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Coleco Zera a Esquerda Coordenadores: Paulo Edvardo Arantes ¢ Ini Camargo Costa ~Desafortunados Qs novos cies de guarda Peete sw Anderson ~ Soe aint ~Damraantsgcogeqso™ = oe ei: ia conni Peet Hadad cae —DictonariodeboliodeAlmapaque Maris da Concegdo Tovarese Jose erat eee tats Hon ors) ats Opener enoerin ais srs aval Hee haat Relay . Enon elon eds des Bret de Cidade Francisco de Oliveira Geopelies dot Sine drama Maria Célia Paoli Gpuaio Ramonet Ind Camargo Costa (Organizadores) ~ Globalizagio em questio ~ Tertenos vulcinicos aul Hirde Grahame Thompson _ Delf Oehler ~Allusio do desenvolvimento ~ Qs itimos combats Os sentidos da democracia Giovanni Arright fine ~ As metamorfoses da questao social ~ Umeutopia militante—Repenrando an - rp Eee Rand Singer Politicas do dissenso e hegemonia global (Josd Late Fiori Conselho editorial da Colegdo Zero a Esquerda: Ottlia Beatriz Fiori Arances Roberto Schwarz Modesto Carone Femando Haddad Maria Elisa Cevasco Ismail Xavier José Lats Fiori Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) ee (0s sentidos da democracia : polticas do dissenso ¢ a hegemonia ‘global / organizado pela equipe de pesquisadores do Nécleo de Estudos dos Direitos da Cidadania ~ NEDIC. ~ Pete6polis, RJ Vozes ; Braslia : NEDIC, 1999. Varios autores. Co-edigio ae eee EDITORA Tadices para catdlogo aatemitio: FAPESP 2. Direitos da cidadania : Ciencia politica 323.6 1999 Marilena Chaut Ideologia neoliberal e universidade* (© que chamamos de neoliberalismo nasceu de um grupo de economistas, cientistas politicos ¢ filésofos, entre os quais Popper e Lippman, que, em 1947, reuniu-se em Mont Saint Pélerin, na Suga, a volta do austrfaco Hayek e do norte-ame- ticano Milton Friedman. Esse grupo opunha-se encarnigada- mente contra o surgimento do Estado de Bem-Estar de estilo keynesiano e social-democrata e contra a politica norte-ame- ricana do New Deal. Navegando contra corrente das décadas de 50 € 60, esse grupo claborou um detalhado projeto econd- mico e politico no qual aracava o chamado Estado-Providéncia com seus encargos sociais e com a fungio de regulador das atividades do mercado, afirmando que esse tipo de Estado destrufa a liberdade dos cidadaos ¢ a competigio sem as quais nao hé prosperidade, Essas idéias permaneceram como letra morta até a crise capitalista do inicio dos anos 70, quando o capitalismo conheceu, pela primeira vez, um tipo de situagio imprevisivel, isto é, baixas taxas de crescimento econémico € Conferéncia proferida na abertura do semindtio: “A Construgio Demo critica em questio” no dia 22 de abril de 1997, no Anfiteatro de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas, FFLCH-USE 7 Marilena Chaut altas taxas de inflagao: a famosa estagflagio. O grupo de Hayek, Friedman e Popper passou a ser ouvido com respeito porque oferecia a suposta explicagio para a crise: esta, diziam eles, fora causada pelo poder excessivo dos sindicatos e dos movi- mentos operdrios que haviam pressionado por aumentos sa- lariais ¢ exigido o aumento dos encargos sociais do Estado. TTeriam, dessa maneira, destruido os niveis de lucro requeridos pelas empresas desencadeado os processos inflacionarios in- controliveis. Feito o diagnéstico, o grupo do Mont Saint Pé- lerin propés os remédios: 1) um Estado forte para quebrar 0 poder dos sindicatos e movimentos opetitios, para controlar 08 dinheiros piblicos e cortar drasticamente os encargos so- ciais e 0s investimentos na economia; 2) um Estado cuja meta principal deveria ser a estabilidade monetéria, contendo os gastos sociais e restaurando a taxa de desemprego necessdria para formar um exército industrial de reserva que quebrasse © poderio dos sindicatos; 3) um Estado que realizasse uma reforma fiscal para incentivar os investimentos privados e, por- tanto, que reduzisse os impostos sobre o capital e as fortunas, aumentando os impostos sobre a renda individual e, portanto, sobre o trabalho, o consumo e o comércio; 4) um Estado que se afastasse da regulacao da economia, deixando que o préprio mercado, com sua racionalidade propria, operasse a desregu- lagio; em outras palavras, aboligao dos investimentos estatais, na produgio, aboli¢ao do controle estatal sobre o fluxo finan- ceiro, drstica legislagao antigreve e vasto programa de priva- tizagdo. O modelo foi aplicado, primeiro, no Chile, depois na Inglaterra e nos Estados Unidos, expandindo-se para todo 0 mundo capitalista (com excego dos paises asidticos) e, depois da “queda do muro de Berlim”, para o Leste Europeu. Esse modelo politico tornou-se responsivel pela mudanga da forma da acumulagio do capital, hoje conhecida como “acumulaco flexivel” e que nao havia sido prevista pelo grupo neoliberal. De fato, este propusera seu pacote de medidas na certeza de que abaixaria a taxa de inflagdo e aumentaria a taxa do cres- cimento econdmico. A primeira aconteceu, masa segunda nao, porque o modelo incentivou a especulacao financeira em vez 28 IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE 4 ain- dos investimentos na producio; 0 monetarismo superow daistria. Donde fala-se em “capitalismo pés-industrial” ‘Até os meados dos anos 70, a sociedade capitalista era orientada por dois grandes princ{pios: o principio keynesiano de intervengio do Estado na economia por meio de investi- mentos e endividamento para distribuigao da renda ¢ prom0~ a0 do bem-estar social, visando a diminuir a8 desigualdas less € 0 principio fordista de organizagio industrial baseado no planejamento, na funcionalidade e no longo prazo do trabalho industrial, com a centralizacao e verticalizagio das plantas in- dustriais, grandes linhas de montagens concentradas nim She co espago, formacio de grandes estoques, ¢ orientado pelas idéias de racionalidade e durabilidade dos produtos, ¢ de Po litica salavial e promocional visando a aumentar a capacidade de consumo dos trabalhadores. © que € o capitalismo atual? Estudos esparsos e isolados, enfatizando cada qual um aspecto do capitalismo, ainda néo nos permitem conhecé-lo tal como foi conhecido no século XIX e apés a Segunda Guerra, pois nem mesmo o grupo fundador do neoliberalismo esperava que aconteceu. Que sabemos sobre 0 capitalismo contempo- raneo? Se reunirmos diferentes estudos, podermos ober um jwadro apenas aproximativo cujos tragos seriam 05 2 an O desempreso tornou-se estrutural, deixando de ser acidental ou expresso de uma crise conjuntural, porque @ forma contemporanea do capitalismo, ao contrétio de sua for- ma classica, ndo opera por inclusio de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo, mas por ¢xclusio. Essa exclusio se faz nao s6 pela introdugio da automagéo, mas também pela velocidade da roratividade da mo-de-obra que se torna desqualificada ¢ obsoleta muito rapidamente em de~ corréncia da velocidade das mudancas tecnolégicas. Como conseqiiéncia, temr-se a perda de poder dossindieatos e¢ umet™ to da pobreza absoluta (na América Latina hé 196 milhoes de pessoas abaixo da linha da pobreza; estudos da ONU prevéem que haverd, no ano 2000, 312 milhées, se a renda per capita estagnar ~ serio 59,3% da populagao da Améri ica Latina). Marilena Chau 2. O monetarismo € © capital financeiro tornaram-se 0 coragio o centro nervoso do capitalismo, ampliando a des- valorizacao do trabalho produtivo e privilegiando a mais abs- trata e fetichizada das mercadorias, 0 dinheiro (em um dia, a bolsa de valores de N.Y. ou de Londres é capaz de negociar montantes de dinheiros equivalentes ao PIB anual do Brasil ‘ou da Argentina). O poderio do capital financeiro determina, diariamente, as politicas dos varios Estados porque estes, so- bretudo os do Terceiro Mundo, dependem da vontade dos bancos ¢ financeiras de transferir periodicamente os recursos para um determinado pais, abandonando outro. 