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JOÃO BERNARDO GALVÃO‑TELLES

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Devassidão, crime, infâmia e intriga:
diligências do Santo Ofício em
Alvarenga no século XVIII.

João Bernardo Galvão-Telles | Licenciado em direito, sócio da LMT Consultores


em História e Património, académico correspondente da Academia Portuguesa da
História e sócio efectivo do Instituto Português de Heráldica, tendo sido redactor da
revista Armas e Troféus (2015–2020). Foi subdirector do Centro Lusíada de Estudos
Genealógicos e Heráldicos da Universidade Lusíada de Lisboa (1998–2011) e exerceu
o cargo de secretário‑geral da Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (2002–
2013). É autor de diversos livros e artigos sobre História e Património.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 439

Resumo: A partir da análise de três habilitações setecentistas ao Santo Ofício,


respeitantes a outros tantos indivíduos procedentes de algumas das mais destacadas
famílias da freguesia de Alvarenga, então sede de um antigo concelho na comarca e
bispado de Lamego, procurou dar‑se um pequeno contributo para o respectivo retrato
social, revelando os mecanismos e comportamentos atinentes à comprovação da
limpeza de sangue e à consequente promoção e salvaguarda da honra.
Abstract: The analysis of three 18th‑century qualifications to the Holy Office,
concerning as many individuals from some of the most prominent families of the
parish of Alvarenga, head of an ancient municipality in the district and bishopric of
Lamego, was an attempt to make a small contribution to the respective social portrait,
revealing the mechanisms and behaviours related to the proof of blood cleanliness and
the consequent promotion and safeguarding of honour.

Introdução

Deve‑se ao nosso amigo e confrade da Academia dos Simples o mais exaustivo,


minucioso e competente estudo sobre os estatutos de limpeza de sangue, o qual cons-
tituiu, aliás, a sua notável tese de doutoramento [1].
A limpeza de sangue foi talvez o mais significativo critério de diferenciação
social no Antigo Regime, ao separar cristãos‑velhos de cristãos‑novos e vedando a
estes o acesso a diversos cargos, instituições, privilégios, etc [2]. Um dos caminhos mais
relevantes para a consagração pública dessa limpeza e do consequente status que daí

1 FIGUEIRÔA‑REGO, João, «A Honra alheia por um fio». Os estatutos de limpeza de sangue nos espaços
de expressão ibérica (sécs. XVI–XVIII), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e
Tecnologia, 2011.
2 Vd. FIGUEIRÔA‑REGO, João, «Limpeza de sangue», in Da terra e do território no Império Português.
E‑Dicionário, disponível em https://edittip.net/2015/04/07/limpeza-de-sangue/ (consultado a 29 de
Abril de 2021). Também BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond, «Santo Ofício, Promoção e Exclusão
Social: o Discurso e a Prática», Lusíada História, série II, n.º 8 (2011), pp. 223–242, referiu que «a limpeza
de sangue consistia em não ter antepassados portadores de sangue impuro, isto é, de judeu, mouro,
cigano ou negro. Assim, o próprio e o seu cônjuge, no caso de ser casado, para ter acesso aos referidos
cargos e dignidades deveria provar que era de sangue limpo. Para isso, ao candidatar‑se a integrar certa
instituição, aquela deveria desencadear um processo de habilitação, cujas custas corriam por sua conta,
para se apurar se era de boa vida e costumes e, sobretudo, se era de sangue limpo. A limpeza de sangue
funcionava, desta forma, como um instrumento jurídico das instituições tradicionais de nobilitação,
distinção e promoção social, que obstruía o acesso a todos os que tinham sangue impuro às carreiras
nobilitantes e aos processos de nobilitação e distinção social».
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advinha foi a habilitação ao desempenho de funções no próprio tribunal da Inquisição,


mormente os de comissário e de familiar do Santo Ofício — aqueles necessariamente
ocupados por clérigos, estes habitualmente por leigos —, que actuavam como agentes
disseminados pelo reino e demais territórios ultramarinos. A não admissão dos que
se propunham a tais ocupações era, por oposição, um factor de estigmatização e
exclusão [3].
Atento este contexto, «as elites locais foram‑se apercebendo desta realidade e
viram nas familiaturas uma forma de ascenderem na pirâmide das distinções do Antigo
Regime» [4]. As candidaturas operavam‑se através de um requerimento do preten-
dente em que este, invocando o desejo de servir o Santo Ofício, declarava a sua natura-
lidade, residência e ocupação, identificando também os nomes e locais de nascimento
de pais e avós; se fosse casado, devia igualmente referir esses dados a respeito da sua
mulher e, adicionalmente, podia indicar algum parente chegado que já estivesse habi-
litado pela Inquisição. A averiguação dos requisitos do candidato processava‑se então
através da inquirição de testemunhas, tanto por via extrajudicial como judicial, condu-
zida por comissários nas localidades pertinentes para o efeito [5]. Nessas diligências

3 «No universo simbólico do Portugal barroco, a afiliação ou proximidade ao Tribunal [da Inquisição]
era sinal de distinção e uma via de promoção e poder pessoal e familiar. Pelo contrário, quem infringia os
seus ditames, não só por incorrer em crime de heresia, mas também por lhe ser descoberta uma mácula de
origem judaica num dos quatro costados, por remota que fosse, era objecto de infâmia e exclusão que, de
igual modo, atingia os seus descendentes. Cada vez era mais notório que a condição de cristão‑novo podia
não implicar uma crença real no judaísmo, mas tão‑só, e não era pouco, o estigma social que derivava de
descender de quem a tivera». MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro, História da Inquisição Portuguesa.
1536–1821, [Lisboa]: A Esfera dos Livros, 2013, p. 244.
4 LOPES, Bruno, «Os familiares do Santo Ofício de uma localidade do sul de Portugal (Arraiolos):
perfil social e recrutamento», in SERRANO, Eliseo (coordenação), De la tierra al cielo. Líneas recientes
de investigación en Historia Moderna (I Encuentro de Jóvenes Investigadores en Historia Moderna —
Comunicaciones), Zaragoza: Institución «Fernando El Catolico», 2013, pp. 53–83 e, em particular, a p.
54. Vd. também LOPES, Bruno, «Familiares do Santo Ofício, população e estatuto social (Évora, primeira
metade de setecentos)», in I Congresso Histórico Internacional. As Cidades na História: População (atas),
s.l.: [Câmara Municipal de Guimarães], 2013, vol. 3 (Cidade Moderna II), pp. 277–307; LOPES, Bruno, «A
Inquisição nas Terras Periféricas: Comissários, Notários e Familiares do Santo Ofício em Montemor‑o‑Novo
(sécs. XVI–XIX)», Almansor, 3.ª série, n.º 2 (2016), pp. 11–69.
5 «O processo de habilitação consistia num inquérito até à terceira geração do candidato, com
interrogatórios de testemunhas escolhidas entre as pessoas mais velhas e prestigiadas das localidades
onde tinham residido os seus antepassados, sendo excluídos os amigos, inimigos e parentes». MARCOCCI;
PAIVA, op. cit., p. 256. Vd. também OLIVAL, Fernanda, et alii, «Testemunhar e ser testemunha em processos
de habilitação (Portugal, século XVIII)», in LÓPEZ‑SALAZAR, Ana Isabel; OLIVAL, Fernanda; FIGUEIRÔA‑
‑REGO, João, Honra e sociedade no mundo ibérico e ultramarino. Inquisição e Ordens Militares. Séculos
XVI–XIX, s.l.: Caleidoscópio, 2013, pp. 315–349.
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procurava aferir‑se se o habilitando reunia as condições pessoais necessárias ao exer-


cício do cargo e, sobretudo, se a sua família padecia de alguma fama de sangue impuro,
isto é, se ele ou algum dos seus ascendentes era ou fora tido por cristão‑novo, judeu,
mouro, muçulmano, etc. Esta investigação estendia‑se à família da mulher do preten-
dente e, acaso este tivesse filhos ilegítimos, às das respectivas mães. Pelos interesses
em jogo, tantas vezes personificados nos processos em intervenientes com intenções
de sentidos opostos, «a maioria das diligências conheceram sobressaltos, obstáculos,
dilações» [6].
Considerando, por isso, a riqueza informativa dos processos de habilitação ao
Santo Ofício, tem sido chamada a atenção para a potencialidade destes documentos
«no sentido de reconstituir genealogias, possíveis fluxos de migração, identificar rela‑
ções comunitárias, cadeias clientelares, redes de compadrio e conflitos em torno da
honra» [7].
Alvarenga em 1758 tinha 1.148 habitantes distribuídos por 268 fogos. Era uma
freguesia rural com muitos aglomerados dispersos, que funcionava como sede de um
antigo concelho pertencente à comarca e ao bispado de Lamego, mas cuja igreja era da
apresentação dos padres jesuítas do colégio de Coimbra [8]. A análise das habilitações
setecentistas ao Santo Ofício de três dos seus moradores teve o ensejo de prestar um
breve contributo para o retrato social dessa pequena comunidade.

Era de boa vida e costumes… «excepto o ser amigo de


mulheres»!

António Gonçalo trazia nas veias o sangue de algumas das principais e mais
antigas famílias de um território montanhoso que, tendo o Douro no seu coração, é
limitado a norte e a sul pelos seus afluentes Tâmega e Paiva.

6 FIGUEIRÔA‑REGO, «A Honra alheia por um fio» …


7 LOPES, Luiz Fernando Rodrigues, «Explorando processos de habilitação aprovados e reprovados
pelo Santo Ofício: potencialidades, sugestões e precauções no uso investigativo», Contraponto — Revista
do Departamento de História e do Programa de Pós‑Graduação em História do Brasil da UFPI, vol. 9, n.º 1
(Jan. / Jun. 2020), pp. 242–260 e, em especial, a p. 242.
8 BRANDÃO, D. Domingos de Pinho; LOUREIRO, Olímpia Maria da Cunha, Arouca. Notas monográficas,
Arouca: Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão, 1991, pp. 37–45.
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Nascido em 1674 no outrora concelho de Tuias, seguramente na quinta de


Vila Nova, onde seus pais residiam, recebeu o baptismo a 8 de Agosto na igreja paro-
quial que, com o título do Salvador, no vizinho couto de Tabuado, era padroado da sua
família paterna, que aí tinha também a quinta e morgado de Novões [9]. Aos doze anos,
por alvará de 25 de Novembro de 1686, alcançou o foro de moço fidalgo da Casa Real,
que por seu pai lhe pertencia [10], constando ter passado depois por Coimbra, em cuja
universidade se matriculou a 3 de Março de 1690, aparentemente sem ter dado conti-
nuidade aos estudos [11].
Do progenitor, António Gonçalo tomou os apelidos que usaria ao longo da vida
e dele herdou, quando ainda era criança, extensas e importantes propriedades. Aos
vinte e poucos anos, porém, na transição do século XVII para o seguinte, foi nas terras
da mãe, ainda viva à época, que resolveu assentar residência.
A quinta do Paço, em Alvarenga, era de antiguidade imemorial. Cabeça de uma
honra de que foi senhor D. Egas Moniz, o célebre aio do nosso primeiro rei, passara
por casamento, no século XIV, a um ramo dos Vasconcelos. Desses recuados tempos
era a vetusta torre senhorial, cujos vestígios ainda se observavam nos finais de oito-
centos. Foi aí que nasceu, na segunda metade do século XVI, Jácome Rodrigues de
Vasconcelos [12], cujo filho, Francisco Pereira de Vasconcelos, fidalgo da Casa Real e
capitão-mor dos concelhos de Alvarenga e Cabril [13], tendo herdado a propriedade
nas suas legítimas [14], a haveria de vincular em morgado, por escritura lavrada a 17 de

