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Direitos Autorais

Título Original: The Secrets of Palmerston House


Copyright © 20118 by Phillipa Nefri Clark
Copyright da tradução©2021 Leabhar Books Editora Ltda.

Editor: Tereza Rocca


Tradução: Mariana C. Dias
Revisão: D. Marquezi
Diagramação: Jaime Silveira
Capa: Luis Cavichiolo

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Para Recordar

M preencheram a Casa Palmerston. A fonte fazia a água


borbulhar com cores em constante mudança, e luzinhas decoravam a longa
varanda. Dentro, pessoas dançavam e conversavam, brindavam uns aos
outros e trocavam histórias sobre a noite da tempestade. Com Thomas e
Martha em casa, havia ainda mais alegria e celebração.
— Muito obrigada, Elizabeth! — Christie emergiu da cozinha, com
uma bandeja de quiches pequenininhos. — A Casa Palmerston ficou
magnífica, e você também está deslumbrante. — Ela beijou Elizabeth na
bochecha.
— Eu? Ah, obrigada. Aliás, você é nossa convidada de honra e deveria
me deixar andar com isso por aí.
— Nem pensar. De qualquer maneira, acho que alguém vai te convidar
para dançar. — Christie sorriu quando Angus se aproximou. — Não é
mesmo, Angus?
— Qual era a pergunta?
— Elizabeth quer dançar.
— Christie! Eu não disse isso…
— Que boa ideia. Vamos? — Angus ofereceu seu braço. Elizabeth
lançou um olhar preocupado para Christie, mas aceitou o braço dele, e
seguiram para a pista de dança.
— Está dando uma de Cupido novamente? — Martin estava bem atrás
de Christie, inclinando-se para beijar sua nuca.
— Não, eles fizeram tudo sozinhos. Apenas ajudei um pouquinho. — O
que ele fazia com ela não a estava ajudando a se concentrar, e a bandeja se
desequilibrou.
— Eu fico com isso! Você pode tirar a melhor empregada da padaria de
Rivers End, mas não pode tirar Rivers End de… na verdade, não fez
sentido. Mas eu fico com isso. — Belinda agarrou a bandeja. — E ainda
bem que outra pessoa pegou aquele homem horrível antes de mim!
— Você já disse isso antes — lembrou-lhe Christie, com um sorriso. —
Eu não a encorajei a ir para o curso de beleza para pensar em maneiras de
transformar chapinhas em armas.
— Bem, posso precisar me proteger um dia desses. Enfim, vocês dois
voltem para o que estavam… Hmm, fazendo.
— Ei, nada! — disse Christie para as costas de Belinda. — Senti falta
dela.
— Christie. Vamos conversar.
— Ah, não. Olhe, fizemos isso quando Thomas e Martha se casaram
e… tudo bem, estou indo.
Martin subiu as escadas até o degrau mais alto, onde se sentou. Christie
se juntou a ele e, por um momento, observaram a festa abaixo. Barry e
Sylvia conversavam na janela. Trev e Charlotte estavam focados numa
discussão bastante animada. Angus e Elizabeth dançavam bem pertinho um
do outro. Daphne e John estavam de mãos dadas, fazendo Christie sorrir.
— Daphne me contou que John quer vender a agência e comprar um
trailer. Foi uma conversa um tanto confusa, e ela me disse que nunca gostou
de saltos de qualquer maneira. Eu a amo.
— Eu te amo. — Martin se encostou na bochecha de Christie. —
Amanhã, vamos marcar uma data. Antes da primavera.
Christie assentiu, com os olhos arregalados. A música e os sons da festa
estavam distantes. Ela tinha olhos apenas para Martin, cada centímetro do
corpo dele estava vivo com amor e desejo.
— Passamos pelo Inferno, você e eu. — Martin brincou com os dedos
de Christie, girando sua mão para olhar o anel. — Quando não consegui te
encontrar, pensei… Eu não poderia ter continuado a viver.
— Você me encontrou.
— Sim. E eu me encontrei também. Querida, amar você fez de mim um
homem completo. Não um homem com um buraco na alma. Não sou bom
com palavras nem sentimentos, Christie.
— Discordo.
— Claro que discorda. — Ele a beijou com tanto carinho que ela
derreteu contra ele. Randall subiu os degraus e os encarou. Ele
choramingou, e Martin, relutantemente, ergueu a cabeça. — Momento
muito ruim, cachorrinho.
— Você acha que Thomas e Martha vão aceitar a casa de campo? —
Christie os observou dançando lentamente, com os olhos um no outro,
como se fossem as únicas pessoas ali.
— Acho. O que significa que você precisa desocupar a casa. Amanhã.
— Tem certeza de que está pronto para me ter com você o dia todo,
todos os dias? E noites?
— Se tenho certeza? Tenho esperado você desde o dia que aqueles dois
se casaram. Mesmo que você trabalhe longe de casa algumas vezes, eu
sempre estarei aqui.
— Ah. Esqueci de contar. Comprei o cabeleireiro e vou transformá-lo
num salão de beleza. Um dia, Belinda vai trabalhar comigo. — Os olhos de
Christie brilharam.
— Tem certeza?
— Mal posso esperar.
Randall se cansou da falta de atenção e abriu caminho entre eles.
— Você acha que isso se parece com ter um filho?
— Ou dois. Talvez três. — Martin envolveu Christie e Randall num
abraço. — Mas vamos nos dar um tempinho antes de descobrir. Pelo menos
alguns meses.
Uma felicidade profunda fluiu por Christie.
Vamos mostrar Vela e Quilha para eles.
O Mar de Jasmim seria o segundo lar das crianças, e o mar aberto, um
lugar para ser explorado. Essa cidade era sua família. Chega de segredos,
mistérios ou problemas. Martin os abraçou ainda mais forte, e ela fechou os
olhos, sorrindo.
1- DA ANTECIPAÇÃO AO DESESPERO

C R através das cortinas rendadas do quarto na


Casa Palmerston. Embaixo, no jardim, os convidados do casamento se
aglomeravam. Cada um deles trazia uma luz flutuante e, daqui a um
pouquinho, iluminariam o caminho de Christie ao lado da lagoa, onde
Martin a esperava.
Com o coração acelerado pela emoção, Christie ansiava o momento em
que veria o amor nos olhos de Martin quando o encontrasse sob o arco para
se tornar sua esposa – Sra. Christie Blake.
Todos que estavam ali importavam para ela. Sua tia-avó Martha e o
avô de Martin, reunidos há pouco tempo, depois de cinco décadas
separados. O padrinho de Martin, George, tia Sylvia e as primas Belinda e
Jess. E o querido Angus – que, logo, acompanharia Christie no caminho a
Martin. O senhor foi o que ela teve de mais próximo a um pai enquanto
crescia.
Quantos bons amigos tinham se unido a eles naquela tarde! Elizabeth,
é claro, pois era dona da Casa Palmerston. Trev Sibbritt, lindo em um
smoking, em vez de no costumeiro uniforme da polícia. Daphne e John
Jones, as primeiras pessoas que acolheram Christie em Rivers End, quase
um ano atrás. Charlotte Dean, que viera se aproximar do mar há alguns
meses e nunca mais partiu.
Onde estava Charlotte? Falando nisso, onde estava Martin? Os olhos
de Christie vasculharam o jardim antes de repousarem em Thomas, que
estava com a mão na cabeça de Randall – o Golden retriever de Martin.
Thomas ouvia Trev falar no celular. O que estava acontecendo?
— Christie, podemos entrar um pouquinho? — chamou Elizabeth, da
porta. — Angus está comigo.
A preocupação no rosto dos dois fez os olhos de Christie se
arregalarem.
— O que houve?
— Minha linda jovem… — Angus pegou as mãos dela. — Estou tão
orgulhoso de você, não importa o que aconteça.
— Como assim “não importa o que aconteça”? O que vai acontecer?
Elizabeth roubou uma das mãos de Elizabeth das de Angus.
— Não quero que você se preocupe…
— Elizabeth, Angus, o que houve?
Angus e Elizabeth trocaram um olhar.
— Cadê o Martin? Eu não o vi pela janela.
Belinda irrompeu pela porta.
— Vou ajudar o grupo de buscas! — Ela parou no meio do caminho
quando os três se viraram. — Ah, não. Vocês não contaram pra ela?
— Alguém vai ter de me contar. Angus? — O medo congelou a barriga
de Christie.
— Não conseguimos encontrar o Martin.
— Muito engraçado. Tudo bem, a brincadeira acabou.
— Não, querida. Ele deveria ter chegado há meia hora, mas nem sinal
dele — disse Elizabeth.
— Vamos tentar ligar…
— Thomas tentou. Trev também.
— Bem, alguém pode dar uma passada na casa dele? Talvez ele tenha
perdido a noção do tempo. — A voz de Christie falhou, olhando outra vez
para Angus, que balançou a cabeça.
— Trev mandou alguém ir até lá, mas nada do Martin.
Isso não poderia estar acontecendo…
— Provavelmente, foi dar uma caminhada pra clarear a cabeça. Ele vai
voltar.
— Christie, querida, sinto muito, mas ele não está em casa. A porta da
frente estava aberta. O terno estava no quarto, e o celular, na cama. Ele
sumiu.
2- ALGUMAS SEMANAS ANTES, TUDO COMEÇOU

—P , Thomas! — Martin Blake rearrumou as flores no


meio da mesa no terraço, logo depois de o avô tê-las ajeitado.
— Sou eu quem estou preocupado? — Thomas Blake enfiou a mão no
bolso. — Talvez eu devesse tirar uma foto sua remexendo nessas flores,
com esse celular chique que você me deu.
— Você não deveria estar em casa com sua noiva?
— Minha noiva saiu. Noite das garotas, foi o que ela me disse.
Martin parou o que estava fazendo e encarou Thomas.
— Ou seja – você não tem nenhum lugar melhor pra estar.
— Baboseira. Sou um homem independente, e você não precisa se
preocupar comigo, filho.
— Dê uma passada na casa do George.
— Ele está ocupado.
Martin balançou a cabeça.
— E John e Daphne? Barry? Trev?
— Eu gosto da vista daqui de cima, e o jantar está com um cheirinho
divino. — Thomas se virou e observou o campo que dava no oceano sem
fim, além da beirada do penhasco. O sol se punha, espalhando feixes de luz
dourada pelo céu.
— Na maioria dos dias, você seria muito bem-vindo. — Martin se
juntou a Thomas no gradeado do parapeito. O ar marinho chegou pelo
desfiladeiro, misturando-se ao cheiro sempre presente de jasmim, que subia
rebeldemente na mesa. Martin sorriu, pois era o aroma preferido de
Christie. Veleiros pontuavam o oceano, seguindo para Willoy Bay, um
pouquinho mais à frente, na costa. Daqui a meia-hora, o céu ganharia um
tom preto aveludado. — Seis meses atrás, pedi Christie em casamento.
— Como, exatamente, você a confundiu ao ponto de fazê-la concordar
com isso?
— Do mesmo jeito que você confundiu Martha.
— Touché. Não estou convidado para o jantar?
— Não.
— Então posso levar o cachorro comigo?
Randall cheirou a perna de Thomas.
— Você e Randall podem passar a noite juntos. Se for embora agora,
ainda vai ter a casa de campo toda pra você. — Martin verificou o relógio.
— Christie vai chegar a qualquer minuto.
— Muito bem. — Thomas sorriu para Martin. — “Se eu for embora
agora.” Que seja, jovenzinho, eu ainda te amo.
— Eu também. — Martin deu uma palmadinha nas costas de Thomas.
— Mas, agora, preciso mesmo terminar a janta.
Thomas assobiou ao descer os degraus até a grama, e Randall correu
atrás dele.
— Tchau, cãozinho. — Martin entrou. Amava muito o avô, mas, hoje à
noite, amava muito mais a noiva. Deu uma olhada no forno e diminuiu o
fogo. Estava com água na boca com os aromas que vinham dali.
De um armário acima, tirou taças de vinho. Deixou-as no balcão para
pegar a garrafa de bebida na geladeira. Parou e leu o rótulo.
— Perfeito.
— É o vinho que ganhou a medalha de ouro?
Christie estava do outro lado do balcão, com a cabeça inclinada e um
sorriso encantador iluminando o rosto. Martin deixou a garrafa ao lado das
taças e observou a mulher. Em um simples vestido azul, com o cabelo
ondulado e solto nos ombros, ela estava deslumbrante.
— É, sim.
— O mesmo que a gente tomou quando me pediu em casamento?
Martin contornou o balcão.
— Da mesma safra. Me pareceu apropriado. — Ele a puxou aos
braços. — Oi.
— Oi. Algo está com um cheiro muito bom.
— Você. — Martin beijou seus lábios, trazendo-a para ainda mais
perto, até ficar com vontade de abandonar a refeição e seguir direto para
algo muito mais interessante. Mas Christie precisava ser alimentada. Então,
com mais um beijo, soltou-a.
— Encontrou o Thomas?
— Não. Ele acabou de sair?
— Provavelmente levou Randall para dar uma corrida na praia antes.
— Martin voltou para a cozinha. — Ele não tem nada pra fazer hoje à noite,
porque Martha saiu sem ele.
Christie se empoleirou em um banco.
— Para falar a verdade, ela estava bem animada para o jantar com
Daphne, Sylvia e Elizabeth. Acho que vão acabar tomando alguns drinques.
Espero que Trev não precise prendê-las.
— Ela vai corromper a cidade toda. Por que teimou em reunir aquelas
duas? — Martin abriu o fogão e, com cuidado, tirou dali uma travessa
coberta.
— Eu? Eu me lembro de você ter certa culpa no cartório…
— Só porque você estava chorando, e senti pena de você.
— Sentiu pena de mim! Eu nunca chorei.
Martin ergueu as sobrancelhas, e Christie riu.
— Tudo bem, talvez um pouquinho. Não me arrependo de nada,
Thomas e Martha foram feitos para ficarem juntos.
— Agora, estão. Ou estarão quando Martha chegar em casa.

T R se demoraram no caminho para casa. A caminhada


pela praia sempre punha as coisas em perspectiva. Quando chegaram ao
topo dos degraus de pedra, decidiu que era bom para Martha passar uma
noite com as garotas. Jantar com Martin o teria distraído, mas o garoto
merecia a noite especial com Christie.
Atravessaram o cemitério, andando por trás de três lápides em
sequência. Thomas tocou as que pertenciam ao filho e à nora. Sua mão,
automaticamente, direcionou-se para a lápide da primeira esposa, mas
Thomas balançou a cabeça e continuou andando. Ainda haveria um longo
caminho pela frente antes que pudesse perdoar Frannie.
O anoitecer transformou as árvores na estrada em sentinelas
silenciosas. Quantas vezes, em sua juventude, havia corrido por ali para
chegar em casa e jantar? Depois de ter jogado bola com os amigos até a
fome os dominar. Agora, havia mais buracos na velha estrada, mas a
sensação de acolhimento quando a casa de campo aparecia, do outro lado da
linha do trem, perdurava.
O esforço de Christie nos últimos meses foi surpreendente, e o que foi,
até recentemente, uma casa triste e negligenciada, agora irradiava seu velho
charme e conforto. Ainda havia algo a ser feito quanto aos jardins que
tinham se alastrado, mas a casa da sua infância era, novamente, seu lar.
Quase na garagem, Randall parou, com o corpo rígido, encarando o
finzinho da estrada, onde ela se estreitava e, por fim, acabava. Um ronco
baixo surgiu em sua garganta.
Thomas não conseguiu ver nada, mas o motor de um carro ganhou vida
à distância. Faróis apareceram, e Randall se posicionou na frente do
homem.
— Nada disso. — Thomas o puxou pela coleira. — É só um motorista
perdido.
Um pequeno SUV se aproximou. Thomas achou que fosse parar, mas,
em vez disso, acelerou para longe da casa de campo, e os pneus
arremessaram cascalhos pelo ar. Os vidros tinham sido cobertos por uma
película muitíssimo escura, permitindo que Thomas apenas vislumbrasse a
silhueta de um homem. Uma nuvem de poeira se espalhou pela estrada,
enquanto a luz traseira desaparecia na esquina em direção à cidade.
Com um choramingo, Randall se afastou e seguiu ao trilho do trem.
— Randall, volte aqui. — Thomas assobiou. Um momento depois, o
cachorro voltou correndo. — Pra dentro, você não precisa me proteger.
Thomas se voltou para a casa, incomodado. Pessoas perdidas,
geralmente, pediam ajuda para se localizarem. Pessoas da região,
normalmente, paravam para conversar. Mas quem quer que fosse, foi
embora com pressa. Com pressa demais.
3- UM ESTRANHO NA CIDADE

B C a testa quando tocou nos freios do SUV. Logo em


frente, havia uma viatura parada ao lado da ponte, e ele estava indo rápido
demais. Mesmo desacelerando, a porta da viatura foi aberta, e o policial
desceu.
A última coisa que esperava na casa de campo era um velhote e um
cachorro chegando a pé, assustando-o até o último fio de cabelo quando
estava bisbilhotando pela janela da cozinha. Pelo menos, conseguiu
atravessar o pasto até o carro antes do cachorro perceber.
O policial se colocou no meio da estrada, gesticulando para que Bernie
estacionasse. Xingando, ligou a seta e tirou o SUV de trás do outro carro.
Enquanto o policial se aproximava, Bernie abaixou a janela, inclinando a
cabeça com um sorriso.
— Desculpa, policial. Foi erro meu não ter prestado atenção.
— Sou o coronel Trev Sibbritt. — Apontou a lanterna para o banco
dianteiro. — Tem alguma explicação para me dar?
— Me animei um pouco demais por estar aqui, senhor. — Bernard
abriu a carteira. — Precisa da minha habilitação?
— Sim. Nunca ouvi ninguém dizer que estava animado por estar numa
cidade pacata como essa. — Trev aceitou a habilitação que o homem
oferecia. — Bernard William Cooper… você está bem longe de casa.
— Sempre estou. Só volto para Brisbane algumas poucas vezes ao ano.
Sou um fotógrafo independente. Deixo a vida me levar, por assim dizer.
— Espere aí, já volto.
Assim que Trev lhe deu as costas, Bernard agarrou a menor das três
câmeras no assento e a forçou para dentro do porta-luvas. O policial parecia
amigável o bastante. Se Bernard conseguisse sair daquela situação com
apenas um aviso, seria um bônus – conquanto nada aparecesse na pesquisa
que o coronel deveria estar fazendo sobre o carro.
Os minutos passaram. Do outro lado da ponte, estava a cidade de
Rivers End que, sob o céu escuro, não era nada mais do que algumas
poucas ruas de lojas, com um bar em uma das extremidades. Não acontecia
muita coisa ali, por isso a próxima semana seria tão interessante. Todo
mundo se conhecia, e um estranho poderia atrair interesse demais para o
gosto do homem. Aquela cidade não fazia ideia do que estava por vir.
Trev voltou, e Bernie tirou, do porta-objetos da porta, um mapa
dobrado.
— Poderia me dizer qual é a melhor estrada? Parece que tenho
algumas opções ao meu destino.
— Aqui é onde está. — Trev a devolveu. — Onde vai?
— Num lugar chamado Casa Palmerston. Vou ficar hospedado lá por
alguns dias, enquanto tiro algumas fotos para meu novo livro.
— Depois da ponte, fique à esquerda. Assim, evita a cidade. Na
primeira bifurcação, vire à direita, e pronto. Elizabeth está te esperando? —
Trev observou Bernie com uma intensidade exagerada.
— Obrigado. Essa seria a Sra. White? Ela soou adorável no telefone
quando fiz a reserva noutro dia. — Bernie não desviou dos olhos de Trev,
esperando que suas habilidades de encenação fossem suficientes. Não havia
muitas situações das quais seu charme não o conseguia tirar. Ou colocar.
— Cuidado com a velocidade. Não vou ser tão legal assim, se você
causar um acidente.
— Vou prestar mais atenção, prometo. Obrigado, cara.
Com um aceno, Trev voltou para a viatura. Tomando o cuidado de ligar
a seta e se demorando para voltar à estrada, Bernie ergueu a mão para Trev
quando passou pelo policial. Graças a Deus. Aquele não era o jeito que
havia planejado começar a visita à cidade. Que chegada triunfante. Ele se
manteve na esquerda depois da ponte.
4- UM HÓSPEDE INDESEJADO

P saguão de entrada da Casa Palmerston, Elizabeth deu sua


terceira olhadela dentro de minutos.
— Vamos nos atrasar. Podem ir na frente, vou dirigindo daqui a pouco.
— E se eu ligar para o bar e avisar que vamos todas chegar um
pouquinho atrasadas? — Martha se aproximava do telefone, perto da
escadaria, quando disse isso.
— Ah, Martha. Sim, por favor. Desculpa!
Daphne e Sylvia se juntaram a Elizabeth na janela.
— Vamos todas juntas, mesmo que isso nos atrase um pouquinho. —
Daphne passou o braço pelo de Elizabeth.
— Talvez eu devesse ficar – não parece certo receber um hóspede e,
logo em seguida, desaparecer. E se ele precisar de algo, e eu não estiver
aqui?
— Então, vai poder contar comigo. — Charlotte surgiu do corredor,
noutro lado da escadaria, com uma xícara fervente de café em mãos. — Por
que não vão jantar? Posso receber o hóspede e mostrar o quarto a ele.
Martha recolocou o telefone no lugar, sorrindo.
— Que generoso da sua parte, Charlotte. Mas não queremos atrapalhar
seus planos, querida.
Charlotte riu, brevemente.
— Sim… Como se eu tivesse planos. Mas, estou falando sério –
podem ir. Tenho certeza de que consigo lidar com o hóspede sozinha.
— Bem, se tiver certeza disso… O quarto dele está pronto, é claro.
Tem um conjunto de boas-vindas na cama. Se você puder só apresentar o
lugar e onde… bem, vou deixar nas suas mãos. — Elizabeth sorriu ao ver a
expressão de Charlotte. — Senhoras, vamos.

D minutos, empilharam-se no carro de Daphne, e


Charlotte fechou a porta da frente depois de acenar, despedindo-se até elas
desaparecerem. O cafezinho acabou, então correu escadaria acima para
acender o abajur no quarto do novo hóspede e alisar o edredom já perfeito.
Os cuidados especiais de Elizabeth deixavam todos os quartos acolhedores.
O som de um carro chegando atraiu Charlotte à janela. Era um pequeno
SUV, que hesitava perto da fonte, como se o motorista não soubesse onde
estacionar. Bem, poderia mostrar a ele a direção correta. Deixou a porta do
quarto entreaberta e desceu correndo os degraus. Quando chegou na
entrada, encontrou uma sombra do outro lado das janelas foscas.
Com um floreio, Charlotte abriu a porta. O homem estava curvado, no
terraço, concentrando-se no zíper de uma grande bolsa de academia.
— Bem-vindo à Casa Palmerston.
O homem se empertigou antes de se posicionar diante de Charlotte,
com um sorriso que não chegava aos olhos.
— Você não se parece em nada com o que eu havia imaginado, Sra.
White.
A mão de Charlotte voou para a boca. A cor desapareceu do seu rosto,
e a mulher deu um passo para trás.
Bernie Cooper pegou as malas e passou por ela, indo ao centro do
saguão, onde olhou ao redor.
— Interessante. Igualzinho às fotografias. Então, cadê a Sra. White?
— O que você está fazendo aqui? — Com a voz estremecida, Charlotte
deixou as mãos caírem, cerrando-a em punhos ao lado do corpo.
— É bom revê-la, doutora.
Em um estalo, ela fechou a porta da frente.
— Eu te fiz uma pergunta. O que você está fazendo aqui, Bernie?
— Então quer dizer que trabalha aqui agora? Meio deprimente,
considerando o seu velho trabalho.
— Não, eu não trabalho aqui! É melhor você me dizer o que está
fazendo aqui, senão…
— Devo dar o fora? — Ele cruzou os braços. — Sou um hóspede. A
não ser que você seja dona da Casa Palmerston, não vou a lugar algum.
— Não tenha tanta certeza disso… Quando Elizabeth ficar sabendo
tudo sobre você, vai te mandar embora.
Bernie jogou a cabeça para trás, numa gargalhada alta e nada sincera.
Charlotte o encarou. Ele não era perigoso. Pelo menos, nunca tinha sido.
— Tem se encontrado com alguém?
Ele parou de rir.
— Romanticamente? Não sabia que você se importava.
— Na verdade, não me importo. Psicologicamente.
Em um único movimento, ele pegou a bolsa e jogou-a sobre o ombro,
com o rosto vermelho.
— Estou aqui para tirar fotos. Fui contratado para fotografar o turismo
local, então aproveitei a oportunidade para me hospedar aqui. Essa é a
história toda, Lottie.
— Mas, Bernie… por que aqui? Não vai te ajudar…
— Ah, agora você quer ser minha médica de novo?
— Não.
— Vamos deixar tudo bem claro: você não pode dizer nada sobre mim.
Imagine o que isso faria com sua carreira, sem mencionar que eu poderia te
processar por violar a nossa confiança. Estou aqui pra fotografar. Você pode
ser minha amiga, ou só não me atrapalhar. Você escolhe. Agora, vai me
mostrar onde fica o quarto ou vou ter de procurar?
Charlotte marchou por ele até a escadaria.
— Elizabeth teve de sair, então me ofereci para ajudar. Mas, caramba,
se eu soubesse… — Ela parou e olhou para trás. — Você não ficou surpreso
ao me ver.
Ele deu de ombros.
— Você sabia que eu estava aqui. Ninguém sabe onde eu estou,
exceto…
— Isso mesmo, exceto sua velha e querida mãe. — Bernie apoiou a
mão no corrimão e se inclinou para perto de Charlotte. — Mais uma razão
pela qual você vai guardar os meus segredos.
A garganta dela se fechou. Charlotte se esforçou e disse:
— O que foi que você fez?
— Tivemos uma bela conversa. Empurrei a cadeira de rodas dela ao
redor daquela lagoazinha bonita do asilo onde você a prendeu. Ela ficou
muito feliz em falar sobre sua vida – a psiquiatra aclamada que tirou um
ano sabático. A mente dela está muito melhor do que você imagina. —
Encarou Charlotte, como se decepcionado com ela. — Não sabia onde mais
te procurar, depois de ter sumido daquele jeito. Imagine a minha satisfação
quando descobri que você estava aqui: na Casa Palmerston, como se
quisesse o que me pertence. — Então, como se nada tivesse acontecido,
Bernie passou por Charlotte e subiu a escada. — Venha, mostre-me o lugar.
Incapaz de obrigar as pernas a funcionarem, olhou para a porta da
frente. Onde estava Trev quando precisava dele? Pela primeira vez, seu
hábito de aparecer sem ter sido chamado seria bem-vindo. Mas a realidade a
pegou de vez. Não tinha nada que Charlotte pudesse fazer. Bernie estava ali,
em alguma missão insensata que falharia. O que ela diria a Elizabeth e
Trev? Um antigo paciente queria ver a casa que significava algo a ele.
Dificilmente, um crime. Respirando fundo, Charlotte forçou os pés a
seguirem o homem ao andar de cima.
5- CARINA E VELA

M C valsaram como um na pista de dança de faz-de-conta,


ao lado da mesa no terraço. Mal havia espaço para girar, mas nenhum deles
se importou. Os olhos estavam um no outro ao passo que Norah Jones os
convidava a fugir com ela. Sua voz rouca flutuou pela beirada do penhasco
e além, preenchendo a noite. Enquanto as últimas notas soavam, Martin
encostou os lábios nos de Christie.
— Hora da sobremesa.
— Hmm… — Christie fechou os olhos, apoiando-se no peito dele,
com um abraço apertado ao redor da sua cintura.
— Mas vai ter de me soltar, senão não vou conseguir buscar o doce.
— Nada de sobremesa, vamos dançar mais.
Martin sussurrou:
— A primeira camada é de mousse de chocolate.
Christie abriu os olhos.
— Depois, vem uma camada de cerejas frescas que embebi num
conhaque muito bom de uma noite pra outra.
— Hmm…
Ele a trouxe para perto.
— Em seguida, mais mousse. Desta vez, com algumas lascas de
amêndoas e raspas de chocolate. Mas, já que você não quer sobremesa,
pode parar de se remexer.
— Martin…
— Onde eu estava? Ah, sim. Creme batido, com mais algumas cerejas.
Acho que vou comer agora. Deixo um pouquinho para o seu café da manhã.
Houve um longo silêncio.
— Você dormiu? — Martin afrouxou os braços e olhou para Christie.
Ele sorriu quando viu a expressão dela. — Thomas queria ficar para jantar.
— É muito mais divertido dançar comigo do que com o Thomas.
— É verdade. — Ele beijou a pontinha do nariz dela. — Por que não
encho nossas taças? Você pode dar uma olhada nas estrelas, enquanto pego
a sobremesa.
— Não vou recusar uma oferta dessas, ainda mais nessa noite
deliciosa. — Christie deixou os braços caírem, sentando-se outra vez à
mesa. — Não precisa de ajuda?
Martin serviu duas taças de vinho branco.
— Acho que não. Quando eu voltar, podemos falar sobre o casamento,
se você quiser. — Entregou uma taça a Christie e entrou pela porta de correr
feita de vidro.
Sem música ou conversa, os sons tranquilizadores vindos do oceano
foram carregados pela brisa. Os olhos de Christie buscaram o horizonte,
agora, tão escuro quanto o céu acima – um veludo preto com estrelas de
diamante. Ela reconheceu as constelações. Era um pouco cedo demais para
o Cruzeiro do Sul, então Christie voltou sua atenção para as constelações de
Carina e de Vela. A quilha e as velas de um barco no céu. Entrelaçou os
dedos no pingente que quase nunca saía de seu pescoço.
— Querida? — Martin serviu a sobremesa à Christie, então cobriu a
mão da mulher, segurando o pingente na sua. — Está pensando nos seus
pais?
Christie piscou para se livrar do que teria sido uma ou duas lágrimas.
— Obrigada, parece divino. — Martin soltou a mão dela e se sentou
em sua frente, pegando a taça de vinho e tomando um gole. Os olhos nunca
deixaram o rosto de Christie. Depois de alguns segundos, ela respondeu: —
Estava olhando para as estrelas.
Então, Martin olhou para o céu.
— Elas a trouxeram em segurança até mim.
— De vez em quando, parece que…
— O quê?
Ela pegou a colher.
— Onde você acha essas receitas?
— No Pinterest, mas já te disse isso antes. Está mudando de assunto?
— Sim. — Sorrindo, Christie pegou uma cereja e deu uma mordida na
fruta antes de suspirar. — Que delícia. Tem fotos de casamento no
Pinterest?
— Como uma pessoa com tanto conhecimento de mundo não sabe
nada sobre o Pinterest? Você nunca entrou lá, procurando inspiração?
— Para maquiagem? Não. Mas talvez eu entre para o casamento.
Ainda temos de falar disso, lembra? — Mergulhou a colher no mousse
macio e lançou um olhar de soslaio a Martin. Ele balançou a cabeça de
levinho, não em resposta à pergunta, mas à tentativa de Christie desviar do
que quer a estivesse preocupando.
— Sim, ainda temos de falar nisso.
6- REFLEXÕES

D sozinho, lavar o prato e, agora, com o uísque em mãos,


Thomas caminhou ao redor da casa. Gostava daquele silêncio todo. Era
hora de refletir, pintar e ler – o que quer que lhe chamasse a atenção, o que
quer que desejasse fazer. Depois de Martin construir a casa no penhasco,
Thomas se pegou sozinho em sua cabine nas montanhas. Sozinho, sem o
garotinho que havia criado, sem a família que tinha perdido no acidente de
carro e sem a garota que um dia amou mais do que a vida – Martha. Mas o
tempo o mudou, e a solidão foi sua realidade por muitos anos.
Thomas encarou a pintura do oceano acima da lareira. Relâmpagos se
ramificavam em um mar raivoso sob a escuridão. Seu melhor trabalho,
nascido do desespero após o desaparecimento de Martha na noite da festa
de noivado. Ele bebericou o uísque. Thomas a seguia sob as ondas da
tempestade, encontrando-a, segundos depois, antes do oceano a tomar para
si. Ainda assim, ele a perdeu. Mas Christie irrompeu em suas vidas quase
cinco décadas mais tarde e mudou tudo.
Deu as costas para a pintura e seguiu para a sala de estar, onde mais
pinturas suas decoravam as paredes. Martha insistiu em pendurar tudo que
coubesse ali, e Thomas tinha de admitir: era muito melhor assim, em vez de
deixá-las guardadas sob algum tecido. Repousou o copo na mesa e puxou
uma cadeira. Quando criança, quase nunca era permitido que fosse até ali,
onde a mãe guardava os pratos e copos especiais. A mesa costumava ser de
um mogno brilhante – então, nenhuma marca de dedo era permitida – e,
apenas na adolescência, Thomas foi incluído nos jantares ocasionais que ela
dava.
A nova mesa tinha sido feita com freixo regional das montanhas e
combinava com o cômodo pequeno. Martha a cobriu com um lindo
caminho de mesa da sua velha casa na Irlanda e um vaso de flores frescas.
Agora, ele sempre era bem-vindo na sala. Thomas esticou as pernas sob a
mesa, e seu pé cutucou Randall, que resmungou e se levantou para receber
carinho.
— Não sabia que você estava aí, garoto. — Thomas acariciou a cabeça
do cachorro. — Ainda bem que me tem pra te fazer companhia.
Randall se arrastou para fora da sala, seguindo pelo corredor em
direção a um dos quartos. Thomas deu uma risadinha.
— Isso mesmo.
Logo, ele se levantaria e ligaria a chaleira para que o chazinho
estivesse pronto quanto Martha chegasse em casa. Martha. Seu sorriso
perfeito enchia-lhe o coração de ternura, e não havia nenhum momento –
acordado ou dormindo – em que a presença dela o deixava. Mesmo
enquanto Martha se divertia com as amigas, Thomas sabia que estava com
ele. Todos aqueles anos perdidos que os dois passaram longe… pegou o
copo e bebeu o resto em um único gole, forçando os sentimentos antigos a
voltaram aonde ele, geralmente, os guardava. O aqui e agora importava, e
não tinham tempo a perder. Chega de passarem qualquer segundo longe e
de pessoas interferindo em seus relacionamentos.
Christie se mudaria daqui a algumas semanas para se casar com o
menino dele. Estaria segura com Martin, ainda mais agora que seu ex-noivo
perigoso, Derek, estava preso. Todos aqueles estranhos em uma cidadezinha
acabaram se tornando um problema, mas Rivers End teria um longo tempo
de paz e sossego. Uma porta se fechou do lado de fora, e a risada alta de
Daphne fez o humor de Thomas melhorar. Martha estava em casa.
7- CONQUISTANDO AMIGOS, OU INIMIGOS