3. A terceitizagao, isto é, o aumento do setor de servigos, tornou-se estrutural, deixando de ser um suplemento & pro- dugio visto que, agora, a produgao ndo mais se realiza sob a antiga forma fordista das grandes plantas industriais que con- centravam todas as etapas da produgao ~ da aquisi¢ao da ma- téria-prima a distribuigao dos produtos -, mas opera por fragmentacdo e dispersao de todas as esferas e etapas da pro- dugio, com a compra de servigos no mundo inteiro. Como conseqiténcia, desaparecem todos os referenciais materiais que permitiam a classe operaria perceber-se como classe lutar como classe social, enfraquecendo-se ao se dispersar nas pe- quenas unidades terceirizadas espalhadas pelo planeta. 4. A ciéncia ea tecnologia tornaram-se forcas produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se converter em agentes de sua acumulagio. Conseqiientemente, mudou 0 modo de insergao dos cientistas ¢ téenicos na sociedade uma ‘vez que tornaram-se agentes econdmicos diretos, e a forga e 0 poder capitalistas encontram-se no monopélio dos conhe- cimentos e da informagio. 5. Diferentemente da forma keynesiana e social-democrata gue, desde o pés-Segunda Guerra, havia definido o Estado como agente econémico para regulagao do mercado e agente fiscal que emprega a tributagao para promover investimentos nas politicas de direitos sociais, agora, o capitalismo dispensa e rejeita a pre~ senga estatal nao s6 no mercado, mas também nas politicas so- ciais, de sorte que a privatizagio tanto de empresas quanto de 30 IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE tervigos pablicos também tornou-se estrutural. Disso resulta que a idéia de direitos sociais como pressuposto e garantia dos direitos civis ou politicos tende a desaparecer, porque 0 que era um direito converte-se num servigo privado regulado pelo mercado e, portanto, torna-se uma mercadoria a que tém aces- #0 apenas os que tém poder aquisitivo para adquiri-la. 6.A transnacionalizagéo da economia torna desnecesséria a figura do Estado nacional como enclave territorial para o capital ¢ dispensa as formas classicas do imperialismo (colonialismo po- Mtico-militar, geopolitica de areas de influéncia, etc.), de sorte que o centro econémico, juridico e politico planetério encontra- tt no FMI € no Banco Mundial. Estes operam com um tinico dogma, proposto pelo grupo fundador do neoliberalismo, qual teja: estabilidade econdmica e corte do déficit pablico. 7. A distingao entre paises de Primeiro ¢ Terceiro Mundo tende a ser substituida pela existéncia, em cada pais, de uma divisao entre bolsGes de riqueza absoluta e de miséria absoluta, {nto €, a polarizagéo de classes aparece como polarizagao entre a opuléncia absoluta ea indigéncia absoluta. Hé, em cada pals, um “primeiro mundo” (basta ir aos Jardins e ao Morumbi, em Sao Paulo, para vé-lo) e um “terceiro mundo” (basta ira Nova York e Londres para vé-lo). A diferenca est apenas no ntimero de pessoas que, em cada um deles, pertence a um dos “mun- dos”, em fungao dos dispositivos sociaise legais de distribuigo da renda, garantia de direitos sociais consolidados e da politica tributaria (0 grosso dos impostos nao vem do capital, mas do trabalho e do consumo). Em resumo, desintegragao vertical da produgio, tecnolo- gias eletrénicas, diminuigéo dos estoques, velocidade na qua- lificagéo e desqualificagao da mao-de-obra, aceleragio do turnover da produgao, do comércio e do consumo pelo desen- volvimento das técnicas de informagio e distribuicio, proli- feragio do setor de servicos, crescimento da economia infor- mal ¢ paralela, € novos meios para prover os servigos finan- ceiros (desregulagio econdmica e formagio de grandes con- glomerados financeiros que formam um tnico mercado mundial com poder de coordenagao financeira). Marilena Chauf_ Aeeste conjunto de condigdes materiais, precariamente es- bogado aqui, corresponde um imaginétio social que busca jus- tificé-las (como racionais), legitimé-las (como corretas) € dissimulé-las enquanto formas contemporsineas da exploragao ¢ dominagio. Esse imagindrio social é 0 neoliberalismo como ideologia ¢ cujo subproduto principal é a ideologia pés-mo- derna que toma como 0 ser da realidade a fragmentagio eco- némico-social ¢ a compressio espago-temporal gerada pelas novas tecnologias ¢ pelo percurso do capital financeiro. A ideo- logia pés-moderna corresponde a uma forma de vida deter- minada pela inseguranga e violéncia institucionalizada pelo mercado. Essa forma de vida possui quatro tragos principaist 1. A inseguranga, que leva a aplicar recursos no mercado de futuros e de seguros; 2. A dispersao, que leva a procurar uma autoridade politica forte, com perfil despético; 3. O medo, que leva ao reforgo de antigas instituigées, sobretudo a familia, e ao retorno das formas misticas ¢ autoritarias ou fundamenta- listas de religido; 4. O sentimento do efémero e da destruigio «da meméria objetiva dos espagos levando ao reforgo de supor- tes subjetivos da mem6ria (didrios, biografias, fotografias, ob- jetos). A peculiaridade pés-moderna, isto é, a paixao pelo efémero e pelas imagens depende de uma mudanga sofrida no setor da circulagao das mercadorias e do consumo, De fato, as novas tecnologias deram origem a um tipo novo de publi. cidade e marketing no qual nio se vendem e compram mer- cadorias, mas o simbolo delas, isto é, vendem-se e compram-se imagens que, por serem efémeras, precisam ser substitufdas tapidamente. Dessa maneira, o paradigma do consumo tor- nou-se o mercado da moda, veloz, efémero e descartavel. Por- que é ideologia da nova forma da acumulacao do capital, 0 P6s-modernismo relega a condigao de mitos eurocéntricos to- talitérios os conceitos que fundaram e orientaram a moderni- dade: as idéias de racionalidade, universalidade, 0 contraponto entre necessidade e contingéncia, os problemas da relacio entre subjetividade ¢ objetividade, a historia como dotada de sentido imanente, a diferenga entre natureza e cultura, etc. Em seu lugar, 2 