9 Arquivo Distrital do Porto, Registos Paroquiais, Marco de Canaveses, Tabuado, baptismos, livro 2, fl.
s/n. Apesar de ter sido baptizado na igreja do Salvador de Tabuado, são várias as fontes que o dão como
natural da não distante freguesia do Salvador de Tuias.
10 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. Pedro II, livro 3, fl. 114.
11 Arquivo da Universidade de Coimbra, Índice de alunos, letra S, n.º 11257.
12 Sobre alguma da sua descendência, vd. REZENDE, José Cabral Pinto de; REZENDE, Miguel Pinto de,
Famílias nobres nos concelhos de Cinfães, Ferreiros e Tendais nos sécs. XVI, XVII e XVIII, Porto: s.n., 1988,
pp. 181–193.
13 A expressa auto‑referência de Francisco Pereira de Vasconcelos como capitão‑mor de Alvarenga e
Cabril, reafirmada por alvará régio, lança uma perspectiva diferente quanto ao entendimento de que ele
teria apenas sido capitão de uma companhia de ordenanças em Alvarenga e de que a respectiva capitania‑
‑mor apenas teria surgido em 1784. Cfr. MADUREIRA, António Dias, As Ordenanças de um Concelho —
Alvarenga, s.l.: Associação de Defesa do Património Arouquense, 2014, pp. 21–27, 29–30 e 35–36.
14 Declarou Francisco «que por morte de seus pais lhe coubera por legítimas a quinta chamada de
quintela [depois designada do Paço, situada junto ao referido lugar de Quintela], sita no dito Concelho de
Alvarenga, na qual quinta lhe deixou também além de suas legítimas a dita sua mãe [D. Isabel da Silva] o
terço da Alma de todos quantos bens tinha e o tomou na dita quinta, a qual lhe veio a ficar toda por inteiro
com todos os casais e foros anexos a ela». D. Isabel da Silva, mãe de Francisco, tinha falecido em Cinfães a
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Agosto de 1648 e confirmada por alvará régio de 30 de Maio de 1650 [15]. Acabando
o instituidor por permanecer celibatário e sem filhos, a administração do vínculo tran-
sitou para sua sobrinha D. Isabel da Silva Pereira de Vasconcelos [16], que veio a casar,
talvez à roda de 1670, com João Correia de Sousa Montenegro. Foram eles os pais de
António Gonçalo [17].
Encontrava‑se, pois, António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro na quinta
do Paço, em Alvarenga, quando, no dia 3 de Outubro de 1706, entre as três e as quatro
da tarde, por procuração passada a Diogo Rangel de Macedo, guardador da saúde do
reino, morador em Belém, nas imediações de Lisboa, casou na igreja da Pena desta
cidade com D. Vitória Teresa de Noronha, filha legítima de D. Tomás de Nápoles Noronha

27 de Março de 1645, já viúva de Jácome Rodrigues de Vasconcelos. Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Arquivo do Arquivo, Registo, livro 1, fls. 54–56v. Arquivo Distrital de Viseu, Registos Paroquiais, Cinfães,
mistos, livro 1, fl. 77.
15 Esclareceu o instituidor «que por cabeça e forte deste morgado tomava como dito é a Torre e Casa de
Alvarenga por ser um dos mais antigos e autorizados solares das famílias das famílias [sic] dos Alvarengas
e Vasconcelos deste Reino e se conservar desde tempo mui antigo sempre na geração dele instituidor […]».
No documento de instituição do morgado de Alvarenga não se fez qualquer menção à capela da Senhora
do Desterro, na quinta do Paço, pelo que me inclino mais para o facto de a sua construção ser posterior
à referida vinculação, ainda que eventualmente a mando do mesmo Francisco Pereira de Vasconcelos,
datando assim das décadas imediatas. Mas, à falta de documento que expressamente o comprove, é para
já uma mera suposição. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo do Arquivo, Registo, livro 1, fls.
54–56v. Registo Geral de Mercês, Mercês da Torre do Tombo, livro 18, fl. 197. Vd. MADUREIRA, António,
Capelas de Alvarenga, Arouca: Associação de Defesa do Património Arouquense, 2017, p. 63.
16 Depois de chamar à administração do morgado, em primeiro lugar, o filho ou filha que pudesse
vir a ter e que nomeasse em seu testamento, Francisco Pereira de Vasconcelos determinou que «sendo
caso que ele instituidor não case nem dele fique sucessão de legítimo matrimónio, no tal caso há ele por
nomeada neste morgado a sua sobrinha Dona Isabel da Silva Pereira de Vasconcelos, filha legítima de seu
irmão Miguel de Vasconcelos de Melo, a qual sua sobrinha disse ele instituidor que será obrigada a casar
com pessoa limpa de sangue e sua igual e que pela descendência da dita Dona Isabel sua sobrinha quer
que este morgado se vá continuando para todo o sempre […]». Verifica‑se, por conseguinte, que à data
da instituição do morgado de Alvarenga, em Agosto de 1648, Francisco Pereira de Vasconcelos chamou a
sobrinha D. Isabel (então em vésperas de completar sete anos, pois fora baptizada em Novembro de 1641)
à administração do vínculo apenas no caso de ele não ter descendência legítima, estipulando então tão
só a obrigação dela casar com pessoa «limpa de sangue e sua igual», ou seja, cristã‑velha e do mesmo
extracto social. Não resultou, pois, do acto instituidor do morgado de Alvarenga a determinação de que
ela o receberia como dote para casar com João Correia de Sousa Montenegro, como alguma bibliografia
tem sugerido. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo do Arquivo, Registo, livro 1, fls. 54–56v. Cfr.
REZENDE, op. cit., pp. 181–182. MADUREIRA, As Ordenanças…, p. 35. MADUREIRA, Capelas…, p. 63.
17 Admito que o enlace dos progenitores tenha sido celebrado em Alvarenga, paróquia da qual só
existem livros de registo de casamentos a partir de 1751. Com efeito, realizada a pesquisa nos anos
antecedentes ao nascimento de António Gonçalo, em 1674, tanto na freguesia de São João Baptista de
Cinfães, de onde D. Isabel era natural, como nas de Tuias e Tabuado, às quais João estava ligado, não logrei
encontrar o respectivo assento.
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e Veiga e de D. Paula Maria Josefa de Mendonça. Natural de Alenquer, onde fora bapti-
zada na freguesia de Triana, a noiva achava‑se recolhida no convento da Encarnação,
também na capital, sendo representada na celebração por seu irmão, homónimo do
pai de ambos [18].
O matrimónio, porém, durou pouco mais de ano e meio, tendo D. Vitória fale-
cido nos primórdios do mês de Maio de 1708. Sepultada no dia 10 na igreja do Salvador
de Tabuado, revela‑nos o respectivo assento que o óbito ocorrera em Arouca [19], mas
é de crer que a mulher de António Gonçalo tenha deixado o mundo na não distante
freguesia de Alvarenga, pois era nesta, como vimos, que seu marido tinha residência.
Nesse meio tempo, propusera‑se o fidalgo a ser admitido no Santo Ofício para
exercer o cargo de familiar [20]. Na respectiva petição, alegando que seu pai tivera
semelhante ocupação [21], o mesmo sucedendo com seu cunhado D. Tomás, António
Gonçalo confessou que tinha então dois filhos naturais, um de Mariana Pinta, do lugar
da Picota, e outro de Maria Vieira, do lugar de Vila Nova, ambos na freguesia de Tuias.
Despachado o requerimento nas vésperas do Natal de 1707, determinaram os
inquisidores de Coimbra, em Março seguinte, que se procedesse às habituais diligên-
cias com o fim de apurar se o candidato gozava do estatuto de cristão‑velho e reunia
os demais requisitos para o exercício que pretendia. Findas as averiguações iniciais, o
comissário André Pinto de Mendonça Barbosa veio informar, em Fevereiro de 1709,
que António Gonçalo, então já viúvo e sem que tivesse descendência do matrimónio,
era de boa vida e costumes, capaz de servir o Santo Ofício, sabendo ler e escrever,
acrescentando que ele e seus ascendentes eram limpos de sangue, sem fama nem
rumor em contrário. No entanto, ao invés dos dois filhos naturais por ele inicialmente

18 Os noivos haviam alcançado provisão para casarem por procuração «pois não é lícito segundo a
qualidade que [a noiva] tem receber‑se pessoalmente com outro homem que não seja seu marido, nem
o que há‑de ser a pode vir receber pelos achaques que de presente padece nem é justo que ela faça tão
longa jornada sem estar recebida». Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Câmara Eclesiástica de Lisboa,
Sumários Matrimoniais, 1706, maço 767, doc. 72. Registos Paroquiais, Lisboa, Pena, casamentos, livro
7, fls. 55–55v. Oficiou o enlace o pároco Domingues Bernardes, sendo testemunhas o padre Gonçalo
Rodrigues Barradas, beneficiado em Santa Marinha, na cidade de Lisboa, e aí morador, e Silvestre Pereira
Maciel, morador na freguesia de São Vicente, além de «outras mais pessoas que presentes estavam».
19 Arquivo Distrital do Porto, Registos Paroquiais, Marco de Canavezes, Tabuado, óbitos, livro 3, fl.
169v.
20 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
António, maço 23, doc. 560.
21 João Correia de Sousa Montenegro foi familiar do Santo Ofício por carta de 4 de Abril de 1678.
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declarados, a verdade é que havia conhecimento da existência de seis: um de Mariana


Pinta, conforme ele referira, mas de Maria Vieira eram nada menos do que cinco
rebentos!
Por razões que o processo não desvenda, a pretensão de António Gonçalo
Correia de Sousa Montenegro parece ter ficado suspensa nos anos imediatos, apenas
conhecendo novo desenvolvimento no início de 1715. Desta feita, coube ao comissário
João Soares de Castro informar que o requerente era pessoa de toda a virtude e capa-
cidade, apto a servir o Santo Ofício, auferindo um rendimento de 5 a 8 mil cruzados.
Confirmando‑se que não houvera filhos de sua mulher D. Vitória Teresa, novamente se
reiterou que tinha alguns bastardos.
Apesar de na Inquisição de Coimbra terem acomodado a opinião de que
António Gonçalo era pessoa de conhecida nobreza e com toda a virtude e capacidade
«sem embargo dos filhos que tivera», o certo é que se determinou a realização de novas
inquirições, iniciadas em Tuias no mês de Abril daquele ano de 1715. Se as testemu-
nhas então interrogadas foram unânimes em dizer que o habilitando era cristão‑velho,
de boa vida e costumes, que tinha juízo e capacidade, vivendo abastadamente «de seu
Morgado e Grandes Quintas que tem […] com sua liteira e cavalos», todas asseguraram
também que tinha muitos filhos naturais havidos em Maria Vieira e Mariana Pinta,
procedendo à identificação de cada um deles. Mas os depoimentos foram mais além
ao acrescentarem que em Alvarenga, onde o fidalgo estava a morar há muitos anos,
também lá tinha filhos, ignorando‑se todavia quais os seus nomes e quem fossem as
respectivas mães.
Este alvitre foi suficiente para se enviar o comissário André Pinto de Mendonça
Barbosa àquela freguesia, onde nos dias 21 e 22 de Maio procedeu à inquirição de
diversas testemunhas na igreja paroquial de invocação da Santa Cruz. Afirmando que
António Gonçalo residia em Alvarenga há perto de vinte anos, na sua quinta do Paço,
onde igualmente haviam conhecido seus pais, os depoentes confirmaram o estatuto
de cristão‑velho do habilitando, disseram que ele vivia limpa e abastadamente «com
sua liteira e cavalos […] e se serve com seus pajens e lacaios», reiteraram que tinha
juízo e capacidade para servir o Santo Ofício, lembraram que ele tinha sido estudante
de Coimbra por alguns anos e asseveraram que era de boa vida e costumes… «excepto
o ser amigo de mulheres»! — na opinião de alguns dos interrogados.
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Sabia‑se, com efeito, que António Gonçalo tivera na freguesia de Tuias filhos
naturais de duas raparigas, alguns dos quais até eram do conhecimento pessoal das
próprias testemunhas inquiridas em Alvarenga. Mas aqui, o pretendente tinha outros
dois filhos naturais de Catarina Pereira, solteira e moradora no lugar da Vila, e mais um
cuja mãe era Violante Soares, igualmente solteira, tecedeira de profissão, que vivia no
lugar de Carvalhais.
Deste modo, através das várias diligências efectuadas, conseguiu o Santo Ofício
identificar nove filhos naturais de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro, em
lugar dos dois por ele inicialmente confessados [22]:

