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O GATO PRETO eH No que diz refpeita a narrativa mais que extravagante, porém doméftica, cujas linhas comeso a tragar, nao espero nem suplico a crenga de ninguém. De fato, seria louco se esperasse algum crédito num caso em que os meus pr6- prios sentidos rejeitam o que tes- temunharam. E, entretanto, nao sou louco ~nem certamente esta rei sonhando. Mas... ilufragdes OSWALDO GOELDI tradugio BERNARDO CARVALHO devo morrer amanhi e hoje desafogo a minha alma. Meu intuito imediato é expor ao mun- do, sem rodeios, de forma sucinta e livre de julgamentos, uma série de eventos simples familiares. Por suas conseqiiéncias, esses even- tos me aterrorizaram, me torturaram, me des- truiram. Todavia, nio tentarei explicé-los. A mim sé causaram horror — a muitos parece- rio mais barrocos do que terriveis. Talvez, no futuro, haveré algum intele@o capaz de redu- zir o meu fantasma ao lugar-comum — uma mente mais serena, mais logica e bem menos suscetivel do que a minha, que nao perceberé, nas circungtancias que em seguida relato em pormenores e com temor, nada além de uma sucessio normal de causas ¢ efeitos muito naturais. Desde a mais tenra infancia, deftaquei-me pelo temperamento décil e humano. A ternura do meu coragao era tio conspicua que fazia de mim objeto da zombaria dos colegas. Tinha uma devogao especial pelos animais, ¢ meus pais me presenteavam com uma grande variedade de bichos de eftimasao. Passava a maior parte do tempo na companhia destes, ¢ nada me dava mais felicidade do que alimenté-los e acaricié- los. Essa peculiaridade de carter cresceu comi- go e, na idade adulta, tornou-se uma de minhas prinefpais fontes de prazer. Aos que acalenta~ ram afeto por um cao fiel e sagaz, nem preciso explicar a natureza ou a intensidade da gratifi- cagio que dai se tira. Hé algo na dedicagio eno amor desinteressado do animal que atinge em cheio 0 coragao daquele que teve oportunidade de teétar com freqiiéncia a reles amizade e a fide- lidade muito ténue de um mero Homem. Casei-me cedo e tive a felicidade de encon- trar na minha mulher uma indole que nio era incompativel com a minha. Observando o meu pendor pelos animais domésticos, ela nao per- deu nenhuma chance de obter bichos de esti- magio das egpécies mais agradaveis. Tinhamos passaros, peixinhos dourados, um belo cio, coelhos, um mico e um gato. Ee dltimo era um animal bonito, extraordi- nariamente grande, todo preto e de uma sagaci~ dade surpreendente. Falando de sua inteligén- cia, minha mulher, que no fundo nio era pouco impregnada de superftigio, fazia alusdes fre~ qutentes a velha crenga popular segundo a qual todo gato preto é uma bruxa disfargada. Nao que ACHET QUE © GATO ME EVITAVA. ela falasse a sério em relagdo a isso — e s6 trago 0 assunto a baila por ter-me ocorrido justo agora. Pluto — o nome do gato — era o meu bicho favorito ¢ meu companheiro. S6 eu the dava de comer, € ele me acompanhava aonde quer que eu fosse dentro de casa. Chegava a ser dificil impedi-lo de me seguir quando eu saia Assim durou a nossa amizade, por muitos anos, ao longo dos quais 0 conjunto do meu temperamento ¢ do meu carater sofreu — por obra do Deménio da Intemperanga, envergo- nho-me de confessa-lo — uma alteragao radical para pior. Tornei-me, dia apés dia, mais mal- humorado, mais irascivel, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Dei por mim usando de linguagem destemperada para com a minha mulher. E até mesmo de violéncia fisica. Os bichos, € claro, sentiam a mudanga da minha indole. Nao apenas os negligenciava, mas os maltratava. Em relagio a Pluto, porém, eu ain- da guardava estima suficiente para me impedir de Ihe aplicar as sevicias que sem escrupulos infligia aos coelhos, ao mico e até mesmo ao cachorro quando, por acidente ou afeigao, cru- zayam 0 meu caminho. Mas a minha doenga se apoderou de mim — afinal que doenga se com- para ao Alcool?! — ¢ por fim até Pluto, que comegava a ficar velho, € por conseqiiéneia um tanto rabugento, até ele passou a sofrer os efei- tos do meu mau humor. ‘Uma noite, muito embriagado, voltando para casa de uma das minhas rondas pela cidade, achei que o gato me evitava. Agarrei-o e ele, apa~ vorado com a violéncia, infligiu-me com seus dentes uma pequena ferida na mao. Imediata~ mente, fui possuido pela firia de um deménio Ja no me reconhecia. Era como se a minha alma original tivesse de repente abandonado 0 corpo e uma maldade mais que diabélica, movida a