ideologia pés-moderna afirma a fragmentagao como modo de 32 IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE. ser do real fazendo da idéia de diferenca o nicleo provedor de sentido da realidade; preza a superficie do aparecer social ou as imagens (passa da drvore cartesiana do saber ao rizoma de Deleuze) e sua velocidade espago-temporal; recusa que a linguagem tenha sentido c interioridade para vé-la como cons- trugao, desconstrugio e jogo, tomando-a exatamente como o mercado de ages e dinheiros toma o capital; privilegia a sub- jetividade como intimidade emocional e narcisica elegendo a esquizofrenia como paradigma do subjetivo, isto é, a subjetivi- dade fragmentada e dilacerada. A ideologia pos-moderna realiza tés grandes inversdes ideol6gicas: substitui a l6gica da pro- dugio pela da circulagao (donde, nas universidades, aavaliaco ser feita pelo nimero de publicacées e nao pela qualidade e importéncia da pesquisa); substitui a logica do trabalho pela légica da comunicagao (donde a crenga do Ministro da Edu- cagio de que, scm alterar o processo de formagio dos profes- sores do ensino bésico ¢ sem alterar scus salérios aviltantes, tudo iré bem na educagao desde que haja tclevisdes e compu. tadores nas escolas); e substitui a l6gica da luta de classes pela égica da satisfagio-insatifagao dos individuos no consumo. Podemos ver essa ideologia operando em toda parte, mas, para 0 que nos interessa hoje e agora, eu gostaria de ilustrar essa presenca da ideologia neoliberal com alguns exemplos ligados a educacao. O primeiro exemplo é a matéria publicada pela Veja Sdo Paulo, de 12 de margo de 1997, a respeito das escolas que mais recebem aprovagao nos vestibulares. Quero destacar apenas o modo como a revista descreve essas escolas eexplica o sucesso delas: os dados sio apresentados em termos de porcentagens sem que se explique qual o parimetro dos niimeros e por que seriam importantes (0 aspecto geral € se- melhante ao de dados sobre bolsas de valores); 0s “bons colé- gios” so descritos como aqueles que exigem do aluno 2 a3 horas didrias de trabalho em casa, como se fosse excepcional que o estudante fizesse seus deveres escolares (!); a qualidade da escola é avaliada pelo tamanho (isto é, pelos metros qua- drados de area construida e recreativa), pela presenga de com- putadores ¢ videotecas. Nenhuma palavra é dita sobre o con- 33 ae Marilena Chau teiido dos cursos, formacao de professores e sua remuneragio, contetido dos livros em bibliotecas, tipo de atividade realizada emaboratérios, ete. Numa palavra, a qualidade propriamente educacional nao € mencionada. Sio mencionados os desem- penhos numéricos em exames vestibulares, 0 prego dos cursos €. forma de selegio de candidatos a vagas nas escolas (sendo clara a discriminacao de classe e étnica). Meu segundo exemplo é retirado de um editorial da FSR, de 5 de margo de 1997, e de um artigo de Ivan Valente, também na FSB em janeiro de 1998. O editorial da FSP intitula-se “Pais mal-educado” e se inicia declarando que “a ma qualidade da rede piiblica de ensino ¢ oscustos da educacao privadacolocam um pesado énus financeiro as familias de renda média”. Acres- centa, depois do lapso de referir-se apenas as “familias de renda média”, que essa situacio compromete “o avango social das criangas pobres”. Seria de esperar que o editorial prosseguisse explicando as causas da mé qualidade do ensino ptiblico e dos altos custos da escola privada. Em lugar disso, porém, 0 edi- torial prossegue com duas preciosidades neoliberais de primei- ra Agua. Seria preciso que o ensino ptiblico fosse de boa qualidade (0 editorial néo diz como isso seria obtido, uma vez que outros editoriais do mesmo jornal nao se cansam de afir- mar a necessidade de “enxugar os gastos estatais”). Por que seria interessante melhorar a qualidade do ensino pitblico? Resposta: por que “se 0 ensino gratuito fosse de melhor qua- lidade, haveria maior competicao e, previsivelmente, menores pregos da rede particular” ~o jornal estabelece, portanto, uma relagio mecénica, causal ¢ funcional, entre qualidade do en- sino gratuito e qualidade do ensino pago a partir do critério do mercado, isto é, de que a competicéo geta qualidade € baixos custos. A essa pérola segue-se outra, esperada. Qual a conseqiiéncia da atual situago? As universidades ptilicas, via de regra de melhor qualidade que as particulares, absorvem a clientela rica das escolas privadas de segundo grau ¢ os estu- dantes pobres ou nao fazem universidade ou pagam exorbi- tancias nas universidades particulares de baixa qualidade. Como resolver o problema? Resposta: instituindo a universi- 34 IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE dade piblica paga. Nenhuma reflexao feita sobre as causas, estruturais da situagio calamitosa do ensino de primeiro ¢ segundo graus, nenhuma reflexao é feita sobre o significado social e politico do ensino ptblico gratuito. E dado como ébvio que a l6gica do mercado é a solugio para os problemas edu- cacionais. O artigo de Ivan Valente é um comentirio critico de uma posigéo adotada pelo Ministério da Fazenda a quem © Ministério da Educagio, significativamente, transferiu a res- ponsabilidade sobre mensalidades e inadimpléncias nas escolas privadas. O Ministério da Fazenda declarou que 0 Estado deve desregular a relacdo entre escolas e pais de alunos porque “a classe média esta em condigées de enfrentar, por meio da ne- gociagio, © conflito com os donos das escolas”. Assim, 0 Mi- istrio da Fazenda e o da Educagio consideram que a relagio, entre escola e pais € puramente mercantil ¢ que deve obedecer as leis do mercado e ser tomada como qualquer outra relagio de consumo. Nenhuma reflexao sobre os cartéis formados pe- los donos das escolas puiblicas, nenhuma reflexao sobre o fato de que as familias s30 empurradas para as escolas particulares por causa da situacao das escolas piblicas. Tudo parece se passar como se se tratasse de escolher em qual supermercado ‘ou shopping center serdo feitas as compras. Passo, finalmente, ao meu terceiro e ultimo exemple, isto 6, as discussées de 1995 sobre a qualidade e eficiéncia das universidades paulistas, discusses travadas durante a greve de professores e funcionarios por aumento salarial. Antes de apre- senté-lo, queria enfatizar que que mais me impressionou, naquela ocasifo, foi o fato de que os professores nio s6 acei- tavam, mas alguns foram responsaveis pela posigao dos termos da discussio nao no plano académico da docéncia ¢ da pes quisa, mas no da produtividade, competigao e eficiéncia. E isto jd vinha acontecendo, desde o inicio dos anos 90, quando a maioria dos universitarios passou a discutir com paixio € entusiasmo se a publicagao de artigos em revistas estrangeiras deveria contar mais pontos do que em revistas nacionais, ou se um artigo deveria valer mais ou menos pontos do que a publicagio de um livro. Tanto na USP como no Conselho dos 