• Luís Correia, nascido a 1 e baptizado a 3 de Janeiro de 1693 na igreja do


Salvador de Tuias pelo padre Manuel Pinto Ribeiro, cura de Santa Maria
do Freixo, como filho de Maria Vieira [23], solteira do lugar de Vila Nova,
dizendo‑se que o pai era António Gonçalo Correia de Sousa e tendo por
padrinhos Fernando de Sousa e Maurício Correia, irmão e primo do proge-
nitor;
• D. Luísa, cujo assento de baptismo não foi transcrito pelo Santo Ofício (está
simplesmente omisso no processo, nada se dizendo sobre a sua presu-
mível pesquisa e não localização), mas que as testemunhas identificaram
também como filha de Maria Vieira, de Tuias;
• Caetano, nascido a 12 e baptizado a 20 de Novembro de 1697 na referida
igreja de Tuias pelo reitor Manuel Soares da Mota, dizendo‑se ser filho de
Maria Vieira, solteira do lugar de Vila Nova, e de António Gonçalo Correia
de Sousa; foram padrinhos Francisco da Silva, capitão‑mor de Cinfães (o
assento não o diz, mas era primo direito materno de António Gonçalo), e
Ana Correia, mulher de Gonçalo Freire, de Caíde;
• António, nascido a 20 e baptizado a 25 de Janeiro de 1700 igualmente na
igreja de Tuias e pelo mencionado reitor Manuel Soares da Mota, iden-
tificado como filho de Maria Vieira, do lugar de Vila Nova, e de António

22 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
António, maço 23, doc. 560.
23 Filha de Manuel Mendes, já defunto em Maio de 1715, e de Mariana Teixeira, lavradores, naturais e
moradores no lugar de Vila Nova e Picota, em Tuias, cristãos‑velhos.
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Gonçalo Correia de Sousa Montenegro, sendo afilhado de Fernando de


Almeida de Azevedo e de Teodósio Correia de Sousa (este último era meio‑
‑irmão de António Gonçalo, apesar de o assento não o mencionar);
• Manuel, baptizado na igreja de Santa Cruz de Alvarenga a 7 de Dezembro
de 1704 pelo padre coadjutor cura Domingos Teixeira Brandão, filho de
Violante [24], rapariga solteira, tecedeira e moradora no lugar de Carva-
lhais, sendo padrinhos Manuel Pereira, do lugar de Quintela, e Maria,
solteira, filha de Domingos Rodrigues, da Presa da Vila, constando que deu
por pai a António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro;
• Eugénia Maria, nascida a 3 e baptizada a 14 de Novembro de 1706 na
igreja de Tuias pelo padre Alexandre de Aguiar de Sousa, sendo referida
como filha de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro e de Maria
Vieira, do lugar de Vila Nova; foram padrinhos António Caetano Pereira da
Silva de Meneses e sua irmã D. Maria Isabel Pereira da Silva de Meneses
(sobrinhos de António Gonçalo, não obstante o assento ser omisso quanto
ao parentesco);
• António, do qual também não se transcreveu o assento de baptismo
(tal como no caso da meia‑irmã D. Luísa, está simplesmente omisso no
processo), identificado pelas testemunhas como filho de Mariana Pinta [25],
solteira, natural e moradora no lugar da Picota, em Tuias;
• Inácio, baptizado na igreja de Santa Cruz de Alvarenga a 5 de Março de 1713
pelo padre encomendado João da Silva Maldonado, dito filho de Catarina,
solteira, que deu por pai, e era fama pública, a António Gonçalo Correia de
Sousa, morador na quinta do Paço, sendo padrinhos Luís Correia e D. Luísa,
filhos do dito António Gonçalo e «assistentes na mesma casa do Paço»;
• António, igualmente baptizado em Alvarenga a 24 de Novembro de 1714,
referido como filho de Catarina Pereira [26], solteira, natural e moradora
no lugar da Vila, que deu por pai a António Gonçalo Correia Montenegro,

24 Filha de António Ferreira, solteiro, natural do lugar da Lage, na freguesia de Santo Isidoro de
Sobretâmega, e de Maria Soares, solteira, de Alvarenga, cristãos‑velhos.
25 Filha de Domingos Teixeira e de sua mulher Maria Mendes, lavradores, naturais e moradores no
lugar da Picota, em Tuias, cristãos‑velhos.
26 Filha de Domingos Rodrigues, o Pelo de alcunha, lavrador e/ou ferreiro, e de sua mulher Helena
Rodrigues, naturais e moradores no lugar da Vila, em Alvarenga, cristãos‑velhos.
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sendo padrinhos António Caetano, filho que ficou de Bento Pereira da


Veiga, morador em Tuias (o assento não o refere, mas eram respectiva-
mente sobrinho e cunhado de António Gonçalo), e António Correia, filho
do pai da criança.

Este rol dos filhos naturais de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro
evidencia que os mesmos foram concebidos uns antes do seu casamento com D. Vitória
Teresa de Noronha e outros depois do falecimento desta, ainda que no caso de Eugénia
Maria o respectivo nascimento tenha ocorrido menos de dois meses após o enlace do
fidalgo. A naturalidade dos rebentos e de suas mães reflecte também a permanência
do progenitor ora em Tuias, ora em Alvarenga, sendo de assinalar que António Gonçalo
foi dado como pai de todos aqueles de que se encontraram os respectivos assentos de
baptismo. Na generalidade dos casos, os padrinhos tinham relação de parentesco com
ele, sendo os exemplos mais significativos aqueles em que alguns dos filhos naturais
mais velhos apadrinharam dois dos meios‑irmãos mais novos.
Chegado a este ponto, entendeu o Santo Ofício apurar junto do próprio preten-
dente se este tivera mais filhos naturais do que aqueles que dissera na sua petição,
averiguando‑se também se os filhos Luís Correia e António Correia (ou alguns dos
outros) tinham por sua vez filhos, «porque sendo padrinhos de outros filhos naturais
de seu pai não têm boa educação e têm este mau exemplo» [27].
Na sua resposta, datada de Alvarenga a 30 de Agosto de 1715, António Gonçalo
Correia de Sousa Montenegro declarou que quando fizera a petição tinha apenas os
filhos nela declarados, «porquanto suposto tinha dormido com Violante Soares, filha
de Maria Soares e moradoras nesta vila e concelho de Alvarenga, Bispado de Lamego,
e pela parte paterna filha de António Ferreira, natural de Santo Isidoro, concelho de
Santa Cruz, arcebispado de Braga, e esta emprenhara e [assim] tive por filho um que ela
teve que chamam Manuel; e também quando fiz a dita petição não declarei nela que
tinha um filho por nome Inácio, filho de Catarina Pereira e neto de Domingos Rodrigues
e de sua mulher Helena Rodrigues, todos moradores e naturais nesta Vila e concelho de
Alvarenga, Bispado de Lamego, porquanto como a petição foi metida há sete ou oito

27 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
António, maço 23, doc. 560.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 449

anos e o rapaz se acha com Idade de quatro para cinco, ainda nesse tempo nem eu o
tinha nem sua mãe em meu poder, razão porque não o nomeei, o que agora faço pelo
aviso da presente carta» [28].
O fidalgo da quinta do Paço acrescentou também que seu pai, João Correia
de Sousa, não fora casado mais do que com sua mãe, D. Isabel da Silva, satisfazendo
assim mais uma questão que lhe havia sido colocada pelos inquisidores, pois algumas
referências mais antigas davam o nome de D. Isabel de Vasconcelos à mulher de seu
pai, fazendo‑os suspeitar da existência de mais do que um matrimónio.
Dois meses depois, António Gonçalo fez também chegar ao Santo Ofício a
carta de familiar passada ao progenitor, juntamente com outra de seu tio, Manuel de
Vasconcelos Pereira, irmão de sua mãe, identificada naquela como D. Isabel da Silva
Pereira e Vasconcelos, demonstrando assim que tanto a sua família paterna como
materna se encontravam já devidamente habilitadas pela Inquisição.
Ora, o esclarecimento prestado por António Gonçalo quanto aos filhos natu-
rais esteve longe de ser completo: continuaram por indicar vários filhos nascidos de
Maria Vieira antes de ele ter apresentado a sua petição ao Santo Ofício; e, dos dois que
nasceram mais tarde de Catarina Pereira, apenas mencionou um.
O inquisidor João Duarte Ribeiro, porém, na informação que lavrou na véspera
de São Martinho desse ano de 1715, não chamou a atenção para as discrepâncias
que se mantinham. E aceitando que a mãe de António Gonçalo era D. Isabel da Silva
e Vasconcelos Pereira — «consta ser a mesma com qualquer dos ditos apelidos» —,
considerou que tanto o habilitando como os seus vários filhos naturais eram cristãos‑
‑velhos. Mas a questão não se ficaria por aqui.
Entendia aquele alto responsável que a António Gonçalo «não é necessária
a ocupação de familiar do Santo Ofício, que teve seu pai e tio materno no tribunal».
Escreveu o inquisidor que «ter aprovados e de limpo sangue seus filhos, creio que tem
satisfeito o seu intento que era habilitá‑los». E rematou: «tendo ele 43 anos […] e tendo
nove filhos […] muitos dos quais nasceram depois de se lhe admitir a sua petição; tendo
mais filhos, como do seu costume — e pode presumir serão filhos de familiar não apro‑
vados — e assim se deve mandar dizer ao pretendente que seus filhos estão julgados

28 Ibidem.
450 Academia dos Simples | Livro segundo

por limpos e me parece que passando tempo em que mostre não ter este divertimento
se lhe pode passar carta de familiar» [29].
Em suma, a Inquisição considerava que, face àquela que vinha sendo a conduta
de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro, existia o risco de ele continuar a ter
filhos naturais, os quais escapariam às averiguações quanto à limpeza de sangue por
parte das respectivas mães caso o progenitor fosse já aceite como familiar do Santo
Ofício. Recomendava‑se, por isso, que se deixasse passar o tempo necessário para que
António Gonçalo parasse com tal «divertimento».
A este respeito é interessante comparar com o que tinha acontecido umas
décadas antes quando os referidos seus pai e tio materno se haviam igualmente habi-
litado. Porque na verdade António Gonçalo não deixava de sair aos seus…
João Correia de Sousa Montenegro requerera ser admitido como familiar do
Santo Ofício em 1677 [30]. Sendo então já casado com D. Isabel de Vasconcelos —
assim nomeada na altura —, não declarou a existência de qualquer filho ilegítimo.
Os primeiros depoimentos prestados na respectiva habilitação deram nota, porém, de
que tinha um filho natural, talvez havido em certa Isabel Moreira, de Tabuado. Depois,
as inquirições em Tuias revelaram que teria aqui outro filho natural, chamado António,
havido em certa Catarina, a madre seca por alcunha, mas dizia-se que João Correia de
Sousa «não faz conta deles […] nem trata com as mães nem delas faz conta, nem os
conhece por seus filhos, nem nunca teve nenhum deles em casa». E à medida que outras
testemunhas eram chamadas a depor, a realidade ia-se avolumando: haveria mais um
filho ou dois de uma Maria Vieira, filha de António Vieira, o Testas, da freguesia de
Rosem; outro na freguesia de Soalhães; e em Tuias também mais uns filhos havidos
numa moça chamada Ana da Costa.
Tudo visto e somado, o Santo Ofício descortinou que João Correia de Sousa
era pai de Maurício, havido em Isabel Moreira [31], moradora no couto de Tabuado; de

