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29/01/2024, 21:15 artigo05

PROJETO DO CÓDIGO CIVIL

Autonomia privada

Francisco dos Santos Amaral Neto

RESUMO

A autonomia privada não tem recebido, entre nós, o interesse devido, fato desairoso para a ciência jurídica
brasileira. Como princípio jurídico fundamental, integra o quadro das fontes de direito, hoje em processo de
franca reformulação. Superado o monismo jurídico do Estado Liberal de Direito, e o mecanismo lógico-
dedutivo de aplicação do direito, é de reconhecer-se que os particulares têm o poder de estabelecer normas
jurídicas, e que os juízes não se limitam a aplicar um direito pré-constituído, mas também constroem a
norma jurídica adequada ao caso concreto. O jurista deve considerar a autonomia privada inserida em uma
nova concepção do direito, na qual as estruturas jurídicas relacionam-se intimamente com a sua função
social. O direito, na atualidade, tem como eixo fundamental a realização dos interesses da pessoa humana e,
por isso, tende a limitar a autonomia privada com a ordem pública e os bons costumes, embora a retração
do Estado Providência venha provocando uma reversão nessa tendência e revalorizando esse princípio.

ABSTRACT

The text considers inconvenient the fact that Brazil has internally not developed the principle of private
autonomy. It states that the private corporations have the power to create judicial norms like the judge that
nowadays does not apply the Law, but builds a judicial norm applied to the concrete case. It affirms that the
jurist should consider the private autonomy inserted in a new conception of Law, in which its structural
function is closely related to its social function. The Law, in the present days, has as a fundamental axis the
realisation of the human being and, in face of that, it could limit the private autonomy when its abusive use
compromises the interests of rest of the citizens.

A autonomia privada não tem recebido, entre nós, o interesse devido, fato desairoso para a
Ciência Jurídica brasileira. Como princípio jurídico fundamental, integra o quadro das fontes de
Direito, hoje em processo de franca reformulação. Superado o monismo jurídico do Estado
liberal de Direito, e o mecanismo lógico-dedutivo de aplicação do Direito, é de reconhecer-se
que os particulares têm o poder de estabelecer normas jurídicas, e que os juízes não se limitam a
aplicar um Direito pré-constituído, mas também constroem a norma jurídica adequada ao caso
concreto. O jurista deve considerar a autonomia privada inserida em uma nova concepção do
Direito, na qual as estruturas jurídicas relacionam-se intimamente com a sua função social. O
Direito, na atualidade, tem como eixo fundamental a realização dos interesses da pessoa humana
e, por isso, tende a limitar a autonomia privada com a ordem pública e os bons costumes, embora
a retração do Estado Providência venha provocando uma reversão nessa tendência e
revalorizando esse princípio.

Aspecto interessante da crise no Brasil, que diz respeito à sua normatização social, é a crescente
freqüência com que professores e alunos se reúnem para discutir aspectos do Direito
contemporâneo e, particularmente, para elaborar o que eu chamo de "estruturas jurídicas de
resposta" aos problemas da sociedade atual. Isso traduz o reconhecimento da função do jurista,
que é a de criar soluções para os novos desafios, reelaborando os modelo jurídicos já
estabelecidos. Como isso pressupõe um background de natureza cultural e científica, parece-me

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serem as universidades o locus mais adequado para o desenvolvimento desse processo de


desconstrução e reconstrução jurídica, evitando repetir, nessa experiência, os modelos superados
do passado. A propósito do atual Projeto de Código Civil não sei se seria adequado, hoje, fazer
um novo Código, mas, com toda a certeza, já dispomos de uma experiência que nos habilita a
enfrentar os desafios da sociedade contemporânea. Vivemos em uma sociedade pós-industrial,
complexa e pluralista, em que a revolução da Biotecnologia e as conquistas da Medicina criam
desafios para os quais os modelos jurídicos — particularmente no Direito Civil — herdados do
Direito moderno, dos séculos XVIII e XIX, são insuficientes como resposta para o nosso dia a
dia jurídico.

