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AMARAL NETO, Francisco Dos Santos.
AMARAL NETO, Francisco Dos Santos.
Autonomia privada
RESUMO
A autonomia privada não tem recebido, entre nós, o interesse devido, fato desairoso para a ciência jurídica
brasileira. Como princípio jurídico fundamental, integra o quadro das fontes de direito, hoje em processo de
franca reformulação. Superado o monismo jurídico do Estado Liberal de Direito, e o mecanismo lógico-
dedutivo de aplicação do direito, é de reconhecer-se que os particulares têm o poder de estabelecer normas
jurídicas, e que os juízes não se limitam a aplicar um direito pré-constituído, mas também constroem a
norma jurídica adequada ao caso concreto. O jurista deve considerar a autonomia privada inserida em uma
nova concepção do direito, na qual as estruturas jurídicas relacionam-se intimamente com a sua função
social. O direito, na atualidade, tem como eixo fundamental a realização dos interesses da pessoa humana e,
por isso, tende a limitar a autonomia privada com a ordem pública e os bons costumes, embora a retração
do Estado Providência venha provocando uma reversão nessa tendência e revalorizando esse princípio.
ABSTRACT
The text considers inconvenient the fact that Brazil has internally not developed the principle of private
autonomy. It states that the private corporations have the power to create judicial norms like the judge that
nowadays does not apply the Law, but builds a judicial norm applied to the concrete case. It affirms that the
jurist should consider the private autonomy inserted in a new conception of Law, in which its structural
function is closely related to its social function. The Law, in the present days, has as a fundamental axis the
realisation of the human being and, in face of that, it could limit the private autonomy when its abusive use
compromises the interests of rest of the citizens.
A autonomia privada não tem recebido, entre nós, o interesse devido, fato desairoso para a
Ciência Jurídica brasileira. Como princípio jurídico fundamental, integra o quadro das fontes de
Direito, hoje em processo de franca reformulação. Superado o monismo jurídico do Estado
liberal de Direito, e o mecanismo lógico-dedutivo de aplicação do Direito, é de reconhecer-se
que os particulares têm o poder de estabelecer normas jurídicas, e que os juízes não se limitam a
aplicar um Direito pré-constituído, mas também constroem a norma jurídica adequada ao caso
concreto. O jurista deve considerar a autonomia privada inserida em uma nova concepção do
Direito, na qual as estruturas jurídicas relacionam-se intimamente com a sua função social. O
Direito, na atualidade, tem como eixo fundamental a realização dos interesses da pessoa humana
e, por isso, tende a limitar a autonomia privada com a ordem pública e os bons costumes, embora
a retração do Estado Providência venha provocando uma reversão nessa tendência e
revalorizando esse princípio.
Aspecto interessante da crise no Brasil, que diz respeito à sua normatização social, é a crescente
freqüência com que professores e alunos se reúnem para discutir aspectos do Direito
contemporâneo e, particularmente, para elaborar o que eu chamo de "estruturas jurídicas de
resposta" aos problemas da sociedade atual. Isso traduz o reconhecimento da função do jurista,
que é a de criar soluções para os novos desafios, reelaborando os modelo jurídicos já
estabelecidos. Como isso pressupõe um background de natureza cultural e científica, parece-me
Refletir hoje sobre o princípio da autonomia privada, ao qual, de modo intermitente, tenho
dedicado especial atenção, implica retornar ao velho e instigante problema das fontes do Direito,
matéria tão importante quão desprezada no quadro atual da pesquisa teórico-jurídica.
Cabe observar, e isso é extremamente interessante, se não desairoso, que nós, no Brasil, não
temos, com mais freqüência e profundidade, estudado esse poder jurídico que é a autonomia
privada. Não obstante termos herdado os modelos do Direito ocidental/continental, que se
construíram com a Revolução Francesa e o Estado liberal de Direito, nunca se desenvolveu no
Brasil, por força das condições particulares de natureza política e científica, esse princípio
fundamental da ordem jurídica moderna.
Considere-se como ponto de partida que a autonomia privada é o poder jurídico dos particulares
de regularem, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam,
estabelecendo o seu conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Por muitos considerado como
sinônimo de autonomia da vontade, com ela, a meu ver, não se confunde, pois a expressão
"autonomia da vontade" tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto "autonomia
privada" significa o poder particular de criar relações jurídicas de que se participa. Assim, é o
poder que nós, particulares, temos, de regular juridicamente as nossas relações, dando-lhes
conteúdo e eficácia juridicamente reconhecidos.