29 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
António, maço 23, doc. 560.
30 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, João,
maço 16, doc. 420.
31 Filha de António Moreira, natural do lugar dos Currais, freguesia de São Martinho de Avessadas,
concelho de Bem‑viver, e de sua mulher Maria Dias, moradora e natural do couto de Tabuado.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 451

Valério, tido em Ana da Costa [32], rapariga que estava servindo o próprio progenitor;
de António, nascido de Catarina da Costa [33], a qual estando servindo Luís Correia de
Sousa, pai de João, fora ter a criança à freguesia de Meinedo; e de Filipa, filha de Maria
Vieira [34], solteira, da freguesia de Rosem, cujos pais eram moradores em Tabuado e
caseiros do próprio pai da criança [35].
Quanto a Manuel de Vasconcelos Pereira, tio materno de António Gonçalo,
habilitado em 1675 [36], as inquirições realizadas em Cinfães, de onde ele era natural e
morador, rapidamente revelaram que tinha seis filhos ilegítimos, todos havidos antes
de casar de quatro mulheres solteiras: João e Catarina, filhos de Maria de Castro [37];
Maria e Catarina, filhas de Bárbara Pereira [38]; Carlos, filho de Maria Francisca [39],
do lugar de Sequeiro Longo; e Maria, filha de Isabel Cardosa [40], do lugar de Teixeiró.
Apesar destas circunstâncias, o entendimento do inquisidor frei Valério de São
Raimundo, redigido em Junho de 1676, foi de que «a culpa de [Manuel de Vasconcelos

32 Filha de Gaspar Gonçalves e de Catarina da Costa, solteira, naturais e moradores no lugar de Lardosa,
freguesia e concelho de São Martinho de Soalhães.
33 Filha de Pedro Fernandes e de sua mulher Cecília Gonçalves, ele natural do lugar do Outeiro, ela do
de Ambrais, ambos na freguesia e concelho de Tuias.
34 Filha de António Vieira, o Testas, natural de São Martinho de Avessadas, e de Ana do Couto, de
Rosem.
35 Instado a pronunciar‑se sobre os supostos filhos naturais, João Correia de Sousa apenas reconheceu
os primeiros três, escrevendo ao Santo Ofício a 9 de Julho de 1677: «só me vejo na maior confusão em
V.M. me dizer que são de cinco ou seis mulheres, sendo que só três tenho mal conhecidos por filhos e se
as verduras da minha mocidade deram causa ao Mundo ter suspeitas em que fossem mais dos três que
digo, eu o não sei meu senhor e muita mercê me fará V.M. advertir a quem for o Comissário que examine
se fiz eu conta nunca mais que dos três que digo, nem de suas mães, nem tão pouco de lhes dar nada nem
sustentar, mais que os três que digo; e quando seja necessário para se pôr corrente este meu negócio que
eu aceite por meus filhos os que não conheço, faça‑me V.M. favor apontar‑me as Mães para que lhe mande
a V.M. os avós, que eu não sei mais que destes três; e os mais que constarem das inquirições devem de ser
de Mulheres tão mundanas que nem uns nem outros poderão ser seus pais direitamente [….]».
36 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Manuel,
maço 48, doc. 1072.
37 Filha de Gaspar Francisco, de alcunha o Rei, natural da freguesia de Tuias, do lugar de Cercas(?),
vizinho a Canaveses, e de Catarina Rodrigues, natural da Quintã, freguesia de Soalhães. Sobre esta
descendência ilegítima de Manuel de Vasconcelos Pereira, vd. REZENDE, op. cit., pp. 182–183 e 190–
191. GALVÃO‑TELLES, João Bernardo, Os Telles de Santa Cruz de Alvarenga. Descendências e ligações nos
séculos XVI a XIX, Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade
Moderna do Porto, 2000, pp. 96–153.
38 Filha de António Pereira, de Cinfães, e de Maria de Almeida, natural do lugar de Louredo da Ponte(?),
freguesia de São Cristóvão de Nogueira.
39 Filha de Francisco João, também de Sequeiro Longo, e de Francisca Martins, do lugar de Centença(?),
ambos na freguesia de Cinfães.
40 Filha de João Martins, natural do lugar de Bouças, e de Isabel Pires, de Teixeiró, ambos em Cinfães.
452 Academia dos Simples | Livro segundo

Pereira] ter tantos filhos ilegítimos parece está já remediada com o Pretendente ter
tomado estado de casado».
Considerava, pois, o Santo Ofício que a condição matrimonial reduzia signi-
ficativamente o risco dos pretendentes prosseguirem uma vida de descaminho que
lhes continuasse a trazer filhos ilegítimos ao mundo, os quais, nascendo depois dos
progenitores serem admitidos como familiares, escapariam ao controlo do tribunal da
Inquisição. Era este, por conseguinte, o pecado de António Gonçalo Correia de Sousa
Montenegro, que tendo enviuvado não tornara a casar mas voltara a ter filhos naturais.
E, por isso, ao contrário deste, os seus pai e tio receberam sem entraves as respectivas
cartas de familiar.
Algum fundamento haveria no receio do Santo Ofício a respeito de António
Gonçalo, pois além dos nove filhos já acima arrolados existe a notícia de pelo menos
mais uma rapariga que, ou escapou ao crivo do Santo Ofício, ou nasceu já depois das
diligências de 1715. Chamava‑se ela D. Cecília e foi madrinha em Alvarenga dez anos
mais tarde, por sinal de um sobrinho de Mariana Pinta, uma das antigas companheiras
de seu pai [41].
Nesse ínterim, referindo‑se como morador na sua «quinta e morgado do Paço
da Vila de Alvarenga», o fidalgo resolvera‑se a fazer uma escritura de legitimação
de dois dos seus filhos, para que pudessem — de forma sucessiva — herdar os bens
do progenitor. O teor da procuração que António Gonçalo passou ao seu compadre
Fernando de Almeida de Azevedo revela‑nos os termos da sua pretensão: «a escri‑
tura que faço de meus bens a António Correia e Sousa Montenegro, meu filho, filho
que tive de Mariana Pinto Ribeiro, filha de Domingos Teixeira Pinto e de sua mulher
Maria Mendes de Vasconcelos, da freguesia do Salvador de Tuias do mesmo concelho,
sendo eu [e] ela solteiros e tendo dantes tido cópula carnal com Maria Vieira, prima
direita da dita Mariana Pinto Ribeiro, e também para assinar na mesma escritura em

41 A 19 de Agosto de 1725, o padre João da Silva Maldonado, de Alvarenga, com licença do respectivo
reitor, André Dias Ribeiro, baptizou a Lourenço, filho de Jacinto Teixeira e de sua mulher em primeiro
matrimónio Esperança Pereira, do lugar da Vila, neto paterno de Domingos Teixeira e de Maria Mendes,
ambos do lugar da Picota, na freguesia de Tuias, e materno de João Gonçalves, do lugar de Covelo, na
freguesia de Souselo, e de Maria Rodrigues, da Vila, em Alvarenga. Foram padrinhos José de Azevedo
Leitão, da quinta da Raposeira, na freguesia de São Cristóvão de Nogueira, e D. Cecília, solteira, filha de
António Gonçalo Correia e Sousa, de Alvarenga. Arquivo Distrital de Aveiro, Registos Paroquiais, Arouca,
Alvarenga, baptismos, livro 1, fl. 40.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 453

como quero que suceda em meus Bens Inácio, meu filho, que tenho de Catarina Pereira
de Sousa, da vila de Alvarenga, filha de Domingos Rodrigues e de sua mulher Helena
Rodrigues, do lugar da Vila, sendo eu e ela solteiros, e isto nos termos que o dito meu
filho António Correia de Sousa Montenegro se faleça sem casar ou casando se faleça
sem filhos, e porque quero que os ditos meus filhos sucedam em todos os meus Bens de
qualquer qualidade que seja na forma sobredita e para que assim possam suceder por
meu falecimento quero disso fazer escritura para a qual quero se declare em como os
hei por legitimados, digo, por legítimos aos sobreditos meus filhos, e peço a Sua Santi‑
dade e a Sua Majestade que Deus guarde os hajam por legítimos como se de legítimo
matrimónio fossem nascidos [...]» [42].
Para lá da revelação do chegado parentesco que existia entre duas das mães
dos seus filhos, não deixa de saltar à vista a menção ao estatuto de solteiro que o
fidalgo se atribuiu quando concebeu Inácio, pois na verdade era então viúvo, bem como
a designação das suas companheiras e dos pais de uma delas com mais apelidos do
que aqueles que os registos paroquiais mostraram, conferindo assim maior prosápia às
ascendências maternas dos rebentos que pretendia legitimar. A carta régia que António
Gonçalo alcançou a 18 de Novembro de 1718 sancionou, porém, apenas a legitimação
de António Correia de Sousa Montenegro, sendo omissa em relação a Inácio [43].
Este último seria contemplado em nova escritura de legitimação outorgada
por seu pai a 31 de Agosto de 1728 em cartório de que infelizmente não subsistem
livros para essa data [44], recebendo António Gonçalo a competente carta régia a 18
de Abril de 1731, ocasião em que se encontrava a residir na sua quinta da Granja, na
freguesia de São Cristóvão de Nogueira [45].
Mas apesar do favorecimento do filho de Mariana Pinta e de um dos filhos
de Catarina Pereira, António Gonçalo não deixou de ter vários outros em sua compa-
nhia nos tempos em que residiu na quinta do Paço, em Alvarenga, onde a respectiva

42 Arquivo Distrital do Porto, 4.º Cartório Notarial do Porto, livros de notas, I/28/3/1‑2.4239, fls. 229–
230.
43 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. João V, livro 132, fls. 227–227v.
44 Foi a mesma celebrada nas notas do tabelião Manuel da Silveira Pinto, do couto e concelho de
Gouveia de Ribatâmega, de cujo cartório o livro mais antigo data de 1730. Cfr. Arquivo Distrital do Porto,
Cartório Notarial de Amarante, 6.º ofício e 11.º ofício; Cartório Notarial de Marco de Canaveses, 13.º
ofício.
45 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. João V, livro 137, fl. 200.
454 Academia dos Simples | Livro segundo

presença está documentada ao longo de toda a década de vinte do século XVIII [46]. É
também de referir que a sua primeira amiga Maria Vieira, mãe de cinco dos seus filhos,
como vimos, nascida e moradora em Tuias, se encontrava a certa altura a residir com
António Gonçalo na mencionada propriedade, ocasião em que ela e um dos seus filhos
foram padrinhos de uma criança baptizada na igreja de Alvarenga [47].
Decorridos quase vinte cinco anos desde que o seu processo de habilitação ao
Santo Ofício ficara suspenso e em espera, António Gonçalo — que talvez para remissão
dos seus comportamentos devassos se fizera entretanto religioso professo na Ordem
de Malta «por especial mercê do Eminente Grão‑Mestre» — voltou a insistir, alegando
que «não se deferiu ainda esta súplica em que o pretendente tem gravíssimo prejuízo
na sua pessoa e geração». Remetido o assunto à Inquisição de Coimbra em Junho
de 1739, argumentava o requerente — parecendo de algum modo ter conseguido
quebrar o secretismo próprio destes processos — que as diligências efectuadas em
1715 não se concluíram «por causa de algum embaraço», presumindo que este fosse
na qualidade de sangue de Violante Soares, solteira, natural da freguesia de Santa Cruz
de Alvarenga, de quem tivera um filho natural chamado Manuel Correia de Sousa. E
assim, «para melhor averiguação da verdade», o já sexagenário fidalgo declarou que a
dita Violante era filha de António Ferreira e de Maria Soares, neta paterna de António
Fernandes e de Maria Antónia, moradores no lugar da Laje, na freguesia de Santo
Isidoro, e bisneta de Isidoro Gonçalves [48], natural e morador no mesmo lugar, e que a
dita Maria Soares fora natural e moradora no lugar da Vila, na freguesia de Alvarenga.
Que «embaraço» seria este, aparentemente na origem do não deferimento da
carta de familiar do Santo Ofício a António Gonçalo, nunca revelado nas averiguações
realizadas em 1715, onde se chegou a declarar que o referido filho Manuel era, pela
parte materna, também cristão‑velho? Por que razão sentiu o agora religioso neces-

46 Não me debruçarei sobre o destino que tiveram os filhos de António Gonçalo Correia de Sousa
Montenegro mais do que o já efectuado, o que poderá ficar talvez para outra oportunidade.
47 A 26 de Junho de 1727, de licença do reitor André Dias Ribeiro, o padre João da Silva Maldonado
baptizou a Tomásia, filha de Ana, solteira, natural do lugar de Vila Nova e aí moradora, neta materna de
Domingos Rodrigues e de Isabel Rodrigues, ambos naturais do dito lugar. Foram padrinhos António de
Sousa e sua mãe Maria Vieira, ambos moradores na quinta do Paço. Arquivo Distrital de Aveiro, Registos
Paroquiais, Arouca, Alvarenga, baptismos, livro 1, fl. 50v.
48 Os registos paroquiais dão‑lhe o apelido Fernandes, como se verá.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 455

sidade de indicar a ascendência materna daquele filho, focando sobretudo o lado do


seu avô?