O tema que pretendo sumariamente abordar é o da autonomia privada como princípio


fundamental do Direito privado. Antes, porém, gostaria de evocar a memória do Prof. Clóvis do
Couto e Silva, Catedrático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro da Academia
Brasileira de Letras Jurídicas, autor consagrado, figura paradigmática da Ciência Jurídica
brasileira. A ele me prendiam laços da mais cordial amizade e da mais profunda admiração,
motivo por que lhe dedico esta modesta intervenção, pequena na sua importância, mas
profundamente significativa na expressão da minha sentida homenagem. Clóvis do Couto e Silva
era homem de espírito aberto para os desafios e problemas da sociedade contemporânea e atuava
eficazmente no processo de reconstrução do Direito brasileiro.

Refletir hoje sobre o princípio da autonomia privada, ao qual, de modo intermitente, tenho
dedicado especial atenção, implica retornar ao velho e instigante problema das fontes do Direito,
matéria tão importante quão desprezada no quadro atual da pesquisa teórico-jurídica.

O Direito Civil é um ordenamento que protege os interesses e as relações jurídicas de natureza


privada, desenvolvido em torno do reconhecimento de uma esfera individual de soberania, cujas
principais manifestações são, a liberdade, com referência à pessoa; a propriedade, com
referência aos bens; e o contrato, com referência à atividade econômica dos indivíduos. É o
setor da experiência jurídica que realiza a liberdade reconhecida aos sujeitos de regularem os
seus próprios interesses.

Cabe observar, e isso é extremamente interessante, se não desairoso, que nós, no Brasil, não
temos, com mais freqüência e profundidade, estudado esse poder jurídico que é a autonomia
privada. Não obstante termos herdado os modelos do Direito ocidental/continental, que se
construíram com a Revolução Francesa e o Estado liberal de Direito, nunca se desenvolveu no
Brasil, por força das condições particulares de natureza política e científica, esse princípio
fundamental da ordem jurídica moderna.

Considere-se como ponto de partida que a autonomia privada é o poder jurídico dos particulares
de regularem, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam,
estabelecendo o seu conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Por muitos considerado como
sinônimo de autonomia da vontade, com ela, a meu ver, não se confunde, pois a expressão
"autonomia da vontade" tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto "autonomia
privada" significa o poder particular de criar relações jurídicas de que se participa. Assim, é o
poder que nós, particulares, temos, de regular juridicamente as nossas relações, dando-lhes
conteúdo e eficácia juridicamente reconhecidos.

A autonomia privada é um dos princípios fundamentais do sistema de Direito Privado, em um


reconhecimento da existência de um âmbito particular de atuação do sujeito, com eficácia
normativa. É parte do princípio de autodeterminação dos homens, é manifestação da

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subjetividade, o princípio dos tempos modernos que reconhece a liberdade individual e a


autonomia do agir, segundo Hegel, que foi quem pela primeira vez a ele se referiu. Para esse
filósofo, a subjetividade era a marca dos tempos modernos, em torno do que se desenvolveram os
sistemas de Direito que tinham, naquela época, o indivíduo como eixo central — hoje a pessoa
humana.

Recorde-se que o Direito é um instrumento de prevenção ou de solução de conflitos e interesses.