L do amanhecer, Elizabeth acendeu as luzes da cozinha na Casa


Palmerston. Piscou algumas vezes por conta da claridade repentina. Um
chazinho quente e forte era sua prioridade. A chaleira aquecia, enquanto a
mulher adicionava algumas folhas de chá ao seu bule preferido. Talvez a
saideira na casa de Martha tivesse passado dos limites. Mas a noite tinha
sido maravilhosa, com Martha, Daphne e Sylvia. E quão gentil tinha sido da
parte de John – o marido de Daphne – ter ido buscá-las quando soube que
elas acabaram ficando um tantinho mais bêbadas do que o planejado?
Antes de a chaleira assobiar, Elizabeth despejou a água no bule.
Enquanto esperava o chá ser feito, tirou duas xícaras e dois pires do
armário. Que tolice. Só precisaria de um de cada. Com Angus ainda em
Melbourne, não havia ninguém com quem compartilhar a primeira xícara de
chá do dia ainda tão cedo. Suspirou e foi guardar as porcelanas, mas parou
no meio do caminho com a batida na porta atrás dela.
— Bom dia. Sra. White?
— Sr. Cooper, que prazer te conhecer! — Elizabeth esticou a mão
assim que o homem alto e jovem se aproximou.
— Bernie, por favor. — Bernie apertou a mão dela. — Sinto muito por
ter chegado tão tarde. Acabei, inevitavelmente, me atrasando.
— Sem problema. Desculpa não estar aqui para te receber, não
costumo ser assim. Charlotte foi tão generosa em se oferecer para me
substituir… Gostaria de uma xícara de café?
— Na verdade, amo chá e estou sentindo o cheirinho daqui.
— Venha, sente-se à mesa, então.
Elizabeth voltou ao balcão, e Bernie encontrou um assento, observando
a cozinha antiga, mas muito bem cuidada.
— A casa é muito bonita, Sra. White.
— É mesmo. Por favor, me chame de Elizabeth. Todos me chamam
assim. — Ela serviu duas xícaras e as levou até a mesa. — Por favor, sirva-
se de leite e açúcar. Se importa se eu me juntar a você depois de começar a
preparar o café da manhã?
— Acho que te interrompi, então devo insistir para que faça o que for
preciso. — Bernie deu um grande sorriso, pegando o pote de açúcar. — Faz
tempo que você é dona da Casa Palmerston?
— Ah, faz uns bons anos. Mais do que vinte, porque… Martha e eu
nos vimos em Londres, em 1995, para uma visita, e levou mais um ano e
pouco para finalizar a venda.
Bernie inclinou a cabeça, interessado.
— Martha?
— Martha Blake – Ryan, naquela época. A família dela foi dona da
Casa Palmerston por muitas gerações, e ela sabia que a propriedade estava
parada, fechada e começando a mostrar sinais de abandono. A irmã foi
gentil o bastante para nos vender por um preço justo. Meu falecido marido
trabalhou incansavelmente na restauração, fazendo-a voltar a ter o antigo
esplendor. Desde então, muitos hóspedes maravilhosos já desfrutaram dos
seus charmes, assim como eu faço todos os dias.
— Mas você coordena isso tudo sozinha?
— Tenho ajuda em meio-período, é claro, com o terreno. Com a lagoa
também. Enfim, não vou te entediar com minha história. Você disse, no
telefone, que era fotógrafo?
— Na verdade, estou gostando de ouvir sobre a propriedade. Sua
história e tudo mais… Amo fotografar construções antigas, então, talvez,
possa me deixar tirar algumas fotos enquanto estou aqui. Sei que os outros
hóspedes querem privacidade, então serei discreto.
— Eu adoraria! O campo é muito bonito nessa época do ano, com os
primeiros junquilhos florescendo.
— Sim, tem muito a ser fotografado do lado de fora. — Charlotte
chegou, indo direto à mesa e oferecendo um molho de chaves para
Elizabeth. — Bom dia, Elizabeth. Aqui estão as chaves que você deixou
comigo ontem.
Elizabeth se levantou, pegou as chaves e pendurou-as num suporte
perto da porta da adega.
— Charlotte, querida, obrigada por ajudar o Sr. Cooper na noite
passada.
— Bernie. — Ele encarou Charlotte. — Sim, obrigado por ter sido
tão… receptiva.
Charlotte manteve os olhos em Elizabeth.
— Não se preocupe, Elizabeth. Quer ajuda para preparar o café da
manhã?
— Não, mas obrigada. — Elizabeth pegou a xícara. — Mais chá,
Bernie? Café, Charlotte?
— Eu adoraria. Mas, se você não achar ruim, prefiro beber no meu
quarto — disse Bernie, ainda observando Charlotte.
Elizabeth franziu a testa quando os olhos foram de Bernie a Charlotte.
— Café, querida? — repetiu ela.
— Acho que vou tomar um banho antes. Te vejo no café da manhã,
Elizabeth. — Charlotte correu para fora da cozinha, deixando Elizabeth
surpresa.

S ampla da Casa Palmerston. Esperava encontrar


Elizabeth sozinha na cozinha, desfrutando a primeira xícara de chá do dia,
como sempre.
Assim que chegou ao quarto, tirou as roupas e entrou no box com
pressa, ligando a água na maior quentura e pressão possíveis. Enquanto o
vapor subia ao seu redor, esforçou-se para fazer com que as emoções
fossem embora com ele.
Isso, respire. Um. Dois.
Bernard Cooper não podia afetá-la assim. Apoiou-se nos azulejos, com
os olhos fechados. O sono errático, pontuado por longas horas encarando o
teto, a havia deixado exausta.
O que ele realmente queria? A fascinação do homem por Rivers End
permeou todas as sessões nos primeiros meses que o havia tratado em
Brisbane. Mas, um dia, simplesmente dispensou o assunto. Recusou-se a
conversar sobre aquilo outra vez, dizendo a Charlotte que havia se
enganado ao pensar que os ancestrais tinham sido donos da Casa
Palmerston. Foi um erro. Charlotte havia acreditado nele.
— Você acreditou porque quis. — A torrente d’água submergiu suas
palavras, e ela abriu os olhos.
Não havia razão para revisitar isso. Naquela mesma época, a vida de
Charlotte tinha chegado ao fundo do poço, ela não era mais a psiquiatra de
que ele precisava. De que ninguém precisava. Num giro veloz, desligou o
chuveiro. Quaisquer que fossem os motivos de Bernie, as mãos de Charlotte
estavam atadas.
Pegou uma toalha e enxugou o cabelo, observando o reflexo no
espelho marcado pela condensação, o que a fez parecer despedaçada –
como se fosse duas pessoas. Talvez estivesse na hora de seguir em frente,
de encontrar outro lugar para morar. Se pagasse a Elizabeth o valor de uma
semana para compensar a partida repentina, poderia ir embora ainda hoje.
Pela manhã. Seguiria pela costa, para a Austrália do Sul.
A ideia surgiu e a consumiu. Encontraria outra cidadezinha e, depois,
ainda outra. Iria se perder nas paisagens impressionantes da Limestone
Coast. Então, talvez estivesse pronta para a cidade de Adelaide, onde, pelo
menos, ficaria menos exposta.
Seca, Charlotte correu ao quarto e se vestiu. Daqui a poucas horas,
Rivers End estaria em seu passado. Bernie, provavelmente, ficaria por mais
um tempinho antes de partir, como sempre fazia.
Tirou a mala debaixo da cama e a abriu no chão. Dentro, havia alguns
casacos de inverno, pares bonitos de sapato e a caixinha que sempre viajava
com ela. Era uma caixinha de lembranças, como a mãe dizia.
Com uma batidinha de leve na porta, Elizabeth disse:
— Trouxe café para você, querida.
— Ah, estou indo. — A mala foi enfiada com tudo sob a cama outra
vez, e Charlotte abriu a porta. — Não precisava ter feito isso, Elizabeth. —
Charlotte pegou a xícara. — Obrigada.
— Querida, deu tudo certo ontem à noite? Nenhum problema com o Sr.
Cooper?
Charlotte escancarou a porta para que Elizabeth pudesse entrar, então,
fechou-a atrás da mulher.
— Por quê?
— Tive um pressentimento.
— Não sou muito extrovertida, só isso.
— Não quero te ver chateada. Desde que chegou, me afeiçoei a você,
Charlotte. Assim como várias pessoas na cidade. A forma com que você
cuidou de Randall, Christie e Martin na noite daquela tempestade
horrível… bem, te vemos como uma das nossas. Então, beba seu café e
desça para o café da manhã quando quiser.
Sorrindo, Elizabeth foi embora. Charlotte sabia que deveria ter contado
que partiria hoje. Deveria ter deixado o cafezinho de lado e pegado a mala
outra vez. Te vemos como uma das nossas. Ninguém jamais tinha lhe dito
algo assim.
8- A TRILHA NO PENHASCO

A cedo quando Christie – depois de um beijo demorado de


Martin – seguiu pela trilha penhasco abaixo, perto da casa dele.
No meio do caminho, Christie parou para observar o mar, jogando a
mochila com as roupas da noite passada de um ombro ao outro. Quão linda
a água estava hoje, refletindo a perfeição daquele azul da manhã. A maré
ainda estava baixa, e o píer se elevava muito acima das ondas calmas. Mais
além, um iate navegava em direção a Green Bay. Era um dos iates de luxo
ancorados em Willow Bay, onde seu Mar de Jasmim, normalmente, ficava
atracado. Mas o Mar de Jasmim havia sido levado costa acima, até uma
doca seca em Geelong, para reparar os danos que o ex-noivo causou quando
furou o casco do barco e quase o afundou, com Christie e Randall a bordo.
Cerrou as mãos.
Estou segura agora.
Christie desenrolou os dedos e os esfregou. A tensão se esvaía dela,
enquanto os pensamentos se voltaram para os planos de hoje. Teria uma
reunião cedinho com o construtor Barry Parks, no salão de beleza, para
finalizarem a reforma, depois, almoçaria com Martha e Thomas. Então era
hora de ir.
Alguns passos depois na trilha, parou de novo quando um triturar de
entulhos, como se sob uma sola, chamou sua atenção. Olhou sobre o ombro,
esperando ver Martin, mas não encontrou ninguém.
Que estranho. Os atletas raramente usavam aquela trilha, pois era
estreita e inclinadíssima em algumas partes, serpenteando pela lateral do
penhasco. Trilhas menores, quase invisíveis, se bifurcavam em certos
lugares, mas Martin tinha avisado para não as investigar sozinha.
— Oi?
Um coelhinho surgiu na trilha num pulo, e Christie se assustou.
Balançando a cabeça, seguiu o coelho em direção à praia.

B uma fenda no penhasco, tomando cuidado para não


emitir nenhum outro som. Observou Christie se afastar, admirando o quão
justinho era seu jeans. Mesmo desse ângulo, era mais bonita pessoalmente
do que as imagens que havia encontrado online.
Excelente para quem gostava de descendentes de ladrões.
Ela desapareceu de vista.
Bernie voltou para a fenda e pegou a mochila. Tirou dali uma
garrafinha d’água de plástico quase vazia. Bebeu com pressa antes de
amassar a garrafa. A tampinha, ele guardou na mochila, e jogou a garrafa na
vegetação rasteira.
De um bolso, tirou uma bússola. Velha, com o design perfeito para um
marinheiro inglês, cintilou quando o sol atingiu o exterior de bronze. Bernie
a observou se reajustar, então, deu alguns passos para a direita. Havia a
mais tênue das trilhas ali, entre arbustos que chegavam na altura do peito e
que, de alguma maneira, cresciam numa direção ridícula sobre e ao redor do
penhasco íngreme.
Com a bússola de volta ao bolso, tirou um par de luvas pesadas da
mochila. Abriu caminho entre os arbustos, xingando baixinho, ao passo que
os braços eram arranhados. Dois passos para dentro, e o chão desapareceu.
Sentou-se na beirada, com uma das mãos num galho robusto. A outra
protegeu os olhos contra o brilho do sol no mar.
Se tivesse o equipamento correto, poderia usar os arbustos para escalar.
Bernie tirou a pequena câmera do bolso interno da jaqueta. Passou alguns
momentos fotografando tudo abaixo e ao redor, então, sentou-se por um
tempinho, observando o horizonte.
9-PLANOS MARAVILHOSOS

C no velho salão de cabeleireiro que havia comprado há


alguns meses. Fechando a porta, apoiou-se na moldura para analisar o que,
em breve, seria seu novo empreendimento. Por ora, havia se livrado das
velhas pias, espelhos e da mesa de recepção, com ajuda de Martin.
Barry Parks passou pela janela e deu um aceno de cabeça. Christie
abriu a porta, com um grande sorriso.
— Bem-vindo ao meu mais novo projeto, Barry! — Ela indicou,
dramaticamente, o interior do lugar. — Logo quando pensou que estava
livre para encontrar um trabalho normal…
— Parece muito mais fácil do que aquela sua casa.
— Por quê? Pela falta de entradas secretas ou pela ausência de carpetes
de dezenas de anos? Se bem que… — Christie olhou feio para o linóleo
laranja-vivo que revestia todo o chão.
Barry sorriu quando abriu o iPad.
— Qual é o plano? Todo o charme do velho mundo ou moderno e
vanguardista?
— Nada disso. Quantos quartos poderíamos fazer aqui?
— Quartos? — Barry olhou ao redor. Mais longo do que largo, o lugar
era um espaço aberto, com uma porta na parede ao fundo. Perambulou em
direção a ela e deu uma olhada na cozinha pequena e no banheiro
minúsculo. Logo depois, vinha a porta dos fundos. — O que tem lá fora?
— Bem… — Christie se apressou e destrancou a porta. — Um outro
projeto.
Ela liberou a passagem para um jardim de concreto fechado e um varal
quebrado. Tinha cerca de metade do tamanho da parte interna. Barry olhou
para Christie, com uma expressão que ela conhecia muito bem do tempo
quando ele ainda estava restaurando a casa.
A mulher sorriu.
— Você vai amar.
— Ah, meu Deus.
— Conversei com a prefeitura. Conquanto tenhamos alguma proteção
contra incêndios e respeitemos algumas outras regras das quais me esqueci,
não se importam com mudanças internas. Aqui fora, posso investir em
paisagismo desde que não ultrapasse a altura da construção.
— Estou ficando preocupado agora. Desde quando você conversa com
o pessoal da prefeitura?
— Apresentar propostas viáveis é a melhor maneira de evitar
reclamações…
— Minhas?
— Bem, não queria que você perdesse tempo com isso, caso não
concordassem comigo.
Barry riu.
— E o que você quer que eu faça?
Numa voz séria, Christie disse, baixinho:
— Barry, você faz ideia de tudo que as senhoras de Rivers End estão
perdendo?
Ele resmungou.

T R caminharam pelo campo em direção à casa de


Martin, deixando o carro velho do lado de fora do portão. Nunca houve
nenhuma trilha que marcasse o caminho até a porta, e Martin preferia
assim. Quando jovem, Thomas montava o cavalete perto da beirada do
penhasco e pintava por horas. Naquela época, o terreno era da prefeitura,
acessível a qualquer um que quisesse utilizá-lo, mas não eram muitas as
pessoas que o faziam. Tão alto e sem muitos quebra-ventos, quando o
inverno chegava, o lugar era fustigado, tornando-se mais frio do que a
cidade. Martin não se importava, pois havia construído a casa adequada
para qualquer estação e passava a maior parte do inverno pintando no
estúdio.
— O que será que Christie vai pensar disso? — perguntou Thomas a
Randall, que olhou ao redor, cheio de expectativa, quando ouviu o nome
dela. — Sim, você a ama tanto quanto a gente.
— Com quem está conversando, Thomas? — Martin surgiu pela lateral
da casa, segurando o celular. — Oi, cachorrinho. — Acariciou Randall,
enquanto o cachorro o circulava, choramingando de alegria.
— Com o cachorro, é claro. Viu mais alguém por aqui?
— Fiquei preocupado com a possibilidade de você estar falando
sozinho.
— Tenho feito isso a vida toda. Me disseram que indica inteligência
elevada.
— Quem te disse isso?
Thomas fingiu ter ficado ofendido.
— Bem, eu mesmo – a pessoa mais inteligente que conheço.
— Entendi. Quer um cafezinho?
— Pode ser. Ainda falta uma hora para o almoço com a Christie.
Falando nisso, como foi ontem? — Thomas apoiou o braço nos ombros de
Martin enquanto caminhavam. — Você queimou a janta?
Martin revirou os olhos.
— Como foi a sua noite? Conseguiu se alimentar sem a Martha
tomando conta de você?
— Engraçadinho. Randall e eu desfrutamos um bife delicioso. Feito do
jeitinho que eu gosto.
— Torrado.
— Da maneira correta. Nada dessa coisa de “malpassado”. E esse
celular? — Thomas seguiu Martin alguns degraus acima, chegando ao
longo terraço. Os restos de uma vela continuavam na mesa e Martin a
recolheu ao passar.
— Acabei de receber uma ligação do Tony, o diretor do Camp Hawk.
— Martin entrou, com Thomas e Randall o seguindo.
— Ah, seu projeto especial no acampamento.
— Receberão uma nova leva de estudantes daqui a dois dias, e o Tony
precisa comparecer a um funeral em outro estado. — Martin encheu a
cafeteira d’água. — Ele também é o professor de Arte, e não é justo as
crianças ficarem uma semana toda sem ele. Não quando estarão lá por
apenas três semanas.
Thomas se acomodou num banquinho do longo balcão entre a sala de
estar e a cozinha.
— Então, precisam de você.
— Vou me casar daqui a algumas semanas, Thomas. Tenho muita coisa
pra organizar.
Com uma risadinha, Thomas balançou a cabeça.
— Filho, você só precisa aparecer no casamento. A Christie está
rodeada de pessoas que a ajudarão.
Martin considerou isso, observando o café pingando numa xícara e, em
seguida, noutra. Quando se juntou a Thomas com as bebidas, sua testa
estava franzida.
— Não se trata apenas do casamento.
— Estou vendo. Mas você não pode cuidar dela o tempo todo. Christie
está segura; ela fica comigo e com a Martha pela noite, e tenho certeza de
que aquele novo projeto dela anda mantendo-a ocupada por ora. Vamos
todos ajudar. Pode ir.
— Vão almoçar juntos?
— Na padaria. Quer ir?
— Não. Vou ligar pra ela e ver se não pode dar uma passada aqui mais
tarde. Deixe comigo, vou contar pra ela. Se ela não concordar, vou recusar.
Thomas sorriu.
— Conquanto ninguém pense que está fugindo do grande dia…
10- GUARDANDO SEGREDOS

C deitou na cama, mantendo os olhos fixos no mesmo ponto do


teto por dez minutos. As palavras gentis de Elizabeth, mais cedo, fizeram-
na lembrar do dia em que havia chegado.
Estivera ali, totalmente perdida, indo e vindo por becos sem saída.
Exausta depois de um dia todo dirigindo e sem nada para comer por horas.
Com lágrimas escorrendo pelo rosto e um mapa gigante aberto sobre o
volante, guinou para fora de uma estrada lateral, bloqueando o caminho de
uma viatura. Seu coração quase parou de bater quando o sinalizador piscou.
Depois de estacionar, enxugou as lágrimas, mas as mãos se recusaram
a parar de tremer. Tudo em sua vida estava fora de controle, e essa,
provavelmente, era a gota d’água. Agitada, observou, pelo retrovisor, o
policial se aproximar, com seu andar cauteloso e a mão no coldre. Ah, Deus.
Teria infringido alguma lei? Sem pensar duas vezes, abriu a porta,
querendo explicar que não era perigosa.
— Espere aí, senhora. — Sua voz era grossa. Porque havia notado isso,
Charlotte não sabia. Ergueu as mãos, por alguma razão, antes de perceber
que o mapa estava numa delas. Soltou-o e observou o papel flutuar ao chão.
O homem era um pouquinho mais velho do que ela, suspeitou. Corpulento,
mas sem músculos nem gordura. Um rosto gentil com olhos zelosos. Com
gentileza, ele lhe deu uma bronca por estar dirigindo e lendo o mapa ao
mesmo tempo. Depois, perguntou onde ela estava indo.
Coronel Trevor Sibbritt.
Trev.
Antes que percebesse, estava seguindo-o até a Casa Palmerston. Ele a
acompanhou para garantir que Elizabeth a acomodasse.
Suspirando, Charlotte sentou-se, jogando as pernas ao lado da cama.
Trev era um bom homem. Numa outra vida, teria permitido que ele a
cortejasse, pois sabia que era isso o que Trev queria. A palavra poderia ser
antiquada, mas combinava com o jeitinho cheio de respeito, senão hesitante,
com que o homem normalmente falava com ela.
Empurrou o pensamento para longe. Bernard Cooper era um problema
muito maior. Suas palavras da noite anterior ainda a incomodavam.
Tivemos uma bela conversa. Empurrei a cadeira de rodas dela ao
redor daquela lagoazinha bonita do asilo onde você a prendeu. Ela ficou
muito feliz em falar sobre a sua vida – a psiquiatra aclamada que tirou um
ano sabático. A mente dela está muito melhor do que você imagina.
Charlotte pegou o celular na mesinha de cabeceira e discou, dobrando
as pernas sobre si.
— Lakeview Care. Maggie falando.
— Maggie, é a Charlotte Dean. Tudo bem?
— Ah, Dra. Dean! Que bom que ligou. Estou bem. Quer falar com a
sua mãe?
— Na verdade, você teria um minutinho? Gostaria de saber como as
coisas estão.
Houve certa hesitação do outro lado da linha.
— O que foi, Maggie? Aconteceu algo com a minha mãe?
— Não exatamente, mas ela recebeu um visitante e, desde então,
pergunta de você todos os dias. Quando você vai dar uma passada aqui, esse
tipo de coisa.
— Que visitante?
— Ah, pensei que você soubesse: seu primo, Bernard. Parece que ele
gosta muito da Angélica, passou um tempão aqui. Foram ao lago e
almoçaram juntos. Ela ficou mais feliz.
Charlotte se deitou na cama, fechando os olhos com força.
— Dra. Dean?
— Maggie, ele não é meu primo, então, por favor, anote em algum
lugar que ele não deve mais visitá-la, tudo bem?
— Ah, minha nossa! Desculpa, ele soou muito convincente.
— Não é culpa sua.
— Dra. Dean, quando vai vir visitar sua mãe? Para eu saber o que devo
responder quando ela perguntar.
Parecia que seu coração estava prestes a explodir, tão rápido batia. Um.
Dois. Isso não ia funcionar.
— Ainda está aí?
— Desculpa, diga a ela que eu a amo. Estou fora, mas ligo quando
voltar.
Desligou e se virou na cama, encolhendo-se numa bolinha em posição
fetal.
T olhada no celular enquanto esperava seu pedido na
padaria, apagando e-mails e lembretes inúteis. Estes não tinham qualquer
valor, porque nunca via as notificações. Havia duas mensagens de texto:
uma de Thomas, perguntando se ele tinha visto um SUV em alta
velocidade. Coçou a cabeça. Cooper. Bernard William Cooper. Visitaria
Thomas e descobriria por que tinha perguntado. A outra mensagem era o
contato semanal da mãe.
Quando ele a visitaria? Traria uma mulher junto? Algum dia lhe daria
netos?
Ele respondeu, sorrindo: Logo. Não. Em vez disso, que tal um gatinho?
Essa era a piada mais frequente entre eles. Mas, lá no fundo, a mãe se
preocupava com a possibilidade de ele nunca se casar. Estava sozinha –
desde a morte do marido – a algumas horas dali. Apesar de o filho ter
sugerido que ela se mudasse para mais perto, o coração da mulher ainda
pertencia à cidade onde Trev cresceu. Então, tinha de visitá-la.
— Prontinho, Trev. — Sylvia entregou a ele um saco de papel branco.
— Está quente, cuidado para não se queimar.
— Obrigado, vou tomar cuidado. – Deu as costas ao balcão, mas quase
acertou Thomas, que olhou sobre o ombro. Trev seguiu seus olhos até
Martha e Christie, que se acomodavam numa mesa perto da janela.
— Finja que estamos tendo uma conversa normal.
— Oi, Thomas. Normal em que sentido?
— Seja rápido, não quero deixar a noiva preocupada. Em todos.
— O que aconteceu? — Trev deu um passo ao lado, deixando o
próximo cliente passar. Thomas o acompanhou, com a testa franzida. — O
que está te preocupando?
— Não estou preocupado, mas curioso. Viu alguém andando pela
cidade num SUV escuro? Num daqueles pequenos.
— Ah, acabei de ler a sua mensagem. Sim, conversei com alguém
ontem à noite por conta da velocidade.
— Muito bem. Quem?
— Por que quer saber? O que você sabe dele?
Thomas ergueu a mão e acenou para Martha.
— Eu deveria estar pedindo o almoço. Ele estava na estrada da minha
casa ontem à noite, no escuro. Foi embora arremessando cascalhos pra todo
lado.
— Provavelmente, estava perdido.
— Então deveria ter pedido minha ajuda.
O calor do pedaço de torta escoou desconfortavelmente em sua mão,
então o homem trocou o saco de mão.
— É normal ter suspeitas, ainda mais depois do que aconteceu com a
Christie. Ele é apenas um fotógrafo visitando a região, parece inofensivo.
Alívio inundou o rosto de Thomas, e Trev deu uma palmadinha em seu
braço.
— Almoce, relaxe e curta a sua família, combinado? Vou ficar de olho.
Assentindo, Thomas voltou para a fila. Antes de sair, Trev acenou para
Martha e Christie. Os acontecimentos de alguns meses atrás ainda estavam
frescos em sua mente. Apenas o tempo acalmaria todo mundo. Por favor,
chega de invasões, de vandalismo e de tentativas de assassinato.
11- IMAGENS DO PASSADO

—A !V capturou o lago com perfeição! — Elizabeth estava sentada à


mesa da cozinha, ao lado de Bernie, vendo um punhado de fotos num
pequeno laptop. Ambos tinham empurrado as xícaras vazias de chá para o
lado.
— Amo as árvores antigas ao redor, são um belo plano de fundo. —
Bernie clicou no mouse, e o retrato de um pato apareceu. — Não consigo
resistir a esses carinhas. Está vendo a coloração das asas?
— Essas mocinhas, na verdade. Mas, sim. Se não tiver problema te
perguntar, como aprendeu a tirar fotos tão bonitas?
— Acho que tenho um olho bom. Fiz um curso e dei sorte. Agora, veja
essa. — Bernie clicou outra vez, sem tirar os olhos da tela. — Parece que a
garagem, um dia, foi um estábulo.
— Bem, foi mesmo. Há muito tempo, é claro. Antes dos carros se
transformarem nos novos cavalos e charretes, imagino.
Bernie se endireitou na cadeira, sua atenção agora em Elizabeth. Ela
continuou:
— Sempre mantiveram alguns cavalos aqui, até o dia em que os Ryan
partiram. Mas, ainda antes disso, os estábulos foram transformados em
garagens e acomodações para o pessoal que cuida do terreno. Galpões
novos surgiram nos pastos para os cavalos de lazer.
— Você disse “os Ryan” … e mencionou uma Martha Ryan mais cedo.
— Ele pegou a xícara.
— Deixe-me te servir mais chá, querido. — Elizabeth encheu as duas
xícaras. — O tataravô de Martha foi o primeiro Ryan a morar aqui. Não sei
a história toda – George Campbell pode te ajudar melhor com informações
locais –, mas acredito que se mudaram pra cá no meio do século XIX.
— Obrigado, o chá está delicioso. Então, quem construiu a casa?
— Quer mesmo saber? Venha comigo e te mostrarei um pouquinho da
história. — Elizabeth tomou um gole de chá antes de se levantar. — Temos
algumas fotografias aqui. — Guiou Bernie pelo longo corredor, em direção
ao saguão. Como sempre, não havia muita luz, mas Elizabeth ligou um
interruptor, e uma fileira de luzes embutidas se iluminou acima de uma série
de fotografias na parede. Ela foi até a mais distante. — Começando num
tempo mais recente, estes são Patrick e Lilian Ryan. Sentada, na frente
deles, temos uma Martha muitíssimo jovem e sua irmã mais velha Dorothy.
Martha mora aqui em Rivers End.
Bernie deu uma olhada na foto.
— Você não disse que os Ryan se mudaram?
— Lilian e Patrick se mudaram para a Irlanda há muito tempo. Anos
depois, Martha os seguiu e só voltou pra casa ano passado. É uma história e
tanto.
— Mas ela não mora aqui, na Casa Palmerston.
— Não. Com o passar do tempo, todas as propriedades dos Ryan foram
vendidas, exceto a casa original do chefe da estação no topo da colina.
Graças à sobrinha-neta dela, Christie, a casa agora é de Martha e foi toda
restaurada. Está linda. Deixe-me te mostrar a próxima foto.
Elizabeth seguiu pelo corredor, dando a Bernie o contexto de cada
uma, até chegarem à última fotografia. Nesta foto, a família estava séria,
toda vestida de preto, elegantes e em poses formais.
—Eoin Ryan e sua esposa, Mary – a primeira família Ryan a ser dona
da Casa Palmerston.
— Ele a construiu? — Bernie ignorou a fotografia, encarando
Elizabeth intensamente.
— Não, mas acredito que sua empresa madeireira tenha fornecido parte
da estrutura.
— Então, quem construiu?
— É melhor você perguntar para o George ou dar uma passada na
biblioteca de Green Bay, se quiser mais detalhes.
Bernie manteve os olhos em Elizabeth, sorrindo apenas com a boca.
— Amo história, não tem nada como saber quem forjou o nosso país.
Então, sabe o nome do homem que a construiu?
— Foi Henry Temple quem a construiu. Depois, morou aqui alguns
anos, acho.
— E vendeu para os Ryan, suponho.
— Ah, não. Ele não vendeu. Vamos precisar de mais chá, você vai
amar essa parte!
12- UMA CASA PERDIDA

1853
H T cambaleou pelo portão aberto. Seu cavalo veio logo atrás,
arrastando as rédeas. Momentos antes, tinha caído no sono induzido pelo
uísque, escorregando e acertando as costas no chão. Ileso, não conseguiu
montar outra vez, então caminhou. Ou melhor, andou aos tropeços.
Logo em frente, estava a Casa Palmerston, brilhando sob a luz da lua
numa demonstração extravagante da sua riqueza e maior conquista. Há
apenas três anos, havia terminado de construí-la: o testamento do quão
longe um homem era capaz de chegar com determinação e coragem.
Dedicada a outro homem, seu xará.
— Lembre-se dele. Ele foi um bom homem. — A voz do falecido pai,
William Temple, surgiu do nada, confundindo sua mente embriagada.
Quantas vezes o pai havia recontado a história da infância repleta de
pobreza, de um grupo de garotos mais velhos perseguindo-o, horrorizado,
dando de cara com um jovem de roupas impecáveis? Em vez do golpe que
esperou receber, William foi erguido, e o grupo mandado embora por Henry
John Temple – Visconde de Palmerston, o homem que se tornaria Primeiro
Ministro. O sobrenome igual inspirou o trabalhador a se esforçar mais.
O cavalo cutucou Harry, que cambaleava a seus pés. O pai teria
orgulho da mansão que o filho havia construído com madeira e cal. Poderia
não ser um visconde, mas Henry John Temple acreditava no pagamento de
dívidas, então conferir o nome de Casa Palmerston à propriedade grandiosa
foi sua homenagem a William.
Dentro, a esposa e a filha dormiam. Os funcionários estavam de olho,
esperando sua volta. Sem dúvida, todos com um copo de uísque na mão.
Sob a lua cheia de março, a vida estava tão perfeita quanto qualquer homem
poderia desejar.
Suas pernas cederam, e Harry caiu de bunda. O cavalo bufou e trotou
ao estábulo além do lago, recentemente escavado e cheio. Harry encarou a
Casa Palmerston, com a visão enevoada. Como contaria a elas? Como sua
doce Eleanor reagiria àquela notícia? Que tipo de homem joga fora o
trabalho de sua vida, tudo por mais uma chance de vitória?
Há menos de uma hora, havia entornado outra dose de uísque e caído
na armadilha criada por Eoin Ryan – o comerciante local de madeira que
havia fornecido as tramazeiras para a construção. Quantas vezes Eoin tinha
admirado a propriedade, até mesmo ajudado a construir certas partes? Os
jogos costumeiros de pôquer eram amigáveis. De certa forma. Até hoje à
noite, quando Eoin o encorajou:
— Mais uma rodada, não tem como você perder.
Com os braços ao redor do corpo, Harry balançou de um lado ao outro.
Havia apostado a Casa Palmerston. Vinte anos nutrindo sua riqueza para
perder tudo num jogo. Tinha sido enganado, e não havia como mudar isso.