35 re gg Marilena Chau Reitores das Universidades Brasileiras, de cujo congresso na- cional participei em 1993, propus aos colegas que os temas avaliativos fossem inseridos num contexto hist6rico mais abrangente, tanto do ponto de vista da sociedade brasileira quanto das questées te6ricas e priticas colocadas pela nova forma do capitalismo mundial, indo desde a chamada “crise da raz moderna” ou do pés-modernismo, até 0 modo de insergio da ciéncia e da tecnologia no coragio das forcas pro- dutivas. Fiz essa proposta porque me parecia e me parece impos- sivel discutir seriamente a questio da avaliagio da universidade sem considerar a tragédia da educagio brasileira sob os efeitos do projeto neoliberal que, no caso da universidade, implan- tou-se justamente através da idéia de avaliagao académica se- gundo critérios que nao s6 perdem de vista a especificidade da universidade, mas sobretudo trabalham a partir da insercio dda universidade na sociedade pelo prisma das relag6es de mer- cado. No entanto, lendo artigos e acompanhando debates uni versitarios, cheguei & conclusdo de que alguns temas haviam-se tornado hegeménicos na mente universitiria e nada poderia demover os colegas de operar com eles, sejaa favor, séja contra: 1. aceitagio da idéia de avaliacao universitaria sem nenhu- ma consideracio sobre a situagio do ensino de primeiro ¢ segundo graus, como se a universidade nada tivesse a ver com eles e nenhuma responsabilidade Ihe coubesse na situagio em que se encontram; 2. aceitagio da avaliagao académica pelo critério da titu- lagio e das publicagdes, com total descaso pela docéncia, cri- tério usado pelas universidades privadas norte-americanas nas quais a luta pelos cargos e pela efetivagao € feita a partir dos critérios quantitativos da producao publicada e pela origem do titulo de PHD; 3. aceitacao do critério de distribuigao dos recursos piibli- cos para pesquisa a partir da idéia de “linhas de pesquisa”, critério que faz sentido para as 4reas que operam com grandes laboratérios e com grandes equipes de pesquisadores, mas que nao faz nenhum sentido nas areas de humanidades e nos cam- pos de pesquisa te6rica fundamental; 36 IDEOLOGIA NEOLIBERAL F UNIVERSIDADE 4. aceitagio da idéia de modernizagio racionalizadora pela privatizagio e terceirizacio da atividade universitaria, a uni- versidade participando da economia da sociedade como pres- tadora de servigos as empresas privadas, com total descaso pela pesquisa fundamental e de longo prazo. Seja para opor-se, seja para defender essas idéias, o campo da discussio estava predeterminado e predefinido pela ideo- logia neoliberal e pela alienagio que ela acarreta. Nao foi sur- preendente, quando a greve das universidades paulistas eclodiu, que os grevistas se sentissem completamente desar- mados para defender-se dos ataques que hes foram desferidos pelas direcées universitarias, por jornalistas ¢ empresdrios. De fato, a greve das universidades paulistas suscitou polémicas em torno de nimeros, indices, recursos e custos, Jornalistas, universitérios ¢ empresarios ocuparam diferentes paginas dos jornais para denunciar o descaso do poder piblico brasileiro com a educagao fundamental, drenando os recursos para as universidades nas quais imperam o elitismo da clientela e 0 mal gerenciamento dos recursos universitérios. Para provar 0 que diziam, trouxeram quadros comparativos para medir a diferenca entre a eficiéncia de universidades privadas estran- geiras e as universidades pablicas brasileiras. Todos os artigos publicados eram vitimas de estranha amné- sia, pois esqueciam que, durante a ditadura, a classe dominan- te, sob o pretexto de combate & subversio, mas, realmente, para servir aos interesses de uma de suas parcelas (os proprie- tarios das escolas privadas), praticamente destruiu a escola piblica de primeiro e segundo graus. Por que péde fazé-lo? Porque, neste pats, educagio é considerada privilégio ¢ nio um direito dos cidadaos. Como o fez? Cassando seus melhores professores, abolindo a Escola Normal na formagao dos pro- fessores do primeiro grau, inventando a Licenciatura Curta, alterando as grades curriculares, inventando os cursos profis- sionalizantes irreais, estabelecendo uma politica do livro ba- seada no descartivel e nos testes de miltipla escolha e, evidentemente, retirando recursos para manutengio e amplia- io das escolas , sobretudo, aviltando de maneira escandalosa 7 Ne TT ant EES EEEnE eee Marilena Chau 0s salarios dos professores. Que pretendia a classe dominante a0 desmontar um patriménio piblico de alta qualidade? Que a escola de primeiro e segundo geaus ficasse reduzida & tarefa de alfabetizar e treinar mio-de-obra barata para o mercado de trabalho. Isso que o editorial da FSP chama de “avango social” das criangas pobres. Feita a proeza, a classe dominante aguardou o resultado esperado: os alunos do primeiro e segundo graus das escolas piiblicas, quando conseguem ir até o final desse ciclo, porque por suposto estariam “naturalmente” destinados & entrada imediata no mercado de trabalho, ndo devem dispot de con- digdes para enfrentar os vestibulares das universidades pabli- cas, pois nao estao destinados a elas. A maioria deles é forgada ou a desistir da formagdo universitaria ou a fazé-la em univer- sidades particulares que, para lucrar com sua vinda, oferecem ‘um ensino de baixissima qualidade, Em contrapartida, os fi- Thos da alta classe média ¢ da burguesia, formados nas boas escolas particulares, tornam-se a principal clientela da univer- sidade pablica gratuita. E, agora, temos que ouvir dessa mesma classe dominante pontificar sobre como baixar custos ¢ “de- mocratizar” essa universidade publica deformada e distorcida que nos impuseram gocla abaixo. Que € proposto como re- médio? Para “baixar os custos”, privatizar a universidade pui- blica, baixar o nivel da graduagio e realizar, para a univer- sidade, como versio-90, 0 que foi feito para o primeiro € 0 segundo graus na versio-70. ‘Ora, esse discurso encontra eco na universidade porque ela absorveu a ideologia liberal. £ possivel perceber essa ab- sorgao nao apenas, como jé disse, pelo teor das pautas de dis- cussio, mas também no nivel de uma institucionalidade informal que se sobrepée a institucionalidade legal da universi- dade, Um exemplo pode esclarecer o que digo. De fato ha, hoje, na Universidade de So Paulo, trés tipos de escola que nao cor- respondem a divisio institucional da universidade em institutos faculdades, mas ao modo como a atividade universitaria € pen- sada e exercida, os trés tipos podendo existir € coexistir em qualquer dos institutos e faculdades: 1. a que dé prestigio cur~ 38 ee IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE sular ao docente; 2. a que oferece complementagio salarial a0 docente e pesquisador; 3. a universidade pablica. A escola do prestigio curricular é aquela na qual o docente nio é pesquisador nem a