Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
200
(alínea b) e o prejuízo causado pela prática abusiva, quer a terceiros, quer à
economia nacional {alínea c} .
5 . A partir dessa observação preliminar, creio que se pode iniciar uma es-
pécie de reflexão destinada a verificar se, no que tange a uma efetiva repressão
aos abusos do poder econômico, o instrumental jurídico disponível pode osten-
tar, de fato, a qualidade da eficácia no sentido concreto - na acepção verda-
deiramente sociológica, considerados esses mesmos valores tutelados na sistemá-
tica legal.
4 Hungria, Nelson. Dos crimes contra a economia popular. Rio de Janeiro, Jacinto, 1939.
p.39.
5 Lyra, Roberto. Crimes contra a economia popular. Rio de Janeiro, Jacinto, 1940.1'. 151.
-201
6. Em primeiro lugar, há que se ter em vista a necessidade imperiosa de
se conferir ao poder público - no caso, especificamente ao Cade - um eficien-
te poder inibitório, capaz de coartar os perigos representados para a ordem ju-
rídica por práticas em fase de consumação, mas ainda não consumadas, que ten-
dam, ou possam tender ao domínio dos mercados, à eliminação da concorrência
ou ao aumento arbitrário dos lucros. A realidade econômica demonstra que os
abusos do poder econômico, como, de resto, a generalidade das hipóteses legais
da denominada criminalidade econômica, são crescentemente praticados de for-
ma indireta, de forma a eludir as claras prescrições da Íei, com a reconhecida di-
ficuldade em se comprovar, de forma cabal, a ilicitude cometida. Um dos maio-
res problemas da justiça contemporânea, seja no plano judiciário, seja no admi-
nistrativo, está precisamente na produção de evidências formais das violações à
lei. E isso porque a sofisticação das práticas econômicas logra muitas vezes des~
pistar a apuração da verdade para chegar à frustrante conclusão de que o es-
quematismo formal da lei repressiva e da lei processual são incapazes ou insu-
ficientes para abarcar a complexa realidade em que opera a chamada macro-
criminalidade. No Brasil, esta tem sido, inclusive nos dois últimos anos e meio,
a amarga lição da experiência.
8. Sem poder inibitório, o Cade corre o risco de não poder cumprir suas
funções. Sem a faculdade de intervir na ordem econômica para paralisar as
etapas formadoras do abuso de poder ainda quando não configuradas material-
mente as infrações à lei, o Cade corre o risco de enfrentar fatos consumados,
atentatórios à concorrência e aos interesses do público, cujos efeitos danosos são
de difícil ou impossível reparação, mesmo com a intervenção ou com a própria
liquidação judicial, e em relação aos quais as penalidades administrativas se
mostram inócuas ou absolutamente irrelevantes. Trata-se, por assim dizer da
transposição do conceito de poder cautelar, tão bem elaborado pela experiência
processual, para os limites do direito administrativo dito de polícia ou discipli-
nar, com a finalidade de suprimir as conseqüências do periculum in mora.
202
9. A sindicância e a averiguação preliminar, que conduzem ou podem con-
duzir ao processo administrativo, circunscrevem-se (e é natural que assim seja)
a uma avaliação prévia das circunstâncias de fato e de direito referentes aos atos
e fatos apresentados como constitutivos de abuso de poder econômico. A lin-
guagem é a do § 2. o do art. 9. o do Decreto n. o 92.323, aplicável, portanto, à
sindicância, mas não diferem as razões de ser da averiguação preliminar. Por
mais céleres que se tomem esses procedimentos, não conseguem eles evitar a
consumação de certos efeitos econômicos que de outra forma seria forçoso im-
pedir, como, por exemplo, a ruína de determinada empresa ou a celebração de
determinados contratos violadores da lei com terceiros de boa-fé, que são, na
prática, eventos irreversíveis, cujos prejuízos não comportam adequada e sufi-
ciente composição a posteriori, nem desconstituição perfeita e in natura.
203
sorte que seu exercício se fundamenta na cautela e na proteção a priori do in-
teresse público e não no ius puniendi do Estado. Da mesma forma que a Co-
missão de Valores Mobiliários está autorizada a suspender negociação de ações,
a decretar o recesso de bolsas de valores e proibir às participantes do mercado
(de valores mobiliários) a prática de atos especificados (Lei n. ° 6.385, de
1976, § 1.0), o mesmo poder inibitório ou cautelar há de ser outorgado ao Cade,
com apoio nas mesmas razões, facultando-se-Ihe inclusive a legitimação para
provocar, por ato próprio, de sua iniciativa, o exercício da função do Poder Ju-
diciário.
12. No caso Swift & Co. versus United States, 196 US 375 (1905), o voto
vencedor do Justice Holmes já assinalava esse caminho:
((But when the intent and the consequent dangerous possibility exist, this sta-
tute, like many others, and like the common law in some cases, directs itself
against the dangerous probability as well as against the completed result."6
14. Mas o problema das formas, que aqui nos ocupa, tanto quanto com a
tipicidade, entende também, e de forma essencial, com o processo interpretativo,
visto e compreendido por seus ângulos histórico-culturais mais modernos e com-
6 Cf. Gifford & Raskind. Cases and materiais on federal antitrust law. St. Paul, West,
1983. p. 342.