M semana depois, Eleanor pegou a filha e partiu.


Sua descrença inicial em relação àquela notícia terrível se transformou
em fúria e, por fim, em desespero. Harry deu flores a ela. A mulher
arrancou as pétalas de cada rosa, ao mesmo tempo que lágrimas silenciosas
encharcavam suas bochechas. Ele seguiu uma trilha vermelha e amarela da
casa até o estábulo. Eleanor acariciou a bochecha aveludada do seu cavalo
preferido, enquanto ele fungava o que havia sobrado do buquê.
— Podemos ficar com os cavalos? Com a charrete? — Sua voz não
soou mais alta do que um sussurro.
Ele fez uma careta.
— O advogado vem daqui a duas semanas para listar tudo. O que
estiver aqui vai ser de Eoin Ryan dentro de um mês.
Eleanor assentiu, sem olhar para o marido, mas estendeu o resto das
flores a ele. Então, jogou os braços ao redor de Harry. Chocado, abraçou a
esposa com tudo, mas quando foi beijá-la, ela se afastou e voltou correndo
para a casa.
Depois de uma noite de bebedeira no hotel, Harry voltou a uma casa
vazia. Não havia mais nenhum funcionário, pois partiriam quando ele não
mais conseguiu garantir que continuariam empregados. De alguma maneira,
Eleanor havia feito as malas, prendido o cavalo que amava numa charrete e
partido com a filha do casal.
Terminou de beber uma garrafa de vinho na sala de estar,
amaldiçoando o nome de Eoin Ryan com todo palavrão conhecido. Depois
daquela bebida, foi procurar outra. Com as pernas bamboleando, chegou na
adega, onde afundou no chão de pedra. Apoiado contra a parede, pegou a
garrafa mais perto, na prateleira, e abriu-a. Estilhaçou o vidro ao redor da
rolha com a boca.
Harry brindou a si mesmo.
— A Henry John Temple, um homem independente.
Cuspiu um monte de cacos e jogou a garrafa contra a parede mais
distante, onde se desintegrou. O vinho adentrou a pedra, deixando para trás
uma mancha vermelha-escura.
— Como o meu sangue… o sangue que você me roubou, Eoin Ryan.
Em vez de empoçar, o vinho correu sob a porta até o cômodo ao lado –
um quartinho de utilidades. Ali, Harry guardava tudo de que não queria que
Eleanor soubesse: um estoque do seu uísque preferido; munição que ela se
recusava a ter em casa; sua coleção de armas. A esposa odiava o quarto por
conta da frieza. Mas o que ela não sabia, o que quase ninguém sabia, era o
motivo do lugar ser tão gelado.
— Cristo Redentor — Harry levantou-se outra vez. — Você pode
roubar meu sangue, Eoin Ryan, mas não vai roubar meu uísque, nem meus
tesouros.
Como pôde ter se esquecido? Com a mão na prateleira de vinhos para
se equilibrar, Harry cambaleou até a porta e a abriu. Bem no fundo da
despensa, havia uma pequena porta de madeira pesada, muitíssimo grossa e
trancada.
A chave estava no mesmo lugar de sempre. Em plena vista de toda a
família, e onde ele sabia que ainda estaria. Eleanor levou a amada família e
suas posses mais preciosas, mas não a chave. Ele tinha uma chance de se
redimir, de esconder tudo antes do advogado chegar e, então, de recuperar
seus bens e encontrar sua família.
S discreta do dia, os planos de Harry mudaram. Não foi tão
simples quanto estocar tudo que fosse de valor. Algumas das pinturas que
havia trazido da Inglaterra – a um alto custo – eram grandes demais para
carregar sozinho. O relógio de pêndulo era simplesmente grande demais.
Em vez disso, passou a manhã fazendo uma lista, em seu diário, do que
poderia esconder.
Sentiu um conforto estranho ao escrever no caderninho com capa de
couro, dado a ele por Eleanor no Natal.
— Para que você se lembre de tudo que é importante. — Ela sabia do
quanto ele gostava de tudo organizado, e aquele belo diário artesanal o
acompanhava a todos os lugares. De cômodo em cômodo, fez o inventário.
Pequenas obras de arte
Talheres
Licoreira e copos de cristal
Todas as joias e quinquilharias
Depois de três quartos, parou e se encostou na parede, com os olhos
fechados. Como se não tivesse sido ruim o bastante apostar a Casa
Palmerston, apostou tudo que havia dentro. A oferta tranquila de Eoin
surgiu assim que o caos pela perda da casa dominou Harry.
— Vou te dar uma chance de ganhar tudo de volta. Mais uma rodada. O
vencedor leva tudo. Se você ganhar, a Casa Palmerston fica com você. Se
eu ganhar, é tudo meu – dentro e fora.
— As charretes? As porcelanas da Eleanor?
Eoin empurrou um copo fresquinho de uísque pela mesa.
— Ou você pode ganhar tudo de volta.
Demorou dez segundos para Harry secar o copo e assentir.
Tolo.
Abriu os olhos. Não deixaria Eoin Ryan entrar ali e roubar tudo.
Erguendo a cabeça, imaginou a alegria de Eleanor ao rever os tesouros que
tanto amava. Poderia levar meses, esperando o momento certo e as
condições perfeitas para o resgate, mas ele faria isso. Em seguida,
encontraria Eleanor e a filha. Recomeçariam.
Harry abriu o diário e deu continuidade à lista, sorrindo consigo
mesmo. Ninguém roubava de Henry Temple e se safava.
13- UM INTRUSO MODERNO

N quarto da Casa Palmerston – que um dia pertenceu à Martha


–, Bernie ficou parado, com a mão na janela. O terreno em frente da
propriedade se espalhava por, mais ou menos, um acre de gramado perfeito
e uma mistura bem-cuidada de plantas e árvores nativas da Inglaterra. De
alguma maneira, estava tudo junto num jardim magnífico.
Abaixo, o caminho circular de cascalhos vermelhos ostentava, no
centro, uma fonte que mudava de cor à noite. Estranho. Ao longe, havia
uma entrada ampla, flanqueada eternamente pelos portões abertos –
construídos para os cavalos e charretes. Por prestígio. A Casa Palmerston
ainda era a maior propriedade na região, além da mais velha. Um carro
chegou: um Lotus branco, com o teto rebaixado.
Bernie o observou dar a volta na fonte e, então, estacionar num dos
lados. Christie Ryan. Espremido no banco traseiro, havia um grande
cachorro parecido com o que o farol dele havia iluminado noite passada,
perto da casa de campo.
Ela desceu, pegando uma caixinha no assento do passageiro. Em
seguida, soltou o cachorro. Os óculos de sol escondiam seus olhos. Mas,
assim que ela olhou para a janela, Bernie teve certeza de que olhou
diretamente para ele. Portanto o homem a encarou de volta. O momento
passou. Christie seguiu para os degraus da entrada, com o cachorro a
acompanhando.
Bernie sabia tudo sobre ela. Srta. Rica e Perfeitinha. Podia ter perdido
os pais cedo, mas não se deixou abater na mansão da avó, em Toorak. Era
uma maquiadora internacional, com uma lista de filmes no currículo. Sabia,
até mesmo, que ela quase morrera, há um tempinho, num acidente de barco
causado por um velho namorado.
Pena o homem não ter feito o trabalho direito.
Bernie deu as costas para a janela. Ainda havia Ryan demais vivos para
o seu gosto, mesmo se uma delas fosse uma velhinha, e a outra, uma
intrusa.
Enfiou a mão sob o colchão, tirando dali um livrinho marrom-escuro
revestido de couro. Sentou-se à mesinha encostada na parede e deslizou a
mão sobre a velha capa do diário. Abriu-o bem no meio e leu, em voz alta, a
primeira anotação em letra cursiva elegante que encontrou:
— “Hoje, o advogado e seus sanguessugas passaram seis horas
infectando meu ar. Sentaram-se na varanda, com copos de algo delicioso.
Até mesmo anotaram quanto havia restado na garrafa. Eu ri na cara deles.
Disseram-me para não tentar fugir com nenhum objeto. Mas não sabem de
nada. Maldita seja a família Ryan e todos os seus descendentes.” — Bernie
fechou o diário e se reclinou na cadeira. — Malditos sejam os Ryan e todos
os seus descendentes.
14-SONHOS E ESPERANÇAS

N , nos fundos da casa de campo, Martha e Thomas dividiam a


grande cadeira de balanço, com as mãos dadas. O assento ia e vinha
lentamente, e Martha suspirou, semicerrando os olhos.
— No que está pensando?
— No quão inteligentes a Christie e o Martin são.
— Depende.
— Não, nada disso. Montaram essa cadeira sozinhos. É igualzinha à
que você tinha.
— Meu Deus, mulher. Você ainda lembra daquela velharia?
De lado, Martha lançou a ele um sorriso sabido.
— Lembro da gente sentado aqui à noite, depois dos seus pais terem
ido dormir e antes de você me acompanhar até minha casa. Pensando bem,
isso aconteceu mais de uma vez.
— Lembra mesmo? — Thomas soltou a mão dela e passou o braço ao
redor dos seus ombros. — Conte mais.
— Eu te contei sobre os meus sonhos. Na escuridão, parecia não ter
problema algum em te dizer quais eram os meus desejos mais profundos.
Thomas se aproximou.
— Na tolice da minha juventude, queria vaguear pelo mundo e
escrever lindas histórias sobre isso. Você acreditou em mim.
— E você, meu amor… — Thomas tocou no rosto dela com a mão
livre. Martha se voltou para ele. — …sempre me disse que eu sabia pintar.
Essa foi a única razão pela qual nunca parei. — Ele beijou os lábios dela –
apenas uma carícia suave. — Então, por que não foi atrás dos seus sonhos?
Os olhos de Martha escureceram, como sempre faziam quando
emoções fortes surgiam. Thomas beijou-a de novo, num lembrete
duradouro e sensual da conexão que tinham. Quando o homem se afastou,
os olhos dela continuaram escuros, mas agora demonstravam um anseio
sutil. Por ele, provavelmente. Pelo passado que perderam, com certeza.
— Eu escrevi, Thomas. Mas nada nunca chegou às mãos de uma
editora. Era pessoal demais, era… — Ela perdeu a voz, desviando o olhar.
— É isso que está naquela caixa que você se recusa a esvaziar?
Martha olhou para ele.
— Sim, nem pense em bisbilhotar.
O som familiar do Lotus os interrompeu.
— Vamos continuar essa conversa mais tarde. Mas saiba de uma coisa,
Martha Blake: depois do casamento de Christie e Martin, quando
estivermos sozinhos, vai me contar tudo sobre isso.
A chegada repentina de Randall acabou com qualquer possibilidade de
conversa. O cachorro se jogou aos pés de Thomas, com o rabinho
balançando loucamente. Christie não veio muito depois, parando
abruptamente quando viu Thomas e Martha.
— Opa, desculpa interromper.
— Você não interrompeu — garantiu Martha. Thomas deu uma
apertadinha no ombro dela, mas a esposa o ignorou. — O que Randall está
fazendo com você?
— Eu deveria ter mencionado que teremos um visitante nos próximos
dias… — disse Thomas.
— Sim, Thomas. — Christie fez um péssimo trabalho ao tentar soar
nervosa. — Almoçamos juntos, e você já sabia que Martin iria viajar.
— Eu não tinha o direito de te contar.
— Cadê ele? — perguntou Martha, levantando-se e desviando de
Randall.
— Foi ajudar no acampamento, onde trabalha de vez em quando.
— Mas ele vai se casar daqui a algumas poucas semanas! Ele faz ideia
do quanto ainda falta preparar? — Martha apoiou as mãos no quadril. —
Nem sei se você vai fazer a despedida de solteira aqui em Rivers End, ou
em Melbourne, com quem quer seja a sua madrinha principal.
— Tia, acabei de ouvir tudo isso da Elizabeth, que me deu uma bronca
por ser tão desorganizada. Vou usar o tempo que Martin estiver longe para
decidir todo e qualquer detalhe, e o mais importante deles precisa ser
resolvido agora mesmo. — Ela estendeu ambas as mãos para Martha.
Incapaz de ficar zangada com Christie por muito tempo, a tia-avó
aceitou as mãos dela.
— Certo. Martha Blake, não sei nada sobre “despedida de solteira”,
mas não vou precisar de uma madrinha principal, porque quero uma dama
de honra. Você faria isso por mim? Por favor?
Martha apertou as mãos de Christie, com os olhos brilhando.
— Tem certeza? Não prefere alguém da sua idade…
— Meu Deus, mulher. Diga sim. — Thomas as rodeou com um abraço
apertado. — Ela aceita, Christie.
Pela primeira vez, Martha não reclamou de Thomas ter falado por ela.

C - na cama, com as pernas cruzadas, e mandou uma


mensagem para Martin. Ele havia chegado em segurança ao acampamento,
apesar de ter ido com a velha motocicleta e de ter se aventurado nas
profundezas do Otwy Ranges. Pensando bem, era surpreendente ele sequer
ter sinal no celular.
Randall apareceu na porta, com as orelhas erguidas.
— Você pode dormir aqui se quiser, Martin vai voltar logo.
— Ou ele pode dormir conosco. — Thomas enfiou a cabeça na porta,
com a mão se aproximando da cabeça de Randall. — De qualquer maneira,
cachorrinho, você não vai ficar sozinho.
Randall se deitou entre os dois quartos, e Christie e Thomas riram.
— Vim ver se você não quer um copo de bebida? Vinho? Uísque? —
perguntou Thomas.
— Não, obrigada. Acho que vou passar um tempinho tendo ideias para
o salão. Assim que o Barry estiver com tudo encaminhado, vou precisar de
todos os decorativos.
— Obras de arte?
— Estava pensando sobre onde comprar… talvez online, ou algo
impresso?
Thomas manteve a expressão inflexível, o que fez Christie rir ainda
mais.
— Ou eu poderia tentar pintar algo.
— Pare agora mesmo, senão vai ter dois artistas rabugentos com quem
lidar assim que Martin ficar sabendo disso. — Thomas olhou para a porta
de acesso acima dele.
— Não tem mais muita coisa ali em cima. — Christie se levantou e se
uniu a ele. — Faz quanto tempo que você não sobe lá, Thomas?
— Muito tempo. — Ele girou para encarar Christie — O que tem ali
agora?
— Uma velha poltrona perto da janela. Tinha um pequeno lençol
pendurado no encosto, o que me fez imaginar se alguém costumava se
sentar lá para ler sob a luz do sol.
— Mais alguma coisa?
— O baú onde encontrei… Você sabe o que eu encontrei. — Não quis
chatear Thomas com velhas feridas, e os olhos dele amuaram antes de se
voltarem para ela.
— Me conte sobre o baú, meus pais não tinham nada parecido.
— Velho. Na verdade, muito velho. Feito lindamente com algum tipo
de madeira de lei, você sabe mais sobre isso do que eu. Com a tampa
curvada. Quer que eu o traga para baixo?
— Você gosta mesmo dos seus mistérios, Christie. Fico surpreso de
você não ter ficado encucada com o porquê daquelas cartas e anéis terem
estado trancados aqui. Numa casa vazia.
— Vazia? Eu pensei… bem, assumi que você tivesse morado aqui.
Depois dos seus pais terem se mudado.
— Quer dizer, depois que me casei com Frannie? — Thomas se virou,
mantendo a voz baixinha enquanto observava a cozinha, onde Martha
cantava, delicadamente, consigo mesma, seguindo sua rotina noturna de
limpeza da mesa e das cadeiras. — O dia em que meus pais partiram foi a
última vez que pisei aqui. Eu os ajudei a mudar, então dei as costas para a
casa de campo até voltar para buscar algumas cartas de uma certa
jovenzinha obstinada.
— Fui muito insistente. — Christie apoiou a mão no braço dele. —
Thomas, se ninguém morou aqui, quem raios guardou o baú no sótão?
— Talvez não importe mais.
— Talvez não. Amanhã, vou trazê-lo para baixo e dar uma olhada
decente durante o dia. Tudo bem?
Ele assentiu, com os olhos ainda na cozinha.
— Tem certeza de que não quer beber nada antes de dormir?
— Sim. Tudo bem com você?
— Acho que vou ajudar a minha esposa. Boa noite.
Thomas se afastou e, depois de um momento, Randall o seguiu.
Aquilo tudo ainda o machucava.
As mentiras de Frannie ajudaram a manter Thomas e Martha longe por
décadas. Christie olhou para a porta de acesso. De repente, sentiu uma
vontade incontrolável de trazer o baú para baixo.
M ao lado do marido adormecido, ouvindo-o
respirar, com a sensação de maravilhamento que, ocasionalmente,
dominava-a. A vida toda separados poderia ter sido um sonho. Na verdade,
um pesadelo, que durou tempo demais. Tivera uma vida boa e feliz o
bastante na Irlanda, com viagens anuais a diferentes partes do mundo. Estar
ali, onde a vida deles pertencia, era muito mais do que ela ousava desejar.
Um milagre aconteceu na forma de uma linda jovem determinada: sua
sobrinha-neta, Christie.
De olhos abertos, Martha sorriu. A descoberta de um parente era, com
certeza, uma alegria. Dorothy não compartilhou nada com Martha ao longo
dos anos, a não ser uma breve discussão quando os pais morreram. Quão
triste foi não ter tido a chance de conhecer a filha e o genro de Dorothy –
Rebecca e Julian. Morreram tão cedo e tão tragicamente, deixando a filha
amada nas mãos da avó insensível…
Por que estou pensando nisso?
Martha se virou e fechou os olhos com força.
Sabia o porquê. Tinha ouvido Thomas conversar com Christie mais
cedo – apenas um fragmento da conversa, mas com o nome da mulher que,
um dia, tinha sido a sua melhor amiga: Frannie. Com medo de ouvir algo
mais, Martha começou a cantar, sozinha, uma canção da infância. Dorothy
amava aquela música e, de vez em quando, cantava junto. Sentia falta da
irmã. Da irmã da infância, não da irmã que havia destruído todo o seu
mundo.
Por que estavam falando de Frannie? Thomas nunca dizia o nome
dela, e Martha sempre achou que era porque a verdade o havia machucado
profundamente. Mas talvez fosse porque ele não queria discutir a ex-mulher
com Martha. Ainda assim, havia tantas perguntas sem respostas… e se ele
falasse com a esposa sobre a decisão de se casar com a mulher que ajudara
Dorothy a destruir o amor entre eles, então, talvez Martha pudesse
encontrar uma maneira de perdoar.
Perdoar quem?
Frannie e Dorothy.
Mas uma vozinha atazanou Martha. Aquelas duas mulheres poderiam
ter conspirado e feito tudo acontecer, mas, no fim das contas, tinha sido ela
quem fugira de Thomas. Depois de tantos anos, havia encontrado certa paz.
Aceitação. Exceto pela noite de hoje, quando as emoções a inundaram.
Thomas gemeu dormindo. Estaria sonhando com Frannie? Como se
sentindo a angústia crescente de Martha, Randall se juntou a ela ao lado da
cama, seu focinho buscando sua mão. Acariciou as orelhas aveludadas,
forçando as emoções a retornarem ao seu devido lugar.
15- TRANCADO

A , com os sapatos pendurados nos dedos, Bernie


desceu as escadas, tomando muito cuidado para evitar as tábuas rangentes
que ele havia identificado e memorizado ontem. Assumiu que teria meia
hora, talvez menos, para explorar. Quando a casa ganhasse vida, não teria
nenhuma chance, a não ser que todos saíssem ao mesmo tempo.
Na escuridão, chegou à cozinha e ficou parado, por um momento, na
porta. Imaginou a fileira organizadíssima de chaves penduradas ao lado da
porta na parte interna. Seis, se conseguia se lembrar direito, baseado na
olhadela que dera. De um bolso, tirou uma pequena lanterna e apontou a luz
para as chaves. Seis. Claro que estava certo. Não viu apenas o molho das
chaves-mestras que, possivelmente, estaria com Elizabeth.
Olhando mais de perto, quatro eram chaves modernas.
Inúteis.
Uma delas deveria funcionar: a com os dentes alongados, mas estava
marcada como sendo a chave da garagem. Ainda bem que a última tinha
potencial. Jogou-a para dentro do bolso, caso precisasse dela mais tarde.
Parou de respirar, ouvindo a casa. Ainda nenhum movimento, mas tinha que
se apressar. Bernie abriu a porta e saiu.
Estava mais frio do lado de fora. Encontrou-se num corredor estreito.
Com meia dúzia de passos, alcançou a base do conjunto de degraus, então
os subiu, fazendo uma careta quando rangeram sob seu peso. Dali, a porta
estava a apenas um braço de distância. Esperava que estivesse trancada,
mas não estava. Abrindo-a com um ranger alarmante, Bernie revelou uma
despensa com prateleiras cheias de vinho.
Deixou a porta aberta ao entrar. Na parede oposta, havia ainda outra
porta. Novamente, destrancada. Harry Temple, com certeza, gostava de
portas. O cômodo seguinte era pequeno. Caixas e prateleiras o
atravancavam. Estava frio ali. As prateleiras, na parede mais distante, eram
um conjunto que servia de apoio a uma coleção de caixas. Uma por uma,
tirou-as dali. Testou o peso de cada uma, então, grunhindo, ergueu-a o
suficiente para empurrá-la para o lado.
Atrás dela, havia outra parede vazia. Xingou baixinho, apoiando-se na
parede, cabisbaixo. O reboco se moveu sob seu corpo, e ergueu a mão para
tocar onde pensava que a porta pudesse estar. Uma linha fininha e reta
surgiu sob a pressão do dedo, ao passo que pedacinhos da argamassa caíram
no chão. Pouco a pouco, Bernie trabalhou naquilo até encontrar o buraco da
fechadura.
Assim que se livrou dos entulhos, pegou a chave e deslizou-a na
fechadura. Não coube. Nem perto disso. Empurrou as prateleiras de volta
para a parede e reorganizou as caixas. De qualquer maneira, aquilo tudo
tinha sido apenas um reconhecimento do lugar. Quando estivesse sozinho
na casa, encontraria um jeito de entrar ali.
16- SEGUINDO EM FRENTE, OLHANDO PARA TRÁS

O raios de sol acordaram Martha de um sono inquieto. Por


alguns momentos, continuou deitada, com os olhos fechados, ouvindo a
tagarelice matinal da família. Thomas já tinha se levantado; ela ouviu a
torneira ser aberta na cozinha para encher a chaleira. Com o sol, chegaram
os pensamentos mais lógicos. Quando abriu os olhos, já havia superado
seus medos noturnos. O que importava era o aqui e o agora, não os
acontecimentos de meio século atrás. Estava feliz, e nada mudaria isso.
— Eu te acordei? — Thomas a observou da porta, segurando duas
xícaras fumegantes. — Eu ia pra varanda, nas pontinhas dos pés, se você
ainda estivesse dormindo.
— Conquanto me traga café, pode me acordar sempre. — Martha se
sentou, sorrindo, quando Thomas se aproximou e se acomodou na beirada
da cama.
Ele se inclinou e beijou sua bochecha.
— Então vou fazer isso todos os dias. Quanto mais cedo você acordar,
mais tempo teremos juntos. — Entregou a xícara a ela, e tomou um golinho
da sua. — Christie já saiu.
— Pra correr? E o Randall?
— No jardim. O que acha de adotarmos um cachorro?
— Onde vamos encontrar outro igual a ele?
— Tem razão.
— Além disso, ele fica quase tanto aqui quanto no Martin. E, quando
saírem de lua de mel, o Randall vai ficar com a gente de novo.
— Eles vão ter uma lua de mel? — Thomas repousou a xícara na
mesinha de cabeceira de Martha. — Desde quando?
— Bem, a maioria dos recém-casados viaja. — Martha deixou a xícara
ao lado da dele e se moveu na cama. Thomas se levantou para deixar que
ela tirasse as pernas de cima do colchão. — Tem uma agência de viagens
em Green Bay.
Thomas ofereceu a mão a ela e, assim que Martha se levantou,
abraçou-a.
— Está sugerindo um passeio de carro?
Ela olhou para ele.
— Estou. Afinal de contas, sou a dama de honra, então buscar algumas
brochuras sobre destinos para a lua de mel, com certeza, faz parte do meu
trabalho. Gostaria de ter algumas ideias para os presentes de casamento,
porque meia dúzia de pessoas já veio me perguntar.
— O que vamos dar pra eles?
— Deixe-me tomar um banho, e podemos pensar nisso.
— Então vou preparar um café da manhã pra gente – sustança para o
dia que teremos. — Thomas soltou Martha, recolheu as xícaras e saiu do
quarto, enquanto ela arrumava a cama.
Na mesinha de cabeceira dele, havia uma foto do casamento: os dois
trocando votos no finzinho do píer.
Como eu te amo.
O casamento de Christie e Martin era ainda outro acontecimento pelo
qual seria grata. Sua vida mudou para melhor no dia em que conheceu a
sobrinha-neta. Estava determinada a fazer tudo que pudesse para que o dia
especial de Christie fosse tão maravilhoso quanto o seu tinha sido.

E bandejas de café da manhã para Charlotte e


Bernie. Cozinhar para duas pessoas não era problema algum, mas Elizabeth
amava preparar refeições lindas, não importava que horas fossem, com
toques especiais para demonstrar o quanto apreciava a clientela. A maioria
dos hóspedes da Casa Palmerston era composta por turistas que ficavam por
apenas uma ou duas noites, explorando a cidade e a praia, ou as montanhas.
Mas os hóspedes de longo prazo eram especiais. Tinha a chance de
descobrir seus gostos e desgostos, de os paparicar um tantinho mais quando
se tornavam parte da sua família estendida.
Com o casamento chegando, esperava a casa cheia. Christie tinha
amigos em Melbourne que seriam convidados e que, provavelmente, se
hospedariam ali. A ideia do lugar cheio era maravilhosa.
Conquanto Angus estivesse ali.
Empurrou o pensamento para longe. Ele tinha negócios a resolver e
estaria de volta a tempo de acompanhar Christie ao altar. Bem, pela trilha
até a lagoa.
Elizabeth pegou a bandeja de Charlotte antes de vê-la na porta,
bisbilhotando, como se incerta quanto a algo. Como costumava agir.
O que quer que estivesse incomodando Charlotte, Elizabeth não
deixaria que a situação ficasse ainda pior.
— Ah, bom dia, querida. — Elizabeth repousou a bandeja. — Você
sabe que é bem-vinda aqui a qualquer hora, dia ou noite.
— Eu não sabia se você estava sozinha. — Charlotte entrou, com os
olhos vasculhando o cômodo. — Quero dizer, não queria te interromper se
estivesse… hm, conversando com alguém.
— Apenas eu, e agora você. Estava prestes a te levar isso. Quer comer
na sala de jantar? Ou talvez lá fora? A manhã está linda.
— Na verdade, acho que vou comer na varanda, com um livro, mas
não precisa levar pra mim.
— Bem, ainda está tudo quente debaixo do cloche. A chaleira acabou
de ferver, quer um cafezinho pra acompanhar?
Charlotte sorriu, por fim.
— Eu adoraria. — Puxou a bandeja pela mesa e ergueu o cloche um
tantinho. — Esses ovos parecem deliciosos.
— Que bom. Não vou demorar.
— Eu vi a Christie ir embora ontem, com Randall no carro. —
Charlotte recolocou o cloche no lugar.
— Ah, sim. Acho que sim. Ela vai ficar na casa de campo até o Martin
voltar. Aqui. Deixe-me arranjar um espacinho pra isso no canto.
— Obrigada, Elizabeth. Não sabia que o Martin tinha viajado.
— É apenas por alguns dias.
Charlotte ergueu a bandeja.
— Bem, acho que não vou conseguir esperar muito mais pra comer
isso. Que cheirinho apetitoso!
— Aproveite. Vou levar o café do Bernie no quarto, já que ele ainda
não desceu. — Elizabeth pegou a outra bandeja e seguiu Charlotte para fora
da cozinha.

F !
Do outro lado da porta da despensa, Bernie pressionou o ouvido contra
a madeira, desejando que as mulheres continuassem andando. Suas vozes
desapareceram. Girando a maçaneta com cuidado, abriu a porta alguns
centímetros. Pela brecha, não viu nenhum sinal de movimento, então a
empurrou o suficiente para passar.
Por mais de uma hora, estivera preso do outro lado, com medo de
descer pelos degraus rangentes, sendo atormentado pelos cheiros tentadores
de bacon e café. Muito mais interessantes do que o chazinho sem sabor que
havia compartilhado com a Elizabeth da outra vez.
Os últimos dois minutos da longa espera fizeram tudo valer a pena.
Martin Blake estava viajando e, ainda por cima, o cachorro também tinha
saído. Era hora de dar outra olhada no penhasco.
O som de passos se aproximando o arrancou de seus pensamentos. Ele
tirou a chave do bolso, jogou-a de volta ao gancho e agarrou a primeira
coisa que viu no balcão: um bule.
— Ah, te achei! — Elizabeth carregava uma bandeja.
— Bom dia. Fui dar uma caminhada e dei uma passada aqui pra ver se
conseguiria te convencer a me servir outra xícara do seu chazinho delicioso.
— Ele repousou o bule.
— É claro. Mas, olhe, aqui está o seu café da manhã. Leve isso e ache
um lugarzinho na sala de jantar. Bem, qualquer lugar, na verdade, desde que
já não haja ninguém sentado nele. — Entregou a bandeja a Bernie. — Vou
preparar o chá e te levo uma xícara daqui a um pouquinho.
— Maravilha. Obrigado, Sra. White.
— Me chame de Elizabeth. Pode ir.
Ela se voltou para o fogão e pegou a chaleira com a intenção de enchê-
la, enquanto Bernie partia com a bandeja. Na porta, ele olhou para trás.
Elizabeth encarou a porta. Não, para a porta não. Para a fileira de chaves,
onde a chave que ele tão descuidadamente havia devolvido ainda balançava
de um lado ao outro.
17- O SÓTÃO E A ESTAÇÃO

P vacilante, Christie subiu a velha escada suspensa do sótão.


Abaixo dela, no corredor, Randall choramingou.
— É sério, carinha. Estou bem. Pode subir na minha cama.
Quando atravessou a porta, sentou-se no chão e olhou outra vez para o
cachorro, que ainda a encarava, balançando o finzinho do rabo. Bem, ela
não demoraria. Depois, daria uma bela penteada nele.
Da última vez que tinha estado ali em cima, inapropriadamente usando
o vestidinho justo do funeral da avó, ligara a lanterna do celular. Desta vez,
sabia do interruptor ao lado da longa bancada de trabalho, onde Thomas,
um dia, guardou tintas e pincéis. Em pé outra vez, seguiu as instruções
dadas por ele pela manhã e foi recompensada por uma luz
surpreendentemente brilhante vinda do teto alto.
Deu uma olhada na bancada, caso algo tivesse sido esquecido. Mas
Thomas havia sido minucioso empacotando os pertences há tantos anos.
Dissera a ela que não havia nada a ser encontrado. Pelo menos, nada que
fosse dele.
Não ocorreu a Christie esperar Thomas e Martha voltarem da viagem
de compras, nem ver se havia alguém por perto que pudesse ajudá-la. Tão
logo o velho carro sumiu da sua visão, subiu na escada.
A atmosfera do sótão parecia diferente da sua última visita. Naquela
época, com a chuva retumbando no telhado de metal, e a luz fraca entrando
pela janela empoeirada, criando uma aura ao redor da velha poltrona ao
lado, Christie havia imaginado a possibilidade de ter voltado no tempo.
Talvez tivesse… a um lugar esquecido nos Anos 60, que abrigava aranhas,
em vez de um jovem artista talentoso.
Parou na janela, empurrando a sujeira para longe. O sol da manhã
realçava a vitalidade do jardim: árvores e arbustos podados, flores, trilhas –
um adorável paraíso labiríntico. Dela por um tempo e, agora, pela primeira
vez, de um Blake. A casa de campo até poderia ter sido construído para que
a família Blake a habitasse – gerações de chefes da estação –, mas foi
propriedade dos Ryan e, em algum momento, a única casa em Rivers End
com uma conexão com a família que, um dia, dominou toda a região.
Randall latiu, verificando se ela estava bem.
— Daqui a um pouquinho, amigão. — O baú estava onde ela o havia
deixado em novembro, longe o suficiente da parte mais baixa do teto para
que pudesse ser aberto. Lembrava-se de que era muito bem feito, mas,
agora, sob uma iluminação decente, viu que havia subestimado sua
qualidade.
Estava numa condição quase perfeita, exceto pelos poucos arranhões
ao redor da fechadura. Tocou as marcas, lembrando-se do quão cuidadosa
tinha sido quando usou a chave de esqueleto deixada pela avó. Como havia
erguido a tampa e parado de respirar com a antecipação do que poderia
haver ali dentro. Num primeiro momento, encontrando apenas uma caixa de
sapato, Christie ficou decepcionada. Mas o conteúdo proporcionou o
reencontro de Thomas e Martha e o fim de um mistério de cinquenta anos.
Bem, agora ela tinha um novo mistério: por que o baú estava ali?
Quem o havia escondido no sótão, quando? Christie testou o peso e decidiu
que era leve o bastante para ela mesma carregar. Agora, tinha de descobrir
como levá-lo para baixo em segurança, sem derrubá-lo, nem se
desequilibrar.