É uma técnica a serviço de uma ética socialmente estabelecida. Não se pode assim conceber o
Direito puramente sob o ponto de vista instrumental, sem um fundo axiológico, uma ética a
orientar no caminho das decisões jurídicas. Sob esse ponto de vista técnico, a autonomia privada
é um verdadeiro poder jurídico de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas próprias.
Funciona também como um princípio informador do sistema, isto é, como um princípio aberto,
no sentido de apresentar-se não como norma de Direito, mas como a idéia diretriz ou
justificadora da configuração e funcionamento do próprio sistema jurídico. E funciona ainda
como critério interpretativo, já que aponta o caminho a seguir na pesquisa do sentido e alcance
da norma jurídica. Por outro lado, o princípio da autonomia privada faz presumir que, em matéria
de Direto Patrimonial — campo por excelência de aplicação desse princípio —, as normas
jurídicas são de natureza dispositiva ou supletiva. Esse poder não é, porém, originário e
ilimitado. Deriva do ordenamento jurídico estatal que o reconhece, e exerce-se nos limites que
esse estabelece de modo crescente, ao acompanhar a transformação do Estado de Direito em
Estado intervencionista ou assistencial. Permito-me aqui chamar a atenção para a importância do
Estado moderno ou Estado de Direito na edificação do nosso sistema jurídico, com a elaboração
de categorias, princípios e institutos e, principalmente, com a separação dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, aos quais corresponderiam a execução, a elaboração e a aplicação das
leis, e ainda a nítida distinção entre a esfera do público e a do privado. Isso é importante porque
tais características já se encontram modificadas no Direito contemporâneo, o que exige de nós
outra postura científica. No entanto, ainda se trabalha, no dia a dia, com os modelos jurídicos dos
séculos XVIII e XIX.

Creio poder afirmar que a esfera de atuação do princípio da autonomia privada é, basicamente, o
Direito Patrimonial. Não se aplica, portanto, ou aplica-se de modo restritíssimo, em matéria de
estado, capacidade das pessoas e da família. Seu campo de realização é, por excelência, o Direito
das Obrigações, no qual o contrato é lei, nas diversas espécies que a liberdade contratual permite
estabelecer, sendo crescente a sua presença nos contratos administrativos, no Direito da
economia e da concorrência, nos tratados e convenções internacionais e na instituição de juízo
arbitral. No Direito sucessório realiza-se no testamento, negócio jurídico com que a pessoa
dispõe de seus bens ou estabelece outras prescrições para depois da sua morte. Como considero
que o negócio jurídico é instrumento da autonomia privada e que no Direito de Família não há
campo para o exercício dessa autonomia, sempre digo que o casamento não deve considerar-se
um negócio jurídico, exatamente porque não tem a possibilidade de exprimir, na sua inteireza, o
poder jurídico particular.

Os limites da autonomia privada são a ordem pública e os bons costumes: a primeira, como
conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da sociedade e
do Estado, e as que, no Direito privado, estabelecem as bases jurídicas fundamentais da ordem
econômica; e os últimos, como conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo
e que se exprimem em princípios jurídicos como o da lealdade contratual, da proibição do
lenocínio, dos contratos matrimoniais, do jogo etc.

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A questão da autonomia privada transcende o Direito Civil e liga-se diretamente ao campo das
teorias das fontes do Direito, cujo conhecimento é fundamental para a coerência do próprio
sistema jurídico. O problema das fontes do Direito consiste em saber de que modo se constitui e
se manifesta o Direito vigente em determinada fase e em uma determinada sociedade. Por
implicar específica concepção de Direito, a essa matéria liga-se a uma ideologia, e é no âmbito
dessa ideologia que podemos encontrar o fundamento para o princípio da autonomia privada e
verificar de que modo ele se torna eficaz no Projeto de Código Civil. As fontes do Direito seriam,
portanto, fontes de juridicidade, isto é, mecanismos, formas ou processos de conferir a
juridicidade, de dar o caráter jurídico a um determinado princípio ou norma social, in casu, o
princípio da autonomia privada.

