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NOTAS E COMENTARIOS

FORMAS DE ABUSO DE PODER ECONOMICO·

JosÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO··

Peço licença para homenagear, com a presente exposição, a memória de Aga-


menon Magalhães, a quem se deve a primeira preocupação concreta, no Brasil,
com a luta do Estado contra os abusos do poder econômico. Ministro do Tra-
balho ao fim do Estado Novo, Agamenon Magalhães inspirou o Decreto-Iei n. o
7.666, celebrizado como a Lei Malaia, revogado pelo Presidente provisório
José Linhares. Em 1948, apresentou à Câmara dos Deputados o projeto de lei
em que aflorava a tese de que o capital estrangeiro comandava o processo de
concentração monopolística. Os textos de Agamenon Magalhães sobre o abuso
do poder econômico, inclusive sua célebre conferência pronunciada no Clube
Militar do Rio de Janeiro, em 22 de junho de 1949, acham-se publicados em vo-
lume da Folha da Manhã, Recife, 1949, girando todos em tomo do art. 148 da
Constituição Federal de 1946.
Desejo também referir a figura de Delmiro Gouveia, pioneiro da Indústria
no Nordeste, que ousou confrontar-se com a Machine Cotton na aventura da
concorrência pelo mercado de linhas. Na comemoração dos 70 anos da morte
misteriosa de Delmiro Gouveia, seja-me lícito nesta ocasião evocar sua persona-
lidade de empresário nacionalista, bem como de homenagear todos os outros
empresários brasileiros que ao longo do tempo vêm sendo constrangidos pelo
poder econômico, num regime de privilegiamento a grupos poderosos. Ainda
que nem todos os empresários nacionais sufocados pela concorrência internacio-
nal predatória e abusiva vejam de fato os seus equipamentos atirados ao fundo do
rio São Francisco, são eles objeto de especial menção nesta oportunidade.

1. Domínio dos mercados, eliminação da concorrência e aumento arbitrário


dos lucros - tais são as situações que, perante o direito vigente no Brasil, carac-

• Palestra proferida no I Seminário Nacional sobre Abuso do Poder Econômico, em


agosto de 1987.
•• Professor assistente de direito comercial na Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo.

R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 169: 199-213, jul./set. 1987


terizam o abuso do poder econômico. Essas situações (e a expressão "situação"
é do regulamento da Lei n. o 4.137, de 1962, baixado com o Decreto nO 92.323,
de 1986) acham-se inscritas na própria Emenda Constitucional n. O 1, de 1969,
cujo art. 160, V, erigiu a repressão ao abuso do poder econômico à condição
de princípio da ordem econômica e social, a qual, por sua vez, tem por fim
realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social. A essas três situações
(domínio dos mercados, eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos
luc:-os) ip fazia referência o art. 148 da Constituição de 1946. Poderia alguém
sugerir que o texto regulamentar, em vez de a situações, fizesse referência a
resultados, expressão que os juristas conhecem melhor, principalmente nos lin-
des do direito repressivo, não obstante os significativos esforços doutrinários no
serttido de tornar juridicamente precisa, ao menos no direito privado, a noção
de situação - e lembro aqui, de forma particular, as obras marcantes de Paul
Roubier,t para falar dos estrangeiros, e de Torquato Castro,2 para ficar entre nós.

2. Fato é que o abuso do poder econômico constitui um tipo de ilícito que


a lei manda combater "quaisquer que sejam as formas que assuma", sob a con-
dição de que caracterizem, isolada ou simultaneamente, o domínio dos merca-
das, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros (como se
infere do art. 1. o do Decreto n. o 92.323). Assim sendo, as formas de abuso,
para serem incriminadas, necessitam de um processo integrativo, que só se aper-
feiçoa com a ocorrência de situações determinadas em lei (e previstas na pró-
pria Constituição), de sorte que, na perspectiva da repressão ao ilícito, a situação
faz parte integrante do tipo, o que em tese bastaria para desde logo concluir que
a tentativa da prática de abuso do poder econômico não se enquadraria tipi-
camente como conduta punível. Ainda que tal conclusão se afigure aparente-
mente perfeita, devo lembrar que o Conselho Administrativo de Defesa Econô-
mica (Cade) já aceitou tese contrária, afirmando o voto do conselheiro-relator
no Processo Administrativo n. o 1, de 4 de agosto de 1966:
"O uso do meio é o bastante para configurar a infração, ainda que o domínio
(do mercado) não se efetive, nem se criem as condições monopolísticas visadas.
A lei de repressão citada seria inútil se, para a sua aplicação, fosse exigido o
clássico requisito do direito penal."3
Note-se que a dosimetria da multa pecuniária, cominada no art. 4. o do de-
creto regulamentar citado, leva necessariamente em consideração não apenas a
gravidade do abuso (alínea a), como também a vantagem auferida pelo agente

1 Roubier, Paul. Droits subiectifs et situations iuridiques. Paris, DaUoz, 1963.


2 Castro, Torquato. Teoria da situação jurídica em direito privado nacional. São Paulo,
Saraiva, 1985.
3 Revista de Direito Econômico, (2):57 e segs.