A em Rivers End tinha na equipe o total de uma


pessoa, com a recepção na frente e um quarto, aos fundos, acessado por
uma porta comum. Há trinta ou quarenta anos, foi uma casa de família no
limite de uma vizinhança comercial. Quando a colocaram à venda, foi
dividida quase no meio e replanejada com alguns escritórios, um balcão de
atendimento, uma cela e nada mais num dos lados. Do outro, havia a
acomodação. Apenas o básico. Ninguém queria trabalhar ali. Não por conta
do quão longe estava de outras delegacias, mas porque o quarto tinha sido
feito para apenas uma pessoa ou casal, nada de crianças.
Quando o trabalho o chamou outra vez, Trev Sibbritt deu uma volta em
Rivers End e se apaixonou pela cidade. Era solteiro na época e continuava
assim hoje, então o lugarzinho pareceu adequado a ele. Apesar dos
pouquíssimos crimes, seus dias eram sempre cheios, cuidando de uma área
ampla ao redor da cidade.
Em todo o tempo que esteve ali, o maior dos crimes ocorreu no
começo daquele ano, quando Derek Hobbs mandou seu capanga, Rupert,
alvoroçar Rivers End – e, principalmente, Christie Ryan –, em sua tentativa
desvirtuada de tomar as terras dela. Trev deu um jeito na situação, mas
apenas com a ajuda dos habitantes locais, que se reuniram na praia sob uma
tempestade para trazer Christie, Martin e Randall de volta à segurança.
Nunca sentiu tanto orgulho do seu trabalho como naquela noite.
Com os deveres matinais cumpridos, Trev caminhou até a caixinha de
correio com um café em mãos. Do lado de fora, havia poucos sinais
indicando que aquela não era mais a casa de uma família. Num grande
jardim de rosas, com alguns eucaliptos e uma plantação de vegetais ao
fundo, apenas as placas de POLÍCIA no comecinho da rua e na própria
construção, além das grades pesadas de proteção nas portas e nas janelas,
indicavam o propósito do lugar.
A caixinha estava vazia, então Trev se apoiou na cerca para observar a
rua, enquanto os lojistas abriam as portas, varriam a calçada e se
cumprimentavam. A rotina matinal. Passos velozes se aproximavam, e ele
virou a cabeça. Era Charlotte se apressando, com os olhos indo e vindo ao
outro lado da rua. Quando notou Trev, a mais estranha das expressões
atravessou seu rosto, e ela desacelerou.
— Bom dia, Charlotte.
Ela parou a alguns passos de distância.
— Oi, Trevor.
— É um belo dia pra caminhadas.
— Não estou caminhando. Quero dizer, não estou dando uma
caminhada. Tenho de ver uma pessoa. — Olhou rua acima, até a esquina
mais distante. Trev acompanhou seu olhar. Bernie Cooper estava falando
com George do lado de fora da joalheria. Era George ou Bernie quem havia
chamado a atenção dela?
— Quer um cafezinho? Vou pegar outro.
Os olhos de Charlotte se voltaram aos dele, e sua expressão se
suavizou.
— Obrigada, mas tenho de ir a um lugar.
— Estou vendo.
— Não, é sério. Eu, hm, vou ver a Christie.
— Quer uma carona?
Ela sorriu.
— Tenho duas pernas boas. Mamãe sempre me disse para usá-las e não
as perder. Mas obrigada, mesmo.
— Sua mãe parece ser uma senhora sábia.
O sorriso de Charlotte desapareceu.
— Preciso ir.
Seus olhos fitaram a esquina antes de encararem Trev. Por um instante,
algo como um pedido silencioso de ajuda surgiu naqueles olhos
deslumbrantes. Algo não estava certo, e ele abriu a boca para perguntar,
mas Charlotte voltou a andar, e o momento passou.
Observou-a desaparecer noutra esquina, seguindo para a ponte. Teria
ele imaginado a expressão nos olhos dela? Bernie Cooper tinha entrado na
joalheria com George. Talvez compensasse dar mais uma olhada no passado
dele.

—T em qualquer artefato dos anos 1800. — Bernie


perambulou ao redor da joalheria.
Atrás do balcão de vidro, George Campbell ergueu os olhos.
— De alguma década em particular?
— Não sei. De 50 a 60? Não foi nessa época que a cidade começou a
crescer?
— A Casa Palmerston foi construída em 1850, mas já deve saber disso.
— Por que diz isso?
— Não está hospedado lá? Elizabeth conversa com todos os hóspedes
sobre a história do lugar. — George apoiou as duas mãos no balcão,
inclinando a cabeça um tantinho. — Você é fotógrafo?
— Cidade pequena… é claro, todo mundo sabe tudo sobre todos. —
Bernie sorriu. — Sou. Essa cidade me deixa intrigado. Ainda tem um
charme antiquado, e algumas das construções continuam, praticamente,
inalteradas. Essa loja, por exemplo. — Ele apontou para as janelas da
frente. — É quase como voltar no tempo. Não tem nada moderno, nem
barato. Só vejo qualidade do teto ao chão.
Um sorrisinho surgiu no rosto de George.
— Obrigado por notar. A maioria das pessoas, hoje em dia, só quer o
relógio da moda ou o anel mais barato. Mas essas coisas não duram.
— Aposto que os seus produtos duram. Não que eu seja um homem de
apostas, mas o que você tem aqui, provavelmente, foi passado de geração
em geração.
— Foi mesmo. Agora, quanto ao seu pedido. Tem interesse em
comprar ou em fotografar? Não vejo problema em nenhuma das opções,
mas seria bom saber.
— Um pouco dos dois. Eu sempre guardo… lembranças, se quiser
chamar assim, dos lugares que visito. Se você tiver um souvenir dessa
época, com certeza, eu teria interesse em comprar. Gosto muito de relógios
de bolso.
— Aqui não é uma loja de antiguidades, mas acho que tenho algumas
peças que podem te interessar. Deixe-me achar meus óculos antes de te
mostrar, com licença.
Quando George abriu a porta do quarto ao fundo, Bernie voltou a
perambular. Havia um relógio de pêndulo num canto. Parou a alguns passos
de distância, admirando o modelo. Mogno escuro decorado com ouro –
quase dois metros. O pêndulo pesado balançava, e o homem o observou ir
da esquerda para a direita. Esquerda, direita.
— Sinto muito, mas o relógio não está à venda. — George se juntou a
Bernie.
— Deve valer uma fortuna. Nem pelo preço certo?
George avançou, deslizando a mão pela lateral do relógio.
— Não existe um preço certo, o lugar dele é aqui.
— Herança de família?
— Algo assim.
— Quando foi feito? É inglês.
— Isso mesmo. É, mas não sei de mais nada. Coloquei algumas peças
interessantes no balcão, se puder me acompanhar.
Bernie franziu a testa quando George se direcionou ao balcão. Havia
algo estranho quanto àquele relógio. Algo que ele precisava compreender.
18- A CASA DE CAMPO

P caminho, colina acima, até a casa de campo, Charlotte reviveu


a breve conversa com Trev. Ele era bom demais para enxergar através das
pessoas. Em enxergá-la. Por mais que quisesse negar, tinham uma conexão.
Por ora, seu foco estava em Bernie Cooper e no que ele andava
tramando. Não tinha planejado segui-lo pela manhã. Apenas aconteceu. Ele
saiu da casa assim que ela desceu as escadas. Algo a fez subir outra vez,
correndo, pegar a bolsa e ir atrás dele. Bernie não carregava nenhuma
câmera, o que a fez suspeitar de algo. Quando o homem foi direto à loja de
George, os pelinhos da nuca da mulher se eriçaram. A única razão pela qual
procuraria George seria para perguntar sobre o passado.
A verdade era que Charlotte preferia ter aceitado o café oferecido por
Trev, sentando-se com ele na pequena cozinha ou caminhando pelo jardim.
Ele era um homem simples no melhor sentido possível. Uma pessoa de
valores fortes, que via as coisas como realmente eram, sem a névoa de
suspeita e dúvida que coloriam o mundo dela. Trev faria qualquer coisa por
aqueles com quem se importava. Era forte, por dentro e por fora. Um bom
homem que ela adoraria conhecer melhor.
Mas você mentiu pra ele.
O que a havia possuído, fazendo-a dizer que visitaria Christie, dentre
todas as pessoas?
Ela chegou na estrada da casa de campo e hesitou. Aquela era uma
mulher que ela admirava sob muitos ângulos, mas não eram exatamente
amigas. Conhecidas, que compartilharam uma experiência ruim.
Conectadas de um jeito estranho. Como explicaria sua aparição na porta de
Christie? Charlotte olhou para trás, em direção à Rivers End. E se Trev
perguntasse sobre a visita? Não queria continuar mentindo para ele.
Suspirando, continuou andando.
Essa era sua primeira visita à famosa casa de campo. Tinha ouvido
todas as histórias sobre Christie tê-la herdado da avó, vindo ao funeral e se
apaixonado por Martin. Charlotte estivera ali, em Rivers End, quando o ex
de Christie, Derek Hobbs, danificou o iate e quase reivindicou a vida da
mulher. Que belo jeito de conhecer alguém!
Charlotte entrou no terreno e parou para admirar a bela casa. Recém-
pintada, com o telhado restaurado e uma trilha convidativa até uma linda
porta de entrada, parecia uma pintura. Não era de se surpreender que todos
falavam do lugar. O jardim celebrava os primeiros sinais da primavera com
folhas novas em árvores decíduas. Junquilhos e narcisos surgiam por toda
parte e, no que parecia ser uma nova banheira para passarinhos, Lóris
coloridos se revezavam para se refrescar.
Que sossego…
— Ai!
Um baque.
Charlotte correu até a porta da frente e bateu.
— Christie! Martha?
Nada. Ela girou a maçaneta, mas estava trancada. Bisbilhotou pelo
vidro da janela. Randall havia parado sobre uma perna envolta em jeans,
com o rabinho abaixado. O restante da pessoa não estava visível.
— Christie! É a Charlotte!
Randall correu para a porta, choramingando.
Charlotte se apressou, dando a volta até os fundos e subindo no terraço.
A porta estava destrancada, então abriu-a com tudo.
— Christie?
Um gemido soou do outro lado da casa de campo, e Charlotte seguiu o
som. No meio do caminho, foi recebida por um Randall desesperado.
— Estou aqui.
Seu coração se despedaçou quando viu Christie deitada, imóvel, no
chão.
Charlotte se ajoelhou ao lado da mulher. Soltou um suspiro alto de
alívio ao encontrar os olhos abertos que a reconheceram. Randall se jogou
no chão aos pés de Christie.
— Quero que não se mexa por enquanto. Consegue falar?
Christie abriu a boca, mas nada saiu. Seu rosto estava pálido, e os
olhos, angustiados. Charlotte apoiou a mão nas costas dela e fez
movimentos circulares lentos.
— Acho que você perdeu o fôlego. O ar vai voltar, mas precisa se
acalmar. Arfe algumas vezes. Certo. O oxigênio precisa entrar de
pouquinho em pouquinho para abrir os seus pulmões. Entendeu?
Assentindo, Christie deu início a uma série de pequenas tentativas para
respirar. Charlotte continuou esfregando suas costas, medindo o pulso da
mulher com a outra mão.
— Não respire tão fundo. Mais rápido é melhor. Isso, agora sim. Muito
bem.
Charlotte se acomodou, sentando-se com as pernas cruzadas, e Randall
se aproximou imediatamente, apoiando a cabeça em seu colo.
— Quando voltar a respirar normal, vamos te sentar. Mas não tenha
pressa. — Ela olhou para cima e para a porta de acesso. Havia uma silhueta
visível, algo parecido com uma grande caixa. — Me diga que não estava
tentando trazer algo pra baixo sozinha.
— Impor… importante — arquejou Christie.
— Sei… E se tivesse caído em cima de você? E se eu não estivesse
aqui? Acho que você é mais importante do que aquilo.
— Desculpa. — Sua voz soou um tantinho mais forte.
— O que vou dizer ao Martin?
Os olhos de Christie se arregalaram.
— Sua noiva foi esmagada sob uma caixa, porque ela não teve o bom
senso de chamar alguém pra ajudar. Tudo bem, vamos te sentar. —
Charlotte serviu de apoio aos braços de Christie, enquanto ela,
gradualmente, se sentava. Em seguida, apoiou-se na parede. Por alguns
segundos, fechou os olhos. Depois, respirou normal, expirando sem pressa.
Randall balançou o rabinho, mas continuou onde estava.
— Obrigada.
— Melhor?
Christie assentiu, passando a mão pelo corpo atrás dos danos.
— Não vou te dizer o quão sortuda é. Só ficou sem ar, não quebrou
nenhum osso, nem bateu a cabeça. Fique sabendo, acho que você deveria
passar num médico.
— Não. Estou bem. — Christie segurou a mão de Charlotte. —
Obrigada. Muito obrigada.
— Por que a caixa é tão importante?
— É um baú. Foi nele que encontrei as cartas de Thomas.
— Não sei muita coisa sobre isso, só que ele perdeu Martha pela maior
parte da vida, então, você os reuniu de alguma maneira. Ainda assim, se
estava lá em cima esse tempo todo, por que tentou trazer pra baixo sozinha?
— Porque Thomas, finalmente, quer vê-lo. Eu não queria que ele
subisse nessa escada velha.
— Então vamos trazê-lo pra baixo juntas. Em segurança.
— Você vai me ajudar?
Charlotte revirou os olhos e, depois de afastar gentilmente a cabeça de
Randall, se levantou.
— Não vou te deixar sozinha agora, então… é melhor que eu não fique
parada. Mas quero te ver de pé e com as pernas firmes, senão vamos num
médico.
— Mas você é médica. — Christie deixou Charlotte a levantar.
— Sou psiquiatra, não clínica geral.
— Mas você se formou em medicina.
— Pare de discutir comigo. Tudo bem. Está tonta? Algum problema na
visão? — Ela observou o rosto de Christie com atenção.
— Você sabia que é mandona? — Christie sorriu. — Estou bem, só um
pouco dolorida onde caí. Obrigada, Charlotte. Pensei que eu estivesse
morrendo.
— Não é nada legal perder o fôlego. Aconteceu comigo quando
criança, caí dum cavalo. Está bem o bastante para ir até a cozinha? Vou te
dar algo pra beber e ficar de olho em você por um tempinho.
— Estou bem. Mas um café seria bom, se quiser me acompanhar. —
Christie guiou o caminho pelo corredor, com passos calculados, mas firmes.
— Pobre Randall, eu sempre o assusto.
Randall vinha ao lado de Charlotte.
— Ele está bem. Sente-se por alguns minutos, por favor. Me diga onde
estão as coisas, e eu preparo o café.
19- PLANOS DE VIAGEM E DESCOBERTAS

—N não tem passaporte, então deve ser na Austrália — insistiu


Thomas, pela segunda vez, esperando que o jovem entusiasmado, sentado
atrás da mesa na agência de viagens, o ouvisse. Até então, quase todos os
destinos de lua de mel no mundo tinham sido oferecidos, exceto um
apropriado.
— Não demora muito pra tirar um passaporte, então que tal a Nova
Zelândia? Fica a apenas algumas horas de Queenstown e é linda nessa
época.
Martha repousou a mão na de Thomas antes de ele se levantar. Inclinou
um tantinho para frente e sorriu.
— Querido, que tal Uluru? Ou talvez Broome?
— Ah, posso dar uma olhada. — O jovem clicou em algo no
computador. — O que vocês acham de… Lizard Island? É perfeita para
casais, e temos um pacote especial… não?
— Não. Nada de Lizard Island ou Nova Zelândia, Roma, Paris – que é
linda, por sinal – ou Alaska. — Thomas manteve a voz sob controle, ciente
da pressão crescente vinda da mão de Martha. — Como a Sra. Blake
sugeriu, o que você tem para Uluru ou Broome?
Minutos depois, com uma pilha de folhetos sob o braço de Thomas, ele
e Martha saíram da agência.
— Eles não ensinam mais os jovens a ouvir?
Martha sorriu e assentiu para uma cafeteria do outro lado da rua.
— Acho que precisamos de um chazinho matinal. Ou de um café.
— Está me dizendo que estou sendo rabugento?
— Nunca.
Atravessaram e entraram. Depois de pedir os cafés e alguns cupcakes
que pareciam deliciosos, Thomas escoltou Martha até uma mesa perto da
janela.
— Não vai ser tão difícil.
— Pelo menos, temos muito o que olhar. Eu gosto de folhetos.
— Verdade seja dita, provavelmente, prefeririam navegar pela costa.
— Não sei, não.
— Está preocupada com a Christie?
Martha assentiu.
— Ela não diz nada, mas sinto que possa estar revivendo aquela noite
de vez em quando. Quão aterrorizada ela deve ter ficado…
— Quão corajosa ela foi. — Thomas segurou a mão de Martha. — Ela
vai ficar bem quando embarcar outra vez. Não que o cachorro vá sair da
terra firme outra vez, se for do meu jeito.
— Eu queria…
— O quê, meu amor?
— Estou sendo tola. — Martha olhou para a fumaça que subia do café.
— Eu vivi duas vidas, parece. As duas foram importantes.
— Sente falta da Irlanda?
— Deve ser toda essa conversa sobre viagens. Então, se você fosse o
Martin, onde levaria sua nova esposa para uma lua de mel romântica? Na
Austrália. — Martha bebericou o café, apertando a mão de Thomas como se
fosse sua âncora.
— Minha cabine na montanha.
— Ah, meu Deus. Alguma outra sugestão?
— Há muito tempo, quando Martin estava viajando pra algum lugar –
antes de Randall chegar –, fui a Sydney. Fiquei hospedado no porto e passei
uns dias explorando as galerias de arte. Acho que ele gostaria disso.
O rosto de Martha se iluminou.
— Perfeito! Vamos encontrar um hotel maravilhoso, com uma vista do
porto e mandá-los ao teatro, ou algo assim. A gente pegou um folheto de lá?
— Ela libertou a mão e folheou a pilha. — Acho que vamos ter de voltar na
agência e falar com o jovem de novo.
Thomas resmungou.
— Eu faço isso. Você, meu marido, pode ir à loja de departamentos e
começar a preparar a lista de presentes.
Ele resmungou outra vez, e Martha riu.
— Eu te amo.
— Tem certeza? Mandar um velho ir comprar presentes não é o que eu
chamaria de prova de amor.
— Vou chegar cinco minutos depois de você. Ou poderia me
acompanhar na agência… — Os olhos de Martha brilharam.
— Vou fazer a lista, então. Mas se eu comprar algo antes de você
chegar, não reclame. — Ele pegou a mão dela outra vez e levou-a aos
lábios.
—A de campo, Christie. A cozinha é linda.
— Tive muita ajuda de Barry. Quando ele ficou sabendo que eu queria
preservar o ar de antiguidade do local, mas com eletrodomésticos modernos
e uma vista melhor do jardim, ele colocou a mão na massa.
— Bem, vocês dois fizeram um belo trabalho.
— Obrigada. Agora, o pobre Barry deve desejar nunca ter me
conhecido.
Charlotte terminou de preparar o café e se acomodou do outro lado da
mesa da cozinha. — Como assim?
— Encontrei com ele hoje cedo no meu novo salão. Acho que o
assustei com meus conceitos Zen; alguns quartos para massagens privativas
e clientes exclusivos. Nos fundos, quero uma área bem tranquila, como se
fosse um resort. Onde as mulheres podem se reunir e conversar, ou se
deitarem sob o sol e relaxar. Tudo em volta de uma hidromassagem.
— Bem, parece interessante. Não sou muito uma pessoa de
hidromassagem, mas parecem populares.
— Vou te convidar para a inauguração VIP. Você vai poder testar
alguns serviços. Depois, me diga se é verdade que não gosta de
hidromassagens. — Christie sorriu.
Charlotte balançou a cabeça.
— Não vai funcionar comigo. Como está se sentindo agora?
— Dói um pouquinho ao redor das costelas e onde caí sobre a coxa,
mas nada excruciante. Prometo. Se ficar pior, vou visitar um médico… um
médico de verdade.
— Engraçadinha. Vou me lembrar disso se, algum dia, você precisar de
ajuda psiquiátrica. — Charlotte sorriu consigo mesma, terminando de beber
o café. Christie não respondeu. Seus pensamentos estavam em outro lugar, e
Charlotte a observou com atenção. — Eu estava brincando.
— Ah, eu sei. Mas você poderia me atender… quero dizer, se eu
precisasse conversar sobre… algumas preocupações?
— É claro. E como amigas? Quer conversar agora?
— Agora? Não, mas obrigada. Não sei se preciso disso, mas confio em
você – se um dia eu precisar.
— Tudo bem. Quer ajuda com o baú? Antes de me responder… Você
tem uma escada decente em algum lugar?

Q entrou na propriedade, fazia uma hora que Charlotte


tinha partido. Descobriram que trazer o baú para baixo não era uma tarefa
difícil com duas pessoas trabalhando juntas. Christie, desta vez, ficou na
metade do caminho, numa escada de alumínio nova e estável. Charlotte se
recusou a deixá-la voltar ao sótão, subindo com uma confiança que Christie
achou surpreendente.
— Queria ser um garoto na infância. — Ela colocou a cabeça para fora
da portinha de acesso e sorriu para a expressão de Christie. — Amo
escaladas.
Cinco minutos depois, o baú estava no corredor, com a tampa fechada,
e a escada foi devolvida à garagem. Charlotte ajudou Christie a posicioná-lo
em frente à lareira. As duas se afastaram.
— É bem velho. — Charlotte pegou o celular. — Posso tirar uma foto?
Conheço alguém que trabalha com antiguidades, e ela pode nos dar alguma
luz sobre a história do objeto… a não ser que você não concorde.
— Pode tirar. Só o vi uma vez antes e não faço ideia de onde veio, nem
de como acabou lá em cima, pra começo de conversa. Agora, não sei nem
mesmo se Thomas vai ficar contente com o que eu fiz.
Charlotte tirou fotos de alguns ângulos diferentes, então deu uma
palmadinha no braço de Christie.
— Ele nunca ficaria nervoso com você.
Mais tarde, lembrou-se daquelas palavras assim que Randall correu até
a porta da frente, esperando que fosse aberta, com o rabinho balançando.
Thomas, com certeza, tinha ficado nervoso com ela no passado, quando
Christie o perseguiu por uma estrada rural e, praticamente, exigiu que
voltasse com ela para reencontrar Martha depois de quase cinquenta anos.
Ele não conhecia a jovem naquela época, não a amava como Christie sabia
que era amada hoje. Mas e se esse baú trouxesse à tona um punhado de
memórias dolorosas?
— Oi! — A voz dele soou através da porta de entrada. — Esqueci as
chaves.
Christie correu para abrir a porta, piscando ao ver a pilha de folhetos
que ele carregava nos braços.
— Mas o quê…
— O bichinho da viagem me picou depois de Paris e Irlanda. —
Lançou uma piscadela a Christie, dando um passo para o lado e deixando
Martha entrar primeiro.
— Ah, Thomas — ralhou Martha, gentilmente, e ele sorriu. — Queria
um chazinho — disse à jovem, num tom que a fez se perguntar o que os
dois estiveram tramando.
— Vou colocar a chaleira no fogo.
— Obrigada, querida. Acho que preciso trocar de sapato.
— E eu, encontrar um lugar pra deixar isso — comentou Thomas, um
tanto alto demais. — Poderia fechar a porta, cachorrinho? Não?
Quase na cozinha, Christie olhou sobre o ombro, sorrindo. Randall
estava sentado aos pés de Thomas, com a cabeça inclinada, ouvindo.
Martha havia desaparecido. Encheu a chaleira e ligou o fogo. Então, pegou
três xícaras. Parecia que seria um dia de bebidas quentes e conversa.
— Ah, meu Deus!
Christie franziu a testa com a exclamação de Martha. Deu uma olhada
no corredor e viu a mulher encarando a sala de estar, com as mãos ao lado
do rosto.
O baú.
Martha não se moveu no tempo que levou para Christie e Thomas –
que emergiu da sala de jantar – alcançarem-na.
— O que é isso? — Thomas apoiou a mão no ombro dela antes de
acompanhar seu olhar. — Christie, isso é o que eu acho que é?
20- UM HOMEM ZANGADO

B atirou para dentro do carro e fechou a porta com tudo. Então,


abriu-a e fechou-a outra vez por precaução. Franzindo a testa, tentou
ignorar a aparição de uma mulher assustada na vitrine, dentro da loja, na
frente da qual ele havia estacionado: uma imobiliária. Saiu dirigindo
quando ela pisou na calçada. Olhou no espelho retrovisor. Ela não sabia o
quão tola parecia, naquela idade, com o cabelo preto cheio de mechas
ruivas e naquelas roupas justinhas? Queria gritar com ela. Com George.
Com os Ryan ladrões.
Em vez disso, agarrou o volante e seguiu por uma estradinha estreita
montanha acima.
Acalme-se.
Já era ruim o bastante Lottie estar contra ele. Pelo menos, ela havia se
controlado e mantido os seus pensamentos consigo mesma. Acreditava
mesmo que ele voltaria a Queensland e machucaria sua mãe? Ele até
gostava da senhora, mais do que Lottie. Nenhuma opinião, nem exigências.
Pegou-se no topo da colina, em frente da casa de Martin Blake.
Desligou o motor, mas continuou sentado, observando o mar. Décadas atrás,
seus ancestrais chegaram pelo mesmo mar, desembarcando a apenas
algumas horas dali. Com esperança em seus corações, povoaram Rivers
End. Foram pessoas que trabalharam duro e que transformaram a cidade no
que era hoje.
E foram arruinadas pelo seu esforço.
Tudo roubado por Eoin Ryan.
O relógio de pêndulo era uma conexão material entre Harry e Eleanor.
Precisaria ler o diário outra vez para compreender como havia parado nas
mãos da família de George Campbell. Teria sido um presente? Ou outro
roubo? O velho havia se calado quanto ao assunto, então Bernie se afastou,
pois queria fotografar o objeto e dar uma olhada muito mais de perto. Tudo
continuaria tranquilo até fazer isso.
O grasnido incessante das gaivotas adentrou seus pensamentos, e ele
girou a chave na ignição. Antes de se afastar, os olhos foram atraídos pela
casa de Martin. Onde os Blake se encaixavam nisso tudo? Naquela época,
já estavam ali? Exceto por algumas informações duvidosas quanto à linha
de trem que dava apoio à indústria madeireira, Bernie sabia muito pouco.
Outra pecinha do quebra-cabeça. Embicou o carro e desceu a montanha.
Ao passar pelos portões da Casa Palmerston, sua beleza o acertou em
cheio na barriga. Elizabeth White tinha sido uma ótima caseira. Havia
coberto a propriedade com amor, impedindo-a de cair no esquecimento
depois de tantos anos abandonada. Como alguém deixaria aquele lugar?
Desacelerou o carro até um rastejar. Moraria ali para sempre, apreciando os
quartos graciosos e os jardins esplêndidos, assim como Harry Temple o fez
um dia.
Quando o carro estacionou, apressou-se a sair, sentindo-se grato por
ninguém o ter visto. Tudo o que queria era abrir o diário. Em alguma
página, descobriria o que havia acontecido com o relógio de pêndulo e
talvez conseguisse entender como recuperá-lo.
21- UM VOTO SOLENE

1853
A , E R e seu advogado estariam de volta, desta vez, para
levar as chaves, chutá-lo para fora e arruinar sua vida. Era o que pensavam,
mas cada segundo da última semana deixou Harry um pouquinho mais
feliz, ao passo que os planos ganhavam vida.
A maior parte das suas preciosidades, ele escondeu antes mesmo da
primeira visita. Exceto duas: o baú de madeira de Eleanor e o relógio de
pêndulo. O baú iria embora com ele. O relógio, não.
Harry atendeu a porta da frente na primeira batida, abrindo-a por
completo para deixar que Sam e Walter Brown entrassem. Os irmãos eram
trabalhadores e focavam no mar, em vez de nas minas. Tinham ajudado
Harry no projeto secreto durante a construção da Casa Palmerston. Em
troca, presenteou-os com um pedacinho de terra. Confiava neles.
— Rapazes, não foram vistos?
— Não, senhor. — Os olhos de Walter se voltaram ao relógio contra a
parede. — Mas parece refinado demais pra gente. Deixe-me vendê-lo por
você e te dar o lucro.
— Não está à venda, rapaz. Lembre-se disso, por favor. Quando for da
sua família, é onde deve ficar. Por isso, preciso de uma promessa solene.
Walter e Sam assentiram um ao outro. Então, Sam disse:
— Enquanto nossa família viver, nunca será vendido.
— Vamos colocá-lo na carreta. Não tem porquê arriscarmos sermos
vistos.
Depois que Harry enrolou o relógio nos lençóis da própria cama, os
três homens, com muito cuidado e uma boa quantia de resmungos, levaram
o objeto até a carreta que os esperava. Deitaram-no, com cuidado, numa
cama de feno. Foi coberto por uma velha vela de navio e amarrado.
Harry se sentou no degrau mais alto e observou os rapazes
desaparecerem de vista. Doeu. Era um relógio de pêndulo perfeito,
admirado por todos que o viam, mas o homem nunca mais o contemplaria.
Nem Eoin.
Agora, restava apenas o baú.