As fontes do Direito são estruturas normativas capacitadas a instaurar normas jurídicas. O


problema começa aqui. A tradicional teoria das fontes, produto da elaboração dogmática e
ideológica que marcou o Direito da modernidade (séculos XVIII e XIX) — o Direito do Estado
liberal —, tem o seu fundamento no individualismo e no liberalismo, e é nesse contexto que
surge a questão da autonomia privada. Dentre os vários sentidos que se podem encontrar no
campo ideológico, temos de considerar a noção positivista que está na base da teoria tradicional,
segundo a qual o Direito seria aquilo que um poder constitucionalmente legitimado criasse como
tal. Nessa perspectiva — freqüente nos manuais de Introdução à Ciência do Direito —, as fontes
de produção são, segundo a estrutura de poder que representam, o Poder Legislativo, o Poder
Judiciário, o poder social (usos e costumes) e o poder dos particulares. Essa construção vem de
Hans Kelsen e aqui no Brasil é consagrada pelo Prof. Miguel Reale. Em face disso, podemos
dizer que fonte do Direito é um ato de vontade — da sociedade, dos seus Poderes Executivo,
Legislativo ou Judiciário, de grupos sociais ou instituições, e dos próprios indivíduos no
exercício de um poder que lhe é reconhecido pela ordem jurídica, dada a impossibilidade do
Direito prever todos os efeitos jurídicos, poder esse reconhecido como autonomia privada.

Em todos esses poderes existe um fator comum: a vontade social ou individual, exercitável na
forma e nos limites que o sistema jurídico estabelece, obedecendo à escala das competências
instituídas, e também a uma identidade de propósitos, que é basicamente a procura pela eficácia
jurídica, isto é, a possibilidade de produção de efeitos jurídicos. Em última análise, o grande
problema que se levanta é saber se a nós, particulares, é reconhecido o poder de agir com eficácia
jurídica, isto é, o poder de criar normas jurídicas.

Se considerarmos também fonte de Direito como revelação desse Direito, as fontes dizem-se de
conhecimento, constituindo-se em modo de expressão das normas jurídicas e são a lei, o estatuto
social, o negócio jurídico, o costume, os princípios jurídicos e a sentença judicial.

Nessa matéria há que lembrar a influência do positivismo, que levou à compreensão do Direito
como ordenamento jurídico de um Estado, e este como fonte exclusiva de produção jurídica, do
que decorre, dentre outras características, a consideração do Direito como um sistema de normas,
pleno e coerente, e a atividade do juiz como essencialmente lógico-dedutiva. E também a
contribuição do Estado liberal de Direito, que se caracteriza pela crença no primado da lei, na
separação do Poder Legislativo, que criava a lei, do Poder Judiciário, que aplicava o Direito, e do
Poder Executivo, que cumpria as suas finalidades administrativas; na distinção nítida entre
Estado e sociedade civil, separáveis e opostos, na abstração e na generalidade das normas
jurídicas e ainda na dicotomia público/privado. Considera-se hoje que tais aspectos estão
superados, ou, pelo menos, relativizados na sua importância.

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O Estado não está mais separado da sociedade civil, ambos se interpenetram, e o Estado deve
obedecer à lei, como todas as pessoas. Por outro lado, a nítida separação dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, com referência à criação jurídica, não tem mais razão de ser, porque
hoje, quando um magistrado determina o Direito, na verdade constrói a norma jurídica adequada
à solução do conflito de interesses que lhe é submetido. Daí poder reconhecer-se que a sentença
contém uma norma jurídica individual, o que se opõe ao mito da generalidade e da abstração da
norma jurídica. O juiz, ao decidir, não está aplicando um Direito pré-existente, mas construindo
uma norma jurídica para o caso determinado. Ora, isso leva a uma subversão total em nossos
esquemas tradicionais e, por que não, nos nossos modelos culturais e científicos. E por que não
considerar que o particular, ao fazer um contrato, estabelece uma norma jurídica?