1 Santos. Gerson Pereira dos. Direito penal econômico. São Paulo, Saraiva, 1981.
8 Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. Baptista Machado, 5.' ed. Lis-
boa, Fundação Calouste Gulbenkian .
.204
patíveis com a realidade contemporânea. A interpretação, se quisermos com-
binar as melhores e mais sutis conquistas doutrinárias de um Croce, de um As-
carelli, e de um Miguel Reale, não deixa de possuir um caráter decisório, na
medida em que consubstancia uma opção condicionada pelo tempo cultural e
pelas exigências sociais, muito embora não se lhe possa extirpar sua declarato-
riedade essencial, para atender, como diz Miguel Reale, a razões de certeza e
segurança. 9 A exigência de certeza, porém, segundo Reale, não é sinônimo de
imutabilidade formal, no sentido de que a certeza que o aplicador da lei recla-
ma (e esta é a linha ascarelliana) é aquela que se constitui ao longo das expe-
riências jurídicas, no contexto das situações valorativas dominantes, lembrando
ainda Ascarelli a afirmação de Piero Calamandrei de que o juiz atua como me-
diador de uma consciência comum, que poderíamos chamar de communis opi-
nio,1° imperativo a que também se submete, além do magistrado, a agência ad-
ministrativa incumbida de fazer valer a lei anti truste.
205
pode ser atingido, hodiernamente, mediante a superação do formalismo verbal
que prevaleceu em nossa cultura, infenso à evolução da economia, da sociedade
e do próprio direito.
12 Marques, José Frederico. RF, 215:48. Apud: Franceschini, José Inácio Gonzaga &
Franceschini, José Luiz Vicente. Poder econômico; exercício e abuso - direito antitruste
brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985. p. 476 e segs.
13 Venâncio Filho, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de
Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1968.
14 Id. ibid. p. 297.
206
19. Na interpretação do inciso 1 do art. 2.° da Lei n.O 4.137, em mais de
um passo, depara-se o observador com figuras-meio, a servirem de instrumento
à dominação dos mercados nacionais ou à eliminação total ou parcial da con-
corrência, em que fi conceitualização de certos problemas típicos exige uma fun-
ção integrativa que se coloca além do universo das noções jurídicas categoriza.
das. Assim, por exemplo, alude a alínea c à coalizão, incorporação, fusão, inte-
gração ou qualquer outra forma de concentração de empresas. A expressão legal
"qualquer outra forma de concentração de empresas" indicia um espaço de cons-
trução tipológica que nada tem de analógico. Cuida-se, ao revés, de uma aber-
tura do tipo que a experiência jurídica e a cultura do tempo devem preencher -
e não livremente, se não em estrita conformidade com a finalidade do preceito
normativo. Aplica-se, então, a regra da congruência, segundo a qual qualquer
forma de concentração de empresas é punível se for apta (ou côngrua) a atingir
o resultado visado pelo legislador: a dominação de mercado ou a eliminação
de concorrência. Não é preciso que se cumulem os resultados, como já demons-
trou Pontes de Miranda. Basta que um deles surja como fim visado pelo pro-
cesso concentracionista para que a infração se materialize. O controle tecnoló-
gico, por exemplo, pode representar um mecanismo concentracionista indicador
do domínio dos mercados ou da eliminação total ou parcial da concorrência.
21. Desnecessário dizer que, nessa esfera de cogitações, talvez mais que em
qualquer outra, a conceitualização da pessoa jurídica, como técnica de separa-
ção de direitos e obrigações de natureza patrimonial, deve ser operada com sen-
207
tido finalístico e funcional, na linha da revisão crítica do conceito, tão bem es-
tudada por Fábio Konder Comparato em O poder de controle na sociedade anô-
nima. Diga-se, ainda, de passagem, que, em matéria antitruste, o conceito de
empresa, ministrado pelo art. 6.° da Lei n.O 4. 137, presta-se com justeza a
esse tipo de interpretação realista e econômica, exorcizado, desde 1962, quando
a lei foi promulgada, o mito da pessoa jurídica intangível e enfatizada a ativi-
dade (e não o ente) como núcleo da organização empresarial.
208
cáveis aumentos de lucros, é exatamente uma forma juridicamente caracterizável
de abuso de poder econômico.
24. Quanto ao inciso IH do art. 2.0 da Lei n.O 4. 137, que trata da provo-
cação de condições monopolísticas e de especulações abusivas, tendentes à ele-
vação temporária de preços, o abuso se perpetra seja contra a concorrência, seja
contra a economia popular. Daí poder se pensar em duas ordens de conseqüên-
cias jurídicas para a caracterização do monopólio e para a especulação abusiva
(como ocorre, por exemplo, na hipótese da escassez provocada de bens de con-
sumo): uma, concemindo aos direitos dos concorrentes, amparados em preten-
sões de ordem pública, mas na órbita privada, e outra, dizendo respeito à eco-
nomia popular, por meio da repressão ex-olfieio do Cade, em nome do interesse
público.