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(alínea b) e o prejuízo causado pela prática abusiva, quer a terceiros, quer à
economia nacional {alínea c} .

3. Nessa matéria, seria pouco jurídico e menos realista exigir a concretiza-


ção dos resultados previstos na lei (dominação de mercados, eliminação da con-
corrência ou aumento arbitrário dos lucros) para desencadear a ação repressiva.
As formas de abuso de poder econômico configuram, em substância, situações
de perigo e, como tais, são tipicamente suficientes para atrair a repressão admi-
nistrativa. A seção 2 do Sherman Act faz alusão não apenas às ilicitudes consu-
madas, mas também àquelas condutas em que se vislumbra a tentativa (attempt
to monopolize) ou a conspiração ou concerto (conspire with any other person
or persons to monopolize). Em comentário ao Decreto-Iei n.O 869, de 1938, as-
sinalava Nelson Hungria ser condição suficiente da consumação do crime o fato
puro e simples da formação de consórcios, convênios, ajustes, aliança ou fusão
de capitais para o fim exclusivo de impedir ou dificultar a concorrência. Pouco
importa, segundo Hungria, que não seja alcançado o fim que os pactuantes se
propõem. 4 Os danos das figuras antitruste, digo eu, ou são efetivos ou poten-
ciais, bastando o perigo e desde que haja aptidão das práticas a causar lesão aos
valores jurídicos tutelados. Para Roberto Lyra, outrossim, a especulação tam-
bém constitui crime formal, de perigo. A sua consumação, para ele, independe
da alta ou baixa, verificando-se, simultaneamente, com a ação de empregar qual-
quer artifício apto a criar o perigo. 5

4 . Segue-se que basta a presença, isolada ou simultaneamente, das situações


de perigo consistentes em domínio dos mercados, eliminação da concorrência ou
aumento arbitrário dos lucros, para se consubstanciarem formas puníveis de
abuso de poder econômico. As formas delituosas em questão são apenas qua-
lificadas pelo resultado, o que equivale a dizer que a verificação de qualquer
um desses mesmos resultados é conceituada pelo legislador apenas como agra-
vante da infração cometida, implicando maior peso punitivo.

5 . A partir dessa observação preliminar, creio que se pode iniciar uma es-
pécie de reflexão destinada a verificar se, no que tange a uma efetiva repressão
aos abusos do poder econômico, o instrumental jurídico disponível pode osten-
tar, de fato, a qualidade da eficácia no sentido concreto - na acepção verda-
deiramente sociológica, considerados esses mesmos valores tutelados na sistemá-
tica legal.

4 Hungria, Nelson. Dos crimes contra a economia popular. Rio de Janeiro, Jacinto, 1939.
p.39.
5 Lyra, Roberto. Crimes contra a economia popular. Rio de Janeiro, Jacinto, 1940.1'. 151.

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6. Em primeiro lugar, há que se ter em vista a necessidade imperiosa de
se conferir ao poder público - no caso, especificamente ao Cade - um eficien-
te poder inibitório, capaz de coartar os perigos representados para a ordem ju-
rídica por práticas em fase de consumação, mas ainda não consumadas, que ten-
dam, ou possam tender ao domínio dos mercados, à eliminação da concorrência
ou ao aumento arbitrário dos lucros. A realidade econômica demonstra que os
abusos do poder econômico, como, de resto, a generalidade das hipóteses legais
da denominada criminalidade econômica, são crescentemente praticados de for-
ma indireta, de forma a eludir as claras prescrições da Íei, com a reconhecida di-
ficuldade em se comprovar, de forma cabal, a ilicitude cometida. Um dos maio-
res problemas da justiça contemporânea, seja no plano judiciário, seja no admi-
nistrativo, está precisamente na produção de evidências formais das violações à
lei. E isso porque a sofisticação das práticas econômicas logra muitas vezes des~
pistar a apuração da verdade para chegar à frustrante conclusão de que o es-
quematismo formal da lei repressiva e da lei processual são incapazes ou insu-
ficientes para abarcar a complexa realidade em que opera a chamada macro-
criminalidade. No Brasil, esta tem sido, inclusive nos dois últimos anos e meio,
a amarga lição da experiência.

7. No campo específico da legislação antitruste, a par da ativação e moder-


nização do Cade, que em boa hora vem sendo empreendida, a realização plena
da repressão aos abusos do poder econômico depende de reforma legislativa, de
que aliás já se ocupa o Estado. Parece ser imprescindível, no entanto, repensar
certos princípios da atuação intervencionista do poder público, à vista não de
preconceitos ideológicos (que adentram a esfera da política constitucional) mas
de verificações de ordem concreta (que estão exatamente dentro do universo
propriamente jurídico, no sentido da viabilização da aplicação da lei, muito
embora recaiam por igual nos domínios da sociologia do direito, no concernente
à eficácia da ordem jurídica) .