Creio poder afirmar que a esfera de atuação do princípio da autonomia privada é, basicamente, o
Direito Patrimonial. Não se aplica, portanto, ou aplica-se de modo restritíssimo, em matéria de
estado, capacidade das pessoas e da família. Seu campo de realização é, por excelência, o Direito
das Obrigações, no qual o contrato é lei, nas diversas espécies que a liberdade contratual permite
estabelecer, sendo crescente a sua presença nos contratos administrativos, no Direito da
economia e da concorrência, nos tratados e convenções internacionais e na instituição de juízo
arbitral. No Direito sucessório realiza-se no testamento, negócio jurídico com que a pessoa
dispõe de seus bens ou estabelece outras prescrições para depois da sua morte. Como considero
que o negócio jurídico é instrumento da autonomia privada e que no Direito de Família não há
campo para o exercício dessa autonomia, sempre digo que o casamento não deve considerar-se
um negócio jurídico, exatamente porque não tem a possibilidade de exprimir, na sua inteireza, o
poder jurídico particular.
Os limites da autonomia privada são a ordem pública e os bons costumes: a primeira, como
conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da sociedade e
do Estado, e as que, no Direito privado, estabelecem as bases jurídicas fundamentais da ordem
econômica; e os últimos, como conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo
e que se exprimem em princípios jurídicos como o da lealdade contratual, da proibição do
lenocínio, dos contratos matrimoniais, do jogo etc.
A questão da autonomia privada transcende o Direito Civil e liga-se diretamente ao campo das
teorias das fontes do Direito, cujo conhecimento é fundamental para a coerência do próprio
sistema jurídico. O problema das fontes do Direito consiste em saber de que modo se constitui e
se manifesta o Direito vigente em determinada fase e em uma determinada sociedade. Por
implicar específica concepção de Direito, a essa matéria liga-se a uma ideologia, e é no âmbito
dessa ideologia que podemos encontrar o fundamento para o princípio da autonomia privada e
verificar de que modo ele se torna eficaz no Projeto de Código Civil. As fontes do Direito seriam,
portanto, fontes de juridicidade, isto é, mecanismos, formas ou processos de conferir a
juridicidade, de dar o caráter jurídico a um determinado princípio ou norma social, in casu, o
princípio da autonomia privada.
Em todos esses poderes existe um fator comum: a vontade social ou individual, exercitável na
forma e nos limites que o sistema jurídico estabelece, obedecendo à escala das competências
instituídas, e também a uma identidade de propósitos, que é basicamente a procura pela eficácia
jurídica, isto é, a possibilidade de produção de efeitos jurídicos. Em última análise, o grande
problema que se levanta é saber se a nós, particulares, é reconhecido o poder de agir com eficácia
jurídica, isto é, o poder de criar normas jurídicas.
Se considerarmos também fonte de Direito como revelação desse Direito, as fontes dizem-se de
conhecimento, constituindo-se em modo de expressão das normas jurídicas e são a lei, o estatuto
social, o negócio jurídico, o costume, os princípios jurídicos e a sentença judicial.
Nessa matéria há que lembrar a influência do positivismo, que levou à compreensão do Direito
como ordenamento jurídico de um Estado, e este como fonte exclusiva de produção jurídica, do
que decorre, dentre outras características, a consideração do Direito como um sistema de normas,
pleno e coerente, e a atividade do juiz como essencialmente lógico-dedutiva. E também a
contribuição do Estado liberal de Direito, que se caracteriza pela crença no primado da lei, na
separação do Poder Legislativo, que criava a lei, do Poder Judiciário, que aplicava o Direito, e do
Poder Executivo, que cumpria as suas finalidades administrativas; na distinção nítida entre
Estado e sociedade civil, separáveis e opostos, na abstração e na generalidade das normas
jurídicas e ainda na dicotomia público/privado. Considera-se hoje que tais aspectos estão
superados, ou, pelo menos, relativizados na sua importância.
O Estado não está mais separado da sociedade civil, ambos se interpenetram, e o Estado deve
obedecer à lei, como todas as pessoas. Por outro lado, a nítida separação dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, com referência à criação jurídica, não tem mais razão de ser, porque
hoje, quando um magistrado determina o Direito, na verdade constrói a norma jurídica adequada
à solução do conflito de interesses que lhe é submetido. Daí poder reconhecer-se que a sentença
contém uma norma jurídica individual, o que se opõe ao mito da generalidade e da abstração da
norma jurídica. O juiz, ao decidir, não está aplicando um Direito pré-existente, mas construindo
uma norma jurídica para o caso determinado. Ora, isso leva a uma subversão total em nossos
esquemas tradicionais e, por que não, nos nossos modelos culturais e científicos. E por que não
considerar que o particular, ao fazer um contrato, estabelece uma norma jurídica?