ela se dedica em tempo integral, mas ali leciona em tempo parcial algumas horas por semana, Embora a verdadeira profissio seja exercida noutro local (consultério, escrit6rio particular, empresas privadas), o profissional tem in- teresse em apresentar-se com o cutriculo de professor da USP porque este vale clientes ricos ou um bom cargo na firma. A escola de complementagio salarial é aquela em que as pesquisas sao financiadas por empresas e organismos privados que subsidiam a montagem e manutengao de laborat6rios, bi- bliotecas e equipamentos, congressos ¢ simpésios nacionais € internacionais, publicagdes, viagens € cursos no estrangeiro. Como os recursos esto vinculados a institutos e departamen- tos numa relagio auténoma com os érgios financiadores, os orcamentos, finalidades ¢ resultados dos trabalhos nao si0 piblicos, no duplo sentido do termo, isto é, nao tém origem piiblica e nio sio publicizados, e os financiadores fazem uso privado dos resultados. Este tipo de escola € visto (dentro e fora da USP) como modelo de modernidade porque desincum- be o poder piblico da responsabilidade com os custos da pes- quisa e recebe 0 nome de “cooperagao entre a universidade e asociedade civil”, Nela consagra-se aidéia de que a universidade € essencialmente prestadora de servigos, sendo por isso “produ- tiva”. E 0 tipo acabado da universidade “moderna” do Terceiro Mundo, uma vez que os grandes ¢ verdadeiros financiamentos privados para pesquisas fundamentais ¢ de ponta sao destina- dos as universidades e institutos do Primeiro Mundo. ‘A terccira escola é a universidade pablica propriamente dita. Nela, os docentes dedicam-se ao ensino e & pesquisa em tempo integral, dependem inteiramente dos recursos piblicos (nos dois sentidos do termo: os orgamentos e os resultados sao piblicos e publicizados) e destinam a totalidade de seus trabalhos a sociedade, seja formando profissionais de varias reas, seja formando novos professores, seja publicando suas pesquisas ¢ as de seus estudantes, seja realizando atividades de 39 Marilena Chaut extensio universitétia para profissionais de varias éreas e para atualizagio de professores de primeiro e segundo graus, seja rea lizando pesquisas ou participando na formulagdo e supervisio de projetos ¢ programas sociais para os governos, Esta terceira escola é aquela que mantém um vinculo interno entre docéncia € pesquisa, portanto, entre formagao e criagio, conhecimento € pensamento. Nela, realizam-se as pesquisas fundamentais, ow seja, as de longo prazo, independentes, que acarretam aumento de saber, mudangas no pensamento, descobertas de novos ob- jetos de conhecimento ¢ novos campos de investigagao, refle- x6es criticas sobre a ciéncia, as humanidades e as artes, e com- preensio-interpretagio das realidades historicas. Esse fendmeno uspiano nao € senao a absorgio acritica do ‘modelo neoliberal para universidade. Sua data de nascimento foi a instalagao de fundagées privadas no intetior da univer- sidade; no batismo, recebeu 0 nome de “modernizagio pela ampliagio de recursos externos”; foi crismada com a “avalia- ao do desempenho e produtividade universitérios”; ¢ hoje recebe a extrema-uncio com a criagao do PRONEX. Significa isto que, recusando a ideologia neoliberal, recu- samosaavaliagio de uma institui¢ao piiblica? De modo algum. A avaliagao das atividades universitarias € necessdria ¢ indis- pensével: 1. para orientar a politica universitaria do ponto de vista de um saber da universidade sobre si mesma, de seu modo. de insercéo na sociedade e significado de seu trabalho, e para reorientagao de programas e projetos; 2. para orientaraandlise técnica dos problemas operacionais ¢ financeiros, suprit ca- réncias, atender demandas, quebrar bolsdes de privilégios e de inoperancias 3. para prestagio de contas devida aos cidadios. Ora, a “avaliagao” que vem sendo realizada nas universidades no cumpre nenhuma dessas trés finalidades porque, parado- xalmente, a universidade, centro de investigagao onde tudo quanto existe deve transformar-se em objeto de conhecimento, tem sido incapaz de colocar-se a si mesma como objeto de saber, criando métodos prdprios que permitam elaborar téc- nicas especificas de auto-avaliagao. Resultado: vem aplicando, de modo acritico e desastrado, os critérios usados pelas em- 40 ahem IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE presas, imitando ~ e muito mal - procedimentos ligados & légica do mercado (compreensivelmente, a légica necesséria para as empresas), portanto, uma aberragio cientifica ¢ inte- Tectual, quando aplicados & docéncia e & pesquisa. Conseqiientemente: 1. empregando critérios que visam & homogeneidade, a avaliacio despoja a universidade de sua es- pecificidade, isto €, a diversidade e pluralidade de suas ativi- dades, determinadas pela natureza propria dos objetos de pesquisa e de ensino, regidos por légicas especificas, tempo- talidades e finalidades diferentes; 2. nada é conseguido como autoconhecimento da instituiga0, mas apenas um catdlogo de atividades e publicagées (acompanhadas de inexplicados con- ceitos classificatérios) que, absurdamente, passa a orientar a alocagao de recursos; 3. a prestagao de contas sociedad no se cumpre porque tanto orgamentos quanto execugdes orga- mentirias so apresentados com os ntimeros agregados, sem explicitagio de critérios, prioridades, objetivos e finalidades ¢ sem explicitar 0s convénios privados. Na verdade, uma avaliacdo universitéria deveria partir de algumas reflexdes indispensiveis. Por exemplo, do ponto de vista econdmico, uma reflexdo sobre o sentido ¢ 0s efeitos da terceirizagio da economia (que produz a universidade de ser- vigos), sobre a ciéncia e a tecnologia como forgas produtivas (que amarram a pesquisa ao mercado), sobre a velocidade das informagées e de suas mudancas (que desqualifica rapidamen- te 0 conhecimento e impée & educacao um ritmo centririo & idéia de formagio), o desemprego estrutural (que destréi di- reitos ao langar parcelas crescentes da sociedade no estado de pura caréncia) ¢ a inflagao estrutural (que corréi saldtios € langa os universitarios na batalha perdida da luta salarial). Do ponto de vista politico, uma reflexao sobre as conseqiiéncias da ideologia neoliberal, isto é, 0 encolhimento do espago pa- blico e alargamento do espaco privado, com a supressio dos direitos por privilégios (do lado da “elite”) e por caréncias (do lado popular), aniquilando a cidadania. Do ponto de vista tedrico, uma reflexao sobre a chamada “crise da razao”, que leva a recusa das categorias que fundaram e organizaram 0 a SS Marilena Chau saber cientifico ¢ filoséfico modernos (objetividade, raciona- lidade, necessidade, causalidade, contingéncia, universalida- de, finalidade, liberdade, etc.), langando o saber seja no irracionalismo “pés-moderno”, seja no imediatismo quantita tivo da “produtividade”, seja no fetichismo da citculacio veloz de informagées