E depois da meia-noite, Eoin Ryan bateu na


porta da frente da Casa Palmerston.
Chocado e um tanto bêbado, Harry cambaleou escadaria abaixo, com a
mente nebulosa. Pensou que ainda demorariam a chegar, que fossem dar a
ele uma chance de desocupar o lugar com dignidade. Ainda não havia
terminado de arrumar a mala, que estava aberta no piso abaixo. Precisava
tirar o restante das roupas da cômoda; os sapatos; o melhor terno. Eoin, com
certeza, deixaria que ficasse até o amanhecer.
Abriu a porta, e Eoin passou por Harry, seguido por dois dos seus
homens robustos – capangas, que estavam presentes, em silêncio, em todos
os jogos de poker, prontos para se livrar de qualquer um que discordasse do
mestre.
— Cadê as chaves?
— Estão na mesa da cozinha. Todas elas. Mas volte pela manhã, Eoin.
Deixe-me dormir até o amanhecer.
— Vá pra cozinha e pegue-as — ordenou Eoin a um dos homens.
Então, parou no centro do saguão de entrada e, sem pressa, girou para
observá-lo. — Você fez um belo trabalho, Harry. É uma casa linda, graças
às suas habilidades.
— Eoin…
— Cadê os seus pertences?
— Minha mala ainda não está pronta. Achei que viria no fim da tarde.
Eoin esperou o primeiro homem voltar da cozinha, com as chaves em
mãos. Então, olhou diretamente para Harry pela primeira vez.
— Vista-se. — Ele ergueu a mão, esperando as chaves. Logo, guardou-
as no bolso. — Acompanhem-no — disse aos homens. — Jogue todas as
roupas que ele tiver numa mala. Fiquem com ele. Quando isso tiver sido
feito, mostrem a ele onde fica a porta.
— Mas…
— Ande logo. — Um dos homens avançou em direção a Harry, e ele se
afastou.
— Escute, eu ainda não terminei… Eoin? Tenha piedade.
Eoin lhe deu as costas. Seus homens flanquearam Harry, e ele disparou
escada acima. Que se danem. Não havia tempo para mais uma caminhada
pela Casa Palmerston, nem para dizer adeus. Nenhuma outra chance de
verificar se havia trancado a porta secreta. Onde estava a chave? Parou em
frente à porta do quarto da filha. A porta estava entreaberta, e ele pôde ver o
baú. A chave estava ali dentro.
— Ande logo, ou vou te carregar. — Um dos capangas empurrou
Harry.
— Espere! Deixei uma coisa no quarto da minha filha. Algo pessoal,
que não estava na lista.
— Deveria ter pegado antes. É sua última chance, Temple.
Quis revidar, entrar correndo no quarto e pegar a chave preciosa. Em
vez disso, caminhou até o próprio quarto, com as costas retas e a cabeça
erguida. Ninguém o maltrataria. Era um cavalheiro, que ensinaria àqueles
três como um inglês se comportava. Ladrões injuriosos, ardilosos e
miseráveis. O nome de Eoin Ryan seria conhecido por toda a história, e seus
descendentes carregariam a cruz de suas maldades. O dia do juízo final
corrigiria o que estavam fazendo com ele agora.
Harry cantarolou enquanto vestia o terno marrom e o relógio de bolso
com a foto da esposa e da filha; botas lustrosas de couro e suspensórios;
chapéu; sobretudo. Agora, a mala tinha sido esmagada e fechada. Precisaria
encontrar alguém para cuidar das roupas. Com essa aparência, não
conseguiria nem mesmo uma entrevista de emprego. Repentinamente,
percebeu que era isso que precisava fazer.
Ainda cantarolando – o que, claramente, incomodou os outros homens
–, Harry passou pelo quarto da filha sem nem mesmo uma segunda olhada.
Encontraria um jeito. Eleanor o perdoaria por tê-lo deixado quando ficasse
sabendo do comportamento de Eoin. A chave não importava. Ele conhecia
outro jeito de adentrar o seu esconderijo.
22- UM LINDO JARDIM

— M facilitaria as coisas pra mim, seu idiota! — murmurou


Bernie ao diário, fechando-o. Apoiou-se na cabeceira, com as pernas
esticadas no edredom. Harry Temple estava começando a irritá-lo
A cada página, havia um novo problema. Um relógio de pêndulo
valioso, aparentemente, entregue aos recém-chegados com a instrução de
mantê-lo na família e não o vender. Bem, de alguma maneira, os Brown
tinham dado um jeito de empurrá-lo para George Campbell que,
obviamente, sabia que o relógio não lhe pertencia. Se Harry queria impedir
Eoin Ryan de apreciar o relógio, por que não arrancou os mecanismos?
Eu teria estragado a sua vitoriazinha.
Sim, teria ateado fogo na casa e deixado nada, senão cinzas.
Por que o baú era tão especial? De todos os itens da casa, era esse que
Harry queria levar consigo. Para Eleanor. Por um sentimento de culpa e
sentimentalismo? Não havia nenhuma outra descrição, exceto pelo fato de
ter vindo da Inglaterra com eles e de ter estado no quarto da filha.
Bernie abriu o diário na página que tinha acabado de ler. Usou o dedo
para acompanhar a frase enquanto a leu em voz alta:
— “Tão perto… Se eu apenas tivesse corrido para dentro antes dos
campanhas me pegarem, eu poderia ter guardado a chave no bolso sem eles
perceberem.” — Fechou o diário e jogou os pés no chão. — Você fica aqui.
— Depois de enfiar o diário sob o colchão, calçou os sapatos e foi procurar
Elizabeth.
A porta dos fundos estava aberta, e ele vagueou sob a luz do sol. Logo
atrás da casa, havia uma faixa de grama com um varal e um canteiro de
vegetais. Muito parecido com um quintal suburbano. Árvores demarcavam
o limite mais distante. Freixos vermelhos, olmos dourados e bordos
japoneses estavam entremeados por eucaliptos. Na linha direta da porta dos
fundos, uma trilha desaparecia entre as árvores. Bernie a seguiu.
A luz do sol foi filtrada pelas folhas, e o canto de um pássaro espalhou-
se pelo ar. A trilha serpenteava pelas árvores até uma abertura numa grande
lagoa. Era quase um lago pequeno, com todo tipo de plantas ao redor da
margem e na água – uma confusão de cores e aromas. Bernie parou na
beirada, e os olhos artísticos apreciaram a beleza das nuvens refletidas na
superfície calma. Patos nadavam e batiam-boca.
— Impressionante, né?
Bernie foi surpreendido quando Elizabeth saiu de trás de uma árvore,
com uma pilha de ervas daninhas nos braços.
— Ah, desculpa ter te assustado. Pensei que tivesse visto as minhas
ferramentas. — Ela largou as ervas num pequeno carrinho de mão e sorriu.
— Na verdade, não vi. Acho que eu estava com a cabeça em outro
lugar, imaginando quando tudo isso foi plantado.
— As árvores? Fora os Temple. Trouxeram um punhado de mudas com
eles da Inglaterra, mas só Deus sabe como as mantiveram vivas naqueles
navios antiquados! Martha me contou, antes de Keith e eu virmos dar uma
olhada na Casa Palmerston. Primeiro, viemos até aqui, nessa lagoa. Antes
mesmo de entrarmos. Quando vimos a pobre lagoa, toda sufocada por algas,
e essa árvore maravilhosa… bem, nos apaixonamos.
— Martha?
Elizabeth se sentou no banquinho, e Bernie se juntou a ela.
— Martha morou aqui até ela ter vinte e um anos. Você parece
intrigado com o lugar.
— E estou. — Bernie encarou a lagoa. — Talvez pelo mesmo motivo:
estou apaixonado. Como se eu devesse estar aqui.
— Entendo, e me sinto muito grata por nunca ter de partir.
Não se sinta tão à vontade, Elizabeth.
Ele se obrigou a sorrir para ela.
— Na verdade, quero fazer mais do que apenas fotografar a região.
Conversei com meu editor, e recebi sinal verde para montar um livreto da
Casa Palmerston – sua história, e uma mistura de fotos novas e antigas.
Com a sua permissão, é claro.
Elizabeth se iluminou.
— Que magnífico! Nesse caso, vai ter de conversar com a Martha e dar
uma passada na biblioteca.
— E você poderia me ajudar?
— É claro. Bem, com o pouco que sei.
Com onde o baú estava e com como conseguir ficar sozinho na casa
por algumas horas. Tudo em seu devido tempo.
23- UM MISTÉRIO LEVA AO OUTRO

M - no sofá, e Thomas se acomodou ao lado, segurando sua


mão. Christie chegou com um copo d’água e se ajoelhou ao lado de Martha,
e a preocupação franziu sua testa.
— Aqui, um pouquinho d'água pra você. — Christie ofereceu o copo.
— Desculpa. Desculpa mesmo.
Martha encarou o baú. Como ela não aceitou a água, Christie repousou
o copo na mesinha de centro e segurou a mão dela.
— Por favor, pare de tremer, titia. Vou me livrar do baú agora
mesmo…
— Não! Você não entende. — Martha apertou a mão de Christie.
— É culpa minha — disse Thomas. — Eu estava curioso sobre como
foi parar no sótão, mas, como a Christie disse, podemos nos livrar dele. Não
quero te ver chateada, querida.
— Era aqui que as cartas estavam escondidas? Com os anéis?
Thomas trocou um olhar confuso com Christie. Martha continuou:
— Era isso que estava no sótão? Tom?
— Por isso está tão agitada?
Suspirando fundo, Martha balançou a cabeça.
—Não sou uma garotinha tola e cheia de rancor. Quero tomar a água
agora, por favor.
Christie entregou o copo a ela. O choque havia desaparecido, e o
tremor, parado. Martha devolveu o copo.
— Pode abri-lo?
— Está vazio.
— Por favor.
— Vou pegar a chave. — Christie se levantou e seguiu para a cozinha.
— Por favor, não culpe a Christie. Fiquei curioso, porque sabia que os
meus pais nunca tiveram nada assim e não consegui entender como isso foi
parar lá em cima. O amor dela por resolver mistérios deve estar me
afetando.
De repente, Martha sorriu para Thomas.
— Vou complicar as coisas ainda mais. — Ela soltou a mão dele
quando Christie voltou com o molho de chaves da casa. — Agora, querida,
abra a tampa e leia a gravação no fundo do baú.
— Por que sinto como se eu estivesse num show de mágica? —
Christie inseriu a chave de esqueleto e a girou. Num clique, o baú foi
destrancado. Ela abriu a tampa. — Ah, nunca vi isso antes. Se bem que eu
só tinha uma lanterna da outra vez.
— Christie!
— Desculpa, tia. Aqui diz “Londres…”
— “1840” — complementou Martha.
Thomas e Christie a encaram, com a boca aberta.
— Era da Dorothy — disse Martha, baixinho. — Mamãe deu a ela no
aniversário de treze anos, porque ela o amava muito. Antes disso, ficava no
primeiro quarto de hóspedes.
Todos os três encararam o baú, em silêncio. Christie estendeu a mão
para sentir a inscrição entalhada. O interior era liso, exceto pela palavra e
pelos números.
— Martha, quando Dorothy saiu de casa, ela levou o baú com ela?
Você lembra?
— Não, Thomas. Naquela época, ela só quis saber de móveis
modernos e deixou isso no quarto. Tinha me esquecido dele. Nem
considerei que o baú escondido no nosso sótão pudesse ser o mesmo. Como
ele chegou aqui?
— E como foi parar lá em cima? Na verdade, falando nisso… Christie,
como você o trouxe pra baixo? — Thomas franziu a testa. — Deveria ter
esperado.
— Não é muito pesado.
— Ainda assim. Se tivesse se machucado… Que cara é essa?
— Nada. Charlotte veio me visitar, então ela me ajudou. Não precisa se
preocupar. — Christie mordeu o lábio quando fechou a tampa.
— Bem, é um belo mistério. Vai conseguir resolvê-lo, Christie? —
perguntou Thomas.
— Tenho um casamento pra planejar e um negócio pra criar, então os
mistérios terão de esperar um pouquinho. Querem que eu prepare um
almoço tardio? Quer dizer, se ainda não comeram. Podemos decidir o que
fazer com isso mais tarde.
— Vou te acompanhar, querida. — Martha se levantou e seguiu
Christie para fora do cômodo.
Thomas as observou partir e voltou-se para o baú. Tinha de ser
Dorothy quem o colocou no sótão, mas por quê?
—B , nada assim! — Daphne deu a volta no balcão. —
Abrir, fechar. Abrir, fechar. Nem mesmo fechar, fique sabendo, mas bater
com tudo. Com tudo!
John Jones deu um sorriso fraquinho para a esposa da janela, onde
atualizava os anúncios de casas à venda.
— Querida, não tem porquê ficar tão incomodada com um estranho.
Talvez a porta do carro não feche direito.
Daphne parou de repente, com as mãos no quadril.
— Era um carro quase novo, por que a porta não fecharia? A não ser
que ele sempre a bata com tudo e acabou quebrando-a.
— Deixe isso de lado. Provavelmente, nunca mais vai vê-lo.
— Não podemos ser complacentes, querido. Não depois daquelas
pessoas horríveis terem invadido as nossas casas. Tentaram assassinar a
nossa Christie! Ten… tentaram te chantagear! — Daphne irrompeu em
lágrimas. John largou o que estava fazendo e correu para o lado dela,
envolvendo-a em braços firmes.
— Ei, o que está acontecendo?
— Pensei que eu fosse te perder.
— Eu? Nunca. Venha, vamos preparar um chazinho. — John se
inclinou para olhar para Daphne. — Ah, seu rímel escorreu. Vá lavar o
rosto, enquanto eu coloco a chaleira no fogo.
Daphne assentiu, não confiando em si mesma para dizer algo. Com
outro apertão firme de John, ele a soltou.
— Pode vir. Vou ver se ainda temos alguns daqueles biscoitos de
gengibre que você fez.
John seguiu para a pequena cozinha nos fundos, e Daphne foi ao
banheiro, fungando para evitar que as lágrimas caíssem. Qual era o seu
problema? Fazia meses desde quando lidou com o capanga de Derek.
Rupert tinha invadido a casa deles e destruído o cômodo cheio de
colecionáveis, mas a cada dia, desde então, ela foi forte e positiva. Agora,
um incidente tolo a transformara numa bagunça.
Encarou-se no espelho. As lágrimas tinham manchado sua maquiagem,
não apenas o rímel. Os olhos estavam estranhos: arregalados e assustados.
Controle-se, Daph!
Meu Deus, era a pobre Christie quem quase havia morrido, mas ali
estava ela, fazendo um alvoroço bobo por algo mínimo.
Hora de agradecer pelas bênçãos.
Assim como a mãe a havia ensinado a fazer quando tudo parecia
perdido – a casa, o trabalho do pai e os irmãos doentes.
— John me ama, e eu o amo. — Sem dúvida, essa era a sua maior
benção e alegria. Que homem maravilhoso, com um rosto lindo e seu
jeitinho com as palavras. Um bom homem de família que a tratava de igual
para igual em tudo.
Daphne tentou sorrir. Falhou.
— Tudo bem. Tenho uma casa confortável e um trabalho incrível. —
Era verdade. Sua casa era, na realidade, um lar cheio de recordações, planos
e promessas. Estavam naquela cidadezinha há mais de vinte anos, amando
cada segundo. Mas algumas dessas memórias tinham sido destruídas:
cristais lindos do casamento e souvenires da lua de mel. As lágrimas
brotaram outra vez, brilhando em seus olhos. A água gelada no rosto
ajudou. Coisas eram apenas coisas, eram as pessoas que importavam.
— Meus amigos me apoiam e são minha âncora — disse ela, com
vontade. Elizabeth, Martha e Sylvia eram suas amigas mais próximas hoje,
desde aquela noite na praia. Christie era muito especial. Uma garota linda
que parecia frágil no funeral da avó, mas que foi tão forte quanto uma pedra
quando se posicionou contra o nojento do ex-noivo. Sim, amigos eram
importantes. Trev, Barry, George. Pensando bem, todos os comerciantes.
— O chá está pronto, amor — chamou John.
— Mais uma! — disse Daphne para o reflexo. — Tenho um bom
coração que é uma benção para mim e para todos ao meu redor. — Essas
eram as palavras da mãe, ouvidas de novo e de novo enquanto crescia,
ecoando pelos anos desde que a tinha perdido.
Sentindo-se mais calma, Daphne desligou a luz e foi encontrar o
marido. Exibia um sorriso amplo, mas, lá no fundo, a dor perdurava.

C da manhã e da caminhada de ida e


volta à casa de campo de Christie, Charlotte só queria um copo da limonada
gelada de Elizabeth quando chegou na Casa Palmerston. Então, enviaria as
fotos do velho baú à amiga em Brisbane para ver se conseguiria ajudar
Christie a descobrir mais sobre o passado do objeto ou, pelo menos, sua
origem.
Não encontrou sinal algum de Elizabeth, então tirou um copo grande
do armário da cozinha. Um som a fez parar: um rangido. Outro rangido.
Ficou parada, com o copo na mão. A porta da despensa se abriu um
tantinho e, depois, mais um tantinho antes de Bernie aparecer. Sem notar
Charlotte, fechou a porta com cuidado antes de se virar.
— Meu De…
— O que você está fazendo, Bernie?
Com a mão no coração, ele se apoiou na porta.
— Você não deveria assustar as pessoas assim!
— O que você estava fazendo na adega? A Elizabeth está com você?
— Ela está no jardim. Não me entenda mal. — Bernie caminhou até a
janela e olhou para fora. — Ela está me contando a história da Casa
Palmerston e me deixou dar uma olhada no lugar e tirar quaisquer fotos que
eu quisesse para o meu novo livro.
— Não estou vendo nenhuma câmera.
Bernie saiu da janela, passando por Charlotte e pegando um copo para
si.
— Não é problema seu, né?
— Estou te avisando…
— Me avisando? — Ele se inclinou, encurralando Charlotte contra a
mesa. — Eu tomaria cuidado, Lottie.
— Essas pessoas não merecem suas mentiras, Bernie. Por que não
conta a elas porque realmente está aqui? — O encarou, com os dedos
afundando na mesa de madeira.
— Por que você não me diz por que estou aqui, já que parece saber de
tudo? — Com desprezo, o homem se afastou. — O que você acha que sabe
sobre mim?
O coração de Charlotte acelerou, e ela colocou a mesa entre eles.
— Você foi meu paciente por um longo tempo e sempre falava dessa
cidade – dessa casa.
Ele abriu a geladeira e a estudou.
— Exatamente. Você precisa se lembrar de que eu era o seu paciente.
O que vem acompanhado de um certo privilégio, doutora. — Sem tirar a
limonada dali, fechou a porta com tudo. — Cansei de te lembrar disso.
— Está me ameaçando?
— Entenda como quiser, mas fique longe de mim, Lottie.
Charlotte repousou o copo na mesa. A paciência dele era curta, ela
sabia por experiência própria, mas ele sempre recuperava o controle
rapidamente e se desculpava. Sua criação afetava suas escolhas até hoje, e
parte dela era fascinada pelo sentimento profundo de confiança que ele
exibia.
— Limonada parece uma boa opção, mas e o chá? — Elizabeth – ainda
usando luvas, chapéu e óculos escuros de jardinagem – chegou. Olhou de
Charlotte para Bernie. Depois, tirou as luvas e os óculos. — Tudo bem por
aqui?
— Acho que minha cabeça está começando a doer. Melhor ficar um
tempinho no quarto. — Bernie devolveu o copo ao armário e partiu.
— Preciso tomar um banho, Elizabeth. Caminhei muito hoje, desculpa.
— Charlotte tentou sorrir.
Eu queria tanto falar com você.
Mas o que diria? Que Bernie acreditava que a Casa Palmerston era dele
por direito?
— Charlotte, beba algo primeiro. Não vai querer acabar desidratada
num dia quente.
— Tudo bem, mas prefiro levar a limonada comigo, se você não se
importar. — Sem esperar uma resposta, Charlotte pegou o copo e abriu a
geladeira. Conversar sobre aquilo seria um erro.
24- TREV E CHARLOTTE

C frustrado, Trev se afastou da mesa. Nada sobre Bernard


William Cooper. Ainda assim, algo estava errado. Era o que seus sentidos
lhe diziam, mesmo essa sensação tendo como base o apelo repentino nos
olhos de Charlotte. Noutra noite, quando tinha parado o jovem Cooper por
excesso de velocidade, não havia nada errado. Agia como um sedutor, mas
não havia nenhum mandado ou notificação em sua habilitação ou carro. Viu
o homem mais algumas vezes desde então: a pé, com diversas câmeras no
pescoço.
Coçou a cabeça. A não ser que Charlotte quisesse se explicar, havia
muito pouco a ser feito. Estaria sendo superprotetor ou imaginando coisas?
Gostava tanto dela, e tudo o que seria preciso era um simples convite de
Charlotte para ele se apaixonar de corpo e alma.
Idiota.
Ela não o via como um futuro parceiro. Na verdade, nem mesmo como
amigo. Sempre havia algo a impedindo.
O que realmente sabia sobre Charlotte Dean? Ela era uma psiquiatra de
algum outro estado. Amava cachorros. Sorriu, lembrando-se da noite na
praia sob a tempestade, quando ela cuidou da exaustão de Randall.
Charlotte tinha mãos firmes e uma atitude que não tolerava a falta de noção,
o que ele apreciou diante do quase-pânico que os rodeava.
— Você parece preocupado.
Trev pulou ao ouvir a voz de Charlotte soar do outro lado do balcão.
Tão perdido em pensamentos, não a ouviu entrar pela porta da frente. Há
quanto tempo ela estaria ali?
— Oi. Não te ouvi chegar. — Ele se levantou.
— Ainda bem que não sou um cara do mal. — Ela se apoiou sobre o
balcão, com certa diversão nos olhos.
— Ah, eu tenho um radar especial para os caras do mal. — Aqueles
olhos eram lindos. Trev se virou de frente para ela, ciente do sorriso bobo
no rosto. — Como foi a visita?
Ela franziu a testa.
— A que você fez a Christie?
— Ah, foi interessante. Cheguei na hora certa, na verdade. Ela resolveu
cair do sótão, e o pobre Randall não fazia ideia de como usar o telefone
para chamar ajuda.
— Ela o quê? Ela está…
— Só perdeu o fôlego. Provavelmente, vai ficar com algum roxo, mas
não temos essa intimidade. Enfim, não estou aqui pra te contar histórias
sobre a Christie. Você teria alguns minutinhos para conversarmos?
— Vai ser uma conversa profissional ou social? — Trev gesticulou
para que Charlotte desse a volta no balcão e se aproximasse da sua mesa.
Ela se sentou na cadeira, cruzando as pernas.
— Um pouquinho de cada.
— Café?
— Já bebi café o suficiente hoje, mas obrigada.
— Água? Laranjada?
— Trevor, não quero nada.
Ele assentiu, reclinando-se na cadeira e dando a ela tempo para falar.
Charlotte olhou ao redor, e seus olhos não mais apresentavam a diversão de
antes. Eles sempre eram cautelosos, e isso irritava Trev demais.
— Eu tenho… um amigo. Com uma pergunta. Tudo bem se eu te
perguntar algo?
— Nunca vi problema em fazer perguntas. Para um amigo ou qualquer
pessoa.
— Talvez isso seja um erro.
— Charlotte, pergunte. Não precisa ter medo de mim.
Ela quase sorriu.
— Tudo bem. Meu amigo está preocupado com uma terceira pessoa.
Uma pessoa que pode ter certas… intenções, que não são das melhores. Ele
não tem provas, nem nada. Exceto uma sensação. O que você faria?
— Você não me deu informações o bastante. Seu amigo tem alguma
relação com a terceira pessoa? Foi algo do passado que o fez se sentir
assim?
— Nenhuma relação! É claro que não. — Charlotte deve ter percebido
o quão brusca foi sua resposta, pois respirou diversas vezes com pressa. —
Quero dizer, não uma relação pessoal. Mas ele tem um certo conhecimento
sobre essa pessoa.
— Está falando em intenções de machucar seu amigo?
Charlotte abriu a boca e fechou-a outra vez. Havia entrelaçado os
dedos com força e, quando viu que Trev olhou para suas mãos, separou-os e
os tirou da vista dele.
— Acho que não. Não dessa maneira. Talvez financeiramente, ou com
relação a um terreno.
— Sugiro que seu amigo venha conversar comigo. Ou com alguém
como eu. — Trev manteve a voz equilibrada. — De preferência comigo.
— E se o meu amigo não puder fazer isso?
— Por quê?
— Porque fazer isso seria quebrar um acordo legal.
Trev se inclinou para pegar uma caneta. Encontrou um pedaço limpo
de papel sob uma pilha de dossiês.
— Me conte. A pessoa um – vamos chamá-lo de “Mocinho” – conhece
a pessoa dois. Vamos chamá-lo de “Vilão”, tudo bem? — Ele desenhou dois
bonequinhos-palito e os nomeou, não querendo olhar para Charlotte, caso
estivesse rindo dele. — Então, o Mocinho sabe de algo sobre o Vilão. —
Trev os conectou com uma linha. — O Vilão deve estar planejando algo…
do mal.
Agora, olhou para Charlotte. Ela observava a mão dele, com o rosto tão
preocupado, que Trev sentiu vontade de se aproximar e acabar com as
rugas. Em vez disso, escreveu “perigo” sob o Vilão.
— O Mochinho quer fazer algo. Tem boas intenções, mas algo o
impede de realizar o que disseram que deveria fazer. Vamos chamar isso de
“Ética”. — Trev sentiu Charlotte ficar tensa. — Uma boa pessoa com ética
fica preocupada.
— O que você está fazendo?
Trev ergueu os olhos e encarou Charlotte.
— Nada nunca é tão simples quanto parece, sei muito bem. Aqueles
bonequinhos-palito não significam nada. O ponto aqui é que, se há qualquer
risco de o Vilão machucar alguém, ou alguma coisa, então o Mocinho tem
de encontrar um jeito de contar a quem possa ajudar. Alguém como eu,
Charlie.
— Eu disse que era um amigo. — Seus olhos nunca deixaram os dele.
Havia um apelo silencioso neles.
— Deixe-me ajudar.
Num movimento repentino, Charlotte se levantou.
— Desculpa. Isso foi um erro, eu não deveria ter vindo aqui.
— Por quê? — Ele continuou sentado, apesar de querer puxá-la para
seus braços e abraçá-la com força. Tranquilizá-la o bastante para confiar
nele e falar abertamente. — Não vou trair sua confiança.
Os olhos dela se encheram de lágrimas.
— Mas esse é o problema — disse ela, não mais alto do que um
sussurro. Logo em seguida, Charlotte levou a mão até a boca.
— Ei, não chore. — Quando Trev se levantou, Charlotte balançou a
cabeça e se virou, saindo correndo pela porta ao lado do balcão. — Charlie,
espere!
A porta da frente se fechou num baque. Ele deveria tê-la ouvido, não
desenhado bonecos. Sua intuição de mais cedo estava certa e, quer ela
gostasse ou não, Trev iria garantir que Charlotte Dean ficasse segura.
25- PERTO DEMAIS DA VERDADE

N lugar do penhasco onde havia se sentado dias antes, Bernie


observou um iate navegando. Havia muitos barcos luxuosos por ali, e ele
tinha visto onde todos atracavam: no próximo porto, Willow Bay. Elizabeth
disse que os donos eram, em sua maioria, turistas de fim de semana, que
tinham casas num dos novos condomínios. Tudo certo para alguns, com
dinheiro no qual se banhar, enquanto outros lutavam por cada nota.
Desta vez, veio mais preparado. As horas gastas no laptop, vendo todas
as fotografias e mapas locais, ajudaram-no no planejamento. Uma visita a
uma loja de materiais em Warrnambool o equipou com um arreio e botas
adequadas. Com medo de interagir com os funcionários amigáveis demais,
chutou qual seria o tipo certo de corda e de freio, pegando um conjunto
disso e luvas de escalada. Não se importou com o capacete. Não seria uma
descida longa.
O coração de Bernie acelerou com a animação. A corda tinha sido
presa ao redor de um grande arbusto. Tudo de que precisava era que o iate
passasse por ali. E de mais um gole. Pegou a garrafa d’água e bebeu, cheio
de sede. Água com um toque de vodca. Primeira coisa pela manhã e última
à noite. Simplesmente para aliviar a tensão.
A bebida acabou, e ele jogou a tampinha de volta à mochila, que estava
ao lado, no chão, e amassou a garrafa antes de jogá-la no arbusto um pouco
mais longe dali, na lateral do penhasco. Abaixo, o oceano espumava contra
a base da fraga. Daquela altura, com o sol acima, via as rochas logo abaixo
da superfície. Ninguém gostaria de cair ali.
Calçou as luvas.
Inspire. Expire. Virou-se e se abaixou, pouquinho a pouquinho. Num
primeiro momento, os pés chutaram o ar, instintivamente procurando um
apoio. Então, como se estivesse emperrada, a corda se recusou a descer
mais. Escutou um som acima. Um latido.
Pegou uma pedra e a segurou. Não houve mais latidos, apenas gaivotas
e o oceano. Ouviu seu poder: ondas batendo contra a lateral do penhasco,
jogando gotículas de vapor para cima.
Empurrou-se para frente e olhou para baixo. Mal visível na rocha,
havia uma abertura. Talvez a uns dez metros abaixo. Mas a corda não o
acompanhava e, resmungando, lembrou-se do tamanho que havia
comprado. Não chegava nem perto de ser o bastante.

A afastou do quarteirão de lojas, Charlotte passou a correr.


De alguma maneira, permanecia tão inexpressiva quanto uma parede de
tijolos desde que havia saído da delegacia, mas logo cedeu ao pânico. As
calçadas se transformaram numa trilha de terra na periferia da cidade. Em
seguida, não encontrou nada, senão grama. O pulsar do coração encheu seus
ouvidos, e lágrimas cegaram os olhos, mas ela seguiu em frente,
desesperada para deixar Rivers End para trás. Para deixar Bernie e suas
intenções malignas para trás. E Trevor. Com seus bonequinhos-palito e
intuição espantosa.
Uma estradinha surgiu, e Charlotte entrou nela, afastando-se do tráfego
que ia e vinha da cidade. Estendia-se adiante, comprida e reta. Era a estrada
na qual estava perdida quando conheceu Trevor. Sem fôlego, cambaleou e
tentou andar, mas parou e caiu na grama. Deitou-se de costas, enxugando as
lágrimas e respirando fundo. O céu estava azul e límpido, sem nenhuma
nuvem.
Um. Inspire. Expire. Dois.
Profunda e lentamente. De novo.
Um. Inspire. Expire. Dois.
Charlotte focou no subir e descer do peito. Abriu as duas mãos e
esparramou as palmas no chão, imaginando-as se tornando parte da terra.
Submersa na terra, em harmonia com a natureza.
Um. Inspire. Expire. Dois.
O mantra e a respiração sempre funcionavam.
Seu corpo e mente estavam sob controle outra vez. Ela se sentou. Uma
vaca solitária a observava do outro lado da cerca, com olhos castanhos e
calmos. Que humana tola, né? Charlotte se levantou, com as pernas
trêmulas depois da corrida. A vaca parecia amigável, então, acariciou a sua
testa aveludada antes de se encostar na cerca.
O que ela faria? Bernie estava bisbilhotando pela propriedade, mas
seria com más intenções? Sua obsessão pelo diário que a mãe lhe dera
quando criança era doentia, mas dificilmente perigosa. Como paciente, ele
nunca demonstrou nenhuma indicação de violência, apenas uma crença de
que lhe era devido algo por conta de acontecimentos de mais de um século
atrás. Agora, Bernie estava ali – porque ela estava. Charlotte parou de
atendê-lo profissionalmente há um ano, então o homem ter ido visitar sua
mãe era bizarro. Na verdade, era isso o que mais a preocupava. Um limite
que ele não deveria ter ultrapassado, mas não queria dizer que ela poderia
fazer o mesmo.
Ética. Foi o que Trevor disse, desenhando aqueles bonequinhos-palito
ridículos. Confidencialidade. Era isso o que ele queria ter dito, Charlotte
sabia. Sem a crença genuína de que Bernie estava ali para causar algum
dano, não poderia trair a confiança dele. Bem, ela encontraria um jeito de
redirecionar os interesses de Trevor, pois a vida privada dela era complicada
e incerta demais para deixar que o homem se aproximasse. Não importava o
quanto ele fizesse seu coração acelerar.

— R , coelhinhos em paz! — gritou Christie, da


varanda da casa de Martin, procurando a chave no bolso do jeans. Assim
que atravessaram o pasto, ele saiu correndo pela trilha no penhasco. Ela o
ouviu latir animado, como sempre fazia quando encontrava algo de que
gostava. Se Randall não se apressasse, iria buscá-lo, pois não teria tempo de
dar um banho no cachorro se ele decidisse escavar em busca de um coelho.
Christie abriu a porta de correr e deixou-a aberta, entrando na sala de
estar fresca e escura. Martin havia fechado as cortinas antes de partir há
quase uma semana, então a mulher as afastou para deixar a luz do sol entrar.
Ele voltaria amanhã, apesar de ainda não saber o horário certo, de acordo
com a última mensagem de texto.
Quando foi até a cozinha, Randall entrou trotando, com as orelhinhas
erguidas e cheias de expectativa.
— Desculpa, cãozinho. Ele volta logo. — Não convencido, Randall
desapareceu noutro lado da casa. Christie deu uma olhada na geladeira,
tirando dali leite, frutos do mar e frutas velhas. Deveria ter feito isso muito
antes, em vez de jogar tudo no lixo agora. O leite foi derramado no ralo, e
ela jogou o resto na lixeira, que já exalava um cheiro terrível.
Depois de esvaziá-la e substituir o saco plástico, deixou o saco do lado
de fora da porta para quando fosse embora. Voltando à cozinha, verificou os
armários e rapidamente fez uma lista de compras. Pela manhã, voltaria com
produtos frescos e algumas flores. Sorriu. Quando se tornasse a Sra.
Christie Blake, plantaria um punhado de flores e encheria a casa com elas.
De qualquer maneira, precisaria das plantas para o salão – levaria a beleza
do ar livre para as mulheres de Rivers End.
Christie encontrou Randall no quarto de Martin, sentado ao lado da
cama, com a cabecinha apoiada na pontinha do edredom.
— Vamos, você ainda me tem. E Thomas e Martha. Vamos encontrá-
los.
Randall a seguiu para fora com muito menos entusiasmo do que
quando havia entrado, e Christie ficou triste por ele. Martin até podia
brincar sobre Randall adorar mais Thomas – e até mesmo Christie – do que
ele, mas não era verdade. A conexão entre o cachorro e o dono era
extraordinária, e Randall sentia falta dele.
Eu também.
Trancou a porta da frente ao saírem, pegou o saco de lixo e seguiu ao
estúdio.
Ali, a lixeira estava quase transbordando com tubos vazios de tinta.
Tirou alguns momentos para afofar as almofadas do sofá, dar uma olhada
no que havia na pequena geladeira e varrer o chão ladrilhado. No meio do
estúdio, sob a maior das claraboias, havia um lençol torto em cima de um
cavalete. Com o saco de lixo numa das mãos, Christie tentou arrumar o
lençol. Em vez disso, tudo caiu no chão. Suspirando, soltou o saco para
recolher o material.
Martin era reservado quando se tratava de pinturas inacabadas, exceto
quando queria uma opinião. Nunca passou pela cabeça de Christie olhar sob
o lençol, nem bisbilhotar, se encontrasse Martin trabalhando. Mas,
segurando o cantinho do tecido, prestes a recolocá-lo sobre o cavalete, foi
incapaz de desviar os olhos do trabalho em andamento.
Em suas tintas a óleo costumeiras, havia um autorretrato. Martin. O
cabelo preto colado no crânio, ajoelhado no rasinho do oceano. Em seus
braços, como um bebê, estava Christie, seu cabelo longo era arrastado pelo
oceano, enquanto a cabeça se apoiava no peito dele. Os olhos da mulher
estavam fechados… ou estariam um tantinho abertos? Com a cabeça no
colo dela, Randall também parecia ensopado. Seus olhos encaravam o rosto
de Christie, assim como Martin. Estavam no meio de uma tempestade, com
um céu roxo e preto, iluminado por relâmpagos, atrás de Martin.
O lençol escorreu dos dedos de Christie, e ela se afastou. A mão voou
para a boca e sufocou um choramingo baixinho e inconsciente. Era tão
lindo quanto assustador.
Desde a noite da tempestade, da noite em que o Mar de Jasmim quase
afundou, e o oceano quase reivindicou a vida dela e de Randall, vislumbres
de medo assombravam Christie. Nunca lhe ocorreu que Martin estaria
experienciando a mesma coisa.
Era tudo culpa minha!
Havia trazido Derek para a cidade, se recusado a fazer as pazes e
vender a casa de campo a ele. A raiva subsequente do homem poderia ter
destruído tudo. A dor no rosto de Martin na pintura era algo que Christie
não aguentaria ver.
26- UM BAÚ E UM RELÓGIO DE PÊNDULO

M os dedos pelo baú, agora na mesa da sala de jantar.