Há que se mudar o pensamento dogmático, hermético, fechado, que herdamos do século passado,
em que se consubstanciavam determinados sistemas, como o Código Civil, e que hoje ainda
utilizamos no nosso dia a dia de fazer Direito. Este não está nos códigos ou nos livros jurídicos,
nas bibliotecas ou no computador. O Direito é aquilo que o advogado e o magistrado constroem
quando solicitados a dar uma solução para o problema que lhes é posto. A função do jurista é
prevenir ou resolver conflitos de interesses e a função da faculdade de Direito é a de preparar a
juventude para responder aos desafios da sociedade à qual pertencem, elaborando respostas
jurídicas para os problemas da mesma sociedade. Jurista é o homem que dá respostas, como os
jurisprudentes romanos, os sábios que diziam o Direito.

Procura-se assim ultrapassar o monismo jurídico, segundo o qual o Estado é a única expressão da
ordem jurídica e somente ele pode criar Direito, superando-se a teoria tradicional das fontes do
Direito e aceitando-se a tese do pluralismo, da diversidade dos modos constituintes do Direito
positivo, reconhecendo-se, assim, a autonomia privada como um poder jurígeno. Substituir-se-ia
a descrição analítica ou sistemática das fontes por um processo constituinte, próprio da
experiência jurídica, funcionando não mais como disposições previstas na lei, mas como
mecanismos institucionais reconhecidos pela comunidade jurídica como produtores do Direito,
dentre os quais a vontade particular.

Ao defendermos a tese de um pluralismo de fontes do Direito, comprometeremos, talvez, os


valores da segurança e da certeza, tão caros à ordem jurídica do século passado. Mas hoje, nós,
juristas, vivemos no mundo da incerteza e da insegurança.

O Direito é hoje um mundo de incertezas, porque os problemas e os desafios são tão grandes e
constantes que não temos como encontrar, nos nossos modelos jurídicos, soluções imediatas que
os possam resolver com aquele método lógico-dedutivo do pensamento sistemático.

Conseqüências imediatas do reconhecimento da autonomia privada são, no Direito Civil — o seu


campo de excelência —, o princípio da liberdade contratual, a força obrigatória dos contratos, o
efeito relativo desses contratos, o consensualismo, a natureza supletiva, dispositiva da maioria
das normas estatais e ainda a teoria dos vícios do consentimento. No campo sucessório, a
liberdade de testar e de estabelecer o conteúdo do testamento, e para aqueles que aceitam a
vontade como poder jurídico, a concepção normativa do negócio jurídico. Esta última seria um
passo adiante da concepção de Betti, que se limitava à concepção preceptiva, entendendo que o
negócio jurídico da declaração de vontade poderia estabelecer preceitos jurídicos. Não chegou ao
ponto de falar em norma jurídica como, por exemplo, Santi Romano e Luigi Ferri na Itália e
Werner Flume, dentre outros, na Alemanha.

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O Projeto do Código Civil dispõe, no art. 421, que a liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato. Lembre-se que a liberdade contratual manifesta-
se nos seguintes aspectos: liberdade de contratar, liberdade de escolha das partes com quem
contratar e liberdade de estabelecer o conteúdo, a forma e os efeitos do contrato.

Se o Projeto de Código Civil, no art. 421, dispõe que a liberdade de contrato será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato, neste ponto, devo elogiá-lo, porque vejo uma
certa sintonia do legislador com o processo contemporâneo de funcionalização dos institutos de
Direito Civil, o que nos permite passar da consideração da autonomia privada como princípio
fundante e estruturante do sistema de Direito privado para uma perspectiva funcional desse
mesmo princípio.

O que significa a funcionalização de um princípio ou de um instituto? Para a concepção


científica do Direito, a Ciência Jurídica não deve ocupar-se com as funções que ela possa
desempenhar, mas somente com seus elementos estruturais, deixando a análise funcional para a
Sociologia. Acontece que, dada a complexidade da sociedade contemporânea, o recurso às
Ciências Sociais permite uma melhor compreensão do fenômeno jurídico, revelando a íntima
relação entre a teoria estrutural do Direito, de um lado, e a teoria funcional, de natureza
sociológica, de outro.