efémeras. Passando ao largo de uma compreensio cientifico-filos6- fica e politico-cultural dessas questdes, absorvendo passiva- mente os ares do tempo, a universidade alegremente ima- gina-se vivendo no compasso da “modernizagio” que deverd tornar obsoleta e descartavel a universidade publica que ainda resiste em seu interior, O resultado imediato ¢ mais visivel dessa passividade (satisfeita, em uns, ¢ infeliz, em outros) apa~ rece na maneira como a polarizagao universitéria se exprime atualmente: produtividade e competitividade, eis o discurso das clipulas universitérias; defesa da categoria ¢ dos salirios, tis 0 discurso das associagdes e sindicatos universitérios. Em suma, a “avaliagdo” da universidade tem deixado na sombra pelo menos dois aspectos sem os quais, penso eu, nao hé avaliacdo possfvel: por um lado, a universidade como ins- tituigdo que é constitutiva da sociedade e nao algo que esta simplesmente inserido nessa sociedade; por outro, a mudanga softida pelo estatuto das ciéncias e técnicas. Em outras pala~ tas, tem sido deixado de lado que a universidade é uma ins- tituigao social e politica, que sua existéncia é determinada pela sociedade e determina idéias e priticas da sociedade, ¢ que, portanto, nao se trata de indagar “como inserir a universidade ha sociedade?”, pois essa pergunta pressupde que a universi- dade possa ter alguma realidade extra-social e politica. Se nos voltarmos para o primeiro aspecto, teremos que considerar 0s tragos que desenham o perfil da gociedade brasileira e que poderiam ser, muito grosseiramente, assim resumidos: 1. Relagées sociais hierdrquicas ou verticais, nas quais os sujeitos sociais se distribuem como superiores mandantescom- -s obedientes incompetentes; nao opera, 10 da igualdade formal-juridica nem 0 da petentes ¢ inferiot portanto, o princi a EOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE igualdade social real. Imperam as discriminag6es sociais, étni- cas, de género, religiosas ¢ culturais. 2. Relagées sociais politicas fundadas em contactos pes- soais, sem a mediagio das instituigdes sociais ¢ politicas, de modo que estio estabelecidos como paradigmas da relacio sécio-politica 0 favor, a clientela e a tutela; nao operam, por- tanto, as formas de representagio e participagao nas decisdes concernentes & coletividade, mas formas variadas de paterna- mo, populismo e mandonismos locais ¢ regionais. Inexistem © princfpio da liberdade e 0 da responsabilidade. Imperam poderes oligarquicos. 3. As desigualdades econémicas e sociais alcangam pata- mares extremos, nao s6 porque 92% do PIB concentram-se nas maos de 2% de individuos grupos, enquanto 8% do PIB se distribuem para os 98% restantes da populagéo, mas tam- bém porque a forma contempordnea do capitalismo ¢ da po- Iitica liberal, operando com o encolhimento do espaco piblico 0 alargamento do espaco privado, com o desemprego estru- tural e a exclusio sécio-politica polarizam a sociedade brasi leira entre acaréncia e oprivilégio. Ora, uma caréncia ésempre particular e especifica, ndo conseguindo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, e um pri- vilégio, por definigao, é sempre especifico ¢ particular, nio podendo generalizar-se num interesse comum nem universa~ lizar-se num direito sem deixar de ser privilégio. Na medida em que prevalecem caréncias ¢ privilégios ¢ 0s direitos néo conseguem instituir-se, inexistem condig6es para a cidadania para a democracia que, como vimos, tornaram-se inseparé- veis da ética. ‘4. Na medida em que nao operam os principios da igual- dade, da liberdade, da responsabilidade, da representagao € da participagio, nem o da justica e 0 dos direitos, a lei no funciona como ei, isto é, nao institui um pélo de generalidade ¢ universalidade social e politica no qual a sociedade se reco- nheca. A lei opera como repressio, do lado dos carentes, € como conservacio de privilégios, do lado dos dominantes. Por no ser reconhecida como expresso de uma vontade social, B Marilena Chaut alei é percebida como init, inécua, incompreensfvel poden- do ou devendo ser transgredida, em vez de ser transformada, Torna-se espaco privilegiado para a corrupsio. Esses quatro tragos indicam o evidente: a sociedade bra- sileira é violenta, sua violéncia tendendo a aumentar com 0 avango neoliberal que fortifica caréncias e privilégios. Como a universidade se mostra parte integrante ¢ consti- tutiva desse tecido social oligarquico, autoritirio violento? 1. Com relagio ao corpo discente: a universidade piblica tem aceitado passivamente a destruigio do ensino piblico de primeiro ¢ segundo graus, a privatizagdo desse ensino, 0 au- mento das desigualdades educacionais ¢ um sistema que reforca privilégios porque coloca o ensino superior piblicoa servico das classes grupos mais abastados, cujos filhos sio formados na rede privada no primeiro e segundo graus. Para agravar ainda mais esse quadro, alguns propdem “democratizar” a universi- dade piblica fazendo-a paga, ainda que s6 devam pagar os “mais ricos”, Procura-se remediar um problema destrogando © principio ético-democritico do dircito a educacio. 2. Com relagao ao corpo docente: na medida em que a economia opera com o desemprego ¢ a inflagdo estruturais, a0 mesmo tempo em que fragmenta e dispersa todas as esferas da produgio, os trabalhadores industriais ¢ dos servigos, tendo perdido suas referéncias de classe ¢ de luta, tendem a luta sob a forma corporativa de defesa das categorias profissionais. O corpo docente universitdrio tende, por sua vez, a imitar os procedimentos de organizacao e luta dos trabalhadores indus- triais ¢ dos servigos, assumindo também a organizagao ea luta corporativas por empregos, cargos e saldrios. Ao fazé-lo, dei- xam as questées relativas a docéncia, & pesquisa, 20s financia- mentos ¢ avaliagio universitéria nas maos das diregdes universitarias, perdendo de vista o verdadeiro lugar da batalha. 3. Com relagio a docéncia: os universitétios tendem cada vex mais a aceitar a separagio entre docéncia e pesquisa, acei- tando que os titulos universitérios funcionem como geauis hie- rarquicos de separagio entre graduagao e pés-graduagio, em lugar de pensé-las integradamente. Além disso, e como con- “4 IDEOLOGIA NEOLIBERAL E UNIVERSIDADE seqiiéncia, accitam a decisio das direcGes universitarias de re- duzir a graduacio a escolarizacéo ~ nimero absurdo de ho- +as-aula, desconhecimento, por parte de estudantese docentes, de Iinguas estrangeiras, miséria bibliografica ¢ informativa, auséncia de trabalhos de laboratério e de pequenas pesquisas de campo, etc, -, isto é, a reducio da graduagio a um segundo rau avangado para a formacio répidae barata de mio-de-obra com diploma universitério. Em contrapartida, aceitam que a Pés-graduagio seja o funil seletivo de docentes ¢ estudantes, 08 quais é reservada a verdadeira formacao universitaria. 