8. Sem poder inibitório, o Cade corre o risco de não poder cumprir suas
funções. Sem a faculdade de intervir na ordem econômica para paralisar as
etapas formadoras do abuso de poder ainda quando não configuradas material-
mente as infrações à lei, o Cade corre o risco de enfrentar fatos consumados,
atentatórios à concorrência e aos interesses do público, cujos efeitos danosos são
de difícil ou impossível reparação, mesmo com a intervenção ou com a própria
liquidação judicial, e em relação aos quais as penalidades administrativas se
mostram inócuas ou absolutamente irrelevantes. Trata-se, por assim dizer da
transposição do conceito de poder cautelar, tão bem elaborado pela experiência
processual, para os limites do direito administrativo dito de polícia ou discipli-
nar, com a finalidade de suprimir as conseqüências do periculum in mora.

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9. A sindicância e a averiguação preliminar, que conduzem ou podem con-
duzir ao processo administrativo, circunscrevem-se (e é natural que assim seja)
a uma avaliação prévia das circunstâncias de fato e de direito referentes aos atos
e fatos apresentados como constitutivos de abuso de poder econômico. A lin-
guagem é a do § 2. o do art. 9. o do Decreto n. o 92.323, aplicável, portanto, à
sindicância, mas não diferem as razões de ser da averiguação preliminar. Por
mais céleres que se tomem esses procedimentos, não conseguem eles evitar a
consumação de certos efeitos econômicos que de outra forma seria forçoso im-
pedir, como, por exemplo, a ruína de determinada empresa ou a celebração de
determinados contratos violadores da lei com terceiros de boa-fé, que são, na
prática, eventos irreversíveis, cujos prejuízos não comportam adequada e sufi-
ciente composição a posteriori, nem desconstituição perfeita e in natura.

10. É importante enfatizar, de outro lado, que o resultado (ou, na linguagem


regulamentar, a "situação") de eliminação da concorrência, que vem capitulado
no inciso I do art. 2.° da Lei n.O 4.137, de 1962, ocorre em conseqüência d<!
um ou mais atos (que as alíneas do inciso discriminam em caráter genérico) .
Muitas vezes, no iter formativo do resultado ilícito, concorrem as figuras ins-
trumentais arroladas pelo legislador, como, por exemplo, e para citar a mais com-
plexa delas do ponto de vista hermenêutico, a criação de dificuldades à consti-
tuição, ao funcionamento ou ae desenvolvimento de empresa (alínea g). Ora,
nem sempre atos ou fatos individualmente considerados encontram cabimento
exato no elenco legal, não podendo, em si mesmos, ser considerados iücitos.
Mas, quando se pode perceber, ainda que com o emprego de raciocínio indiciá-
rio, que atos ou fatos isolados (e em si lícitos) se vinculam a finalidades re-
conhecidamente contrárias à lei, integrando-se em um processo de eliminação
total ou parcial da concorrência, impõe-se a pronta intervenção do Cade, com
base na necessidade de acautelar interesses e valores jurídicos cujo comprome-
timento seja tido como inevitável ao longo do tempo. Aliam-se, na hipótese, os
pressupostos do processo cautelar: o fumus boni iuris e o periculum in mora.
Não enxergo nenhuma razão de direito a excluir a possibilidade jurídica da
atuação cautelar do órgão administrativo, em casos semelhantes, desde que de-
vidamente fundamentada a iniciativa na perspectiva da lesão grave e de difícil
reparação, a que se refere o art. 798 do Código de Processo Civil, e inclusive
com a inibição de atos, nos moldes do art. 799 do mesmo Código, sendo inclu-
sive admissível, com fulcro neste último dispositivo legal, a imposição de garan-
tias que assegurem o impedimento de possíveis prejuízos.

11 . O limite ético e jurídico dessa modalidade de intervenção cautelar reside


no resguardo necessário das liberdades individuais e muito especialmente no di-
reito de defesa, com estrita observância do devido processo legal. Mas é bom
que se recorde que o poder inibitório não se confunde com o poder punitivo, de

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sorte que seu exercício se fundamenta na cautela e na proteção a priori do in-
teresse público e não no ius puniendi do Estado. Da mesma forma que a Co-
missão de Valores Mobiliários está autorizada a suspender negociação de ações,
a decretar o recesso de bolsas de valores e proibir às participantes do mercado
(de valores mobiliários) a prática de atos especificados (Lei n. ° 6.385, de
1976, § 1.0), o mesmo poder inibitório ou cautelar há de ser outorgado ao Cade,
com apoio nas mesmas razões, facultando-se-Ihe inclusive a legitimação para
provocar, por ato próprio, de sua iniciativa, o exercício da função do Poder Ju-
diciário.

12. No caso Swift & Co. versus United States, 196 US 375 (1905), o voto
vencedor do Justice Holmes já assinalava esse caminho:
((But when the intent and the consequent dangerous possibility exist, this sta-
tute, like many others, and like the common law in some cases, directs itself
against the dangerous probability as well as against the completed result."6