Era «homem turbulento, espancador, e criminoso na sua vida»

António Ferreira nasceu no lugar e casa da Lage, na freguesia de Santo Isidoro


de Ribatâmega, a 9 de Abril de 1654 [49], onde foi lavrador. Constou, porém, que «sendo
moço, por crimes que cometera, se ausentara para a freguesia de Santa Cruz de Alva‑
renga», refugiando‑se e aí vivendo muitos anos como criado ou pajem de D. Isabel da
Silva, mãe de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro, «que assistia na quinta
do Paço» [50].
Mas a sua conduta como «homem turbulento, e de mau génio», «agastado e
colérico», «facinoroso» e «áspero de condição» não cessou, dizendo‑se que também
em Alvarenga espancara e fizera várias opressões, cometendo o crime de uma ou duas
mortes, até que fora preso para as cadeias da cidade do Porto. Havia quem achasse
que ele tinha sido mais tarde degredado para Cabo Verde ou São Tomé, ou que embar-
cara para o Brasil, aqui falecendo, e quem pensasse, ao invés, que ele acabara por
morrer na prisão — enforcado, segundo algumas vozes que depois se disse estarem
equivocadas [51].
Na sua permanência em Alvarenga, António Ferreira tivera alguns filhos natu-
rais de Maria Soares, rapariga solteira que vivia no lugar de Quintela e vendia tabaco,
vinho e talvez mais «algumas miudezas» [52]. Um desses rebentos foi a acima mencio-

49 Foi baptizado a 7 de Junho seguinte, referido como filho de António Fernandes, da Lage, e de sua
mulher, não se especificando o nome desta, tendo por padrinhos António Ferreira, da Barroca, e Maria
Francisca, mulher de António Fernandes, de Coura, freguesia de São Miguel de Vila Caiz. Por diversos
assentos de suas irmãs mais velhas, confirma‑se que a mãe era Maria Antónia, conforme havia sido
indicado por António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro no acima referido requerimento de 1739. O
casamento de António Fernandes e de Maria Antónia celebrara‑se também em Santo Isidoro a 19 de Maio
de 1641, sendo ele filho de Isidoro Fernandes e de Isabel Pires e ela, de António Fernandes e de Catarina
Gonçalves. Foram testemunhas do enlace Pedro Álvares, Gaspar Gonçalves(?), do Outeiro, o mencionado
António Ferreira, da Barroca, e certo Pedro, do Pinheiro, além de outras pessoas da mesma freguesia.
Arquivo Distrital do Porto, Registos Paroquiais, Marco de Canaveses, Santo Isidoro, baptismos, livro 3, fl.
36v; casamentos, livro 3, fl. 45.
50 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
António, maço 23, doc. 560; Pedro, maço 29, doc. 530.
51 Ibidem.
52 Ibidem, Pedro, maço 29, doc. 530.
456 Academia dos Simples | Livro segundo

nada Violante Soares, nascida à roda de 1683 [53], de quem António Gonçalo Correia
de Sousa Montenegro teve o filho Manuel em 1704, com vimos. Outro foi David Soares
Ferreira, que veio a ser uma das mais proeminentes personagens de Alvarenga na
primeira metade do século XVIII, no que não terá sido alheia a relação de proximidade
e dependência de seu pai face aos fidalgos da quinta do Paço.
Nascido pelo ano de 1689 [54], a inexistência de fontes paroquiais e notariais
não permite conhecer as primeiras décadas da sua vida [55]. Mas a partir de 1720,
encontrando-se já casado com Francisca Vieira e a residir no lugar da Vila [56], sabe-se
que David lograra alcançar posição de destaque na pequena e reservada comunidade
local, o que se revelaria desde logo na inusitada quantidade de afilhados que ele e sua
mulher foram desde então somando ano após ano.
Surgindo como procurador [57] dos padres da Companhia de Jesus do colégio
de Coimbra — que detinham extensas propriedades em Alvarenga e aos quais cabia a
apresentação do reitor da respectiva igreja paroquial —, David Soares Ferreira chegou
a exercer os cargos de juiz ordinário e das sisas [58] e de depositário dos bens de raiz do
concelho [59]. O crescente desafogo financeiro de que beneficiava conferia‑lhe também

53 Baseio‑me no facto do padre João da Silva Maldonado referir em 1715 que conhecia Violante há
trinta e dois anos. Sendo ambos naturais de Alvarenga e ele mais velho do que ela, pois tinha à data
quarenta de idade, presumo que se estivesse a reportar ao tempo desde que Violante nascera. Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, António, maço 23,
doc. 560.
54 David Soares Ferreira declarou em 1752 ter 63 anos. Arquivo Nacional do Santo Ofício, Conselho
Geral, Habilitações, José, maço 69, doc. 1044.
55 Apenas se sabe que terá nascido na casa do Tapadinho, junto ao lugar de Trancoso, em Alvarenga,
«e se criou no lugar de Quintela», na mesma freguesia, para onde fora viver com Maria Soares, sua mãe.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Pedro, maço
29, doc. 530.
56 Francisca Vieira era filha de Domingos Rodrigues Tristão e de outra Francisca Vieira. O pai era natural
e morador no lugar da Vila, em Alvarenga, nas casas mais tarde conhecidas como do capitão-mor, onde
David Soares Ferreira e sua mulher ficaram a viver. A mãe era oriunda da vizinha freguesia de Santo Erício
de Nespereira, mais precisamente da casa do Paço, no lugar de Lourosa. Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Pedro, maço 29, doc. 530.
57 Conhece‑se, entre outras, uma procuração passada pelos sacerdotes jesuítas de Coimbra a favor de
David Soares Ferreira com data de 20 de Maio de 1724, outorgando este como mandatário daqueles em
diversas escrituras de emprazamento. Vd., por exemplo, Arquivo Distrital de Aveiro, Cartório Notarial de
Alvarenga, livros de notas, livro 1, fls. [2v]–7v, 76v–85v, 99–101 e 105–109.
58 Assim referido em 1726. Arquivo Distrital de Aveiro, Cartório Notarial de Alvarenga, livros de notas,
livro 1, fls. 63v–65v.
59 Função que já desempenhava em 1727. Vd., para além de outras referências posteriores, Arquivo
Distrital de Aveiro, Cartório Notarial de Alvarenga, livros de notas, livro 1, fls. [11]–13.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 457

a possibilidade de emprestar dinheiro a juro, tornando-o credor de muitos dos seus


conterrâneos que a ele recorriam para suprirem as suas necessidades de liquidez ou
que compravam fiado numa loja que lhe pertencia — como sucedeu com o reverendo
padre Luís Correia de Sousa e seus irmãos Caetano Correia de Sousa e António de
Sousa Montenegro, todos filhos de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro, os
quais confessaram em 1727 dever a David Soares Ferreira 50$000 réis «procedidos de
empréstimo e de cousas que da sua loja lhe tomaram» [60].
A trajectória ascendente de David Soares Ferreira evidenciou-se também
na colocação de seu cunhado, o padre Luís Vieira Tristão, como reitor da igreja de
Alvarenga a partir do mencionado ano de 1727 e teve talvez o corolário com a sua
nomeação como capitão das ordenanças do concelho, cujo juramento terá prestado
em 1730 [61]. Longe pareciam estar, por conseguinte, os tempos em que David havia
sido apenas um filho natural de um pajem dos fidalgos da quinta do Paço tido como
«homem turbulento, espancador, e criminoso na sua vida» [62].
A verdade, porém, é que apesar do estatuto de que David Soares Ferreira
gozava, essas memórias do progenitor teimavam em perdurar e, pior do que isso,
tinham descambado em rumores e acusações que causavam ofensa e dano numa
sociedade como era a do Antigo Regime. Corria, pois, o «sussurro» e a fama que
António Ferreira «devia de ser judeu pelas acções que obrava e lhe ficou este labéu
até ao presente» [63]. Também não abonava a seu favor o facto de ser oriundo de
outras paragens, pois «a mudança de terra, região, ou país era frequentemente enten‑
dida como resultado de subterfúgios intencionais — destinados a mascarar origens
suspeitas […]» [64]. Dois filhos de David sentiram na pele esses murmúrios de cristã‑
‑novice que lhes imputavam por via daquele seu avô paterno.
Um deles, chamado José António Vidal, nascido em Alvarenga em 1721 [65],
tomara ordens menores e metera-se com o hábito de religioso em Santa Cruz de

60 Arquivo Distrital de Aveiro, Cartório Notarial de Alvarenga, livros de notas, livro 1, fls. 36v–37v.
61 MADUREIRA, As Ordenanças…, p. 30.
62 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Pedro,
maço 29, doc. 530.
63 Ibidem.
64 FIGUEIRÔA‑REGO, «A Honra alheia por um fio» …
65 Foi baptizado na igreja paroquial de Alvarenga pelo então reitor André Dias Ribeiro a 21 de Junho de
1721, tendo por padrinhos Manuel Freire de Andrade, do lugar de Miudal, e Isabel Teresa, mulher de João
458 Academia dos Simples | Livro segundo

Coimbra. Mas não chegara a professar porque depois de lhe fazerem as inquirições de
genere acabariam por expulsá‑lo, dizendo uns que por falta de saúde, outros que por
mau procedimento, outros ainda que por causa da dita fama que recaía sobre a sua
família [66].
Outro, de nome Pedro João Soares, nascido igualmente em Alvarenga, no ano
de 1727 [67], andando depois «tonsurado desde o tempo da Sé Vacante, não cessou
a fama e me consta que o Exmo. Senhor Bispo [de Lamego] lhe não quis dar ascenso
para ordens sacras por causa de algumas informações, tendo já 26 anos de idade». A
acusação ia mais longe ao afirmar que como o pároco de Alvarenga — o referido padre
Luís Vieira Tristão — era tio do jovem, «será muito certo, conforme a certa prática do
Bispado, que daria o rol das testemunhas escolhidas a seu modo», influenciando desde
modo a respectiva inquirição [68].
Mas a humilhação maior que o capitão David Soares Ferreira haveria de expe-
rimentar talvez tenha sido a que resultou de uma das suas filhas que, tendo andado
amancebada, fora depois repudiada para casamento pelo seu companheiro «por falta
de pureza de Sangue» imputada à família da rapariga.
Parece, pois, estar explicado o «embaraço» a que António Gonçalo Correia de
Sousa Montenegro se referia em 1739 como causa do não deferimento da sua carta de
familiar do Santo Ofício: o seu filho Manuel, nascido de Violante Soares em 1704, era
neto materno de António Ferreira, padecendo por esta via da fama de judeu e cristão‑
‑novo.