4. Com relagao as universidades federais: de um lado, acei- tagio acritica do modo como foram criadas para servit aos interesses e prestigio de oligarquias locais que as transforma- tam em cabides de empregos para clientes ¢ parentes, nao lhes dando condigées materiais ~bibliotecas, laboratérios, sistema de bolsas ¢ de auxilios - para funcionarem como verdadeiras universidades; de outro lado, desconsideragao, por parte do Poder Executivo, das lutas das universidades federais para su Perar essa origem e se transformar em universidades propria mente ditas. Essa mescla de aceitagio e combate, que perpassa as universidades federais, vem desgastando o corpo docente e discente, desgaste reforcado pela atitude do Estado que tende a teduzir os docentes 3 luta por cargos, salérios e carrciras baseadas no tempo de servigo, em vez de baseadas na formacio, pesquisa e apresentagao de trabalhos relevantes para a ciéncia € as humanidades, 5. Com relagio aos financiamentos das pesquisas: tendéne cia aceitagio acritica da privatizacao das pesquisas, perdendo de vista 0 papel piblico do trabalho de investigacao. A acei- tagio dos financiamentos privados produz os seguintes efeitos Principais: a) perda da autonomia ou liberdade universitai Para definir prioridades, contetidos, formas, prazos e utiliza- gio das pesquisas, que se tornam inteiramente hetersnomas, b) aceitagao de que o Estado seja desincumbido da responsa- bilidade pela pesquisa nas instituigdes piblicass c) aceitagio dos financiamentos privados como complementagao salarial € fornecimento de infra-estrutura para os trabalhos de inves- 45 Marilena Chaut tigagio, privatizando a universidade piiblica; d) desprestigio crescente das Humanidades, uma vez que sua producao nao pode ser imediatamente inserida nas forcas produtivas, como 68 resultados das ciéncias; e) aceitacao da condicio terceiro- mundista para a pesquisa cientifica, uma vez que os verdadei- ros financiamentos para pesquisas de longo prazo ¢ a fundo perdido sao feitos no Primeiro Mundo. Com relacao aos ér- 830s pablicos de financiamento, como CAPES, CNPq ou FI- NEB sabe-se que a burocracia destes érgios absorve a maior parte dos recursos em sua propria auto-reproducio; hé frag- mentagio dos financiamentos, sem clareza quanto aos objeti- vos ¢&s prioridades, nao hd uma politica para financiar e man- ter bibliotecas ¢ laboratérios, para aquisicao continua e siste- matica de materiais e instrumentos de precisio, nem para acompanhar, no longo prazo, grupos ¢ centros universitérios de pesquisa. Em contrapartida, a criagao do PRONEX, que oferece recursos para a infra-estrutura de pesquisa e a continui- dade dos trabalhos, visa a desmantelar a pesquisa universitéria propriamente dita, uma vez que os “centros de exceléncia” ou “grupos de exceléncia” passam ao largo da instituigao univer- sitaria enquanto tal, existindo como existem, no mercado, as microempresas e franquias. 6. Com relacao 4 administracio universitétia ou ao corpo de funciondrios: impera a auséncia de carreiras definidas, con- cursos ptiblicos transparentes, clareza de funcées. Nao hd pro- gtamas de formagio e atualizagao dos funcionérios. Nao ha atualizagio dos procedimentos do trabalho administrativo, mesmo porque isto significaria quebrar por dentro a burocra- cia. Ora, a burocracia nao é uma mera forma de administrar, mas é uma formacao social e um tipo de poder cujos funda mentos sio: a hierarquia dos cargos e funges, 0 segredo do cargo € a rotina dos servigos. Esses trés fundamentos sio cla- ramente antidemocréticos, uma vez que a democracia recusa a hierarquia, pelo principio da igualdade e do mérito, recusa © segredo em nome do direito a informagio e afasta a rotina porque é a agio social continua de criagao de direitos e ex- pressao legitima de conflitos. 46 IDEOLOGIA NEOLIBERAL F UNIVERSIDADE Percebemos, assim, que asuniversidades puiblicas estao ins- titucionalizadas de mancira a reproduzir todos os tragos da sociedade brasileira: = reforgo da caréncia e do privilégio, no caso do corpo discente; portanto, inexisténcia do prinefpio democré- tico da igualdade e da justiga; = reforgo da perda de identidade e de autonomia, no caso do corpo docente; portanto, auséncia do prinetpio de- mocritico da liberdade; ~ reforgo de privilégios e desigualdades, no caso do corpo docente, dividido hierarquicamente em professores ¢ pes- quisadores, reforgo aumentado com a criagio do PRO- NEX, com desprezo pelo prinefpio democratico da agio comunicativa entre parceitos racionais, iguaise livres; ~ reforgo dos privilégios e da heteronomia, no caso dos financiamentos privados as pesquisas e, portanto, pre~ senga da mentalidade conservadora que no espera do pensamento a transcendéncia que lhe permite ultrapas- sar uma situacgio dada numa situagao nova, a partir da nogio de possibilidade objetiva; o possivel fica reduzido 20 provavel ¢ este, as condigdes imediatamente dadas; ~ reforgo do poder burocratico e da perda da idéia de ser- vigo paiblico aos cidadaos, no caso do corpo administra~ tivo; portanto, do prinefpio democratico da responsa~ bilidade piblica, do direito do cidadio a informagao ¢ da visibilidade administrativa; =reforgo da submissao aos padrées neoliberais que subor- dinam os conhecimentos a légica do mercado e, portan- to, auséncia do principio democratico da autonomia e da liberdade, de um lado, e da responsabilidade, de ou- tro, uma vez que a utilizagéo dos resultados cientificos nao é determinada nem pelos pesquisadores nem pelo poder piblico; ~ reforco da privatizacao do que é piblico, na medida em que as universidades piiblicas formam os pesquisadores com 0s recursos trazidos pela sociedade, mas os finan- ciadores usam os pesquisadores para fins privados; por- a Marilena Chau tanto, auséncia do prinefpio republicano da distingio entre o puiblico e o privado e do principio democrético que distingue os direitos e os interesses; ~ reforco da submissao a ideologia pés-moderna, que su- bordina as pesquisas 20 mercado veloz da moda e do descartivel e, portanto, abandono do principio ético da racionalidade consciente ¢ o principio politico da res- ponsabilidade social; = reforco dos padrées autoritétios, oligérquicos e violen- tos da sociedade brasileira pela auséncia de controle in- terno da universidade por ela mesma e pela auséncia de verdadeira prestagao de contas das atividades universi- tarias sociedade, portanto, abandono do princfpio de~ mocratico da informagio dos ¢ aos cidadios. O neoliberalismo, ao afirmar que os imperativos do mer- cado sio racionais e que, por si mesmos, sio capazes de orga- nizar a vida econdmica, social ¢ politica introduz a idéia de competigao ¢ competitividade como solo intranspontvel das relagoes sociais, politicas e individuais. Desta maneira, trans- forma a violencia econdmica em paradigma ¢ ideal da agio humana. O célebre “vencer e vencer” de Fernando Collor. 