209
para o aumento arbitrário de lucros, a infração, constitucionalmente falando,
ofende a ordem econômica e social e esta, enquanto vigir o art. 160 da Emenda
Constitucional n.O 1, de 1969, como já ficou assinalado, tem por fim realizar
o desenvolvimento nacional e a justiça social. Tais são, afinal, as razões teleo-
lógicas da repressão ao abuso do poder econômico (inciso V do art. 160 da
vigente Constituição).
27. Uma visão liberal da disciplina pode encarar o aumento arbitrário dos
lucros como ofensa ao princípio da livre competição, mas, de uma perspectiva
socialmente mais justa e juridicamente mais concreta, o aumento arbitrário de
lucros consubstancia o mau uso (abuso) dos bens de produção por parte de
quem os detém, em detrimento do equilíbrio econômico. Lembrando aqui o
velho Projeto Agamenon Magalhães, assinalo que o grande inspirador de nossa
legislação antitruste (que não era certamente um liberal no sentido ortodoxo)
210
postulava a categorização, como abuso do poder econômico, da percepção de
lucros excessivos, assim entendidos os que ultrapassassem a percentagem nor-
mal (art. 2.°, inciso VIII). A importância desse enfoque ganha ainda mais
relevo na ausência de um pacto social que harmonize os fatores de produção
e uma conjuntura renitentemente inflacionária, cujo peso onera desigualmente
produtores e comerciantes, consumidores e trabalhadores. e à vista dessa desi-
gualdade estrutural de nossa economia que deve repousar o princípio básico
da repressão ao abuso do poder econômico.
211
velmente, desequilibram a economia, particularmente no que tange ao universo
das pequenas e médias empresas. Incluídas na repressão antitruste nos EUA
por força do Robinson-Patman Act, de 1936, que veio modificar por acréscimo
o § 2.° do Clayton Act, de 1914, tais formas delitivas se dirigem aos large-
volume purchasers, que podem obter melhores preços de seus fornecedores do
que o small business. A matéria tangencia a concorrência desleal, mas o fulcro
da repressão está, aqui, no abuso do poder econômico da grande empresa, colo-
cada, em razão de sua capacidade de compra, em posição desigual e mais favo-
recida em um mercado que, ao menos idealmente, se pretende livre. As econo-
mias de escala, que a concentração empresarial pode favorecer, são mesmo
suscetíveis de beneficiar o consumidor, mas, na medida em que a monopoli-
zação reduza as margens de competição de preços, limitando as ofertas de
produtos ou serviços no mercado, implica perigo potencial ao funcionamento
normal e eficiente das leis mercadológicas. Não está demonstrada, na expe-
riência, a proclamada verdade de que a concentração empresarial beneficia
efetivamente o consumidor e a economia popular. Ao revés, o que nossa his-
tória recente revela é bem o contrário, a partir do início da década de 70, com
o estímulo governamental à concentração de empresas, notadamente no setor
da agroindústria da cana-de-açúcar e no campo das instituições financeiras.
Não se pode negar que, ao menos em princípio, a pluralização de ofertas no
mercado, com o controle das práticas concentracionistas e a repressão às ten-
dências monopolizantes, aumenta as oportunidades de um comércio mais com-
petitivo e salutar, no interesse do próprio consumidor e do povo.
30. Por fim, cabe referir que fortes tendências doutrinárias almejam desvin-
cular a tutela do consumidor da repressão antitruste, sobretudo na Europa,
sob o argumento de que a liberdade de concorrência é um bem renunciável,
sob a égide de pactos limitativos ou reguladores. Ora, se a concorrência fosse
concebida como garantia dos consumidores, não poderia ser parcialmente pac-
tuada sua limitação convencional. 11 Não me convenço do acerto dessa tese,
uma vez que as restrições à concorrência somente são lícitas, ao menos no
direito brasileiro, quando não implicam lesão aos direitos e interesses dos con-
sumidores, notadamente no que tange à fixação de preços ao açambarcamento
e à retenção de mercadorias e, enfim, no que concerne à redução de ofertas no
mercado. Mas, como é evidente, nem toda a esfera de tutela do consumidor
se subsume à disciplina anti truste, assim como esta, por seu turno, também não
abarca todas as formas de concorrência desleal.
17 Cf. Alpa, Guido. Tutela dei consumatore e controlli suU'jmpresa. Bologna, Mulino, 1971.
212
arbitrário de lucros e especulação abusiva, por exemplo, devem ser refinados
pelo crivo da experiência, pelo juízo da razoabilidade e pelo prisma da realidade
econômica e social do país. À cultura do direito da economia cabe relevantíssi-
mo papel, não só na elaboração do novo estatuto repressivo como também na
integração do sentido e funcionalidade de suas normas, para uma boa aplicação
da lei com a imprescindível segurança e certeza, mas com justiça, sem precon-
ceitos ideológicos mas também sem fetichismos. Deste Seminário sairão, estou
certo, utilíssimas contribuições a uma renovada concepção da repressão às formas
de abuso de poder econômico.
213