do Vale, da Picota (e irmã daquele sacerdote, apesar do assento não o referir). Arquivo Distrital de Aveiro,
Registos Paroquiais, Arouca, Alvarenga, baptismos, livro 1, fl. 11v.
66 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Pedro,
maço 29, doc. 530. José António Vidal Ferreira Pinto, como mais tarde chegou a usar, acabaria por se
formar em Cânones na Universidade de Coimbra, em 1747, sendo também capitão de ordenanças de
Alvarenga. Foi casado com D. Violante Casimira de Lemos. GALVÃO‑TELLES, op. cit., p. 198.
67 Foi igualmente baptizado na igreja de Alvarenga pelo mencionado reitor André Dias Ribeiro a 31
de Julho de 1727, sendo afilhado de Pedro Mascarenhas, governador do Alentejo, e de D. Eugénia, filha
de Bento Pereira, da freguesia de Recezinhos, no bispado do Porto, ambos por procuração (a madrinha
era sobrinha de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro). Arquivo Distrital de Aveiro, Registos
Paroquiais, Alvarenga, baptismos, livro 1, fls. 51–51v.
68 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Pedro,
maço 29, doc. 530.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 459

«Sabe‑se que isto nele é ódio e vingança»

Foi em Julho de 1752 que José Soares Mendes Teles e Tavares [69], que rondaria
os quarenta e sete anos de idade, casado com Rosa Maria de Pinho Tavares e morador
na quinta de Bouças, em Alvarenga, se propôs habilitar a um lugar de familiar do Santo
Ofício com o fundamento de não existir então quem desempenhasse tal ocupação
naquela antiga vila [70].
As primeiras averiguações, ainda de natureza extrajudicial, couberam ao comis-
sário Bernardo Ferreira da Costa, que a 30 de Agosto reportou à Inquisição de Coimbra
que o habilitando, seus pais e avós eram «todos pessoas honradas, lavradores dos
principais, que vivem e viveram dos rendimentos de suas fazendas, sem outro algum
trato, cristãos‑velhos de limpo sangue e geração, sem nota de coisa reprovável» [71].
Acrescentou, porém, o mesmo investigador que «indo a informar‑me também
com o capitão David Soares da mesma freguesia de Alvarenga, este me insinuou que
o habilitando tinha impureza de sangue pela parte de sua Bisavó paterna, uma Maria
Rodrigues, que fora natural do lugar de Sobreda, da freguesia de São Martinho de
Moimenta de Baltar de Cabril, contígua à mesma de Alvarenga, de onde viera casar
com um Pedro Mendes, Bisavô do habilitando» [72]. E para se confirmar a veracidade
de tais factos, sugeriu aquele capitão que o dito comissário fosse falar com dois outros
conterrâneos, o que o padre Bernardo Ferreira da Costa efectivamente fez.
Mas ao contrário do que seria a expectativa do delator, o comissário entendeu
haver «sinistra intenção no sobredito, em razão de que um Irmão do habilitando se
amigara com uma filha do tal capitão, com a qual não quisera casar; do que nasceram
entre eles várias discórdias em termos que ao referido Irmão do habilitando lhe fora
preciso ausentar‑se para a América; e como o repúdio de não querer Casar o tal sujeito
com a sobredita se fundava em impureza da mesma, agora achava o tal capitão ocasião

69 O seu nome surge também como José Soares Mendes, José Soares Mendes Tavares ou José Soares
Mendes Teles.
70 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José, maço 69, doc.
1044. GALVÃO‑TELLES, op. cit., pp. 175–176.
71 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José, maço 69, doc.
1044.
72 Ibidem.
460 Academia dos Simples | Livro segundo

pronta para com o Estatuto de Talião desempenhar a sua pena: pois era tal dizer desa‑
bafar em despique» [73].
Declarando que tinha algum conhecimento destas famílias, o comissário
Bernardo Ferreira da Costa confessou, aliás, ter sido para si estranhável semelhante
acusação a respeito da bisavó de José Soares Mendes. E tendo procurado apurar se
existia algum fundamento na mesma, referiu que não o descortinara. Pelo contrário,
sobre a dita Maria Rodrigues apenas tinha colhido «notícia por tradição que do dito
lugar de Sobreda fora casar à dita freguesia de Alvarenga e na sua naturalidade se
conservam ainda parentes, lavradores honrados, cristãos‑velhos, sem a mais leve nota;
e achei que naquele lugar nunca houvera família alguma infamada de impureza» [74].
Tratava‑se, por conseguinte, de uma vingança de David Soares Ferreira contra
a família de José Soares Mendes, «pois somente há coisa de cinco anos é que se falou
e disseminou pelo tal capitão este dito, que é o tempo do descaminho de sua filha
pelo irmão do habilitando». O comissário considerava, portanto, que «o habilitando
é e sempre foi de boa vida e procedimento e nunca dele houve presunção alguma de
comunicação ilícita nem se sabe tivesse filho algum natural. É sujeito de bom juízo e
capacidade, prudente e de honrosos costumes; trata‑se com Limpeza e gravidade, vive
dos rendimentos de suas fazendas e juros de dinheiros, pois de bens de raiz tem mais
de um conto, e mais dinheiros a juro; tem capacidade para a ocupação que intenta,
pois sabe ler e escrever e me consta tem boa inteligência e não alcanço concorra nele
defeito algum ou coisa que o direito reprove» [75].
Os inquisidores de Coimbra acolheram a opinião de que José Soares Mendes
Teles e Tavares, «por Si, Seus Pais e Avós paternos e maternos é legítimo e inteiro
cristão‑velho, sem fama, nem rumor em contrário, pois ainda que a testemunha infor‑
mante David Soares disse que o habilitando tinha impureza de Sangue, sabe‑se que isto
nele é ódio e vingança por um Irmão do habilitando ter andado amancebado com uma
filha do dito David Soares e depois a repudiou para casamento por falta de pureza de
Sangue, do que resultaram entre os mesmos várias discórdias e inimizades» [76]. Não
obstante, foi determinado que se procedesse a diligências judiciais, que tiveram início

73 Ibidem.
74 Ibidem.
75 Ibidem.
76 Ibidem.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 461

na igreja de Alvarenga a 8 de Janeiro de 1753, agora sob responsabilidade do comis-


sário Francisco Soares Barbosa.
As primeiras testemunhas inquiridas sobre a limpeza de sangue do candi-
dato afirmaram que sempre o haviam tido por inteiro e legítimo cristão‑velho. Reite-
rando este entendimento, Manuel de Mendonça e Vasconcelos, um dos interrogados,
afirmou «porém que há pouco tempo a esta parte ouvira ele testemunha dizer que
um ascendente do habilitando viera da freguesia de Cabril e que por esta via padecia
fama de Judeu». E acrescentou «que se era falsa ou verdadeira o não sabia ele teste‑
munha, só sabe assim o ouviu à Irmã do Reitor desta freguesia chamada Maria Vieira,
e a seu sobrinho o Doutor José António Vidal e lhe parece também o ouvira ao Capitão
David Soares Ferreira, Pai do dito Doutor José António Vidal, sem que em tempo algum
ouvisse a mais pessoa alguma a dita família padecesse fama de alguma infecta nação,
antes na opinião de todos está o habilitando reputado por legítimo cristão‑velho» [77].
Perante a confirmação formal de tal rumor, o comissário Francisco Soares
Barbosa convocou de imediato as três pessoas mencionadas no depoimento anterior.
Maria Vieira [78], irmã do reitor Luís Vieira Tristão, a primeira a ser ouvida, «disse que
não poderia haver pessoa alguma neste mundo que afirme ela testemunha dissesse que
o habilitando padecia fama de Judeu, pois sempre o teve ela testemunha por inteiro e
legítimo cristão‑velho, limpo e de limpo sangue e geração [...]» [79], contrariando assim
o afirmado por Manuel de Mendonça.
Quanto ao doutor José António Vidal, sobrinho materno da antecedente, reco-
nheceu que «era certo que ele testemunha tinha comunicado com algumas pessoas
que o habilitando por causa de uma sua ascendente ter vindo para esta freguesia da
de Moimenta, do lugar da Sobreda, anexo da de Santa Maria de Baltar, concelho de
Cabril, padecia fama de Judia, mas que se tal fama era falsa ou verdadeira o não sabia
ele testemunha, nem neste particular sabia mais do que isto mesmo lhe certificar seu
Pai dele testemunha e o padre‑cura de São Miguel de Canelas de Riba Paiva e mais
algumas pessoas» [80].

77 Ibidem.
78 Que nada tem que ver com a companheira homónima de António Gonçalo Correia de Sousa
Montenegro, já antes referida.
79 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José, maço 69, doc.
1044.
80 Ibidem.
462 Academia dos Simples | Livro segundo

Interrogado, por fim, o capitão David Soares Ferreira, disse este «que o habi‑
litando por si, seus Pais e Avós paternos e maternos é inteiro e legítimo cristão‑velho,
menos por via de Pedro Mendes Tristão, Pai do habilitando, natural do cimo da Aldeia
de Trancoso desta freguesia, por este ser filho de outro Pedro Mendes daí; e neto de
outro Pedro Mendes daí; e que este casou com Maria Rodrigues do lugar de Sobreda,
freguesia de Moimenta de São Martinho, concelho de Cabril». Era, pois, por esta parte
que «padecia a fama de Judeu, e que isto mesmo tinha ele testemunha comunicado
com seu filho o Doutor José António Vidal e mais algumas pessoas; o que sabia pelo
assim ter ouvido a algumas pessoas da mesma freguesia de Moimenta, e que se o era
ou não infamado o não sabia ele testemunha mais do que ouvido tinha» [81].
Tratava‑se, pois, de uma autêntica teia do diz‑que‑disse…
Mas em linha com o que o comissário Bernardo Ferreira da Costa já antes
desvendara, também agora Francisco Soares Barbosa foi capaz de perceber a intriga
que vinha sendo urdida contra José Soares Mendes, desmontando‑a de forma porme-
norizada na informação que subscreveu no primeiro dia de Fevereiro de 1753.
Revelou este segundo comissário, com efeito, que a fama arguida pelo capitão
David Soares e por seu filho não era verdadeira, chamando a atenção para o facto de
eles ainda serem parentes do habilitando, «por o dito Capitão David Soares ser filho
natural de uma filha também exiniquitate de um Irmão ou parente conjunto do Capitão
Manuel Soares, Avô Materno» de José Soares Mendes e de «nunca em tempo algum se
recordaram de tal fama». Com efeito — escreveu Francisco Soares Barbosa —, só há
pouco tempo é que haviam começado a lançar tal acusação «por conta de um Irmão
do habilitando chamado António, clérigo in minoribus, emprenhar uma filha do mesmo
Capitão e este querer se dispensassem para casarem». A agravar o problema, tanto José
Soares Mendes Teles e Tavares como os seus pais não quiseram que esse matrimónio
se realizasse «por causa do predito Capitão padecer fama de Judeu por parte de seu
Pai» [82], o acima mencionado António Ferreira, determinando que António Soares
Mendes do Vale Quaresma — assim se chamava o causador da gravidez indesejada