Lembrava-se de cada detalhe da superfície antiga, até mesmo do cheiro da
madeira. Quando Dorothy era a irmã mais velha, a mais nova amava
distrações, e Martha podia brincar com as bonecas que ficavam guardadas
ali dentro. A cada ano, Dorothy brincava menos e menos, apesar de Martha
saber que a irmã ainda cantava para as bonecas vez ou outra.
Se Dorothy tivesse tido a permissão de realizar o seu sonho e ser
cantora, quão diferente a vida das duas teria sido? A mamãe parecia não se
importar com o que Martha fazia no tempo livre – na maior parte, gasto
com as meninas do bairro –, mas Dorothy tinha potencial. Seu papel na
família era visto com seriedade, e a expectativa de que ela se tornaria uma
mulher de negócios manteve sua atenção longe dos estudos. A mamãe
liderava a família e queria que Dorothy ficasse em casa, estudando para
elevar a empresa madeireira a um novo patamar.
— Oi? Christie?
— Ah, Charlotte! — Martha correu até a porta da frente, pois a porta
de tela estava trancada. Charlotte tinha parado no último degrau.
— Oi, Martha.
Martha abriu a porta para que Charlotte entrasse.
— Sinto muito, mas Christie saiu. Ela foi andando até a casa de Martin
e levou o Randall junto.
— O Martin já voltou?
— Amanhã, eu acho. Ela disse algo sobre dar uma olhada na geladeira,
mas acho que se sente mais perto dele quando está lá em cima.
— Ah, tudo bem. Pode avisá-la de que consegui mais informações
sobre o… — A voz de Charlotte minguou.
— Baú? — Martha caminhou até a sala de jantar e gesticulou,
chamando Charlotte. — Christie disse que você a ajudou a trazê-lo para
baixo. Obrigada por isso.
— Não foi nada. Acho que ela deve estar se sentindo melhor,
considerando que foi andando até a casa do Martin.
— Melhor? — Martha inclinou a cabeça. — O que aconteceu? Não me
olhe desse jeito, por favor.
— Nada de mais, só um deslize nos degraus do sótão.
— E?
— E uma batidinha quando caiu no chão. Ficou sem ar.
Provavelmente, ganhou um roxo na lateral, mas não se contundiu. Só ficou
envergonhada.
— Tudo por conta disso. — Martha se voltou para o baú. — E você
tem informações sobre ele? Gosta de antiguidades?
Charlotte pegou o celular.
— Eu não, mas uma amiga, sim. Ela tem um negócio muito bem-
sucedido e ficou animada com as fotos que mandei. Hm. Christie disse que
não teria problema, mas se você preferir que…
— Menina, pare de se preocupar. — Martha repousou a mão no braço
de Charlotte. — Venha se sentar comigo, estou interessada no que sua
amiga tem a dizer.
Sentaram-se na outra ponta da mesa, e Charlotte leu a mensagem de
texto em voz alta:
— “Muito bem feito e incomum, pois me parece à frente do tempo. O
topo arredondado só virou moda no finalzinho dos anos 1800, mas a base
combina com as peças inglesas da primeira metade do século.
Provavelmente, uma peça única de uma família rica. Um presente ou
encomenda.”
— Ela é muito boa. Foi feito em 1840, em Londres.
— Ah. Então você conhece a história? — Charlotte deixou o celular de
lado.
— Era da minha irmã, Dorothy. Quando éramos crianças, é claro, e
morávamos na Casa Palmerston.
— Então, como veio parar aqui? Quero dizer… Desculpa, isso não é a
minha conta.
— Continua sendo um mistério. Thomas quer investigar, mas temo que
as respostas podem machucá-lo. Uma das minhas melhores amigas se uniu
a Dorothy, e criaram uma situação que parecia muito ruim. Muito ruim
mesmo. E deram um jeito de eu ver tudo. Depois de Tom e eu seguirmos
por caminhos diferentes, houve um tempo em que poderíamos ter nos
reencontrado. Ele até mesmo me esperou por meses, todo dia pela manhã
no finzinho do píer na praia.
— Ele fez isso? O que impediu que vocês fizessem as pazes?
— Todas as cartas que ele me escreveu e mandou foram interceptadas
por Dorothy. Nunca as vi, nem ele, depois disso, não até Christie descobrir
que estavam escondidas numa caixa de sapato nesse baú. Frannie mentiu
pra ele, Dorothy mentiu pra mim, e elas ganharam. Deixamos que nos
afastassem por quase cinquenta anos.
Um tempo perdido para sempre.
— Você é tão corajosa, Martha — sussurrou Charlotte, seus olhos
arregalados.
Martha riu.
— Não, menina. Corajosa, não. Sortuda. Tenho muita sorte de ter
fechado o ciclo e voltado ao meu lugar – ao lado do homem que amo.

N , Thomas e George estavam sentados, um de


cada lado, do longo balcão de vidro na joalheira. Cada um segurava um
copo quase vazio de uísque da seleção pequena, mas muitíssimo
excepcional de George. Atrás deste, na parede, havia todo tipo de relógio
tiquetaqueando um tantinho fora de ritmo.
No cantinho, o relógio de pêndulo badalou, sempre com pressa, quatro
vezes, despertando Thomas dos seus pensamentos.
— Minha mulher deve estar me esperando em casa.
— Você veio me ver, ou tem uma lista de compras em algum dos seus
bolsos? — Os olhos de George brilharam. — Como uma ou duas vezes
antes.
— Minha esposa não precisa de outro presente cintilante até o Natal,
então é claro que vim te ver. E esse uísque. — Encarou o copo.
— Talvez eu devesse ter te dado uma garrafa no dia do casamento.
Teria te salvado da necessidade de suportar minha companhia para bebê-lo.
— Na verdade, estava pensando num presente para as crianças.
Sem perguntar nada, George reencheu os dois copos.
— Algo para a casa?
— Martha quer comprar uma lua de mel pra eles. — Thomas tomou
um golinho da bebida. — Obrigado.
— É uma boa ideia.
— Sim. Estamos pensando em Sydney, apenas alguns dias. Galerias de
arte, Opera House. Um tempinho num lugar chique, onde possam
simplesmente desfrutar da própria companhia, sem ficarem longe por muito
tempo, já que os dois são bem ocupados.
— Mas?
Thomas sorriu.
— Você me conhece bem demais. Quero que eles também tenham algo
concreto. Algo para os filhos deles. Netos. Uma herança. — Ele olhou para
o relógio de pêndulo, e George acompanhou seu olhar.
— Quer dar a eles um relógio de pêndulo?
— Talvez.
— Martin tem uma casa moderna.
— Uma casa eclética. Os dois amam coisas velhas. Olhe para Martha e
para mim. — Ele riu, e George fez o mesmo.
Thomas se levantou. Pegando o copo, caminhou até o relógio no canto.
— Ainda não está à venda?
— Ah, Tom. Eu não posso vender. — George se juntou a ele. —
Enquanto algum descendente da família Brown estiver vivo, não poderá ser
vendido.
Thomas olhou para o amigo da vida toda.
— Vendido?
— Você e eu somos os únicos que conhecem a história verdadeira. A
não ser que algum outro fragmento do passado esteja perdido por aí. Mas os
Temple desapareceram há muito tempo, Tom. Não há nenhum deles na
região toda, há mais de cem anos.
— Mas ainda importa. Para você, George Campbell, importa. Você tem
honra.
— Foi o que confiaram a mim. — George tocou a parte da frente do
relógio. — Mas não tenho nenhum filho para herdá-lo. Talvez a hora tenha
chegado.
— George? No que está pensando?
— Veremos, Tom. Veremos.

C lagoa. Então, parou, com as sandálias na


mão, observando o píer. Teria Thomas realmente esperado ali, todos os dias
por meses, por Martha? Que história incrível Martha havia contado.
Logo em frente, um cachorro latiu, e Charlotte ergueu a mão contra o
brilho do sol que se punha. Randall correu em direção a ela. Christie vinha
atrás, na distância, cabisbaixa. Seus passos pareciam pesados, e Charlotte
correu para encontrá-la. Randall a alcançou primeiro, e ela parou para
cumprimentá-lo com um carinho na cabeça.
— Christie? Tudo bem com você?
Christie ergueu a cabeça, como se tivesse sido arrancada de uma
reflexão profunda. Sacudiu os ombros e, para o espanto de Charlotte,
começou a chorar. Quando Charlotte a alcançou, a mulher havia enxugado
as lágrimas e recuperado um pouco do controle, respirando fundo.
— Lágrimas tolas.
— Ah, está com tanta saudade assim de Martin?
— Sim. Não. Bem, não sei. Acho melhor eu me sentar um pouco.
— Vou te acompanhar. — O tom de voz de Charlotte não admitiria
nenhuma bobagem caso Christie quisesse argumentar. — Acabei de te ver
estremecer.
Na areia, com as pernas esticadas, Christie conseguiu sorrir.
— Ainda tenho um lindo hematoma colorido entre o quadril e a perna.
Randall se deitou ao lado delas.
— Por que estava chorando?
— Vi algo que não deveria ter visto. Quero dizer, provavelmente, ele ia
me mostrar quando tivesse terminado, mas não terminou, e sendo o que era,
ele pode acabar não mostrando.
— Comece do início, por favor. Eu me perdi no meio da história.
— Desculpa. — Christie pegou um punhado de areia e observou-a
escorregar pelos dedos. — Sem querer, vi uma pintura no estúdio. Ainda
não está terminada, o que quer dizer que eu não deveria ter visto, a não ser
se ele quisesse uma opinião. Martin sempre deixou isso claro. É um retrato
daquela noite. Na tempestade.
— No iate?
— Não, mas eu não deveria te contar.
— Vamos chamar isso de uma sessão de terapia informal, onde devo
respeitar a confidencialidade. — Uma pontada de culpa atingiu Charlotte.
Você quase denunciou Bernie.
— Apenas você e eu.
Christie mordeu o lábio inferior.
— Acho que eu o machuquei de verdade. É um autorretrato, e ele está
na praia… quase aqui, na verdade. Estou nos braços dele, como se ele
estivesse me tirando das profundezas, e Randall está com a cabecinha no
meu colo.
— Como você se sentiu quando viu a pintura?
— Meu coração se despedaçou. Ele realmente achou que eu fosse
morrer. — Os lábios dela tremeram.
— Foi traumático. Para todo mundo e, é claro, para o homem que te
ama. Ele te encontrou e te deixou em segurança, mas viu Randall deitado e
imaginou o pior. Nunca ouvi tanto pesar na voz de um homem.
— Como assim?
— Ele está no rasinho na pintura? É um reflexo do que fez quando viu
Randall. Caiu de joelhos e gritou pelo nome do cachorro.
Christie voltou os olhos surpresos para Charlotte.
— Ouça, a pintura é o jeito de ele lidar com os próprios demônios.
Martin, com você segura nos braços, e Randall seguro ao lado. Isso o ajuda
a organizar o caos daquela noite de uma maneira que a mente dele entenda.
Se ele te mostrar ou não, se ele destruir o quadro ou se o deixar trancado em
algum lugar… não importa. Ele te ama muito e precisa de uma válvula de
escape para o que aconteceu. É normal. Muitíssimo normal, na verdade.
Por alguns momentos, as mulheres ficaram sentadas em silêncio.
Charlotte observou o rosto de Christie, onde emoções fortes iam e vinham,
até ela assentir consigo mesma.
— Tudo bem, obrigada.
— Disponha. Mas você não vai me agradecer quando chegar em casa.
— Por quê?
— Eu meio que mencionei a sua queda. Desculpa, só queria saber se
você estava bem.
— Nesse caso, é melhor eu ir e me explicar. — Christie se levantou, e
Charlotte se uniu a ela. — Fico feliz por você ter ficado em Rivers End,
mesmo com você espalhando os meus segredos por aí.
27-ABRAÇOS AMOROSOS E ESTRELAS

AC P encontrava-se anormalmente quieta. Elizabeth tinha se


sentado na varanda, bebendo um copo de xerez enquanto observava o pôr
do sol.
Um carro entrou, sem pressa, na rotatória. Num primeiro momento,
Elizabeth pensou que pudesse ser o SUV de Bernie. Mas, conforme se
aproximava, viu que o carro era muito maior, e seu coração acelerou.
Levantou-se, deixando o copo no assento, indo até o primeiro degrau, ao
mesmo tempo que a Range Rover estacionava. A janela do passageiro se
abaixou, em silêncio. De dentro, a voz de um homem gritou:
— Eu sei que cheguei em cima da hora, mas você teria algum quarto
disponível?
Elizabeth soltou um gritinho inusitado, rapidamente contido ao cobrir a
boca. Correu degraus abaixo e deu a volta no veículo assim que Angus saiu.
Seus braços a envolveram, e ela se aconchegou no casaco de lã do homem,
inalando o cheirinho familiar do qual havia sentido tanta falta.
— Você não precisa nem mesmo fazer uma reserva. — A voz dela
soou abafada contra ele, e Angus a soltou.
— Pensei que tivesse me dito que a Casa Palmerston estava cheia.
Ela sorriu.
— Tolinho. O que está fazendo aqui? Quero dizer, se eu soubesse que
vinha, teria preparado o jantar.
— Você me acompanharia a um jantar, então? Talvez no bistrô do bar,
ou poderíamos ir ainda mais longe.
— No bistrô seria ótimo. Podemos chamar a Christie e…
Angus segurou a mão dela.
— Por mais que eu queira vê-la, queria jantar com você. Apenas você.
Um formigar delicioso de animação encheu Elizabeth, e ela apertou a
mão dele.
— O seu quarto está vazio, então traga as malas. Vou me arrumar.
— Pode ir, querida. Já vou.
Elizabeth deixou a porta da frente aberta e subiu a escadaria para
garantir que tudo estivesse em ordem no quarto de Angus. Quando passou
pelo espelho, notou que sorria. Um sorriso amplo e maravilhado que atingia
os olhos.

—Q , aquele velhote e, por favor, avisar


que a janta está quase pronta? — Martha tirou os olhos da panela onde
preparava seu chili mundialmente famoso, como ela dizia. Christie
concordava que era o melhor chili que já havia comido. Uma vez, deixou a
surpresa transparecer que tinha sido uma garota australiana-irlandesa quem
o aperfeiçoou. Sorrindo consigo mesma, Martha murmurara algo sobre ter
passado um tempo na América do Sul, mas se recusou a elaborar a história.
— Garagem? — Christie cheirou o ar, com muitíssimo apreço. Seu
estômago respondeu com um ronco.
— Provavelmente.
— Você vem, Randall? — Christie abriu a porta dos fundos. Randall
não se moveu de onde estava sentado, perto da porta do corredor. Seus
olhos estavam focados em Martha. — Tudo bem. — Ela fechou a porta ao
sair e adentrou a quase-escuridão do comecinho da noite. A luz da garagem
parecia acesa, então foi para lá primeiro.
— Está me procurando? — chamou Thomas, da frente da garagem.
Quando Christie o alcançou, ele apontou para o céu. — Tem nuvens
demais.
— Para o quê?
— Hm…
— Certo. O jantar está quase pronto.
— Eu gosto das estrelas.
— Eu também. — Christie olhou para cima. Havia estrelas, mas ainda
era cedo demais, e a cobertura ligeira da nuvem dificultava observarem
qualquer constelação. — Mais tarde vai estar mais limpo.
— Hm…
— O que foi?
— As estrelas não são tão brilhantes aqui embaixo.
— Você sente falta das montanhas.
— Não conte para a minha mulher.
— É difícil, né? — Christie se juntou a Thomas, apoiando-se na cerca.
— Paixões diferentes, alguém sempre cede.
— Ela vale a pena.
— Não duvido de que sinta o mesmo a seu respeito. Mas você ainda
tem a cabine lá em cima, por que não dá uma passada por lá?
— Talvez. Preciso dar uma olhada no lugar mesmo. Sim, talvez.
As nuvens se separaram, revelando uma meia-lua.
— Thomas?
— Christie.
— Você é um artista.
Thomas se endireitou e a encarou.
— De vez em quando. Por quê?
— Quando você pinta, de onde vem a inspiração?
— Depende. Paisagens e coisas assim simplesmente existem. Estão
prontas para que eu as interprete. O quadro que fiz de Martha… depois de
ela partir, foi a lembrança de um dia de verão incrível, quando éramos
inocentes quanto ao que viria a seguir.
— É uma pintura linda. Consigo ver seu amor por Martha todas as
vezes que olho para o quadro. E o retrato do mar…? Não precisa responder,
se não quiser.
— Vou te contar, mas depois vai me dizer por que está interessada.
Perder Martha foi a pior noite da minha juventude. Pior do que os
problemas com o meu pai ou qualquer outra coisa. Ela era, e ainda é, o meu
mundo. Minha alma-gêmea. Por pura dor e desespero, ressuscitei a
tempestade. Joguei todo o meu sofrimento no quadro e, enquanto pintava,
algo aconteceu. Comecei a encontrar esperança. Dá pra ver que a pintura
não é uma fotografia exata. Com o píer foi diferente – não muito –, mas o
bastante para mudar o que aconteceu. E estávamos do outro lado d’água.
Então, na minha pintura, aquilo não teria acontecido.
— Você reescreveu o que aconteceu para que o final fosse diferente.
— Sim. Não mudou o fato de que ela fugiu nem de que quase se
afogou, mas essas pequenas diferenças na tela são importantes. Por isso a
mandei pra Martha. Pelo menos, pensei que tivesse feito isso. — Ele franziu
a testa, que se encheu de rugas.
Christie apoiou a mão na dele.
— Desculpa, eu não deveria ter perguntado. Acho melhor entrarmos.
— Antes, me conte por que perguntou.
— Eu… acho que queria saber se a arte era um meio de lidar com
eventos angustiantes. Aquele quadro do Martin – Único sobrevivente – era
praticamente autobiográfico, apesar de ele não admitir isso.
— Martin é muito mais expressivo em suas pinturas do que eu. Se ele
pinta algo, tem uma razão. Sempre. Estou com fome, e até aqui fora está
cheirando chili. — Thomas começou a voltar à casa de campo. — Vou
fechar a garagem e já entro.
Atrás dele, Christie ponderou as palavras do homem. Fazia sentido
usar o talento para mudar algo. Para trazer esperança. E Charlotte havia
quase dito a mesma coisa. Lidar com demônios. A questão era: como ela
lidaria com os próprios medos?
Enterraria todos eles?
O que Christie esperava era que desaparecessem com o tempo.
28- JANTAR PARA DOIS

L , era dono do pub há anos, fez um grande alvoroço quando


Elizabeth e Angus chegaram. Levou-os ao cantinho mais reservado do
bistrô agitado que era parte do Rivers End Hotel. Antes de terem tempo
para conversa, ele voltou com os cardápios, o pãozinho e uma garrafa de
vinho.
— Espero que gostem, é por conta da casa.
Quando o homem partiu outra vez, Angus sorriu para Elizabeth.
— Ele gosta de você.
— Não seja tolo. É tudo por conta de um jantar que tive aqui não há
muito tempo.
— Como assim?
— Sim. Infelizmente, talvez eu tenha ficado um pouquinho tonta no
fim da noite.
— Acho que você tem algumas coisas para me contar. — Angus
ofereceu o prato de pão a Elizabeth. — Coisinhas simples, como a
companhia que teve no jantar. Com certeza, Christie não deixaria isso ter
acontecido.
— Ah, eu vim com o quarteto fabuloso. — Ela riu da expressão de
Angus. — Daphne, Sylvia e Martha.
— E você.
— E eu.
— Você é mesmo fabulosa. Agora, que tal uma taça desse… ah, vinho
tinto delicioso? — Focado no rótulo, ele perdeu a expressão chocada que
ela sabia ter no rosto. Quando ele olhou para cima, Elizabeth vestiu um
sorriso suave. Angus encheu as duas taças. — Um brinde.
Ergueram as taças no alto, encarando-se, como se não soubessem o que
dizer. Lance passou por eles. Então, voltou.
— Terra para clientes. Que tal “ao melhor restaurante deste lado de
Melbourne”? Talvez do mundo todo? — Ele deu um joinha assim que
voltaram os olhos entretidos a ele. Então, o homem voltou ao trabalho.
— Às boas-vindas acolhedora que sempre recebo na Casa Palmerston.
E à linda senhora que faz isso ser possível.
— Angus.
Angus bateu a taça na dela.
— Saúde. — Ele tomou um golinho do vinho, com os olhos brilhando.
— Muito bom. Experimente.
Elizabeth o fez sem desviar os olhos dele. Ela gostava das ruguinhas
que surgiam perto dos olhos quando Angus sorria.
— Muito bom mesmo.
Ah, minha nossa. Estou copiando-o.
Ela quase riu e se perguntou o que raios havia de errado consigo.
— O que vamos pedir? Você ainda gosta de nhoque?
— Que boa memória a sua.
— Não faz tanto tempo assim que fui embora, faz? — Angus esticou a
mão sobre a mesa, com a palma aberta, num convite. Elizabeth apoiou a
mão na dele. Parecia certo. Perfeito. Natural.
— Agora você está aqui.
— Como se eu fosse perder o casamento. E as preparações?
— Tenho tanto pra te contar! Mas antes… está tudo bem com você,
Angus? — Elizabeth tinha de perguntar. Ele havia partido depressa, não
dizendo nada, exceto que tinha algo para resolver.
— Houve um probleminha nos últimos detalhes da herança da Srta.
Dorothy. Na verdade, uma acusação contra ela de uma pessoa desconhecida
para mim e – suspeito – para toda a família. Foi um mistério, na verdade.
Eu gostaria de falar nisso com a papelada adequada ao meu lado, na
presença de Christie.
— Claro, não quis me intrometer.
Angus apertou a mão dela e se inclinou um tantinho para frente.
— Também quero que você esteja presente.
— Eu?
— A pessoa disse que a Casa Palmerston era dela por direito. Então,
sim, você.
Elizabeth abriu a boca, surpresa, mas a chegada de Lance a
interrompeu. Enquanto Angus fazia o pedido dos dois, ainda segurando sua
mão, ela se perguntou como raios alguém conectado à família Ryan poderia
pensar que tinha algum direito sobre a propriedade dela. Isso era ridículo.
29- MONTANHAS, RELÓGIOS E CHÁ

N Rivers End, o Otway Ranges era parte das terras de Trev,


pontuado com propriedades remotas e um punhado de pequenas vilas.
Quando o sol nasceu, já fazia um tempinho que o policial estava na estrada,
pronto para tomar um café na primeira parada que encontrasse.
Levou o cafezinho para fora consigo, apoiando-se contra a viatura para
que pudesse apreciar a vista do outro lado do vale severo. Amava ali em
cima, tanto quanto amava a costa. Talvez conseguisse convencer Charlotte a
fazer uma caminhada. Havia muitas trilhas boas por ali, e ele poderia
organizar um piquenique. Poderiam conversar sobre o que a estava
incomodando.
O ronco familiar da motocicleta de Martin interrompeu as ideias de
Trev, e ele ergueu a mão em um cumprimento assim que o outro homem
adentrou o lugar. Martin estacionou perto da viatura e desligou o motor.
— Como foi o acampamento? — Trev apertou a mão de Martin.
— As crianças foram ótimas, sempre são.
— Estou prestes a pegar outro para a estrada. — Trev assentiu para o
copo de café. — Quer um?
— Não, obrigado. Prefiro chegar em casa. Mas pensei em tirar um
minutinho para me espreguiçar quando vi o seu carro.
— Justo. Vi Christie dando uma volta mais cedo.
Martin olhou para o relógio.
— Mas já tinha amanhecido?
— Não. Ela estava entrando no salão.
— Todo mundo se comportou?
Os músculos na bochecha de Trev tensionaram.
— Quase todo mundo.
— Trev?
— Não sei, cara. A Charlotte está chateada com alguma coisa, mas
ainda não veio me pedir ajuda. E Thomas voltou a dar uma de agente
secreto comigo.
— Desembuche.
— Alguém o deixou incomodado. Um hóspede da Casa Palmerston
estava perdido perto da casa de campo, o que o assustou um tantinho.
— Quem?
— Um fotógrafo. Dei uma olhada na habilitação dele, e não encontrei
nenhum problema. Além disso, Elizabeth não aturaria nenhuma baboseira.
— Certo.
— Isso mesmo, vá ver a sua garota.
Martin ligou o motor.
— Vai subir pra perto da cabine de Thomas? — Ele ergueu a voz sobre
o ronco.
— Vou dar uma passadinha lá e ver se está tudo certo. Boa viagem!
Trev observou Martin acelerar e voltar para a estrada com uma pitada
de inveja. Não mais o quase recluso que ele conhecera por anos, a vida de
Martin mudou assim que Christie apareceu. O carinho e o otimismo dela
trouxeram luz ao lado mais escuro dele. Charlotte tinha o próprio lado
escuro… pelo menos, havia uma parte oculta e secreta que ela mantinha
escondida. Se ao menos ela o deixasse ser a sua luz…

A de campo, um portão de ferro fundido estava


flanqueado por glicínias de um lado e por videiras de maracujá do outro.
Dali, uma trilha levava do pomar ao jardim de vegetais. Seguidos por
Randall, Martha e Thomas perambularam entre as plantações, cada um com
uma xícara de café. Era o ritual matinal preferido deles, antes do café da
manhã, para ver quais vegetais tinham amadurecido e para decidir o que
plantariam em seguida.
— Temos de resolver o que faremos com o baú — disse Thomas.
— Estava pensando nisso também. Talvez Elizabeth o queira, talvez
possamos devolvê-lo ao lar original.
— Se esse for o caso, o relógio de pêndulo também deveria voltar.
— O relógio do George? Veio da Casa Palmerston?
— Sim, junto com uma história um tanto escandalosa.
Martha piscou para Thomas.
— Querido, desde quando você conhece a história de um relógio de
pêndulo?
— Desde sempre. Pensei que todos soubessem, mas George me pediu
pra não contar para ninguém. Eu devia ter uns quinze anos na época,
quando o relógio estava na casa de campo. Minha mãe ficou transtornada
quando o objeto chegou, pois ela teve de levar duas cadeiras para a garagem
para termos espaço.
— Sempre me perguntei por que havia duas cadeiras sobrando na sala
de jantar quando Christie herdou a casa.
— Quando meus pais se mudaram, de alguma maneira, as cadeiras na
garagem foram esquecidas. Descobri quando eles foram embora e coloquei-
as para dentro outra vez. Provavelmente, foi a última coisa que fiz aqui. Até
recentemente. — Thomas parou para arrancar uma erva daninha da alface.
— Mas se o relógio era da família de George, por que raios veio parar
aqui?
Thomas sorriu ao endireitar as costas.
— Acho que eu não devia te contar, já que é uma Ryan.
— Não entendi.
— Você pode acabar insistindo em pegá-lo de volta. — Ele riu da
expressão cada vez mais confusa de Martha. — Vamos nos sentar.
Ela o seguiu ao banquinho que Christie havia deixado sob uma das
velhas árvores. Randall trotou para longe, farejando um coelho ou alguma
outra pequena criatura, com o rabinho balançando.
— Originalmente, a família de George jurou segredo, mas quando se
encrencaram, o pai do George contou ao meu pai. Não sei se você lembra,
mas eles eram bons amigos.
Martha assentiu, prestando atenção em todas as palavras.
— Sabia que o bisavô do George fundou a joalheria? O relógio de
pêndulo foi o primeiro residente, no cantinho onde se encontra hoje.
Acabou se perdendo na paisagem; só mais um relógio dentre muitos outros,
ofuscado pelas coisas brilhantes. Mas, num dia, a sua mãe o viu.
— A minha mãe?
— Ela perguntou ao pai de George se o relógio, originalmente, tinha
sido dos Temple.
— Que foi quem construiu Palmerston, não foi?
— Não conte ao George que você sabe…, mas sim. Antes que você me
pergunte, tem muito pouco que eu posso te falar sobre o como e o porquê,
mas fizeram um acordo quando Eoin Ryan tomou posse do lugar. Meu
palpite é que Henry Temple deu o relógio, em vez de deixá-lo para os Ryan.
Desculpa. — Ele apoiou a mão na perna de Martha.
Com os olhos arregalados, ela se inclinou.
— Não, continue. Achei fascinante!
Thomas deu uma risadinha.
— Estou vendo de quem Christie puxou o amor por mistérios. Enfim,
Lilian deve ter encontrado alguma evidência sobre a história do relógio, e o
pai de George ficou sabendo das intenções dela de recuperar o objeto. Meu
pai criou um plano para mantê-lo aqui, sabendo que sua família nunca nos
visitava. Bem, até você aparecer. — Ele beijou os lábios de Martha.
— Comporte-se, Tom. Conte-me a história. — O sorriso dela a fez
ganhar outro beijo antes.
— Então, ele ficou aqui por alguns meses, enquanto os Campbell
terminavam de construir uma casa nova para a família. Depois disso, voltou
para eles e nunca deixaram ninguém em quem não confiassem entrar.
— Imagino que, quando mamãe e papai se mudaram para a Irlanda, foi
seguro devolvê-lo à loja.
Randall se deitou ao lado deles.
— Seja lá o que o relógio significa para a família Campbell, George
não tem ninguém com quem deixá-lo, e houve uma promessa de nunca o
vender. É o presente perfeito para os nossos jovens, se quer saber. —
Thomas apoiou o braço ao redor de Martha, e se reclinaram contra o tronco
da árvore. — Algo que os fará lembrar do passado e de como, não importa
o que aconteça, o tempo melhora tudo.

E um cuidado especial com a aparência nesta


manhã. Na frente do espelho, passou a maquiagem com uma mão leve,
preferindo o estilo natural que Christie a havia ensinado um dia. O cabelo
se recusava a se manter no lugar, com uma mexa insistindo em se soltar das
outras, então reforçou tudo com o spray de cabelo. Em seguida, uma
borrifada do perfume favorito. Nos muitos anos desde a morte de Keith, ela
nunca havia considerado sentir isso outra vez – um friozinho na barriga, um
arrepio por toda a pele.
Angus chegou.
Os olhos sorriram de volta a ela.
A casa estava silenciosa quando desceu as escadas na pontinha dos pés,
deliberadamente evitando os pedacinhos que rangiam. Ele teve uma longa
viagem ontem, e o jantar durou um longo tempo. Na verdade, eram os
únicos clientes quando Lance, por fim, deixou a conta com Angus. Ela
puxou o papel para o seu lado da mesa e riu como uma garotinha quando
Angus balançou o dedo e roubou o papel de volta.
Desde quando conhecera Angus, a conexão foi perfeita. Riam das
mesmas coisas e compartilhavam um amor pela cozinha antiga e pelas
tradições inglesas. Ele era um cavalheiro que trazia a madame nela para
fora. Quando Christie se perdeu no mar, Elizabeth viu o desespero na alma
dele, e seu coração se compadeceu. Nas conversas que tinham, ela aprendeu
sobre o passado de Angus, sobre a jovem esposa que havia perdido
tragicamente e sobre o foco inabalável na carreira depois disso. Seu
compromisso com Dorothy Ryan – uma empregadora difícil e, de vez em
quando, desagradável – demonstrava o seu melhor. Ele via e aceitava as
pessoas por quem elas realmente eram, com defeitos e tudo.
— Que cheiro delicioso! — Angus apareceu na porta, cheirando o ar e
desfrutando o aroma.
— Chegou bem na hora, Angus. Quer um pouquinho de chá?
— Que pergunta é essa, querida? — Angus caminhou até ela e se
inclinou para beijar sua bochecha, com muitíssima delicadeza. — Eu
sempre quero chá. Vou preparar um bule pra gente, enquanto você continua
preparando esse seu banquete gourmet.
Ele se virou para pegar a chaleira, e Elizabeth lembrou-se de respirar
outra vez. Suas pernas estavam um tantinho moles, mas de um jeito bom.
O que eu estava fazendo mesmo?
A chaleira chiou. Talvez ainda tivessem um tempinho para se sentarem
juntos e apreciarem o chá antes de cozinhar. Perfeito.
30- NAS MÃOS DA HISTÓRIA

G calçada com a mesma vassoura que usava há dez anos.


A loja vivera mais do que todos os seus joalheiros, exceto George.
Todos eles foram Campbell. O pai, o avô e o bisavô – o homem que
começara o negócio há mais de um século. Uma tradição com que ele, um
dia, acabaria. Isso o entristecia. Mas uma joia de um mestre como ele tinha
menos valor hoje do que em sua juventude. Ainda mais ali, longe da cidade.
Martin falava sobre abrir uma loja online, mas George não queria saber de
computadores. Um iate e um vento decente o deixariam feliz. Não
tecnologia. De vez em quando, sentia falta do Mar de Jasmim, apesar de ter
tido um nome diferente ao longo de todos os anos em que tinha sido dele.
Liberdade.
George percebeu que havia parado de varrer e que estava apoiado na
vassoura, encarando inexpressivamente a rua. Alguém se aproximou, e ele
reconheceu o jovem do outro dia: o fotógrafo. Assentiu para o outro homem
quando este se aproximou.
— Bom dia, está um dia maravilhoso para caminhadas.
— Bom dia. Que prazer te ver… Sr. Campbell? — Bernie parou a
alguns passos de distância, com a cabeça um tantinho inclinada.
— Por favor, me chame de George. Desculpa, mas esqueci o seu nome.
— Bernie Cooper. Acho que não me apresentei da outra vez. Teria um
tempinho para conversar comigo? Estou fotografando a Casa Palmerston
para um novo livro e adoraria te fazer algumas perguntas.
— Vamos entrar, Bernie. Mas não sei o quanto vou conseguir te ajudar,
Elizabeth sabe de muita coisa. — George liderou o caminho para dentro,
desviando ao cantinho para apoiar a vassoura na parede. Bernie seguiu
direto ao relógio de pêndulo. — Estou vendo que ele ainda te fascina.
— Que jornada deve ter sido a dele desde a Inglaterra. É incrível ter
chegado intacto e ainda funcionando! — Bernie voltou para perto de
George, que havia se sentando num banquinho e vestido os óculos. —
Então, foi levado de um lugar ao outro mais de uma vez.
— O que te faz dizer isso?
Bernie olhou ao redor.
— Quão velha é esta loja encantadora, George?
Com um sorrisinho, George balançou a cabeça.
— A data está em cima da porta, lá fora – 1902. Cento e dezesseis
anos. — Para um fotógrafo, a habilidade de observação de Bernie não era
das melhores.
— Dada a idade, o relógio deve ter estado em algum outro lugar antes
de chegar aqui. Numa casa da região, talvez? Então, pelo menos, uma
mudança. — O sorriso de Bernie não chegava aos seus olhos, e George
semicerrou os dele. — Onde ficou guardado todos esses anos?
— Desculpa, isso aconteceu antes de eu nascer. Mas, se quiser, sinta-se
à vontade para tirar algumas fotos.
— Obrigado, vou voltar mais tarde com a câmera certa. — Bernie se
apoiou no balcão e abaixou a voz. — Você pode me contar, George. Vou
guardar o seu segredo.
— Não tenho nenhum segredo pra contar. — George lançou um olhar
sério sobre os óculos.
Inalando rapidamente, Bernie se endireitou.
— Olhe, é importante. Eu não quero ter de apelar para…
— Bom dia, George! — O cumprimento animado de Daphne coincidiu
com o tilintar da porta. Ela parou abruptamente. — Ah, desculpa
interromper.
— Imagine, Daphne. Já terminamos de conversar, eu acho. Tenha um
bom dia, Sr. Cooper. — Não importava o que o jovem estivera prestes a
dizer, havia soado como uma ameaça. George viu algo parecido com raiva
ou decepção atravessar os olhos do outro homem antes de desaparecer. Sem
dizer nada, Bernie se virou e marchou para fora, esbarrando em Daphne,
que pulou como se tivesse sido queimada.