Essa conexão, própria dos estudos jurídicos contemporâneos, já fundamenta a Portaria n.


1.886/94 do MEC sobre os cursos jurídicos, que dispõe — a meu ver com razão — sejam
articulados os vários saberes jurídicos, a Ciência do Direito, a Sociologia, a Filosofia e a História
do Direito, para que o jurista se forme progressivamente, a partir de uma concepção
interdisciplinar do Direito.

A referência à função social de um princípio, de um instituto ou de uma categoria jurídica —


neste caso, a autonomia privada e o seu instrumento de realização, o negócio jurídico — significa
a superação do jurista como a "figura tradicional de cultor do Direito privado, ancorado nos
dogmas das tradicionais categorias civilísticas" e, agora, predisposto a conhecer e a enfrentar a
realidade do seu tempo, que lhe exige uma postura crítica em prol de uma ordem mais justa na
sociedade. A funcionalização do instituto significa que o Direito, em particular, e a sociedade, em
geral, começam a se interessar pela eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só no
tocante ao controle ou disciplina social, mas também no que diz respeito à organização e à
direção da sociedade, abandonando a costumeira função repressiva, tradicionalmente atribuída ao
Direito, em favor de novas funções de natureza distributiva, promocional, inovadora,
principalmente, na relação do Direito com a Economia. Surge o conceito de função no Direito,
ou melhor, nos institutos jurídicos, inicialmente, em matéria de propriedade e, depois, de
contrato, traduzindo a preocupação com a eficácia social do instituto e, no caso da autonomia
privada, com o reconhecimento e o exercício desse poder na livre circulação de bens e na
prestação de serviços, e na auto-regulamentação das relações decorrentes. Isso tudo se
condiciona à utilidade social que tal circulação possa representar com vistas ao bem comum e à
igualdade material para todos, idéia que se desenvolve paralelamente ao processo evolutivo do
Estado moderno como legislador racional. Disso resulta que a funcionalização de um princípio
implica sua positivação normativa, com o reconhecimento de limites que o ordenamento jurídico
estabelece para o exercício das faculdades subjetivas que eventualmente possam caracterizar
abuso de direito.

Emprestar ao Direito uma função social significa, portanto, considerar que os interesses da
sociedade se sobrepõem aos interesses do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a

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anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de se acabar com
as injustiças sociais. A expressão "função social" é, por isso mesmo, um princípio geral, uma
diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programática que não colide nem torna ineficazes
os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais consentânea com o
bem comum e com a justiça social.

É precisamente o contrato, instrumento da autonomia privada, o campo de maior aceitação dessa


teoria, acolhida primeiramente no Código Civil italiano, no art. 1.322, segundo o qual (...) podem
as partes determinar livremente o conteúdo do contrato nos limites impostos por lei e celebrar
contratos atípicos ou inominados, desde que destinados a realizar interesses dignos de tutelas,
segundo o ordenamento jurídico. Do mesmo modo consagra o Código Civil português, no seu
art. 405, ao dispor que as partes podem livremente fixar o conteúdo do contrato nos limites da lei
e celebrar contratos diferentes dos previstos no mesmo Código.

O exercício da função social do contrato conjuga a realização do princípio da autonomia privada


com a justiça social, sem prejuízo da liberdade da pessoa humana. Ora, é precisamente com esse
entendimento que a autonomia privada pode e deve-se direcionar. A idéia de justiça, que se
realiza na dimensão comutativa entre particulares iguais nos seus direitos e distributiva entre
eles, aparece agora com nova dimensão. A justiça social, a justiça geral, diz respeito aos deveres
das pessoas em relação à sociedade, superando-se o individualismo jurídico em favor dos
interesses comunitários e corrigindo-se os excessos da autonomia da vontade nos primórdios do
capitalismo. O Direito é, assim, chamado a exercer uma função corretora e de equilíbrio dos
interesses dos vários setores da sociedade, para o que se limita em maior ou menor grau de
intensidade, poder jurídico do sujeito, mas sem desconsiderá-lo, já que ele é, em última análise, o
substrato político-jurídico do sistema em vigor nas sociedades democráticas do mundo
contemporâneo que se caracterizam, precisamente pela conjunção da liberdade individual com a
justiça social e a racionalidade econômica.