13 . O problema das formas do abuso de poder econômico entende direta-


mente com o problema da tipicidade das previsões legais, definidoras dessa es-
pecial modalidade de ilicitude. No âmbito penal, a tipicidade dos delitos econô-
micos foi superiormente estudada pelo Prof. Gerson Pereira dos Santos em seu
Direito penal econômico,7 em que o eminente professor da Universidade Fe-
deral da Bahia, ostentando atual e significativo lastro doutrinário, de fonte pre-
dominantemente germânica, alude à existência, na matéria, dos conceitos juridica-
mente indeterminados, para aludir à imprecisão conceitual do delito econômico.
Coube a Karl Engisch, no extraordinário Einführung in das juristiche Denken de
1964,8 esmiuçar a análise dos conceitos jurídicos indeterminados, de conteúdo e
extensão em larga medida incertos, os quais explicitam uma irrefragável nota-
ção da experiência jurídica contemporânea, marcada pelo declínio da subsunção
dos fatos a conceitos jurídicos fixos e pela crescente valoração autônoma, por
parte do aplicador da lei, no processo de alcançar o sentido e a abrangência das
normas prescritivas, em linha de evolução do direito estrito (ius stritum) ao di·
reito eqüitativo (ius aequum). Essa é e deve ser a perspectiva hermenêutica das
formas (ou tipos) do abuso de poder econômico. Ou, pelo menos, é o que se
propõe à discussão deste Seminário.

14. Mas o problema das formas, que aqui nos ocupa, tanto quanto com a
tipicidade, entende também, e de forma essencial, com o processo interpretativo,
visto e compreendido por seus ângulos histórico-culturais mais modernos e com-

6 Cf. Gifford & Raskind. Cases and materiais on federal antitrust law. St. Paul, West,
1983. p. 342.
1 Santos. Gerson Pereira dos. Direito penal econômico. São Paulo, Saraiva, 1981.
8 Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. Baptista Machado, 5.' ed. Lis-
boa, Fundação Calouste Gulbenkian .

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patíveis com a realidade contemporânea. A interpretação, se quisermos com-
binar as melhores e mais sutis conquistas doutrinárias de um Croce, de um As-
carelli, e de um Miguel Reale, não deixa de possuir um caráter decisório, na
medida em que consubstancia uma opção condicionada pelo tempo cultural e
pelas exigências sociais, muito embora não se lhe possa extirpar sua declarato-
riedade essencial, para atender, como diz Miguel Reale, a razões de certeza e
segurança. 9 A exigência de certeza, porém, segundo Reale, não é sinônimo de
imutabilidade formal, no sentido de que a certeza que o aplicador da lei recla-
ma (e esta é a linha ascarelliana) é aquela que se constitui ao longo das expe-
riências jurídicas, no contexto das situações valorativas dominantes, lembrando
ainda Ascarelli a afirmação de Piero Calamandrei de que o juiz atua como me-
diador de uma consciência comum, que poderíamos chamar de communis opi-
nio,1° imperativo a que também se submete, além do magistrado, a agência ad-
ministrativa incumbida de fazer valer a lei anti truste.

15. A partir de tais proposições, a que eu poderia acrescentar, nos parâme-


tros da hermenêutica estrutural, a teoria dos modelos jurídicos, de que Reale é
o paladino entre nós,!l além da doutrina dos standards jurídicos, ou dos mode-
los abertos - as "janelas do direito", segundo Reale - em que a eqüidade tem
o papel central (embora recusada por Pontes de Miranda), e isso sem falar na
interpretação segundo o razoável (por contraste com a interpretação segundo a
razão) na vertente de Recasens Siches e de Chaim Perelmann, tudo parece ca-
minhar para uma renovada visão, tanto da tipicidade quanto da exegese legal,
que implica o prestígio dos princípios da ordem jurídica, preferentemente à li-
teralidade fechada dos preceitos individualmente considerados, como se não fi-
zessem parte de um sistema, informado por valores.

16. ~ um dado irrecusável da realidade contemporânea a necessidade de


estender os limites da atividade jurisdicional para além do formalismo clássico.
O balizamento mais amplo do órgão julgador em sua função de encontrar a ver-
dade real e de realizar a justiça in concretu revela-se em todos os países do Oci-
dente, assinalando singularmente a experiência jurídica de nossos dias. Isso por-
que, no que aqui nos conceme, o casuísmo legal, por mais pormenorizado que
seja, não abriga todas as modalidades de concertos articulados para fraudar a
ordem legal. A integração de normas penais em branco, a experiência dos
standards jurídicos, a interpretação realista e econômica dos comandos legais e
a crescente utilização legislativa dos conceitos juridicamente indeterminados r:!-
presentam manifestações evidentes e eloqüentes de que o equilíbrio social s6

9 Reale, Miguel, A teoria da interpretação segundo Tullio AscareDi. In: Questões de


direito. São Paulo, Sugestões Literárias, 1981. p. 10.
10 Id. ibid. p. 11-2.
\I Cf. Estudos de filosofia e ciência do direito.

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pode ser atingido, hodiernamente, mediante a superação do formalismo verbal
que prevaleceu em nossa cultura, infenso à evolução da economia, da sociedade
e do próprio direito.

