XVI,
de cena para trazê-lo ao século XX (ano 2000), apresentando outra FD: a
do discurso pós-colonialista (INDURSKY, 2011, p. 84). Pela atualização
presente da memória do descobrimento, o sujeito reorganiza (questionando;
criticando; polemizando; denunciando) os saberes da FD do discurso do

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128 Marcas discursivas do sujeito

descobrimento, propondo outra FD, da qual derivam novas redes de saberes.


Indursky (2011) chama atenção para o caráter heterogêneo da memória que
não corresponde apenas a uma FD, mas aponta para diferentes regiões do
interdiscurso. Assim, é possível que uma memória, por mais regularizada
que seja, faça ecoar saberes não coincidentes.
A autora faz uma retomada dos posicionamentos de sujeito analisados, nas
diferentes materialidades, com relação à FD observada, de modo que a Carta
de Caminha e a tela Primeira missa no Brasil de Meirelles estão em posição
de identificação com a FD do descobrimento. A marchinha de Babo apresenta
uma posição de contra identificação, pois ainda está nessa FD.
No entanto, o cartoon de Uberti instaura uma nova rede de saberes, atuali-
zando a memória do descobrimento, mas reorganizando seus saberes derivando
para outra interpretação, outro efeito de sentido com base na posição sujeito
do brasileiro que não se identifica e nem se contra identifica com a FD do
descobrimento, pois se desidentifica dessa FD, ainda que a retome, para che-
gar a outro recorte do interdiscurso. Indursky (2011, p. 86) resume: “Não dá
para interpretar uma atualidade sem mobilizar a memória.”. A repetibilidade,
portanto, não é da mesma ordem, como explicitou a análise, pois, assim como
promove a regularização dos saberes, possibilita deslocamentos desses saberes,
ou seja, sua desregularização por meio da produção de sentidos outros.

Não existe uma categoria única que pode assumir a função de marca discursiva – ela
pode ser tanto um verbo ou um adjetivo como uma imagem, de acordo com os
exemplos analisados.

Você pode ver outra análise discursiva acessando o


link a seguir:

https://youtu.be/udjmxzBMpzU

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Marcas discursivas do sujeito 129

BABO, L. História do Brasil. [S.l.: s.n.], 1934. Música. Disponível em: <https://www.va-
galume.com.br/lamartine-babo/historia-do-brasil-marchacarnaval.html>. Acesso
em: 31 ago. 2017.
BENITZ, J. A. Game of Thrones para adultos. São Paulo: Observatório da Imprensa, 2017.
Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/
game-of-thrones-para-adultos/>. Acesso em: 21 ago. 2017.
CAMINHA, P. V. A carta de Caminha. Rio de Janeiro: Educação Pública, 1500. Disponível
em: <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/0015.html>.
Acesso em: 31 ago. 2017.
HENRY, P. Os fundamentos teóricos da “Análise Automática do Discurso” de Michel
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INDURSKY, F. A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, F.; MITTMANN, S.; FER-
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<http://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2010/09/primeira-missa.jpg>.
Acesso em: 31 ago. 2017.
ORLANDI, E. P. Textualidade e discursividade. In: ORLANDI, E. P. Análise de discurso:
princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas: Pontes, 2002.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T.; MARIANI,
B. S. C. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997.
PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. 4. ed. Cam-
pinas: Pontes, 2015.
SIMÕES, P. R. O deslizamento de sentido no funk ostentação. In: FLORES, G. G. B.; NECKEL,
N. R. M.; GALLO, S. M. L. Discurso, cultura e mídia: pesquisas em rede. Palhoça: Unisul, 2015.
p. 115-124. Disponível em: <http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/
linguagem/pesquisa/Discurso%20cultura%20e%20midia2.pdf>. Acesso em: 01 ago.
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SOUSA, M. Mônica está de férias! Porto Alegre: L&PM, 2012.
UBERTI. Primeira árvore (manipulação sobre pintura de Victor Meirelles). In: VASQUES, E.
Catálogo da exposição Humores Nunca Dantes Navegados: O Descobrimento segundo os
cartunistas do Sul do Brasil. Porto Alegre: Governo do Estado do Rio Grande do Sul, 2000.
VERÍSSIMO, L. F. O gigolô das palavras. Porto Alegre: L&PM, 1982. (Novaleitura, 8).

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130 Marcas discursivas do sujeito

Leituras recomendadas
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