Há que se mudar o pensamento dogmático, hermético, fechado, que herdamos do século passado,
em que se consubstanciavam determinados sistemas, como o Código Civil, e que hoje ainda
utilizamos no nosso dia a dia de fazer Direito. Este não está nos códigos ou nos livros jurídicos,
nas bibliotecas ou no computador. O Direito é aquilo que o advogado e o magistrado constroem
quando solicitados a dar uma solução para o problema que lhes é posto. A função do jurista é
prevenir ou resolver conflitos de interesses e a função da faculdade de Direito é a de preparar a
juventude para responder aos desafios da sociedade à qual pertencem, elaborando respostas
jurídicas para os problemas da mesma sociedade. Jurista é o homem que dá respostas, como os
jurisprudentes romanos, os sábios que diziam o Direito.
Procura-se assim ultrapassar o monismo jurídico, segundo o qual o Estado é a única expressão da
ordem jurídica e somente ele pode criar Direito, superando-se a teoria tradicional das fontes do
Direito e aceitando-se a tese do pluralismo, da diversidade dos modos constituintes do Direito
positivo, reconhecendo-se, assim, a autonomia privada como um poder jurígeno. Substituir-se-ia
a descrição analítica ou sistemática das fontes por um processo constituinte, próprio da
experiência jurídica, funcionando não mais como disposições previstas na lei, mas como
mecanismos institucionais reconhecidos pela comunidade jurídica como produtores do Direito,
dentre os quais a vontade particular.
O Direito é hoje um mundo de incertezas, porque os problemas e os desafios são tão grandes e
constantes que não temos como encontrar, nos nossos modelos jurídicos, soluções imediatas que
os possam resolver com aquele método lógico-dedutivo do pensamento sistemático.
O Projeto do Código Civil dispõe, no art. 421, que a liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato. Lembre-se que a liberdade contratual manifesta-
se nos seguintes aspectos: liberdade de contratar, liberdade de escolha das partes com quem
contratar e liberdade de estabelecer o conteúdo, a forma e os efeitos do contrato.
Se o Projeto de Código Civil, no art. 421, dispõe que a liberdade de contrato será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato, neste ponto, devo elogiá-lo, porque vejo uma
certa sintonia do legislador com o processo contemporâneo de funcionalização dos institutos de
Direito Civil, o que nos permite passar da consideração da autonomia privada como princípio
fundante e estruturante do sistema de Direito privado para uma perspectiva funcional desse
mesmo princípio.
Emprestar ao Direito uma função social significa, portanto, considerar que os interesses da
sociedade se sobrepõem aos interesses do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a
anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de se acabar com
as injustiças sociais. A expressão "função social" é, por isso mesmo, um princípio geral, uma
diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programática que não colide nem torna ineficazes
os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais consentânea com o
bem comum e com a justiça social.
Voltando à sistemática do Projeto, não é apenas a função social do contrato que constitui limite à
liberdade de contratar, mas também os princípios da probidade e da boa-fé, conforme dispõe o
seu art. 422.
Tem-se, então, que os limites do Projeto do Código são a função social do contrato, a probidade e
a boa-fé. A função social destina-se a impedir o abuso no exercício do direito subjetivo
contratual, atuando como critério de interpretação jurídica e legitimando a intervenção do Estado
por meio de normas excepcionais, como, por exemplo, as que protegem o consumidor, o
inquilino, o promitente-comprador, enfim, as que estabelecem limitações à liberdade de contratar
e que, de modo vago e generalizado, poderíamos reunir sob a denominação de "ordem pública e
de bons costumes". O princípio da probidade refere-se à honestidade no procedimento ou à
maneira criteriosa de cumprir os deveres contratuais. O princípio da boa-fé vincula os
contratantes ao dever de lealdade que está na base do contrato.
Colocando de lado a questão prejudicial que é a conveniência ou não de um novo Código Civil,
no final do século XX, quando o século dos códigos foi o século XIX, e outra questão
prejudicial, a de saber se, admitindo-se um novo Código Civil, dever-se-ia ter uma Parte Geral,
que não é tão geral assim, porque os seus preceitos não se aplicam a todas as partes especiais, o
que se poderia dizer como conclusão e à guisa de provocação, é que o Direito não é só técnica,
mas é uma técnica a serviço de uma ética profunda, que se vem construindo ao longo de 27
séculos. E que essa ética diz que, qualquer que seja a restrição de natureza política ou jurídica, o
Direito tem sempre como eixo fundamental, como finalidade precípua, a realização da pessoa
humana, entendida esta como o indivíduo que se relaciona em sociedade.