17. Há que se distinguir, como é óbvio, entre a hermenêutica realista e eco-


nômica do art. 2. o de nossa lei antitruste, e o arbítrio administrativo na apre-
ciação das irregularidades em causa. Reconheça-se que proscritos estão os mé-
todos analógicos na hermenêutica do direito penal econômico, no que diz respei-
to à imposição de penalidades administrativas. Repita-se, sempre com proveito,
a lição dos grandes jurisconsultos que sempre propugnaram por uma definição
clara dos ilícitos da espécie. Nesse sentido é o valioso parecer do Prof. José
Frederico Marques, parecer esse tão rico na colação da doutrina de terceiros
quanto na formulação das conclusões do próprio jurisconsulto paulista, ao as-
sentar que "no direito penal econômico, é postulado tranqüilo o de que as in-
frações ali previstas estão subordinadas, também, ao princípio do direito penal
liberal, de que não há crime sem prévia definição legal, ou seja, o princípio da
tipicidade; não há infração penal sem prévia descrição típica". 12

18. Adite-se a isso pertinente observação de Alberto Venâncio Filho, em obra


extraordinária cuja reedição se postula,13 segundo a qual a enumeração de tipos,
pelo art. 2. o da Lei n. o 4. 13 7, é evidentemente taxativa e abrange todas as for-
mas de abuso do poder econômico para as quais a lei comina sanções, uma vez
que foi, prudentemente, excluído qualquer critério de assemelhação, como pre-
visto no projeto do Poder Executivo de 1961, que considerava ainda abuso do
poder econômico qualquer ato semelhante aos mencionados no texto da lei c
que objetivasse as conseqüências nela previstas. 14 Daí decorre, precisamente, a
necessidade de compatibilizar o princípio da tipicidade e da identificação dos
delitos em numerus clausus com a exigência ética e jurídica de circunscrever maté-
ria de tão largo espectro e de tão inesperadas variáveis comportamentais em
um sistema regulador e repressivo que se mostre verdadeiramente eficaz. As
técnicas jurídicas antes apontadas permitem tal compatibilização, sem o com-
prometimento da segurança e certeza do direito e sem prejuízo dos direitos e
garantias individuais. Semelhante imperativo, de conciliar, de um lado, eficá-
cia de repressão e, de outro, tipicidade e reserva legal, representa um dos mais
agudos desafios com que se defronta o jurista moderno, muito podendo se es-
perar deste Seminário no sentido de um correto e prático equacionamento do
problema.

12 Marques, José Frederico. RF, 215:48. Apud: Franceschini, José Inácio Gonzaga &
Franceschini, José Luiz Vicente. Poder econômico; exercício e abuso - direito antitruste
brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985. p. 476 e segs.
13 Venâncio Filho, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de
Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1968.
14 Id. ibid. p. 297.

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19. Na interpretação do inciso 1 do art. 2.° da Lei n.O 4.137, em mais de
um passo, depara-se o observador com figuras-meio, a servirem de instrumento
à dominação dos mercados nacionais ou à eliminação total ou parcial da con-
corrência, em que fi conceitualização de certos problemas típicos exige uma fun-
ção integrativa que se coloca além do universo das noções jurídicas categoriza.
das. Assim, por exemplo, alude a alínea c à coalizão, incorporação, fusão, inte-
gração ou qualquer outra forma de concentração de empresas. A expressão legal
"qualquer outra forma de concentração de empresas" indicia um espaço de cons-
trução tipológica que nada tem de analógico. Cuida-se, ao revés, de uma aber-
tura do tipo que a experiência jurídica e a cultura do tempo devem preencher -
e não livremente, se não em estrita conformidade com a finalidade do preceito
normativo. Aplica-se, então, a regra da congruência, segundo a qual qualquer
forma de concentração de empresas é punível se for apta (ou côngrua) a atingir
o resultado visado pelo legislador: a dominação de mercado ou a eliminação
de concorrência. Não é preciso que se cumulem os resultados, como já demons-
trou Pontes de Miranda. Basta que um deles surja como fim visado pelo pro-
cesso concentracionista para que a infração se materialize. O controle tecnoló-
gico, por exemplo, pode representar um mecanismo concentracionista indicador
do domínio dos mercados ou da eliminação total ou parcial da concorrência.

20. O ponto a sublinhar está na prova de que o controle tecnológico de uma


empresa por outra pode servir congruentemente de meio à dominação merca-
dológica ou à eliminação da concorrência. Demonstrada tal aptidão, é mister
evidenciar que o resultado do controle tecnológico terá sido, de fato (e aqui a
questão é realmente de fato), a dominação do mercado ou a eliminação da con-
corrência, ainda que em caráter potencial. Assim se chega a uma exata capitu-
lação do ilícito, seguindo-se um processo hermenêutico que leva em conta, pri-
mariamente, a realidade econômica. A caracterização do controle tecnológico,
por sua vez, também resulta de uma investigação de fato, em que a realidade
do domínio de uma empresa por outra deve se aferir não por referência neces-
sária aos instrumentos contratuais que entre si hajam formalmente celebrado,
mas por referência explícita ao comportamento objetivo da empresa dominada,
demonstrando-se, por exemplo, a redução de suas vendas a um ou a alguns pro-
dutos, em cujo faturamento a prestadora da tecnologia tenha interesse financeiro
ou mercadológico. Também nesse caso são os fatos que se interpretam, na cons-
trução do tipo ilícito a ser integrado, com a atribuição de significado jurídico
concreto (e não abstrato) à referida expressão "qualquer outra forma de con-
centração de empresas".