fim, fizesse eftremecer cada fibra da minha car- caga. Tirei um canivete do bolso do casaco, abri a lamina, segurei o pobre animal pela garganta e, num ato deliberado, arranquei um dos seus olhos! Ruborizo, queimo e eftremego enquanto escrevo essa atrocidade abominavel. Quando a razo voltou com a manhi — quan. do 0 sono me recuperou da depravagio da mi- nha faria noturna —, senti um miéto de horror © remorso pelo crime de que era culpado; mas foi, na melhor das hipéteses, um sentimento dé bil e ambiguo, ea alma permaneceu incélume. AMARREI UM LAGO EM TORNO DO SEU PESCOGO... Mais uma vez mergulhei no excesso e logo afo- guei no vinho toda meméria do meu ato. Nesse meio tempo, 0 gato se restabeleceu aos poucos. E verdade que a érbita do olho perdido tinha um afpeéto medonho, mas ele ja nao pa- recia padecer de nenhuma dor. Andava pela casa como de costume, mas, como seria de esperar, fugia em desabalado terror minha aproxima- cao. Ainda reftava em mim algo do meu velho coragao, de modo que de inicio sofri com tal rejeigao por parte de uma criatura que outrora tanto me amara. Mas foi um sentimento que logo cedeu a irritagao. E entio surgiu, como que para a minha ruina final e irrevogivel, 0 espirito da PERVERSIDADE. Desse espirito a filosofia nio diz nada. E contudo nao tenho tanta certeza da existencia da minha alma quanto tenho de que © egpirito da perversidade é um dos impulsos primitivos do corago humano — uma das facul- dades ou sentimentos primérios e indivisiveis que norteiam 0 cardter do Homem. Quem nunca se viu cometendo um ato vil ou estipido, centenas de vezes, unicamente por saber que no devia cometé-lo? Nao temos uma propensio perpétua, a despeito do nosso melhor juizo, a violar o que ¢ Lei, simplesmente por sabé-lo tal? O egpirito da perversidade, como eu disse, veio para a minha ruina derradeira. Foi esse desejo insondavel da alma de se torturar ~ de violentar a sua propria natureza, de fazer a coisa errada simplesmente por ser errada— que me impeliu a continuar e por fim a consumar a injiiria que infligira a0 bichano inofensivo. Certa manhi, a sangue frio, amarrei um lago em torno do seu 10 pescogo ¢ o pendurei no galho de uma arvore - © 0 fiz com lagrimas escorrendo dos olhos e 0 mais amargo dos arrependimentos no coragao. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, por- que sentia que nio tinha me dado nenhuma ra~ zi para agredi-lo, porque sabia que, ao fazé-lo, estava cometendo um pecado, um pecado mor- tal que nao sé punha a imortalidade da minha alma em risco, mas seria capaz de mandé-la—se é que isso era possivel — para além do aleance da misericérdia infinita do Mais Piedoso ¢ Mais Terrivel dos Deuses. Na noite do dia em que efte ato cruel foi cometido, acordei com alguém gritando “Fo- go!”. As cortinas da cama estavam em chamas. A. casa inteira queimava. Foi com grande dificul- dade que minha mulher, um empregado ¢ eu n conseguimos escapar das labaredas. A perda foi total. Com todos os meus bens mundanos engo- lidos, me resignei desde entio ao desespero. Eftou acima da fraqueza de procurar estabe- lecer uma relagao de causa ¢ efeito entre o de- saftre e a atrocidade. Mas relato uma cadeia de acontecimentos ¢ no desejo omitir nenhum elo. No dia seguinte ao incéndio, visitei as rui- nas, As paredes, & excegio de uma, tinham de- sabado. A excegio era uma diviséria ndo muito grossa que ficava mais ou menos no meio da casa ¢ contra a qual se apoiava a cabeceira da minha cama. O reboco tinha em grande parte resistido a0 fogo, 0 que atribui ao fato de ter sido recentemente aplicado. Uma multidao se aglomerava em torno dessa parede, ¢ muitas pessoas pareciam examinar com grande cuidado 12 atengao um certo detalhe. As palavras “eétra- nho!”, “singular!” e outras expressdes similares ram a minha curiosidade. Aproximei-me «vi, como que gravado em baixo-relevo sobre a su- perficie branca, a figura de um gato gigantesco A impressio era de uma verossimilhanga real- mente assombrosa. Havia uma corda no pescogo do animal Quando deparei com essa aparigio — jé que jo conseguia vé-la de outra forma —, 0 meu c4panto € 0 meu terror foram extremos. Mas por fim a reflexio veio ao meu auxilio. Lembrei {que o gato fora enforcado num jardim adja vente a casa. Com os gritos de incéndio, 0 jar- dim foi imediatamente tomado pela multidio e ulguém deve ter cortado a corda da arvore e ati- tuilo 0 gato no meu quarto, por uma janela 13

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