D da joalheira, Bernie chegou na calçada e se virou.


Maldito velhote. Mulher idiota.
Ela se intrometeu bem quando ele estava prestes a deixar tudo claro
para George Campbell.
Bernie olhou para a loja. Bem ali, em cima da porta, estavam as
palavras EST. 1902. Onde esteve o relógio antes disso? Pela janela, viu a
mulher – Daphne – no balcão com George. Olharam para ele. Julgando-o.
Apontando dedos como todos sempre faziam. Deu uma palmadinha no
casaco e sentiu a silhueta reconfortante de uma garrafa d’água.
Atravessou a rua e se aproximou da padaria. As mesas e cadeiras do
lado de fora estavam vazias. Jogou-se numa e pegou a garrafa, bebendo até
a vodca acalentar suas entranhas.
Acalme-se e foque.
Por mais que quisesse recuperar o relógio de pêndulo, não havia
nenhum jeito de fazer isso. Ainda.
— Senhor? Oi?
Uma adolescente havia parado a alguns metros de distância, usando um
avental. Havia uma marca de nascença num dos lados do rosto, e ele a
encarou.
— Hm… Gostaria de um café? Posso te servir aqui fora.
— Por que eu ia querer um café?
— Senhor, qualquer comida ou bebida nas mesas tem de ser comprada
aqui. Desculpa. — Ela olhou para a garrafa na mão dele.
— Não estou vendo placa alguma.
— Você pode muito bem sentar aí conquanto compre algo. A menos
que não esteja se sentindo bem…
— Sim, estou passando mal.
— Quer que eu chame alguém?
— Sim. Estou passando mal com a sua chatice, gracinha. — Bernie
tomou outro gole da garrafa. — Ah, olhe. Você tem um crachá. Jess. Não é
nova demais para estar trabalhando? Vocês vendem drinques? Uma boa
dose de vodca com gelo?
— Aqui é uma padaria, senhor. Não um bar.
— Se você não vende o que eu quero pedir, é culpa de quem? Olhe, eu
pago as minhas taxas e estou na calçada. Ainda estou na rua, tudo bem? —
Ele irrompeu em risos quando viu a confusão no rosto de Jess. Pessoas de
cidades pequenas eram tão fáceis de se enganar. Agora, ela olhava na
direção da joalheira. Bernie acompanhou o olhar dela e franziu a testa.
Daphne. Vindo na direção deles.
— Você ganhou, gracinha. Vou dar o meu lugar para o público que está
esperando provar os seus produtos. — Bernie secou a garrafa, amassou-a e
jogou-a no chão. Guardou a tampinha no bolso.
— Por favor, pegue a garrafa. — Jess deu um passo para trás quando
ele se aproximou. Daphne estava no meio do caminho.
— Te vejo por aí. — Ele deu as costas para a menina e Daphne antes
de se afastar.
Que palhaçada.
Ele mesmo encontraria as respostas.

P , Christie subiu os degraus de pedra que


davam no cemitério. Finalmente, Martin estava em casa, mas exausto.
Havia preparado um café da manhã tardio para ele, mas não o beijara o
suficiente quando o deixou dormindo. Assim que acordasse e ligasse, ela
traria Randall para casa.
Perto da beirada do penhasco, onde estavam as sepulturas mais antigas,
Christie ficou surpresa ao ver Charlotte. Estava focada numa lápide,
analisando a epígrafe. Não querendo assustá-la, Christie pigarreou, então,
deu um grande sorriso quando Charlotte olhou para cima.
— Ah, Christie. Não sabia que havia mais alguém aqui.
— Estou indo pra casa.
— Está vindo da casa do Martin? Ele voltou?
Christie contornou algumas sepulturas e chegou em Charlotte.
— Sim.
— Deve ter ficado feliz em te ver lá.
— Sim. Não. Talvez.
— Ah, minha nossa. Tudo bem?
— Ele acabou vendo o restinho do hematoma no meu quadril, então
tomei uma bela de uma bronca por ter me arriscado.
Charlotte falhou em esconder o sorriso.
— Obrigada. Você não sabe como ele age quando faço algo que parece
perigoso.
— Ele te ama. Que tal parar de fazer coisas perigosas?
— Então de quem é essa lápide? — Chega de falar de Martin e de
perigo.
— Esta? De Henry John Temple.
— Temple. Não foi ele quem construiu a Casa Palmerston? Por que
estaria enterrado aqui?
— Aparentemente, morreu afogado.
Christie encarou a lápide. Era um monumento simples, com apenas o
nome, a data de nascimento e de falecimento. As bordas tinham esfarelado,
e era difícil ler a epígrafe. — 1853. Ele não perdeu a Casa Palmerston no
mesmo ano?
— Sim, e deve ter ido atrás da esposa e dos filhos. Pelo menos, foi o
que eu ouvi.
— Não sabia que você se interessava tanto pela história daqui.
Balançando a cabeça, Charlotte se virou para encarar o mar.
— Alguém que eu conheço se interessa. Até demais.
Seu tom, mais do que as palavras, foi o que cativou o interesse de
Christie, e ela se juntou a Charlotte.
— Vamos, me conte a história. E não me diga que não existe. Sou
conhecida pelas minhas habilidades de investigação e interesse insaciável
por mistérios.
O rosto de Charlotte mudou, pois os músculos do maxilar ficaram
tensos, e a testa se franziu. Sem planejar, Christie pegou a mão de Charlotte,
que se assustou, mas não se afastou.
— Sou muito boa com segredos, Charlotte. Você me ajudou. Me deixe
ser uma amiga pra você.
Por um longuíssimo momento, Charlotte encarou Christie. Então,
fechou os olhos brevemente e suspirou.
— Você não faz ideia do quanto quero conversar com alguém. Mas não
posso, Christie.
— Você sabe que estou me sentindo um pouquinho esgotada com o
novo salão, o casamento e tendo de lidar com… bem, algumas memórias.
Eu adoraria uma distração. — Ela soltou a mão de Charlotte, com um
sorriso caloroso. — Sou muito boa com especulações, então nem precisa
me dar nenhum nome.
— Você desenha bonequinhos-palito?
— Hm, mapas mentais. Bonequinhos-palito não.
— Que bom, o Trevor fez isso e meio que me apavorou.
Christie decidiu que não precisava saber sobre Trev desenhando
bonequinhos-palito nem o porquê disso.
— Então, em cinquenta palavras ou menos, me conte sobre essa pessoa
com um interesse nada saudável no passado da nossa cidadezinha.
31- TODAS AS ESTRADAS ACABAM NA CASA DE CAMPO

B parado no longo corredor que dava na cozinha, estudando a


fotografia de Eoin Ryan pendurada na parede.
Ladrão.
Adoraria tê-lo conhecido pessoalmente. Acertado as contas pelo dano
que havia causado a Harry.
E seus descendentes.
— Oi, Bernie. Quer que eu ligue as luzes? — Elizabeth estava com os
braços cheios, por conta da cesta de roupas sujas.
— Deixe-me te ajudar.
— Não querido, estou bem. Verdade. Mas se puder abrir a porta dos
fundos, seria maravilhoso.
— Eu seguro, e você abre a porta — disse ele, pegando a cesta. — Eu
levo.
— Obrigada. Por alguma razão, a porta de fora da lavanderia está
emperrando. — Elizabeth conduziu Bernie ao quintal. — Bem ali, por
favor.
O homem assentiu e cruzou o quintal até o varal montado perto do
cantinho da casa.
— Posso dar uma olhada na porta pra você.
— Meu Deus, Bernie. Você está hospedado aqui! É muito gentil da sua
parte, mas não. Outra pessoa vai cuidar disso. Deixe a cesta naquele
banquinho, se puder.
É claro, por que não?
Mamãe ficaria maravilhada.
Assim que a soltou, Bernie enfiou a mão numa bolsa de pregadores e
começou a prender as roupas lavadas.
— Dei uma passada na biblioteca de Green Bay. Na verdade, fiquei um
pouco decepcionado.
— Por quê?
— Eles tinham algumas informações sobre a Casa Palmerston e sobre
as famílias que fundaram Rivers End, mas ainda falta muita coisa.
Elizabeth arrumou uma camiseta que Bernie havia prendido. Ele
franziu a testa. Em seguida, pegou outra e a prendeu do jeitinho que ela
fizera.
— Encontrei alguns pouquíssimos detalhes instigantes, mas quando
pesquisei mais a fundo, dei num beco sem saída. Gostaria de tirar uma
cópia das fotos antigas para o meu livro.
— Você falou com o George? A família dele se envolveu muito com a
biblioteca, especialmente com o conhecimento dele do comércio local.
Quando cheguei aqui, ele já fazia parte do conselho. Talvez tenha todo tipo
de coisa guardada em casa.
— Ele não mora atrás da loja?
— Não. O pai dele construiu uma casa muito bonita no quarteirão ao
lado, lá pelos Anos 50… ou foi nos Anos 60?
Bernie suspirou.
— A gente conversou, mas ele se colocou na defensiva quanto ao
velho relógio de pêndulo. Deve ter achado que eu ia roubá-lo.
— Tenho certeza de que não foi nada disso, querido. Ele ama falar
sobre o passado e tem uma memória incrível. Gostaria que eu conversasse
com ele? Que eu dissesse que você é meu hóspede e que está sendo
sincero?
— Ele disse que eu poderia tirar fotos do relógio, então talvez eu dê
uma passada na padaria primeiro e compre algo gostoso como uma oferta
de paz.
— Que jovem querido.
Você não vai continuar achando isso por muito mais tempo.
— Elizabeth, algo me deixou curioso na biblioteca. Encontrei uma
menção sobre um baú de madeira aqui na Casa Palmerston, que chegou
com o Henry Temple e sua família. Será que ainda está aqui? — Bernie
parou de prender as roupas e encarou Elizabeth, desejando que a mulher
dissesse sim.
Ela terminou de pendurar o que tinha sido lavado, com a testa franzida.
Então, depois de recolher a cesta vazia, começou a voltar para a casa.
Bernie a acompanhou.
— Um baú… Provavelmente, Lillian e Patrick Ryan o levaram junto
quando se mudaram para a Irlanda. Ou a filha mais velha deles, Dorothy,
pode tê-lo levado com ela quando se mudou para Melbourne.
Bernie deixou a cabeça cair. Se estivesse na Irlanda, não havia
esperança alguma de encontrar a chave. E ele sabia que não estava na
herança de Dorothy Ryan.
— A não ser que… — Na porta dos fundos, Elizabeth hesitou.
— O quê?
— Provavelmente, devo estar errada, mas havia um baú na Casa
Palmerston. Está na velha casa de campo. Alguém escondeu as cartas de
Thomas Blake para Martha nele, em algum momento dos Anos 60, e só foi
descoberto ano passado. Mas tenho certeza de que não deve ser o que você
está procurando.
Ela desapareceu lá dentro. Bernie a seguiu, com a mente em outro
lugar. Era hora de fazer uma visita de verdade à casa de campo.

Q C na própria rua, viu o Range Rover do outro


lado da linha do trem, estacionado pertinho da casa de campo.
Angus!
Ela correu pelo resto do caminho. A porta da frente estava trancada,
então entrou pela cozinha. O riso a guiou pelo corredor, onde Randall a
encontrou.
— Cadê eles?
— É você, querida? — chamou Martha, da sala de estar.
Angus se levantou bem a tempo de abrir os braços e deixar que
Christie voasse contra eles. Ela apoiou a cabeça em seu ombro.
— Estou tão feliz por você ter voltado.
Ele a soltou, com um grande sorriso.
— Eu também.
— Bom dia, Christie.
— Ah, Thomas. Desculpa. Bom dia pra vocês dois. — Christie sorriu e
se jogou no sofá. — Eu não os acordei quando saí?
— Não. Os velhotes precisam dormir.
— Não ligue para o Thomas, querida. Vou passar um cafezinho pra que
vocês dois possam conversar. Já volto. — Martha se levantou, cutucando
Thomas no ombro. Suspirando, ele se juntou a ela, mas piscou para Christie
a caminho da cozinha.
Angus se sentou.
— Você parece ótima.
— Você também. Quando chegou?
— No finzinho da tarde de ontem. Desculpa não ter ligado, mas tive a
chance de levar a Elizabeth pra jantar.
— E?
— Um cavalheiro não sai espalhando segredos.
Pelo brilho nos olhos dele, Christie não precisaria de mais nenhuma
palavra.
— Vocês dois merecem ser felizes.
— Ainda está no começo. Fiquei sabendo que o Martin voltou hoje
cedo de uma viagem, como ele está?
— Cansando, o que não me surpreende, considerando que ele passou
quase uma semana lidando com um grupo de adolescentes desfavorecidos.
Ele está dormindo, depois conversaremos sobre o casamento.
— Ah, isso me lembrou de algo. Elizabeth convidou vocês dois, assim
como Thomas e Martha, para um jantar na Casa Palmerston hoje à noite.
Além de colocarmos a conversa em dia, tem algo que preciso discutir com
todos vocês.
— Você está bem? — Christie segurou a mão dele.
— Estou. É sobre a herança da Srta. Dorothy. Apesar de isso não ter
mudado nada, quero contar a vocês sobre uma reivindicação muitíssimo
estranha que foi feita – a razão, na verdade, para a minha ausência.
— Uma reivindicação? Pensei que tudo estivesse em ordem com o
testamento. Eu tenho algum outro parente que não conheço?
Angus riu.
— Quantas perguntas. Vou responder tudo. Então, que tal às sete hoje?
— O que vai acontecer nessa hora? Parece ser a hora da janta. —
Thomas chegou carregando uma bandeja, seguido por Martha e um prato de
cupcakes. — Insisto em jantar bem. Na minha idade…
— Você fala como se eu não te alimentasse, seu velho. — Martha
ofereceu um cupcake a Angus. — Sei que está quase na hora do almoço…
— Outra das minhas refeições preferidas do dia.
— Essa receita é uma delícia e combina muito bem com um cafezinho.
— Martha balançou a cabeça para Thomas, que havia servido a bandeja na
mesinha de centro. — E adoraríamos jantar com vocês hoje. Devo levar
alguma coisa?
— Eu. — Thomas tentou pegar um cupcake, mas Martha afastou o
prato dele. — Me fale outra vez o porquê de eu ter te esperando no píer?
— Porque eu valho a pena.
Thomas assentiu, conseguindo pegar um bolinho quando Martha
começou a despejar o café.
— Isso daqui vale a pena.
— Thomas, sabe algo sobre a sepultura de Henry Temple? — Christie
observou Thomas morder o cupcake e fechar os olhos, satisfeito.
— Hmm. Valeu a pena esperar pela minha esposa. É uma sepultura, o
que mais você quer saber?
— Por que ele acabou sendo enterrado em Rivers End?
— Vou ficar muitíssimo feliz quando você se casar com o Martin e se
mudar. — Thomas ergueu as sobrancelhas e deu outra mordida no doce.
Martha olhou horrorizada para ele. Christie irrompeu em risos.
— A casa de campo é uma má influência. Toda vez que você encontra
algum mistério para resolver, você está aqui.
— Exceto que, desta vez, eu estava na sepultura do Henry. Com a
Charlotte.
— Ah, minha nossa. Agora são duas de vocês. Pode me dar outro
cupcake, meu amor?
32- ESCONDENDO A OBVIEDADE

T Rivers End depois do almoço e seguiu direto ao


estacionamento no cume do penhasco. Sempre que sua mente se
preocupava com algo, ia ali, ao topo dos degraus de pedra. A vista era tão
boa quanto a da casa de Martin. Apesar de que, para ele, nada era melhor do
que a paisagem acidentada das montanhas. Mas, ali em cima, o ar tinha sido
tomado pelo aroma do eucalipto e do freixo; aromas de altitudes elevadas.
Ali, seus sentidos eram dominados pelo mar.
Estacionou a viatura e saiu, espreguiçando-se, depois da viagem. O
encontro inesperado com Martin mexeu com ele. Seu amigo era um homem
apaixonado cujos instintos de proteção saltavam ao primeiro plano sempre
que se tratava de Christie. E havia um contentamento profundo nele. Desde
que Martin foi embora, a mente de Trev havia passado tempo demais
focada em Charlotte Dean.
O oceano era um reflexo do céu; um azul perfeito.
Diferente da noite da tempestade.
Desceu os degraus com pressa, correndo pela praia em grande
velocidade para se juntar à equipe de resgate. Nunca se esqueceria de
Charlotte aparecendo do nada e de Randall deitado na areia, encharcado e
mal se movendo. Ela disse a Trev o que e como fazer. Com essa tamanha
autoridade, o homem nunca a questionou. Ela salvou o cachorro e, ao fazê-
lo, parte de Trev se perdeu nela.
Atrás dele, ouviu um choramingo. Seu coração sentiu pena de quem
quer estivesse angustiado pela visita ao cemitério.
Quanto amamos e quão difícil é lidarmos com a perda…
O choramingo soou outra vez, e ele deu as costas para o mar. Não
havia ninguém à vista, então caminhou pelo cemitério, seguindo o som até a
parte mais antiga: onde os fundadores de Rivers End tinham sido
enterrados.
Charlotte estava sentada perto de uma lápide, de pernas cruzadas e com
a cabeça apoiada nas mãos.
Suspirando, ela enxugou o rosto e olhou para cima. Direto para Trev.
Seus olhos se encheram de confusão, ou perturbação – ele não soube dizer.
Então, a mulher se levantou.
— Oi, Charlie. Não quis te assustar.
— Não assustou. O que está fazendo aqui?
— Vim pensar. No topo dos degraus, na verdade.
— Ah.
— Ouvi um soluço e quis ter certeza de que ninguém estava ferido. Ou
muito chateado. É um penhasco alto.
Charlotte ergueu o queixo.
— Eu não vou me jogar.
— Eu não sabia que era você. — Trev leu a lápide. — Henry Temple.
Certo, agora estou curioso. Por acaso você é parente dele?
— É claro que não! Eu só… acabei parando aqui.
— Sei…
— Sobre o que estava pensando? Nos degraus?
— Sobre a tempestade. Sobre a cidade toda lá embaixo, ajudando a
Christie. Sobre você.
— Eu?
— Mandando em mim enquanto cuidava do Randall.
— Desculpa… — Charlotte deu um sorrisinho. — …, mas não me
arrependo.
— Engraçadinha.
— Você disse que veio aqui pensar. Queria mesmo ter pensado nisso?
— Não. Mas por que você estava chorando? Alguém te chateou?
Charlotte desviou os olhos.
— Estou aqui por você. — Trev deu um passo na direção dela, e
Charlotte olhou para cima. — Sou seu amigo.
— Eu não posso.
Trev tinha certeza de ter ouvido certa hesitação na voz dela. Era hora
de mudar a estratégia.
— Estive na estrada por horas, fui até as montanhas e voltei. Você já
comeu?
Ela balançou a cabeça.
— Ótimo. Tortas por minha conta na padaria, ou o que você quiser.
Chega de perguntas, tudo bem? Só dois amigos almoçando. — Trev a
observou, esperando a recusa habitual.
Em vez disso, Charlotte sorriu.
— Dois amigos almoçando. Gostei disso.
— Então vamos. — Não querendo dar-lhe a chance de mudar de ideia,
Trev começou a andar até a viatura. Ela o acompanhou.
— Naquilo?
— Naquilo. Eu te deixo ligar as luzes e a sirene, se quiser.

C pelos equipamentos dentro da viatura.


Rádios, um pequeno computador, um punhado de botões e interruptores.
Sem mencionar o motorista. Ela lançou um olhar de soslaio para Trev. Sua
camiseta estava justinha ao redor do peito e do abdome fortes. Virando o
volante, o tríceps dele chamou a atenção de Charlotte. Tão perto, sua
presença física era evidente. Ele mantinha o corpo em forma.
Em ótima forma.
Trev olhou para ela, e Charlotte teve certeza de que ele deu um
sorrisinho ao vê-la dando uma olhada.
— Nunca andou numa viatura?
— Não, nunca. Mas já quis seguir no ramo da psicologia forense.
— E trabalhar com bandidos? O que a fez mudar de ideia?
— Coisas. Talvez eu ainda trabalhe nisso, ainda mais se eu puder ficar
um tempo longe do escritório.
Trev atravessou a ponte que adentrava Rivers End.
— Eu poderia te passar uns contatos. Precisamos de mais pessoas
como você.
— Talvez. Obrigada. — Ela não voltaria ao consultório, notou
Charlotte, numa clareza repentina. Talvez valesse a pena explorar aquilo:
uma mudança de direção e a chance de ter maior contato com as pessoas
que realmente precisavam.
Mais do que Bernie Cooper desejava.
Essa cidadezinha combinava mais com sua alma do que Brisbane.
Apesar de ser uma linda cidade, Charlotte ansiava espaço e silêncio. E uma
chance de se reinventar, pra falar a verdade.
Trev estacionou numa vaga perto da padaria.
— Tomei o café da manhã antes do sol nascer. Agora, tudo o que quero
é um pedaço da torta da Sylvia e ainda mais café.
Fora da viatura, Charlotte e Trev caminharam até a loja. Nunca tinham
feito isso antes – passeado juntos. Era… bom. Dois amigos almoçando.
Como quando estava com Christie. Exceto por Trev ser um policial
apaixonado que sabia um pouquinho mais do que deveria sobre os pontos
fracos dela. E tinha acabado de vê-la chorando na sepultura de um estranho.
Charlotte desacelerou quando se aproximaram da porta. Talvez aquilo não
fosse uma boa ideia.
Com um empurrão, Trev abriu a porta e segurou-a aberta para
Charlotte. Tarde demais agora. Seria grosseiro desistir.
— Oi, Sylvia. Sobrou alguma coisa para umas pessoas famintas?
— O que vocês querem comer?
Trev inclinou a cabeça, olhando para Charlotte.
— Pode pedir primeiro.
— Ah, as tortas parecem gostosas. Qualquer sabor serve, por favor.
— Eu quero o mesmo, mas dois pedaços. E cafés. Com leite.
— Dentro ou fora?
— Fora, se não tiver problema — disse ele, e Charlotte assentiu.
— Podem escolher uma mesa, que eu já levo o almoço. — Sylvia
pegou os pratos. — Mas, depois, posso te contar sobre algo estranho que
aconteceu mais cedo?
— Pode me contar agora, se quiser. Charlie, quer ir pegar a mesa?
Charlotte encontrou um lugar e se sentou, de frente para o cruzamento.
Dali, podia ver a agência imobiliária e a loja de George. Gostava de
George.
Olhou para dentro da padaria, observando Trev apoiado no balcão,
enquanto Sylvia remexia os braços por todo lado. Transtornada. Como
alguém poderia continuar tão agitada perto de Trev? A natureza do homem
era tão calma e firme… Ele ressonava força e compaixão.
— Oi, Charlotte! — Daphne correu em direção a ela.
— Quer se sentar com a gente? Quero dizer, comigo, por enquanto.
Daphne olhou para a padaria.
— Ah, você veio com o Trev? Que fofura. Ele é um bom menino.
— Vamos almoçar. Quero dizer, nos encontramos no cemitério e
percebemos que ainda não tínhamos comido. Então – aqui estamos.
O que há de errado com você?
— Bem, pelo menos ela está contando o que aconteceu. Eu disse a ela
para abrir uma queixa.
— O que aconteceu?
— Ah. — Daphne afundou no assento, com os olhos em Charlotte. —
Um homem desagradável passou por aqui mais cedo. Foi tão grosso com
Jess… e acho que ele importunou George antes disso.
Uma sensação de pavor se espalhou por Charlotte.
— Com a Jess? Qual homem?
— O fotógrafo hospedado na Casa Palmerston com você. Ele jogou
uma garrafa no chão e saiu andando, como se a lei não se aplicasse a ele.
— Cadê a garrafa?
— O quê? Acho que Sylvia jogou fora. Por quê?
— Você o viu?
— Se eu o vi! Eu o vi bater na porta do carro algumas vezes e sair
dirigindo como um louco noutro dia. Ele me lembrou…
O pavor de Charlotte se transformou em preocupação quando algo
parecido com medo cruzou o rosto de Daphne.
— Ele te fez lembrar de Rupert, né?
Com um breve aceno, Daphne deixou as emoções que havia guardado
por tanto tempo transparecerem. Seus olhos ficaram úmidos.
— Escute, você está segura. Vou te visitar mais tarde, tudo bem?
Vamos conversar, menina com menina, e vou te ensinar alguns truques pra
lidar com essas emoções.
— Você é tão querida. Posso ver porque Trev te adora. — Daphne se
levantou. — É melhor eu levar o almoço pro John. Acho que o seu
jovenzinho está vindo.
—U com pimenta. Coloquei o molho do lado. Não
sabia se você ia querer. — Trev serviu um prato na frente de Charlotte,
afastando-a dos pensamentos.
— Obrigada. Sim.
Trev se sentou em sua frente.
— O café está vindo. Depois de comermos, posso te deixar em casa, se
você quiser.
— Ah, não tem problema eu ir andando. — Charlotte cortou a torta e
cheirou o vapor que subiu. Sua barriga roncou.
— Não vai ser nenhum problema, porque vou pra Casa Palmerston de
qualquer maneira.
Com o garfo a meio caminho da boca, Charlotte encarou Trev.
— Por quê? — Ela sabia o porquê.
Focado nas próprias tortas, Trev não olhou para cima.
— Você chegou a falar com o hóspede de Elizabeth, Bernie Cooper?
— Por quê?
— Estou interessado no que você acha dele.
— Por quê?
Fuja. Dê um fim nisso agora.
Quando Trev a encarou, cheio de seriedade, gentileza e curiosidade,
sentiu uma vontade imensa de contar tudo a ele.
— Pare de perguntar o porquê. Porque eu valorizo a sua opinião.
Confio em você. — Ele deu uma mordida na torta, nunca deixando de olhar
para Charlotte. A necessidade de fugir desapareceu sob o olhar inabalável
dele, e o calor subiu desde os dedos do pé. Dando-se um tempinho para
pensar, enfiou a torta na boca, mal saboreando-a enquanto mastigava. Os
cantinhos da boca de Trev se curvaram para cima, como se estivesse mais
do que ciente do que ela estava fazendo.
— Você quer a minha opinião profissional ou pessoal?
— Qualquer uma que você estiver confortável para me dar.
— O que observei dele na Casa Palmerston é que ele é muito
respeitoso… com a Elizabeth. Eu mal conversei com ele.
Isso seria o bastante?
— Tudo bem. Olhe, ele foi muito grosseiro com a Jess hoje cedo. Ela é
uma criança. Ele se sentou aqui fora, com a própria garrafa d'água, que
acabou jogando no chão, fique sabendo. Ela ofereceu café a ele, o que o fez
ser desagradável.
— Você sabe onde a garrafa está agora?
— Provavelmente na lata de lixo. Por quê?
Charlotte sorriu.
— Agora que você me disse isso… Ele não machucou a Jess?
— Não estaria aqui ainda se tivesse feito isso. Você viu algum sinal
desse tipo de comportamento?
— Como eu disse, não tive muito contato com ele na Casa Palmerston.
Na maior parte do tempo, ele está fora com as câmeras. Aparentemente,
montando um livro de mesinha de centro sobre a região. Elizabeth está bem
animada.
O jeito com que Trev a olhava deixou-a preocupada. Era como se ele
pudesse ler nas entrelinhas da barreira construída com muito cuidado. O
homem enxergava através das respostas literais dela. Mais alguns segundos
daquele olhar, e ela cederia. Contaria tudo e, depois, pediria perdão por não
ter sido honesta antes. Ele a perdoaria? Ou os seus valores eram tão fortes
que ele perderia qualquer respeito por Charlotte?
— Charlie? Por que está tão triste?
— Não estou. Estou bem, mas preciso ir.
— Termine o almoço. Não vamos mais falar do Bernie, tudo bem? —
Como se tivesse acordado, ele comeu um pedaço da torta. Charlotte forçou
os músculos a relaxarem, a regular a respiração até o mais sutil dos
tremores minguar de suas mãos. Trev suspeitaria ainda mais se ela fugisse.
De novo.
33- QUASE LEVADOS PELO MAR

M no estúdio. Uma por uma, abriu as janelas e, depois, as


claraboias, apreciando o calor que adentrava o lugar. Foi o bastante para
renovar o ar e subir um tantinho a temperatura. Christie deveria ter entrado
ali para ajudá-lo. A lixeira estava vazia, e o frigobar tinha sido
recentemente estocado com garrafas de água. Sorriu com a necessidade de
Christie de cuidar dele, algo que, um dia, o teria afastado. Agora, esses
pequenos detalhes o encantavam.
Por ora, tinha apenas uma pintura em andamento. Precisaria ser
terminada antes do casamento. Parou diante do cavalete coberto pelo lençol,
franzindo a testa.
O tecido estava reto. Ele tinha um jeitinho de cobrir as pinturas, com o
lado esquerdo um pouco mais longo. Aquilo estava endireitado, perfeito.
Mas Christie respeitava sua insistência de manter as obras apenas para si até
estarem prontas para compartilhá-las. Ela nunca havia mexido num lençol.
Num movimento, puxou o tecido, derrubando-o no chão.
Se Christie tivesse visto isso, teria dito a ele. A pintura era intensa e
pessoal para os dois. Isso a teria deixado perturbada, eram fatos que ela não
sabia daquela noite.
Pensei que ia perder vocês dois.
Martin abaixou a cabeça, com os punhos cerrados, quando uma
angústia perversa o dominou. Ela já se culpava o bastante por quase ter
perdido Randall, então como aguentaria saber o quão devastado o noivo
tinha ficado na costa? Seu cachorro. Sua garota. Quase levados pelo mar.
Mas não foi isso o que aconteceu.
Martin acalmou os pensamentos. O propósito da pintura era banir os
demônios. E estava fazendo isso, pouco a pouco, enquanto misturava as
cores e as transformava em imagens poderosas. Mas era algo que estava
reservado apenas para ele, como se fosse uma terapia, e não deveria ser
visto por ela naquele estado inacabado. Se um dia devesse ser visto.
— Está aí, filho?
Antes que Thomas entrasse pela porta, Martin recolheu o lençol e o
jogou sobre o cavalete. Randall chegou correndo, balançando o rabinho
furiosamente. Com um choramingo animado, jogou-se em Martin, que
mergulhou sobre os joelhos e puxou o cachorro contra si. Segurou a
cabecinha de Randall com as duas mãos, sorrindo para aqueles olhos doces.
— Também senti saudades, cachorrinho.
— E eu? — Thomas estendeu a mão. Martin se levantou e, em vez
disso, deu-lhe um abraço.
— E você? Estou surpreso que me devolveu o cachorro.
— Martha me obrigou.
Martin soltou Thomas.
— Ele não deu trabalho, deu?
— Pelo contrário. Martha ficou preocupada com a possibilidade de
que, um dia, vou me esquecer de devolvê-lo. Não que ela se importe,
considerando que foi ela quem insistiu para que ele dividisse o quarto com a
gente.
— E não com a Christie? Quer um pouco de água?
— Por favor. Bem, ele começa lá, mas acaba no nosso quarto no meio
da noite. Provavelmente, porque ela acorda cedo demais, e ele gosta de
dormir. — Thomas seguiu Martin até o frigobar e aceitou a garrafa
oferecida. — Obrigado. — Sentou-se no sofá e abriu a tampa. — Ela ficou
com saudade.
Martin se empoleirou no braço do sofá, abrindo a própria garrafa.
— Ela caiu do sótão, Thomas.
— Pensei que ela não fosse te contar.
— Tinha um hematoma indo do quadril até a perna. Por que ela não ia
me contar?
— Pra você não ficar nervoso.
— Eu não fiquei nervoso, só disse que foi perigoso e que poderia ter
sido ainda pior.
— Exatamente o que eu disse. Enfim, Charlotte cuidou dela, e
desceram o baú juntas.
— Não vem ao caso. Ela deveria ter me esperado. Por que encorajou
isso, Thomas?
— Filho, eu estava em Green Bay e não fazia ideia de que ela tinha
decidido me surpreender. Também não fiquei sabendo que ela caiu até dias
depois, quando Charlotte foi nos visitar.
— Como assim?
— Charlotte apareceu pra dar uma olhada em Christie e assumiu que
Martha soubesse de algo. Pare com isso. Angus nos convidou para jantar na
Casa Palmerston hoje. Elizabeth vai cozinhar, e ele quer nos contar a razão
por ter voltado à Melbourne. Algo sobre a herança de Dorothy.
— Isso não vai afetar a Christie?
— Não sei. Angus disse que não, mas tem algo errado. Já temos algo
errado na cidade, e agora isso.
— Como assim, vovô?
— Não me venha com “vovô”. Tenho um pressentimento.
Randall saiu correndo pela porta. Segundos depois, Martin e Thomas
riram quando um coelho passou veloz pela janela, com o cachorro logo
atrás diminuindo a distância. Randall parou, a pontinha do rabo balançando
enquanto observava o animal desaparecer numa toca. Apesar do momento
de descontração, as palavras de Thomas ecoavam na cabeça de Martin.
34- UM DESAFIO

U das sete, o carro saiu da garagem da casa de campo,


engasgou um pouquinho e, depois, chacoalhou ao atravessar a linha de
trem. Seus faróis não iluminaram o SUV parado mais ao lado, no finzinho
da estação abandonada.
Bernie esperou alguns momentos no escuro, então, ligou o motor e
adentrou a estrada. Passou pela casa e chegou ao ponto onde havia
estacionado da outra vez, escondido nos arbustos densos.
Com a mochila, atravessou o campo até os fundos. Entrou por um vão
na cerca e pegou a lanterna.
Hoje, encontraria a chave da porta e, então, quando todo mundo
estivesse dormindo, daria uma passada na adega. Seu coração se animou.
Logo, Harry. Logo o seu legado estará com o dono legítimo.
Mas, por ora, precisava dar um jeito de entrar.
Bernie circulou a casa de campo, testando cada janela. Todas
trancadas, com fechos antiquados que ele não conseguiria abrir sem
quebrar. As portas não eram muito diferentes, então tirou uma escada da
garagem destrancada. Abriu-a por completo, apoiando-a contra a parede.
Um momento depois, abriu a janela do sótão.
Dentro, havia uma cadeira velha e um balcão. Nada mais. Abriu a
portinhola de acesso, empurrou a escada contrátil e desceu ao corredor.
O baú estava na mesa de jantar, com a tampa curva fechada. Não havia
nenhuma chave, mas estava destrancado. Então Bernie o abriu e leu as
palavras entalhadas na base. Londres. 1840. E agora? Esse era o baú do
diário, e deveria haver uma chave com ele.
Ao lado da porta dos fundos, havia a usual prateleira com chaves e
outros itens. Mas apenas a chave da caixa de correios estava ali. Quis gritar.
Atear fogo ao lugar e deixar que tudo se transformasse em cinzas. Num
minuto, sua cabeça explodiria. Mas Harry havia anotado pistas no diário, e
Bernie deveria não ter visto algo. Refez os passos, certificando-se que
estava deixando a casa de campo do jeitinho que a tinha encontrado.
Atravessando o campo de carro, Bernie se lembrou. Havia mais um
outro lugar onde a chave poderia estar. Harry fez apenas uma breve
referência no diário à lagoa, então teria de reler para lembrar do contexto. A
situação ainda poderia ser salva.