0 1p6s-modernismo, subproduto da ideologia neoliberal, ao afir- mar que as antigasidéias de razo, universalidade, consciéncia, liberdade, sentido da histéria, luta de classes, justica, respon- sabilidade c que as disting6es entre natureza ¢ cultura, publico ¢ privado, ciéncia ¢ técnica, subjetividade e objetividade per- deram a validade, passa a afirmar como realidades tinicas € Gltimas a superficie veloz do aparecer social, a intimidade ¢ a privacidade narcfsicas, expostas publicamente sob a forma da propaganda e da publicidade, a competigao e a vit6ria indivi- dual a qualquer prego. neoliberalismo, fragmentando e dispersando a esfera da producio, por meio da terceirizagao, usando a velocidade das mudaneas cientificas, tecnol6gicas e dos meios de informagio, operando com o desemprego e a inflagao estruturais, fez.com gue o capital passasse a acumular-se de modo posto & sua forma cléssica, isto €, nao por absorgio ¢ incorporagio cres- 48 a IDEOLOGIA NEOLIBERAL F UNIVERSIDADE cente dos individuos e grupos ao mercado de trabalho e do consumo, mas por meio da excluso crescente da maioria da sociedade, polarizando-a em dois grandes blocos: 0 dacarénci absoluta e o do privilégio absoluto. O pés-modernismo, acei tando os efeitos do neoliberalismo, tomou-os como verdade {inica e tlkima, renunciou aos conceitos modernos de racio- nalidade, liberdade, felicidade, justica e utopia, mergulhando no instante presente como tempo tnico e ultimo. ‘Aeeste quadro é preciso acrescentar um aspecto que nos diz diretamente respeito: as mudancasnas ciénciase nas tecnologias. ‘Accincia antiga definia-se como teoria, isto é, para usar- mos a expressao de Aristételes, estudava aquela realidade que independe de toda agio ¢ intervengio humanas. A ciéncia mo- derna, ao contrrio, afirmou que a teoria tinha como finali- dade abrir o caminho para que os humanos se tornassem senhores da realidade natural e social. Todavia, a ciéncia mo- derna ainda acreditava que a realidade existia em si mesma, separada do sujeito do conhecimento € que este apenas podia descrevé-la por meio de leis e agir sobre ela por meio das técnicas, A cigncia contemporanea, porém, acredita que nio contempla nem descreve realidades, mas as constr6i intelec- tual ¢ experimentalmente nos laborat6rios. Essa visio p6s-mo- derna da cigncia como engenharia e no como conhecimento, desprezando a opacidade do real e as dificeis condig6es para instituir as relagdes entre o subjetivo ¢ 0 objetivo, leva a ilusio de que os humanos realizariam, hoje, o sonho dos magos da Renascenga, isto é, serem deuses porque capazes de criar a propria realidade e, agora, a propria vida. ‘Acessa mudanca do estatuto da ciéncia corresponde a mu- dana do estatuto da técnica. Para a ciéncia antiga, teoria ¢ técnica nada possufam em comum, a técnica sendo uma arte para encontrar solugées para problemas préticos sem qualquer relagao coma ciéncia. A ciéncia moderna modificoua natureza dos objetos técnicos porque os transformou em objetos tecno- ogicos, isto é, em ciéncia materializada, de tal maneira que a teoria cria objetos técnicos e estes agem sobre os conhecimen- 49 Marilena Chaut tos teéricos. A ciéncia contemporanea foi além ao transformar (0 objetos técnicos em autématos, portanto, num sistema de objetos auto-referidos, auto-regulados e dotados de l6gica pr6- pria, capazes de intervir nao s6 sobre teorias e priticas, mas sobre a organizagio social e politica. Como sabemos, a ciéncia € a técnica contemporaneas tornaram-se forcas produtivas ¢ trouxeram um crescimento brutal do poderio humano sobre © todo da realidade que, afinal, é construida pelos préprios homens. As tecnologias biolégicas, nucleares, cibernéticas de informagio revelam a capacidade humana para um controle total sobre a natureza, a sociedade e a cultura, nao sendo casual ‘as expressdes engenharia genética, engenharia politica, enge- nharia social. Controle que, nao sendo puramente intelectual, mas determinado pelos poderes econémicos e politicos, pode ameagar todo o planeta. ‘Ora, fildsofos e cientistas antigos e modernos haviam apos- tado nos conhecimentos como fontes liberadoras para os seres humanos: seriam liberados do medo e da superstigao, das ca- réncias impostas por uma natureza hostil, e sobretudo do medo da morte, gragas aos avangos das ciéncias, das técnicas ¢ de uma politica capaz de deter as guerras. A ciéncia ea tecnologia contemporaneas, submetidas 4 légica neoliberal e 4 ideologia pés-moderna, parecem haver-se tornado 0 contririo do que delas se esperava: em lugar de fonte de conhecimento contra as superstigées, criaram a ciéncia e a tecnologia como novos, mitos e magias; em lugar de fonte liberadora das caréncias naturais ¢ cerceamento de guerras, tornaram-se, através do complexo industrial-militar, causas de caréncias e genocidios, Surgem como poderes desconhecidos, incontrolaveis, gerado- res de medo e de violéncia, negando a possibilidade da ago ética como racionalidade consciente, voluntaria, livre € res- ponsdvel, sobretudo porque operam sob a forma do segredo (0 controle das informacdes como segredos de Estado e dos oligopélios transnacionais) e da desinformacao propiciada pe- Jos meios de comunicagao de massa. Se a ética esté referida A recusa da ¥i intersubjetividade consciente e responsivel, a idéia da igual- léncia, & idéia de $0 IDEOLOGIA NEOLIBERAL F UNIVERSIDADE dade e da justiga,& idéia da liberdade como criagio do possivel no tempo, e sea democracia se institui como invengio, reconhe- cimento e garantia de direitos, baseados nos principios da igual- dade e da diferenga, e se a forma contemporanea do capitalismo € da ideologia si0 contrarios aos valores e normas que consti- ‘tuem o campo ético, creio que nossa primeira tarefa, enquanto universitérios, 60 combate hicido ao que impede ademocracia a ética democratica na sociedade contemporanca. No tenho vocagio apocaliptica. Esse quadro no preten- de ser o retrato de uma realidade inelutével como um destino cego contra o qual nada se possa fazer. O que quis enfatizar que, se ndo lutarmos contra o neoliberalismo, nossas tentativas para reconstruir a escola piblica nos seus trés graus estaré prometida ao fracasso. O neoliberalismo no é uma lei natural nem uma fatalidade césmica nem muito menos o fim da his- t6ria. Fle € a ideologia de uma forma histérica particular as- sumida pela acumulagio do capital, portanto, algo que os homens fazem em condigdes determinadas, ainda que nio 0 saibam ¢ que podem deixar de fazer se, tomando consciéncia delas, decidirem organizar-se contra elas. Walter Benjamin es- creveu que era preciso narrar a hist6ria a contrapelo, narran- do-a do ponto de vista dos vencidos porque a histéria dos vencedores & a barbirie. Temos, simplesmente, de ter a cora- gem de ficar na contracorrente e a contrapelo da vaga vitoriosa doneoliberalismo. Afinal, como dissera La Boétie, s6 hétirania onde houver servidao voluntaria. Muito obrigada st

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