21. Desnecessário dizer que, nessa esfera de cogitações, talvez mais que em
qualquer outra, a conceitualização da pessoa jurídica, como técnica de separa-
ção de direitos e obrigações de natureza patrimonial, deve ser operada com sen-

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tido finalístico e funcional, na linha da revisão crítica do conceito, tão bem es-
tudada por Fábio Konder Comparato em O poder de controle na sociedade anô-
nima. Diga-se, ainda, de passagem, que, em matéria antitruste, o conceito de
empresa, ministrado pelo art. 6.° da Lei n.O 4. 137, presta-se com justeza a
esse tipo de interpretação realista e econômica, exorcizado, desde 1962, quando
a lei foi promulgada, o mito da pessoa jurídica intangível e enfatizada a ativi-
dade (e não o ente) como núcleo da organização empresarial.

22. Desejaria sublinhar, em todo esse contexto, a excepcional importância


prática que, na conjuntura, assumem as formas de abuso de poder econômico
consistentes na elevação de preços de bens, mercadorias ou serviços. Na siste-
mática da Lei n.O 4. 137, as modalidades ilícitas de elevação de preços estão ca-
pituladas nos incisos 11 e 111 do art. 2.°. No inciso I, cuida o legislador de
1962 da elevação sem justa causa de preços, nos casos de monopólio natural ou
de fato, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sem aumentar a
produção. Como se pode observar, nessa previsão legal existe um pressuposto
fático, que vem a ser a existência de monopólio natural ou de fato, o que tor-
naria inaplicável a cominação sempre que os aumentos de preços fossem prati-
cados por todas ou quase todas as empresas de um determinado segmento in-
dustrial ou comercial, entre si concorrentes, em regime de plena competição
mercadológica. Para evitar os aumentos de preços dessa natureza, outros são os
caminhos do legislador, desde o controle de preços industriais a cargo do CIP,
passando pelas atribuições da Sunab e chegando até a figura da transgressão às
tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ilícito penal enquadrado como crime
contra a economia popular, nos termos do art. 2.°, inciso VI, da Lei n.O 1.521,
de 1951. A meu ver, a elevação sem justa causa de preços, numa economia as-
solada por inflação crônica e rebelde a qualquer espécie de choque, seja ortodo-
xo ou heterodoxo, estruturalista ou monetarista, pode configurar, de lege feren-
da, verdadeiro e típico abuso de poder econômico, mesmo em regime de con-
corrência (excluída, portanto, a restrição legal do monopólio). E aqui coloco
à discussão idéia que defendo não de hoje: a legislação repressiva dos abusos
de poder econômico, embora histórica e experiencialmente vinculada à norma-
lização das condições competitivas no mercado, não se esgota (ou não precisa
necessariamente se esgotar) no atendimento da necessidade de instituir condi-
ções ideais de concorrência. Quando todo um setor produtivo, de bens ou ser-
viços, concertadamente ou não, aumenta preços sem justa causa, justifica-se ple-
namente a intervenção do Estado, porque toda e qualquer prática econômica no
mercado que não se apóie em razões legítimas e justificáveis, é, por conseqüên-
cia, abusiva. Quando a vigente Constituição alude a aumento arbitrário dos lu-
cros (art. 160, inciso V) como modalidade de abuso de poder econômico não
exige que tal aumento decorra de condições monopolísticas. Para mim, portan-
to, aumentar preços arbitrariamente (ou sem justa causa), objetivando injustifi-

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cáveis aumentos de lucros, é exatamente uma forma juridicamente caracterizável
de abuso de poder econômico.

23. Não importa, a rigor, se é o Cade ou outro órgão o mais eficiente ou o


mais adequado para coartar os aumentos de preços sem justa causa. Essa é uma
outra questão, que se resolve em termos de competência legal e de conveniências
da administração. Fato é que a caracterização do monopólio, natural ou de fato,
como condicionante do abuso de poder econômico, tal como hoje consta do in-
ciso I do art. 2. o da Lei n. o 4. 137, não é uma exigência lógica do sistema ju-
rídico, de sorte que pode perfeitamente ser abandonada na legislação adveniente,
ressalvado sempre que os aumentos setoriais de preços, por parte de empresas
entre si concorrentes, desde que desamparados de razões, podem ser mais efici·
entemente controlados, punidos ou reprimidos por outros órgãos. O que, acre-
dito. ninguém pode contestar é que, numa crise econômica sem precedentes na
história do país, se possa afirmar não constituir abuso do poder econômico pre-
tender aumentar lucros via aumentos injustificados de preços. O abuso, aqui,
não é contra empresas concorrentes, mas contra a coletividade. E o bem juri-
dicamente tutelado não há de ser a livre concorrência mercadológica, mas o bem
comum, de que faz parte a economia dos consumidores, vale dizer, do povo.
A livre concorrência é valor-meio, a servir o valor-fim, que vem a ser o bem
comum e o interesse coletivo.

24. Quanto ao inciso IH do art. 2.0 da Lei n.O 4. 137, que trata da provo-
cação de condições monopolísticas e de especulações abusivas, tendentes à ele-
vação temporária de preços, o abuso se perpetra seja contra a concorrência, seja
contra a economia popular. Daí poder se pensar em duas ordens de conseqüên-
cias jurídicas para a caracterização do monopólio e para a especulação abusiva
(como ocorre, por exemplo, na hipótese da escassez provocada de bens de con-
sumo): uma, concemindo aos direitos dos concorrentes, amparados em preten-
sões de ordem pública, mas na órbita privada, e outra, dizendo respeito à eco-
nomia popular, por meio da repressão ex-olfieio do Cade, em nome do interesse
público.