A Lei da Arbitragem (Lei n. 9.307/96) é hoje uma referência obrigatória em matéria de


consagração da autonomia privada, por permitir que pessoas capazes possam valer-se do juízo
arbitral para resolver conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, escolhendo as regras
aplicáveis, desde que não violem a ordem pública e os bons costumes. Recordo-me de que o
Código de Processo Civil no seu art. 1.100, V — agora revogado pela Lei da Arbitragem —,
referia-se expressamente às normas legais e às normas contratuais, ou seja, tínhamos no sistema
jurídico brasileiro referência expressa a normas jurídicas contratuais.

Voltando à sistemática do Projeto, não é apenas a função social do contrato que constitui limite à
liberdade de contratar, mas também os princípios da probidade e da boa-fé, conforme dispõe o
seu art. 422.

Tem-se, então, que os limites do Projeto do Código são a função social do contrato, a probidade e
a boa-fé. A função social destina-se a impedir o abuso no exercício do direito subjetivo
contratual, atuando como critério de interpretação jurídica e legitimando a intervenção do Estado
por meio de normas excepcionais, como, por exemplo, as que protegem o consumidor, o
inquilino, o promitente-comprador, enfim, as que estabelecem limitações à liberdade de contratar
e que, de modo vago e generalizado, poderíamos reunir sob a denominação de "ordem pública e
de bons costumes". O princípio da probidade refere-se à honestidade no procedimento ou à
maneira criteriosa de cumprir os deveres contratuais. O princípio da boa-fé vincula os
contratantes ao dever de lealdade que está na base do contrato.

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Colocando de lado a questão prejudicial que é a conveniência ou não de um novo Código Civil,
no final do século XX, quando o século dos códigos foi o século XIX, e outra questão
prejudicial, a de saber se, admitindo-se um novo Código Civil, dever-se-ia ter uma Parte Geral,
que não é tão geral assim, porque os seus preceitos não se aplicam a todas as partes especiais, o
que se poderia dizer como conclusão e à guisa de provocação, é que o Direito não é só técnica,
mas é uma técnica a serviço de uma ética profunda, que se vem construindo ao longo de 27
séculos. E que essa ética diz que, qualquer que seja a restrição de natureza política ou jurídica, o
Direito tem sempre como eixo fundamental, como finalidade precípua, a realização da pessoa
humana, entendida esta como o indivíduo que se relaciona em sociedade.

A esperança é que das faculdades de Direito, dos cursos de pós-graduação, mestrados e


doutorados, saia preparado o jurista que vai enfrentar os problemas da sociedade, e mais do que o
conhecimento do Direito que está nos códigos e nos livros, é preciso a sua convicção íntima
sobre igualdade material e a justiça social. O século XXI exige conhecimento e, principalmente,
reflexão sobre o que cada um de nós pode fazer pela sua casa, por si mesmo, pela sua faculdade e
pelo Brasil. E especificamente sobre a autonomia privada, a convicção de que com a crescente
liberdade e a importância da vontade na gênese das relações jurídicas, em uma sociedade
pluralista, complexa, dominada pelo conhecimento tecnológico e pela mundialização da
economia, como é a contemporânea, não há razões para não se considerar a autonomia privada
como fonte de Direito, observadas as limitações legais que buscam assegurar o valor da justiça e
da igualdade. Retoma-se assim o valor integral da pessoa humana e do personalismo ético.
Francisco Amaral é Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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