81 Ibidem.
82 Ibidem.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 463

— acabasse por tomar ordens sacras, enviando‑o por uns tempos para o Brasil, onde
então se encontrava [83].
O comissário Francisco Soares Barbosa acrescentou também que era «afec‑
tada e arguida com paixão a fama imposta ao habilitando», pois ao contrário do que
David Soares Ferreira alegara a bisavó de José Soares Mendes Teles e Tavares não era
oriunda do vizinho concelho de Cabril. Tinha aquele inquiridor do Santo Ofício apurado,
com efeito, que Maria Rodrigues, a dita bisavó, era natural do lugar de Trancoso, em
Alvarenga, e filha de Rodrigo Anes e de sua mulher Antónia Gonçalves. E asseverou
que «pelo conhecimento que tenho desta família e as muitas vezes que tenho ido à
mesma freguesia» nunca ouvira atribuir‑lhe qualquer fama de serem os seus membros
judeus ou cristãos‑novos. Aliás, Francisco Soares Barbosa conhecera «o Padre Manuel
Mendes Tristão, que faleceu haverá três anos, e era tio direito do habilitando como
Irmão legítimo de seu Pai Pedro Mendes Tristão, o qual foi muitos anos Pároco em a
freguesia de São Pedro de Arouca e em outras mais Igrejas do Bispado de Lamego, o
que não seria se não fosse inteiro e legítimo cristão‑velho, maiormente sendo habili‑
tado pelo Ilustríssimo Senhor D. José de Meneses, Bispo que foi daquele Bispado, não
falando no Irmão do habilitando que, como acima digo, era clérigo in minoribus antes
que se malquistassem com o dito capitão, além de muitos outros clérigos de que há
notícia» [84].
O caso consubstanciava, pois, uma emulação existente entre ramos da mesma
família, um de origem legítima, outro procedente de relações ilícitas em duas gerações
sucessivas [85].
O tronco comum havia sido João Soares, ou João Soares Teles, «homem nobre»
que nascera em Alvarenga à roda de 1628 [86], aí vivendo na quinta dos Casais. Do

83 Data de 1752 um instrumento notarial pelo qual certo Manuel Varela Santiago, de Vila Rica de
Nossa Senhora do Pilar, constituiu por seu procurador na cidade do Rio de Janeiro, entre outros, ao padre
António Soares Mendes do Vale Quaresma. GALVÃO‑TELLES, op. cit., p. 173.
84 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José, maço 69, doc.
1044.
85 Nos depoimentos prestados ao Santo Ofício, David Soares Ferreira e seu filho José António Vidal
declararam ser parentes do habilitando José Soares Mendes: aquele, em segundo e terceiro grau; este, em
terceiro.
86 Referido em 1675 na habilitação para o Santo Ofício de Manuel de Vasconcelos Pereira, onde
testemunhou, declarando ter então quarenta e sete anos de idade. Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Manuel, maço 48, doc. 1072.
464 Academia dos Simples | Livro segundo

seu casamento com Francisca Tavares tivera Manuel Soares Mendes Tavares, capitão
de ordenanças, administrador da capela de São João Baptista [87] na referida quinta e
que, pelo casamento com Ana do Vale Quaresma, fora viver para a quinta de Bouças,
onde residia seu neto José quando se candidatou ao Santo Ofício [88]. Mas o referido
João Soares tinha sido também pai, fora do casamento, da já citada Maria Soares, a
qual, do seu relacionamento não conjugal com António Ferreira, tivera Violante Soares
e David Soares Ferreira.
Filho de um criado da quinta do Paço e de uma vendedora de tabaco e vinho,
irmão de uma tecedeira, David, como vimos, lograra alcançar posição de relevo,
conquistando o significativo cargo de capitão das ordenanças de Alvarenga, antes
desempenhado por aquele seu tio do ramo legítimo, o que não deve ter agradado aos
descendentes deste. Ainda assim, é certo que uns e outros se relacionavam antes do
episódio da gravidez e do repúdio para casamento ter provocado a infâmia lançada
sobre a ascendência de José Soares Mendes [89], que lhe podia ter custado a não
admissão no Santo Ofício.
A verdade, porém, é que, graças às aturadas e eficientes diligências promo-
vidas pelos dois comissários que conduziram a habilitação, foi possível identificar a
intriga movida contra o candidato. E assim, foi José Soares Mendes Teles e Tavares
absoluta e definitivamente tido «de limpo e puro sangue, sem fama nem rumor em
contrário, sem que lhe obste o dizer seu parente David Soares Ferreira que corre alto
que padecia fama de cristão‑novo com princípio falso, porque teve a sua origem há
poucos anos porque um Irmão do pretendente emprenhou uma filha do sobredito e
como não casaram, estimulado desta ofensa, lhe levantou esta impostura». A compe-
tente carta de familiar do Santo Ofício seria lavrada a 9 de Abril de 1753 [90].

87 Instituída por seus tios Francisco Furtado e Isabel Tavares, por escritura de 11 de Junho de 1628.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Beira, maço 522, doc. 39440.
88 GALVÃO‑TELLES, op. cit., pp. 167–176. MADUREIRA, As Ordenanças…, pp. 30 e 37–38. MADUREIRA,
Capelas…, pp. 57–60.
89 O referido José António Vidal chegou a dizer que ele e o habilitando iam à casa um do outro muitas
vezes.
90 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José, maço 69, doc.
1044.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 465

«que por verem estes seus maus procedimentos, começaram a


levantar que devia ser judeu»

Foi pouco tempo antes deste desfecho — mais precisamente em finais de


Fevereiro de 1753 — que Pedro João Soares, um dos já mencionados filhos de David
Soares Ferreira Pinto e neto do infamado António Ferreira Pinto — agora identificados
com este último apelido — se propôs igualmente ser admitido como familiar do Santo
Ofício [91]. Na certeza de que a intriga tecida contra José Soares Mendes Teles e Tavares
fora descoberta e não iria produzir os seus efeitos, o ramo familiar de procedência
ilegítima não queria ficar atrás e arriscava tudo ao submeter um dos seus ao crivo da
Inquisição.
Os inquisidores deviam conhecer a fama imputada àquele avô do habilitando,
pois de imediato o comissário João de Beça Ferreira foi enviado à freguesia da respec-
tiva naturalidade, Santo Isidoro de Ribatâmega, a fim de proceder a uma primeira dili-
gência extrajudicial. A informação lavrada a 29 de Março revelou que António Ferreira
(na sua terra não lhe conheciam o uso do apelido Pinto) era inteiro cristão‑velho, de
limpo sangue, sem fama ou rumor em contrário, mas expôs também a índole, o tempe-
ramento e os actos que ele praticara, já atrás assinalados.
Em Nespereira e Alvarenga, freguesias de onde eram oriundos os outros ante-
passados de Pedro João Soares, o comissário e abade António Correia Puga relatou,
dias depois, que quanto à pureza de sangue, por sua mãe e avós maternos, o habili-
tando era inteiro e legítimo cristão‑velho, mas por via do seu pai apenas quatro teste-
munhas atestaram que era puro e limpo, sem fama em contrário, ao passo que todas
as demais declararam que a respectiva família havia sido inculpada de judaísmo.
Mas a verdade, ainda segundo o relatório do citado abade, é que mesmo
estas últimas reconheciam que essa fama era falsa e que nascera do génio e procedi-
mento de António Ferreira. Fora o caso do padre António Ferreira Coelho, mestre de
gramática e um dos inquiridos, que confirmara aquela reputação mas arguira a respec-
tiva falsidade; do licenciado Manuel da Costa Ribeiro, escrivão do vigário da vara e
morador em Travanca, que, recordando que David Soares Ferreira era rendeiro dos

91 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Pedro,
maço 29, doc. 530.
466 Academia dos Simples | Livro segundo

bens da igreja e capitão em Alvarenga, chamara a atenção para o facto de ele aqui ter
«bastantes émulos»; e também do padre Manuel Caetano Pereira de Sousa, cura na
igreja de Canelas de Cima Paiva, que declarara que a fama atribuída a António Ferreira
só começara quando ele se mudara para Alvarenga como «criado do Montenegro».
Ainda em finais desse mês de Abril de 1753, os inquisidores de Coimbra reco-
nheceram que o comportamento de António Ferreira Pinto «deu ocasião a lhe imporem
a dita fama na freguesia de Santa Cruz de Alvarenga, aonde ele foi morador, pois na
de Santo Isidoro de Ribatâmega, sua pátria, sempre foi reputado por cristão‑velho,
sem o mais leve rumor em contrário» [92]. Não obstante esta convicção, era necessário
promoverem as inquirições judiciais respeitantes a seu neto Pedro João Soares.
As testemunhas inquiridas em Junho imediato na igreja de Santa Cruz de
Alvarenga confirmaram que António Ferreira «sempre aqui padeceu fama de judeu».
Mas havia quem ignorasse se a mesma era verdadeira e quem, pelo contrário, asseve-
rasse que era falsa. O certo — como afirmou o já mencionado Manuel de Mendonça
e Vasconcelos — é que tal reputação «ainda hoje existe em muitas pessoas desta
freguesia», sendo igualmente exacto que diversos sujeitos de Santo Isidoro, naturali-
dade do infamado, haviam garantido que ele era limpo e de boa gente. O que, diga‑se
em boa verdade, foi corroborado pelas diligências realizadas em Ribatâmega no mês
seguinte, nas quais se asseverou que António Ferreira havia sido cristão‑velho.
Em suma, conforme constou da informação lavrada pelo deputado da Inqui-
sição Simão José da Silva Lobo a 3 de Novembro de 1753, apesar de em Alvarenga
várias pessoas terem deposto que o habilitando Pedro João Soares padecia de fama
de judeu por seu avô António Ferreira Pinto, não podia a mesma obstar «porquanto
as mesmas quatro testemunhas têm por falsa a dita fama, procedida e originada
somente de haver sido o dito seu Avô homem turbulento e facinoroso na sua Pátria»,
que era a freguesia de Santo Isidoro de Ribatâmega, donde depois passara para Alva-
renga «continuando a viver da mesma sorte, maltratando a muitos, e escandalizando a
todos, que por verem estes seus maus procedimentos, começaram a levantar que devia
ser judeu, o que muito os ajudava a persuadir o ter vindo de fora e não terem notícia
certa da sua origem».

92 Ibidem.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 467

Deste modo, considerando que Pedro João Soares era bem procedido e com
capacidade; que seus pais eram abundados de bens e já lhe haviam feito património
com um casal que renderia para cima de 30$000 réis; que o habilitando nunca havia
sido casado ou tido filhos ilegítimos; que se tratava limpamente e andava tonsurado de
clérigo e no estudo, vivendo na obediência dos progenitores; que sabia ler e escrever;
tudo foi suficiente para que se lhe passasse carta de familiar do Santo Ofício a 22 de
Novembro de 1753.