25. A meu ver, a repressão a tais modalidades de abuso de poder econô-


mico se insere categorialmente no direito concorrencial e este não se limita à
valorização da liberdade de concorrência enquanto valor absoluto e bastante
em si mesmo, mas, ao -contrário, somente encontra justificativa ética se e
enquanto a liberdade de concorrência atende às exigências do bem comum,
para não dizer da economia popular. A especulação abusiva não apenas preju-
dica o concorrente: fundamentalmente, afeta o interesse do povo consumidor
e é por tal razão que primariamente reclama a repressão oficial. O mesmo se
pode afirmar da provocação de condições monopolísticas. Convergindo ambas

209
para o aumento arbitrário de lucros, a infração, constitucionalmente falando,
ofende a ordem econômica e social e esta, enquanto vigir o art. 160 da Emenda
Constitucional n.O 1, de 1969, como já ficou assinalado, tem por fim realizar
o desenvolvimento nacional e a justiça social. Tais são, afinal, as razões teleo-
lógicas da repressão ao abuso do poder econômico (inciso V do art. 160 da
vigente Constituição).

26. Nessa linha de raciocínio, o que defendo é a definição dos valores-chave


da repressão ao abuso do poder econômico, em uma perspectiva de hierarqui-
zação axiológica. Retomando a temática central desta exposição, atinente às
formas de abuso de poder econômico, proponho que se considere o valor-chave
da legislação o interesse coletivo, de ordem pública. Até mesmo historicamente,
entre nós, foi na proteção da denominada economia popular que se originaram
as primeiras preocupações anti truste, ainda sob a égide do intervencionismo
estado-novista, corporificada no Decreto-Iei n.O 869, de 1938, que contou, na
sua elaboração, com a contribuição significativa de Nelson Hungria. Em seu
clássico livro de 1939/5 o grande penalista aludia ao interesse geral ou ao bene-
fício do povo como limites à iniciativa privada e à concorrência, não conside-
rados elementos incondicionalmente úteis por si mesmos.16 Mesmo com a res-
salva do tempo decorrido e da evolução política, social e econômica, a repres-
são ao abuso do poder econômico deve se fundar no atendimento das necessi-
dades básicas da coletividade e não apenas na proteção do acesso livre de todos
os possíveis detentores de capital ao mercado livre e eficiente. A disciplina da
concorrência pura idealmente perfeita se subordina axiologicamente ao inte-
resse dos que não têm capital a investir no mercado em atividades produtivas,
mas que consomem sua renda no provimento das exigências da vida. Daí o
relevo que empresto, em nossa tradição constitucional, desde 1946, à expres-
são autônoma aumento arbitrário dos lucros, que representa, no dizer de Pontes
de Miranda e do Prof. Benjamin Shieber, uma "base independente" da legis-
lação antitruste, no sentido de que traduz um valor não ligado nem referen-
ciado necessariamente à tutela da concorrência.

27. Uma visão liberal da disciplina pode encarar o aumento arbitrário dos
lucros como ofensa ao princípio da livre competição, mas, de uma perspectiva
socialmente mais justa e juridicamente mais concreta, o aumento arbitrário de
lucros consubstancia o mau uso (abuso) dos bens de produção por parte de
quem os detém, em detrimento do equilíbrio econômico. Lembrando aqui o
velho Projeto Agamenon Magalhães, assinalo que o grande inspirador de nossa
legislação antitruste (que não era certamente um liberal no sentido ortodoxo)

15 Hungria, Nelson. op. cito


18 Id. ibid. p. 9.

210
postulava a categorização, como abuso do poder econômico, da percepção de
lucros excessivos, assim entendidos os que ultrapassassem a percentagem nor-
mal (art. 2.°, inciso VIII). A importância desse enfoque ganha ainda mais
relevo na ausência de um pacto social que harmonize os fatores de produção
e uma conjuntura renitentemente inflacionária, cujo peso onera desigualmente
produtores e comerciantes, consumidores e trabalhadores. e à vista dessa desi-
gualdade estrutural de nossa economia que deve repousar o princípio básico
da repressão ao abuso do poder econômico.

28 . A tutela da concorrência como valor-meio coloca-se subsidiariamente


em relação a esse valor-chave. A concentração empresarial, desde que conduza
à possibilidade de dominação mercadológica com a imposição de preços sem con-
trole, ou desde que facilite a especulação e a regulação privada da oferta de
bens ou serviços no mercado, também deve incidir na censura da lei. Sob esse
ponto de vista, a provocação de condições monopolísticas (art. 2.°, 111, da Lei
n.O 137), nos termos em que hoje é legalmente conceituada (art. 5.°), deve
ser ampliada em suas tipificações, de sorte a também abranger posições domi-
nantes originadas do poder tecnológico que sabidamente é um fator capaz de
influir preponderantemente sobre preços, mas que também leva ao enfraque-
cimento da liberdade de decidir e escolher, por parte dos consumidores. Pare-
ce-me imprescindível, ainda, controlar a imposição de padrões de consumo ou
a criação de condições artificiais de demanda, mediante a tipificação delituosa
do abuso da publicidade e da utilização tendenciosa dos meios de comu-
nicação, independentemente do ilícito autônomo, de concorrência desleal ou
das infrações específkas aos direitos dos consumidores, que atendem a outros
valores fundantes da legislação. E não se há de esquecer a repressão à espe-
culação abusiva, decorrente ou não de situações monopolísticas, e indepen-
dentemente do dano (ou do perigo de dano) aos concorrentes.

29. Com base nesses princípios de hierarquia valorativa, que, no entanto,


dependem da nova Constituição, pode-se chegar a uma adequada tipificação
sistemática das formas de abuso do poder econômico, e, ao mesmo tempo, à
elaboração de critérios interpretativos das figuras delitivas que privilegiam
o valor e o sistema, para além do casuísmo literal e do improfícuo verbalismo
hermenêutico. Parece claro que a valorização da economia popular, ou, por
outras palavras, a tutela dos interesses dos não-empresários, mesmo entendida
como valor-chave da repressão antitruste, como aaui se postula, não impede
que a legislação reprima autonomamente certas modalidades de abuso de poder
econômico consistentes na fixação de condições injustas de concorrência, como,
por exemplo, a discriminação entre grandes conglomerados e pequenas e médias
empresas, por parte de fornecedores de insumos, que diferenciam preços em
benefício dos primeiros. Essas formas de comercialização discriminatória, visi-

211
velmente, desequilibram a economia, particularmente no que tange ao universo
das pequenas e médias empresas. Incluídas na repressão antitruste nos EUA
por força do Robinson-Patman Act, de 1936, que veio modificar por acréscimo
o § 2.° do Clayton Act, de 1914, tais formas delitivas se dirigem aos large-
volume purchasers, que podem obter melhores preços de seus fornecedores do
que o small business. A matéria tangencia a concorrência desleal, mas o fulcro
da repressão está, aqui, no abuso do poder econômico da grande empresa, colo-
cada, em razão de sua capacidade de compra, em posição desigual e mais favo-
recida em um mercado que, ao menos idealmente, se pretende livre. As econo-
mias de escala, que a concentração empresarial pode favorecer, são mesmo
suscetíveis de beneficiar o consumidor, mas, na medida em que a monopoli-
zação reduza as margens de competição de preços, limitando as ofertas de
produtos ou serviços no mercado, implica perigo potencial ao funcionamento
normal e eficiente das leis mercadológicas. Não está demonstrada, na expe-
riência, a proclamada verdade de que a concentração empresarial beneficia
efetivamente o consumidor e a economia popular. Ao revés, o que nossa his-
tória recente revela é bem o contrário, a partir do início da década de 70, com
o estímulo governamental à concentração de empresas, notadamente no setor
da agroindústria da cana-de-açúcar e no campo das instituições financeiras.
Não se pode negar que, ao menos em princípio, a pluralização de ofertas no
mercado, com o controle das práticas concentracionistas e a repressão às ten-
dências monopolizantes, aumenta as oportunidades de um comércio mais com-
petitivo e salutar, no interesse do próprio consumidor e do povo.

30. Por fim, cabe referir que fortes tendências doutrinárias almejam desvin-
cular a tutela do consumidor da repressão antitruste, sobretudo na Europa,
sob o argumento de que a liberdade de concorrência é um bem renunciável,
sob a égide de pactos limitativos ou reguladores. Ora, se a concorrência fosse
concebida como garantia dos consumidores, não poderia ser parcialmente pac-
tuada sua limitação convencional. 11 Não me convenço do acerto dessa tese,
uma vez que as restrições à concorrência somente são lícitas, ao menos no
direito brasileiro, quando não implicam lesão aos direitos e interesses dos con-
sumidores, notadamente no que tange à fixação de preços ao açambarcamento
e à retenção de mercadorias e, enfim, no que concerne à redução de ofertas no
mercado. Mas, como é evidente, nem toda a esfera de tutela do consumidor
se subsume à disciplina anti truste, assim como esta, por seu turno, também não
abarca todas as formas de concorrência desleal.

31 . Muito depende, em todo esse contexto, da elaboração jurisprudencial,


do critério administrativo e da construção doutrinária. Conceitos como aumento

17 Cf. Alpa, Guido. Tutela dei consumatore e controlli suU'jmpresa. Bologna, Mulino, 1971.

212
arbitrário de lucros e especulação abusiva, por exemplo, devem ser refinados
pelo crivo da experiência, pelo juízo da razoabilidade e pelo prisma da realidade
econômica e social do país. À cultura do direito da economia cabe relevantíssi-
mo papel, não só na elaboração do novo estatuto repressivo como também na
integração do sentido e funcionalidade de suas normas, para uma boa aplicação
da lei com a imprescindível segurança e certeza, mas com justiça, sem precon-
ceitos ideológicos mas também sem fetichismos. Deste Seminário sairão, estou
certo, utilíssimas contribuições a uma renovada concepção da repressão às formas
de abuso de poder econômico.

editados pela FGV


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