Conclusão

Vistas, assim, as três diligências de habilitação ao Santo Ofício de que me


ocupei, verificámos que a de António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro não teve
provimento, ao passo que os outros dois candidatos — José Soares Mendes Teles e
Tavares e Pedro João Soares — lograram alcançar as respectivas cartas de familiar, não
obstante as dificuldades que tiveram de superar.
Desses processos sobressai desde logo a capacidade demonstrada pela Inqui-
sição, sobretudo através dos seus comissários, de indagar e desvendar, de forma eficaz,
as circunstâncias determinantes para a aprovação ou rejeição dos candidatos.
No caso de António Gonçalo, as diligências realizadas em 1715 permitiram
identificar os seus vários filhos ilegítimos, a maior parte dos quais por ele ocultados,
levando o tribunal da Inquisição a rejeitar a sua habilitação, ainda que de um modo
não totalmente expresso, antes deixando-a numa espécie de banho‑maria, como era
frequente [93]. Apesar do elevado estatuto social de que este pretendente gozava

93 LOPES, Luiz Fernando Rodrigues, Indignos de servir: os candidatos rejeitados pelo Santo Ofício
português (1680–1780) (trabalho policopiado, tese apresentada ao Programa de Pós‑Graduação em
História da Universidade Federal de Ouro Preto para obtenção do título de Doutor em História), Mariana:
Universidade Federal de Ouro Preto, 2018, p. 28, apontou que um dos principais procedimentos de
rejeição passava por um parecer que relatava os problemas que incidiam sobre o habilitando, sugerindo
que o mesmo não estava em condições de ser aprovado para o lugar pretendido. Se até às últimas décadas
do século XVII era comum o Conselho Geral do Santo Ofício emitir depois um despacho que dava a
petição do candidato como «escusada», isto é, reprovada, a partir do século XVIII começou simplesmente
a verificar‑se a suspensão de quaisquer trâmites no processo. Aquele autor afirmou também que «foi
comum a ocorrência de pleiteantes que escreviam novamente ao Santo Ofício quando julgavam ser
demasiada a espera pelo provimento, queixando‑se de não haverem recebido notícias sobre o andamento
de seus pedidos de habilitação. Muitas vezes, nestas circunstâncias, peticionavam novamente o cargo
na expectativa de superar a primeira solicitação sem despacho favorável. Na prática, a suspensão dos
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— moço fidalgo da Casa Real, padroeiro da igreja de Tabuado, senhor de diversos


morgados, mais tarde professo na Ordem de Malta —, as causas da sua não aprovação
prenderam‑se com questões de mau procedimento e incapacidade moral [94]. Era o
facto de «ser amigo de mulheres» e, concretamente, a possibilidade de continuar a ter
filhos naturais cujas ascendências maternas escapariam ao controlo do Santo Ofício
se ele fosse entretanto admitido. Nas entrelinhas deste processo adivinhavam‑se
também os murmúrios de cristã-novice que pendiam sobre um antepassado de um
desses rebentos ilegítimos.
Sobre este último aspecto, convém notar que «o Santo Ofício tendeu por vezes
a negar habilitações diante do mais leve rumor de impureza de sangue, e em outras
buscou avançar as provanças na tentativa de clarificar a origem da fama antes de
vetar as provisões» [95]. A mudança para esta segunda atitude por parte da Inquisição,
«mais recorrente conforme se avançava o século XVIII», explica o facto de os outros
dois candidatos atrás mencionados terem conseguido obter, em 1753, as suas cartas
de familiar. Foi, com efeito, graças à profundidade e ao cuidado posto nas respectivas
investigações que se tornou possível debelar a fama que pendia sobre o avô paterno
de Pedro João Soares e desvendar a intriga que a família mais chegada deste urdira

trâmites investigativos e a não retomada do andamento dos trâmites seria, via de regra, uma ação
administrativa que funcionaria como reprovação dos habilitandos controversos». Foi genericamente o
que aconteceu com António Gonçalo Correia de Sousa Montenegro, quer depois das diligências de 1715,
quer no seguimento da sua insistência em 1739.
94 Entre as principais causas que motivavam a interrupção ou a rejeição expressa de candidaturas ao
Santo Ofício, LOPES, Indignos…, p. 27, enumerou as seguintes: «1) problemas com limpeza de sangue,
principalmente rumor de ascendência cristã‑nova; 2) rumor de mulatismo dentro do 3º grau geracional; 3)
mau procedimento: “bêbado”, “gênio áspero”, “juízo leve”, “defeito de juízo”, “pouco assento e estourado”,
“vingativo”, “galanteador”, padres com filhos naturais; etc.; 4) incapacidade moral ou intelectual: “muito
falador”, “tem verduras de moço”, “sem domínio da razão”, “mal sabe ler e escrever”, pouca idade,
formação insuficiente para o cargo almejado, etc.; 5) falta de asseio ou desempenho de ofício vil; 6) sem
cabedal suficiente; 7) antepassados penitenciados pelo Santo Ofício; 8) falta de notícias e de clareza sobre
a ascendência; 9) falta de necessidade de agentes para o local de residência do candidato».
95 LOPES, Indignos…, p. 71, afirmou que «já com o correr das décadas do século XVIII, a Inquisição
passaria a ter maior disposição para inquirir mais profundamente as origens dos rumores incidentes sobre
seus candidatos a fim de revelar seu fundamento. Apesar disso, tal empenho esteve longe de significar
maior tolerância à incidência de nódoa hebreia. Nos Setecentos, os casos em que a fama pública era muito
robusta, tal vigor continuaria sendo motivo suficiente para a Inquisição rejeitar candidatos que postularam
servi‑la, ainda que a incidência da mácula cristã‑nova fosse incerta e não pudesse ser confirmada após
insistentes provanças nas comunidades de origem e convivência dos mesmos. De todo modo, a partir deste
período, o tribunal esteve disposto a mover mais investigações antes de obstar a candidatura daqueles
julgados como indignos de servi‑la».
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 469

em torno de uma bisavó de seu parente José Soares Mendes Teles e Tavares. Para essa
alteração de procedimento foi fundamental o alargamento do número de inquiridores
— os comissários do Santo Ofício —, a sua implantação local e o consequente conheci-
mento que tinham das famílias da região que estava sob sua alçada.
Tendo em conta que «imputar nota de cristã‑novice aos inimigos seria munição
constantemente usada em contendas», as inimizades, a injúria e a vingança contavam‑se
entre as principais explicações para procurar desqualificar e contestar a fama assacada
a candidatos ao Santo Ofício [96]. Neste tipo de situações, porém, era mais usual serem
os próprios postulantes a contestarem a fama que lhes era atribuída invocando aquele
tipo de razões. Mas nos processos de José Soares Mendes Teles e Tavares e de Pedro
João Soares não foram estes requerentes a interpelar a Inquisição com tais justifica-
ções, mas antes os comissários incumbidos das diligências que, através das inquirições
realizadas, conseguiram desvendar os contextos em que as pechas foram falsamente
imputadas àqueles dois habilitandos.
Assinale‑se que «os familiares eram os agentes mais capilarmente dissemi‑
nados no território, podendo encontrar‑se em vilas e aldeias, onde muitas vezes cons‑
tituíam a única presença concreta da temida e respeitada instituição, em cujo nome
executavam as prisões, além de atuarem, de facto, como espiões, remetendo com
brevidade e segredo, a inquisidores ou comissários, qualquer suspeita ou irregulari‑
dade, desde casos de heresia a penitenciados que não cumprissem as suas penitên‑
cias» [97]. Não sei, porém, se José Soares Mendes e Pedro João Soares tiveram de
actuar com regularidade no exercício dos seus cargos de familiares do Santo Ofício,
pois não se conhecem, com efeito, acusações ou processos movidos contra naturais ou
moradores em Alvarenga [98].
Se nos recordarmos do facto de José Soares Mendes Teles e Tavares ter
alegado, quando se candidatou, que Alvarenga não tinha então qualquer familiar do
Santo Ofício, não deixa de ser interessante verificar que, em 1753, a freguesia passou

96 LOPES, Indignos…, pp. 80–81.


97 MARCOCCI; PAIVA, op. cit., pp. 254–255.
98 A partir da base de dados da Torre do Tombo, disponível em http://digitarq.arquivos.pt/ (consultado
a 30 de Abril de 2021), identifico apenas um caso muito anterior. Trata‑se de Belchior Aranha, acusado de
superstição e feitiçaria, cujo processo decorreu entre 1688 e 1704. Apesar de ser natural de Arrifana de
Sousa, parece que tinha residência em Alvarenga. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo
Ofício, Inquisição de Coimbra, processo 9613.
470 Academia dos Simples | Livro segundo

a contar com dois desses agentes, ainda ligados entre si por parentesco, em resultado
de uma emulação existente entre os respectivos ramos familiares. No caso de Pedro
João Soares, em particular, face aos rumores que pendiam sobre o seu avô António
Ferreira, a candidatura foi uma estratégia arrojada pois na verdade «passar por esta
prova constituía também um risco, porque a reprovação podia repercutir‑se sobre
o nome de toda a família». Mas a partir do momento em que a aprovação daquele
rival se tornara inevitável, esta era a única oportunidade do núcleo familiar de David
Soares Ferreira alcançar idêntico provimento, pois o número máximo de familiares que
podiam coexistir era precisamente dois e havia sempre a hipótese de alguém se ante-
cipar e tomar o derradeiro lugar disponível. Acrescia que no «contexto de uma socie‑
dade ainda muito conflitual e faccionária, todavia, quem era aceite obtinha uma arma
suplementar nos confrontos distintivos com as outras famílias e bandos de poder da
sua cidade ou vila» [99]. A expectativa de alcançar este trunfo terá, pois, superado o
receio de tropeçar nalgum impedimento.
Por isso, se é certo que a admissão de ambos acabaria por constituir um
reforço dos seus estatutos pessoais — «os familiares podiam ter armas e usar insígnias
do Santo Ofício, vestir seda e gozar do privilégio do foro e isenções de impostos» [100]
—, é talvez mais relevante o significado que essa distinção trouxe para as respectivas
famílias, que assim puderam patentear de forma inequívoca a sua limpeza de sangue,
colocando‑as em pé de igualdade numa matéria tão importante e sensível.
Ao longo das décadas subsequentes dessa segunda metade de setecentos,
não deixou de continuar a existir uma certa rivalidade entre os dois grupos aparen-
tados — Soares Mendes Teles, de um lado; Soares Ferreira Pinto, do outro. O tempo
e as circunstâncias, porém, foram esbatendo essa antiga emulação. Quando em 1826
Manuel Maria Soares Teles e Tavares [101] desencadeou um processo de justificação de
nobreza para a obtenção de carta de brasão de armas, entre os parentescos invocados
não deixou de referir que era primo em segundo grau (na realidade, era mais afastado)
de António Luís Mendes Soares Ferreira Pinto [102], que exercera o posto de capitão-

99 MARCOCCI; PAIVA, op. cit., p. 256.


100 IDEM, Ibidem, p. 255.
101 Neto materno do familiar José Soares Mendes Teles e Tavares.
102 Neto materno de David Soares Ferreira Pinto e sobrinho por esta via do familiar Pedro João Soares.
Devassidão, crime, infâmia e intriga: diligências do Santo Ofício em Alvarenga no século XVIII. 471

‑mor das ordenanças de Alvarenga [103]. Agora, os ventos do liberalismo sopravam


forte e, com a extinção do velho concelho poucos anos depois e o consequente fim de
uma era, a resposta aos novos desafios que se colocavam já não passava pela concor-
rência entre uns e outros.

103 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Feitos Findos, Justificações de Nobreza, maço 27, n.º 33.
472
? ≠ João Soares = Francisca
Teles Tavares
c. 1628–?

António ≠ Maria Soares Manuel Soares = Ana do Vale


Ferreira Pinto ?–1732 (ou 1738?) Mendes Tavares Quaresma
1654–? Vendedora de vinho ?–1732
Criado da quinta e tabaco Capitão de
do Paço ordenanças,
administrador da
capela de São João
Baptista

1706 1703
D. Vitória = António ≠ Violante Soares David Soares = Francisca Vieira Pedro Mendes = Francisca
Teresa de Gonçalo c. 1683–1768 Ferreira Pinto Tristão Soares Tavares
Noronha Correia Tecedeira c. 1689–1755 1677–1764 do Vale
?–1708 de Sousa Juiz ordinário, Juiz ordinário, ?–1760
capitão de administrador da
Montenegro
ordenanças capela de São João
1674–?
Baptista
Moço fidalgo,
morgado da quinta
do Paço, professo na
Ordem de Malta

Academia dos Simples | Livro segundo


1737
Manuel Pedro João José Soares = Rosa Maria de
1704–? Soares Mendes Teles Pinho Tavares
1727–1766 e Tavares
Familiar do Santo 1706–1775
Ofício Familiar do Santo
Sacerdote Ofício

Esquema genealógico resumido com as relações entre os habilitandos António Gonçalo Correia de Sousa
Montenegro, José Soares Mendes Teles e Tavares e Pedro João Soares.

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