O Casa Palmerston tinha acabado, e agora todos estavam


sentados na sala de estar, enquanto o café e o chá eram servidos. Angus se
acomodou numa poltrona confortável, sorrindo.
— Meu Deus, vocês todos parecem tão ansiosos. Eu não tenho muito a
dizer.
— Você nos deixou esperando por horas!
— E você continua sendo uma jovem muito impaciente, Christie.
Christie olhou para Martin, buscando apoio, mas ele permaneceu em
silêncio. Assim como a noite toda. Ele mal a olhou nos olhos, mas apertou a
sua mão.
— Você disse que alguém contestou o testamento de Dorothy? —
incentivou Elizabeth, do seu lugar ao lado de Martha e Thomas no sofá.
— Jacob Bright – o advogado dela; talvez você se lembre dele, Christie
– recebeu uma carta de uma pessoa sugerindo ser um membro da família
Temple.
Thomas se endireitou.
— Não sobrou ninguém. Não de acordo com George, pelo menos.
— A pessoa diz o contrário, pois alegou ser um descendente direto de
Henry e Eleanor Temple através da filha do casal. É uma árvore
genealógica complicada, com algumas lacunas nos registros ao longo dos
anos, mas essa pessoa, com certeza, acredita que faz parte da família.
— Mas mesmo se ele for um Temple, o que isso tem a ver com
Dorothy? — Martha franziu a testa. — Ela não tinha relação alguma com
eles.
— Não, mas a sua família, um dia, foi dona desta linda casa. A
contestação se trata da troca de posse da Casa Palmerston entre Harry
Temple e Eoin Ryan.
— Ah, o jogo de pôquer? — Christie se inclinou para frente.
— Sim. A pessoa alega que Eoin Ryan ilegal e imoralmente convenceu
Harry Temple a apostar a casa da família. — Angus fez uma pausa para
bebericar o chá.
— Mesmo assim, o que isso tem a ver com a herança de Dorothy? —
Martha continuou entrelaçando os dedos até Thomas repousar a mão sobre
eles. — A Casa Palmerston foi vendida há anos. Não fazia parte da herança.
Martin pegou a xícara de café.
— Presumidamente, se essa pessoa estiver correta e for capaz de
provar que a Casa Palmerston foi obtida ilegalmente, deve querer alegar
que seja o seu verdadeiro dono.
— Exatamente. Ele não se importa nem um pouco com o dinheiro,
nem com a casa da Srta. Dorothy em Toorak ou com os carros. Ele quer a
Casa Palmerston.
Elizabeth arfou.
— Nenhuma prova foi apresentada. Nem sequer o fragmento de uma
evidência, exceto a cópia de um extrato vinda de um suposto diário de
Harry Temple. Quando Jacob pediu acesso ao diário completo para verificar
a autenticidade, retiraram a queixa.
— Mas quem inventaria algo assim? E, se fosse verdade, ele realmente
teria o direito de… de tomar… — Elizabeth empalideceu, e Angus se
inclinou para acariciar a perna dela.
— Não quis te deixar alarmada. Jacob acha que não. Além disso, seja
lá quem esteja por trás disso desistiu.
— Quem é essa pessoa? Talvez Martin e eu devamos fazer uma
visitinha.
— Não precisa, Thomas. Nunca nos encontramos com ele, mas ele
assinou tudo como William Temple. As pesquisas de Jacob sobre o homem
não chegaram a lugar algum. Uma situação muito estranha, mas você não
precisa se preocupar, Elizabeth.
— Como as coisas estão agora, Angus? — perguntou Martin.
— Ele não entra em contato com a gente há mais de uma semana,
apesar de Jacob ter tentado muitas vezes finalizar tudo. Ele acha que foi
apenas um capricho e que isso não vai dar em nada.
— Tem coisas estranhas demais acontecendo em Rivers End. —
Thomas apertou a mão de Martha. — Sugiro mantermos a calma e
suspeitarmos de estranhos.

I os carros, Bernie deu a volta na Casa Palmerston e


entrou pela porta dos fundos. Mesmo dali, o riso e a conversa ressonavam, e
ele franziu a testa.
Estão na minha casa.
Sentados na minha mobília, aproveitando a vida privilegiada que
tinham, como se ninguém mais importasse.
Estaria Lottie com eles? Bernie se aproximou, pensando nas desculpas
que daria se alguém o pegasse bisbilhotando.
— O Trev passou aqui hoje? — O dono da voz deveria ser o novo
hóspede.
— Sim, Angus. Ele estava procurando um dos meus hóspedes.
— O dono do SUV? — Outra voz que ele não conhecia, uma voz cheia
de suspeita.
— Bernie, o fotógrafo.
— Hm…
— O que foi, Thomas? — Outra voz masculina, mais jovem.
— Como eu disse mais cedo, vamos suspeitar dos recém-chegados.
— Mas ele é um jovem muito gentil, organizado e silencioso. Gosta de
conversar sobre a Casa Palmerston.
Muito bom, Elizabeth. Talvez eu te deixe ficar num dos quartos de
hóspedes.
— Então por que o Trev queria falar com ele?
— O que você está fazendo?
Bernie se assustou, então olhou para Charlotte, que estava parada no
meio da escadaria, com os braços cruzados.
— Está bisbilhotando?
Qualquer esperança de ouvir a resposta de Elizabeth desapareceu, e
Bernie caminhou até a base da escada.
— O que raios você está fazendo? — sibilou ele.
— Pegando um café. Por que está ouvindo a conversa deles? Se
quisessem ter te incluído, teriam feito isso.
— Está planejando sair correndo e contar para eles? Talvez seja você
quem saiu dizendo que havia uma recompensa pela minha cabeça.
— Ah, o que ele te disse?
— Então foi você. — Bernie avançou pelos degraus até estar na mesma
altura de Charlotte, sorrindo quando ela estremeceu.
— Não. Você é o responsável por qualquer visita da polícia que
receber, não eu. Pare de ficar espiando.
— Se eu fosse você, tomaria muito cuidado, Lottie. — Ele se juntou a
ela no mesmo degrau, invadindo seu espaço pessoal e, apesar de ela não ter
se mexido, Bernie saboreou o medo nos olhos da mulher. — As garotinhas
não deviam mexer com aquilo que não compreendem.
— Está me ameaçando?
— Entenda como quiser, mas fique longe de mim.
Ele passou por ela e subiu as escadas correndo. Quando chegou ao
quarto, trancou a porta e jogou a mochila no chão. Agora, nunca saberia o
que Elizabeth disse. Bernie pegou o diário e, sem se incomodar em tirar os
sapatos, deitou-se na cama e abriu o caderno.
35- UMA CHAVE PERDIDA

1853
H atrás do estábulo, esperando o anoitecer. A família
Ryan ainda não tinha chegado. O dia todo, carretas cheias de móveis
vinham pela rua. Reconheceu os trabalhadores da empresa madeireira de
Eoin Ryan, retirados das responsabilidades rotineiras para o trabalho
aparentemente mais importante de apagar qualquer traço da família Temple
na Casa Palmerston.
A última carreta foi embora, e Harry escalou ao segundo andar,
encontrando apoios para as mãos e os pés no calcário e se arrastando para
cima. A janela do quarto mais distante estava aberta, como ele rezou que
estaria. Em segundos, tinha entrado.
O baú não estava no quarto da filha, e a mobília nova enchia o cômodo
que, um dia, ele e Eleanor tinham decorado juntos. Não haveria mais
risadas, nem passos leves correndo dali ao quarto principal, de uma
garotinha com um grande sorriso.
— Maldito seja. — Bateu a porta ao sair, incerto quanto a quem havia
amaldiçoado. Sentou-se no topo da escadaria, construída baseada nas suas
especificações, com a madeira de Eoin Ryan. Abaixo, o saguão zombou
dele com lembranças: música do quarteto de cordas que havia trazido de
Melbourne; mulheres em vestidos esvoaçantes dançando com homens de
terno; os amigos, todos ali para a inauguração do século, há apenas dois
anos.
Onde estariam esses amigos hoje? Todos tinham dado as costas a ele
assim que pedira ajuda. Um deles, provavelmente, havia abrigado sua
esposa e filha, sem sequer avisar Harry de que estavam seguras. Sua vida
era um fracasso.
Depois de alguns momentos, sentindo pena de si mesmo, o homem
ligou a lanterna e foi procurar. O baú estava na sala de estar. Guardou a
chave num bolso, suspirando satisfeito, mas não havia tempo para se
deleitar com o momento, pois o som distinto de mais carretas atravessou a
janela.
Correu para fora da sala, em direção aos fundos da Casa Palmerston,
assustando-se com o som de uma chave na porta da frente.
Antes de chegar ao fim do corredor, a luz da lanterna de Eoin invadiu a
sala.
— Quem está aí? Pare!
Harry correu até alcançar a porta dos fundos. O ar gelado encontrou
seu rosto assim que irrompeu no quintal. Os passos pesados o seguiram, e
ele derrubou a lanterna, avançando pela trilha grosseira e adentrando a
noite.
— Volte aqui!
Harry se jogou atrás de uma árvore. Quando as luzes se aproximaram,
arrancou a chave do bolso. Não poderia ser encontrado, não com isso nele.
A prisão não era uma opção, mas era onde acabaria, se Eoin ou seus
homens o pegassem.
— Chefe, acho que ele foi por aqui — gritou uma voz, do outro lado.
Harry parou de respirar até ouvir Eoin voltar pela trilha e sumir de vista.
Saiu de trás da árvore, quase trombando com as costas de um dos homens
de Eoin.
— Aonde você acha que vai? — O homem se virou e tentou agarrar
Harry, que desviou e cambaleou para longe. O medo levou Harry até a
lagoa. Então, contornou-a, mas o perseguidor se aproximou.
Movendo o punho, jogou a chave no rasinho. Voltaria para pegá-la.
Seus pés escorregaram na terra macia da margem do lago, e ele se arrastou
até o terreno mais alto – direto ao punho de Eoin Ryan.

N ,B cruzou os braços atrás da cabeça, com os olhos no


teto. Estaria a chave no lago, ou teria Harry voltado para buscá-la? O diário
mencionava Eoin Ryan o alertando de que deveria ficar longe da
propriedade se não quisesse ser processado. Em seguida, houve um discurso
de autopiedade sobre sua má sorte. A última anotação, uma semana depois,
se referia a obter uma corda longa o bastante para descer até a entrada da
caverna.
Então, você morreu.
Ou desistiu. Provavelmente, o homem tinha dado o último suspiro
como um homem velho, solitário e amargo em algum lugar a quilômetros
de Rivers End. Derrotado pela família Ryan e pela própria falta de orgulho.
Sem coragem alguma. Primeiro, apostara a casa da família. Depois,
simplesmente fugiu.
Bernie fechou os olhos. Amanhã seria um dia cheio. Começaria com
uma visita ao Coronel Sibbritt para limpar seu nome. Em seguida, daria
outra passada no penhasco. Quando estivesse escuro, sua busca pela chave
continuaria.
36- EU FARIA QUALQUER COISA POR VOCÊ

D , Martin e Christie caminharam pelo pasto até a casa,


parando para um beijo e tirando um ou outro momento para observarem o
mar. O ar estava fresco e agradável, apesar da hora. Subiram o penhasco,
conversando sobre as revelações após o jantar.
— Você conhece esse Bernie Cooper? — perguntou Martin.
— Não. Eu o vi de longe na praia, ele estava tirando fotos.
— Do mar?
— Na verdade, não. Da lateral do penhasco. Estava no finzinho do
píer, com uma lente gigante apontada para esse lado da praia.
— Hm…
— Está parecendo o Thomas.
— Thomas tem uma opinião formada do homem.
— E Trev quer falar com o Bernie. Sobre o que será?
— Não te interessa, querida.
— Mas…
— Christie.
— Tudo bem, tudo bem.
Martin destrancou e abriu a porta de correr. Randall saiu apressado,
todo animado com o rabinho erguido. Seguiu-os para dentro, mas, logo em
seguida, saiu de novo. Christie foi até a cozinha.
— Café? Água? Vinho?
— Água, obrigado.
Quando Christie chegou com dois copos d’água onde Martin tinha se
sentado na sala de estar, Randall estava ao lado dele. Repousou os copos e
fechou a porta de correr, trancando-a.
— Obrigado, acho que o dia de hoje me deixou exausto.
Christie se sentou ao lado de Martin, dando um copo a ele.
— Você não dormiu, né?
— Não. Eu te contei que encontrei Trev num ponto de parada? Ele
estava bebendo café e apreciando a vista.
— Ah, por isso ele saiu tão cedo.
— Ele mencionou ter te visto na cidade. — Martin encarou Christie
sobre as lentes dos óculos enquanto bebericava.
— Rivers End está segura. De novo.
— Não gosto de você perambulando por aí na escuridão.
— Estava quase de manhã, pare de se preocupar comigo. — Christie
beijou a bochecha dele, sorrindo.
— Impossível. — Martin repousou o copo. — É melhor você
aproveitar seus últimos dias de solteira. — Ele pegou o copo da mão de
Christie, deixando-o ao lado do seu. — Minha esposa não vai vagar pelas
ruas antes do amanhecer. — Ele enrolou os braços ao redor dela. — Nem
vai se arriscar tirando objetos pesados de sótãos.
— Não era pesado.
— Ela não vai se esquecer de carregar o celular nem de avisar às
pessoas aonde está indo. Com certeza, não vai ignorar o marido quando ele
disser que deve cuidar de si mesma.
Christie inclinou a cabeça, com os olhos brilhando.
— Essa sua esposa não pode fazer muitas coisas. E se ela se recusar a
te deixar exercer um controle tão arcaico sobre o livre-arbítrio dela?
— Faz parte do livre-arbítrio dela mudar suas atitudes. — Martin roçou
os lábios sobre os dela. — Não estou forçando-a a fazer nada.
— Então, o que ela pode fazer com… o livre-arbítrio dela? — Os
dedos de Christie brincaram com os botões da camisa de Martin.
— Ela pode rir muito, criar um novo e lindo salão, passar todas as
noites com o marido bonitão. E podem criar os filhos juntos. — Ele beijou
Christie profundamente, amassando-a contra ele. Quando Martin levantou a
cabeça, seus olhos estavam tão escuros quanto a noite. — Isso compensa as
pequenas mudanças que ela vai ter de fazer pela própria segurança?
— Eu te amo tanto — disse ela, não mais alto do que um sussurro. —
Eu faria qualquer coisa por você, Martin.

M , Martin se sentou diante do cavalete no estúdio,


com uma lâmpada criando um espaço de trabalho apertado ao redor. Tocou
na pintura, incomodado. Tinha dormido, mas muito pouco. As palavras de
Christie o incomodaram.
Eu faria tudo por você, Martin.
Ainda assim, ela estava guardando um segredo outra vez. Não para
feri-lo, nem para enganá-lo deliberadamente, ele tinha certeza disso. Ela era
uma pessoa honesta. Mas também era alguém que se importava muito com
os outros e que nunca gostou de ser um fardo para ninguém. Fora isso, a
avó tinha ensinado a neta a erguer barreiras para se proteger. O padrão de
Christie era não dizer nada, não compartilhar nada – a menos que fosse algo
positivo.
Abaixou o pincel e encarou o quadro. O que tinha se passado na cabeça
dele naquele momento? Na pintura, ela estava segura em seus braços, junto
com Randall ao lado. Tinha sido o resultado. Mas quando havia Christie se
sentido segura? Quando ela soube que o sofrimento tinha acabado?
Ela sequer sabia disso?
E o que aconteceria quando o Mar de Jasmim estivesse de volta?
O cansaço o dominou. Estava cansado demais para limpar o pincel,
então se levantou e pegou o lençol. Esse era outro problema. Sua intuição
lhe dizia que ela tinha visto a pintura. Isso o incomodava de tantas maneiras
diferentes… ainda mais porque ela não havia dito nada. Martin não queria
ser direto e perguntar. Dê um tempo a ela. Era assim que ele lidava com as
coisas.
Martin desligou as luzes e trancou a porta do estúdio. A grama estava
molhada por conta da névoa baixinha. Deixou os sapatos na varanda e, em
silêncio, fechou e trancou a porta de correr. Estava tudo calmo ali, apesar de
Randall ter erguido a cabeça, com os olhinhos sonolentos.
Christie dormia de lado, com o cobertor na lateral. Martin tocou seus
ombros e sentiu que estavam gelados, então a cobriu de novo. A mulher se
remexeu quando ele se deitou, mas não acordou, então Martin a observou
até os olhos ficarem pesados demais. Logo, essa seria a realidade deles.
Passariam todos os dias e noites juntos. Perfeito.
37- UMA JANELA ABERTA

A casa na manhã seguinte, Christie deu uma passada na Casa


Palmerston para falar com Elizabeth. Encontrou-a na cozinha, tomando um
chazinho com Angus.
— Você sequer foi embora? — Angus a abraçou, então puxou uma
cadeira assim que Elizabeth pegou outra xícara.
— Fui para a casa do Martin. Ele me mandou embora depois do café
da manhã, com a desculpa de que faria alguma coisa secreta de noivo.
Vocês dois sabem o que ele anda tramando? — Christie se sentou e sorriu
em agradecimento quando Elizabeth entregou o café a ela.
— Não faço nem ideia, e você não deveria se preocupar. Qualquer
homem precisa de um tempo para se preparar para um dia tão importante.
— Angus sentou-se outra vez.
— Então ele vai se encontrar com o Thomas?
— Christie.
— Você está parecendo o Martin: “não faça perguntas, nem se
preocupe com o que as outras pessoas estão fazendo.” Ele se recusa a
especular sobre os porquês… — Christie olhou para a porta, então, baixou a
voz. — Trev veio visitar o seu hóspede.
— E não deveríamos falar disso aqui. — Elizabeth deu um sorrisinho,
mas seu tom soou firme.
— Desculpa, você tem razão. Mas eu queria saber se você sabe algo
sobre a história do baú.
— Aquele que você encontrou no sótão?
— Sim. Thomas e eu conversamos um pouquinho sobre isso noutra
noite. Ele disse que ficou surpreso por eu não ter me interessado no porquê
das cartas e anéis estarem trancados lá dentro, escondidos no sótão de uma
casa de campo vazia. E isso me chocou, porque nunca imaginei que ele
tivesse morado lá com Frannie, nem que ela manteve o segredo tão perto de
todos.
— Mas ele não morou. Desde que me tornei dona da Casa Palmerston
– até Thomas se casar com Martha –, ele só morou naquela cabaninha nas
montanhas. Mas, na época, já estava criando Martin sozinho.
— Onde será que Thomas e Frannie moraram? Ou também moraram
na casa nas montanhas?
— Não, ele a comprou depois da tragédia. Lembro da Daphne dizendo
que John cuidou da venda da casa da família de Thomas, e que encontrou
outro lugarzinho para ele. Mas… voltando ao baú, você não é a primeira
pessoa a me perguntar isso. — Elizabeth brincou com a xícara. — Bernie
Cooper me fez a mesma pergunta outro dia.
— Ele fez?
— Disse que se deparou com a menção de um baú de madeira numa
papelada velha na biblioteca de Green Bay e que ficou curioso. Eu disse
que, um dia, houve um baú na casa de campo. Ah, querida, eu fiz algo
errado?
Angus apoiou a mão sobre a de Elizabeth.
— O jovem só estava interessado na história. Não é como se ele fosse
um ladrão, querida.
— Exatamente. Você não fez nada de errado, Elizabeth. Tenho certeza
de que se ele for tão gentil quanto você diz, Bernie só estava curioso quanto
a algo relacionado à Casa Palmerston. Mas eu não sabia que a biblioteca de
Green Bay guardava registros. Talvez valha a pena eu dar uma passada lá.
— Não se esqueça de que George sabe praticamente tudo sobre a nossa
cidade, eu perguntaria a ele primeiro.

— O RAIOS fazendo, querido? — Martha correu pelo


corredor, saindo da cozinha, quando ouviu a escada do sótão se abrir.
Thomas estava parado abaixo da porta de acesso, olhando para cima e
prendendo o ganchinho.
— A janela está aberta.
— Aberta? Como isso foi acontecer? Mais importante: como você sabe
disso, Thomas? — Ela arrancou o ganchinho da mão dele, encaixando-o no
anel que Christie havia prendido na parede no corredor.
— Ouvi de noite. Rangendo, indo e vindo. Pensei que fosse uma árvore
no telhado, mas dei uma volta lá fora e vi que a janela estava aberta.
— Tenho certeza que podemos esperar a Christie chegar.
— O Martin já me culpou por ela ter caído da escada da outra vez,
então não vou deixar que ela faça isso de novo. Você poderia segurar a
escada? Eu já volto. — Thomas ergueu a mão para segurar um degrau.
— Não gosto disso. — Mesmo assim, Martha segurou a escada.
— Eu costumava descer e subir todo dia — resmungou ele, erguendo-
se ao primeiro degrau.
— Você não é mais um adolescente.
Thomas sorriu e tentou dar-lhe um beijo na bochecha, mas falhou
quando a escada balançou.
— Mas me sinto como um ao seu lado, mulher.
— Cuidado onde pisa. Não gosto nem um pouco da ideia de chamar
uma ambulância. Talvez seja melhor eu já ligar, só por precaução.
Degrau a degrau, Thomas subiu. Lá em cima, ele parou.
— Viu? Tudo certo, pode colocar a chaleira no fogo. Vou estar pronto
para um cafezinho daqui a alguns minutos.
— Não vou sair daqui até você estar no chão de novo!
Ele sorriu e girou o corpo, sentando-se na beirada da abertura. Então, o
sorriso sumiu. Fazia quase cinco décadas desde que havia estado ali.
Thomas se levantou e acendeu a luz. Tudo estava igual. O balcão ainda
tinha manchas e mais manchas coloridas. Um dia, tintas que ele havia
conseguido com trabalho duro e suor recobriam a madeira, pontuada com
seus pincéis favoritos. Horas trabalhando no bar lhe rendia apenas um
potinho, mas Thomas exigia qualidade, e todos os centavos valiam a pena.
Ele tinha guardado três cavaletes. Um com uma tela em branco, outro com
uma pintura terminada e mais outro, com um quadro pronto para ser
vendido. Não que ele tivesse vendido muita coisa no começo da carreira.
Apenas depois de Martha partir, e de ele ter derramado o coração no
trabalho, foi que os compradores chegaram. Um, depois outro, até ter quatro
ou cinco cavaletes. Com esse dinheiro, criou a família.
— Tom? Tudo bem?
— Estou vendo se não tem nenhum rato.
— Rato?
Rindo, Thomas foi até a janela. Ela ia e vinha na brisa, e o homem
estendeu a mão para segurá-la. Fechou-a e trancou-a. Então, tentou
empurrar a trama de madeira, que nem se mexeu. Ele franziu a testa. Como
foi que a janela se abriu?
Há muito tempo, com a chuva retumbando no telhado de metal, ele
havia ficado parado ali por horas, observando cegamente a chuva. A chuva
que tomara Martha dele, que mudara a vida dos dois para sempre. Que
quebrara o seu coração, mas que, ainda assim, o transformou no homem que
ele era hoje.
Do lado de fora, a luz brilhante do sol preenchia todo o jardim
verdejante com flores nascentes. Graças a Christie, a outra mulher da sua
vida, Frannie não mais era um dos seus amores. Ela tinha arruinado tudo,
decepcionando-o. Agora, era apenas a mãe do seu filho amado – e avó de
Martin, a luz da sua vida.
— Oi. Precisa de ajuda? — Christie apareceu na portinhola.
— Foi a minha esposa quem te mandou? Ela não confia em mim.
— Ela está fazendo café. Ela confia em você, só não quer te perder.
— Impossível. — Já fazia tempo demais que Thomas estava ali em
cima. — Mas fico feliz de você ter subido, já que não sei como descer.
38- GATO E RATO

—M você queria me ver. — Bernie se apoiou no balcão da


delegacia assim que Trev saiu do quarto dos fundos. Olhou ao redor, era um
lugar pequeno para uma delegacia: apenas um escritório com duas mesas e
a porta de onde Trevor Sibbritt tinha saído – provavelmente, morava nos
fundos. Viu outra porta com trancas e cadeados. Celas?
— Obrigado por ter vindo. Bernie, certo? Ou prefere Bernard?
— Bernie.
— Gostou da cidade, Bernie?
— Amei. Elizabeth é uma anfitriã maravilhosa, e a Casa Palmerston
parece… um lar.
— E quanto tempo você vai ficar?
Bernie encarou Trevor, forçando o sorriso a grudar no rosto. Os braços
do policial se cruzaram quando ele se afastou um tantinho do balcão, como
se estivesse analisando Bernie.
— Não sei. Estou tirando umas fotos e recolhendo algumas
informações sobre a cidade, especialmente históricas. Para um livro, como
você sabe.
— Que tipo de informação?
— O de sempre: quem fundou a cidade, quem expandiu a cidade, de
onde os habitantes vieram, onde as pessoas iam apostar… estou brincando.
Por quê?
O coronel apoiou o quadril na lateral do balcão e descruzou os braços,
espalmando a mão no tampo de madeira.
— Estamos numa cidade muito boa. Pessoas boas moram aqui –
famílias, idosos. Adolescentes. Todos de bem.
E o que ele tinha a ver com isso?
— Com certeza.
— Então fico preocupado quando uma dessas boas pessoas tem uma
experiência desagradável com um… visitante.
— Antes que isso saia do controle, preciso me desculpar. — Bernie
ficou cabisbaixo e suavizou o tom da voz. — Ontem de manhã, bem cedo,
recebi uma ligação do meu tio. Sou bem próximo dele, é como um pai para
mim. — O homem olhou para Trev, com os olhos úmidos. — Ele teve um
ataque cardíaco. Morreu dormindo. Não houve nenhum sinal de que algo
estava errado.
— Sinto muito.
— Obrigado. Isso me afetou, não posso mentir. Saí pra caminhar ainda
atordoado e acabei sentando do lado de fora da padaria. Não fazia ideia de
que as mesas eram deles. Fiquei muito chateado quando a jovenzinha me
disse para ir embora, como se eu fosse um mendigo ou algo assim.
— Por que não me conta o que aconteceu? — Trevor apoiou a outra
mão no balcão e se posicionou, afastando as pernas.
Era uma linguagem corporal forte. Trev provavelmente imaginava que
o seu olhar parecia impositivo, o que era um tanto cômico.
— Com a garota? Eu me sentei e bebi um pouco da minha água.
Sempre levo uma garrafinha comigo. Eu me envergonho de dizer que estava
dando uma choradinha. Tenho me sentido sozinho agora que ele se foi – o
meu tio. — Bernie deu um longo suspiro. — Ela saiu e disse que, a não ser
que eu pedisse algo para comer… bem, eu teria de ir. Respondi que eu só
precisava de um tempinho pra me recompor. Tomei mais um pouquinho de
água e percebi que não conseguia nem pensar em comida. Foi o que eu
disse, mas devo ter soado de outra maneira. Acho que ela não me entendeu.
— E depois? O que aconteceu?
— Peguei a minha garrafa e fui embora. Parecia que o mundo todo
estava contra mim. Ainda estou muito triste.
— Tudo bem. Bernie, a sua versão é bem diferente da de Jess, que é
uma adolescente ajudando a mãe no trabalho.
— Ah, eu não sabia. Talvez eu estivesse mais perturbado do que
percebi e acabei dizendo algo inadequado por conta do luto. Vou dar uma
passada lá e me desculpar, se você concordar. — Vamos, deixe isso de lado.
— Não vou incomodar mais ninguém. Nunca planejei fazer isso e não sei
por que deixei a morte do meu tio me afetar tanto.
— Vou conversar com a Sylvia e ver se ela e Jess se sentem
confortáveis com isso. Se sim, podemos marcar um horário. Como eu disse
antes, sinto muito. Mas somos uma cidadezinha bem unida, colega. Se
alguém sai da linha, todo mundo fica sabendo. Entendeu?
— Entendi. — Bernie ofereceu-lhe a mão, e Trev a apertou. —
Obrigado pela conversa. — Sem dar a chance a Trevor de fazer mais
alguma pergunta irritante, Bernie se virou e foi embora. Não tinha qualquer
intenção de se desculpar com ninguém.
D da rua da delegacia, ficou claro para Charlotte o quão
nervoso Bernie tinha ficado, ao ir marchando pelo portão e batendo-o ao
sair. Algo terrivelmente errado rondava a mente de Bernie. Ela havia
deixado os primeiros sinais passarem despercebidos. A obsessão pela Casa
Palmerston crescia, enquanto a habilidade do homem controlar seu
temperamento diminuía. Não era uma combinação boa.
Ele caminhou pela calçada. Charlotte deu alguns passos do seu lado da
rua, parando abruptamente quando ele fez uma pausa e olhou para o
relógio, encarando-o por um tempinho.
Ele lembra!
Em uma das suas primeiras consultas com Charlotte, ela o ensinou a
técnica calmante de usar um relógio para ritmar a respiração até a ansiedade
ser controlada.
Quando Bernie parou de andar outra vez, parecia menos apressado. A
tensão tinha ido embora. Ele atravessou até a esquina, onde George estava
sentado em frente à loja, sob a luz do sol. Bernie se acomodou ao lado dele,
fora da vista de Charlotte. Ela correu pela rua para conseguir ver tudo.
Trev estava apoiado no portão, de olho nela.
O coração da mulher acelerou.
— Ah, eu não te vi aí. O dia está lindo.
— Bom dia, Charlie. Está mesmo.
— Não saiu para patrulhar hoje? Para visitar as montanhas?
— Não.
— Certo.
— Café?
Ela não conseguiu se segurar e lançou um olhar para a joalheria. Bernie
estava falando, mas George olhava para frente, não dando atenção alguma
ao homem.
— Obrigada, mas não. Preciso ir.
— Planeja segui-lo o dia todo?
— Oi?
— Estou de olho nele agora, então relaxe. Pode deixar que eu me
preocupo com Bernard Cooper.
— Não sei o que você quis dizer com isso. — Ela se obrigou a olhar
para Trev, mas desejou não o ter feio. A expressão do homem era intensa e
firme. Seus olhos iam dos dela para a cena que acontecia na rua antes de
voltar outra vez ao rosto de Charlotte.
— Claro que sabe. Você poderia deixar o meu trabalho muito mais
simples se confiasse em mim e fosse honesta comigo quanto a ele.
— Eu confio em você.
— Então qual é o problema? E antes de você fugir ou mentir para mim
de novo, eu te vi observando o Bernie pela rua toda. Estava pronta para sair
correndo atrás dele. — Trev se esticou sobre o portão e segurou uma das
mãos da mulher.
O calor da pele dele era reconfortante. As mãos dele eram grandes e
duras, mas segurava-a com gentileza. A quentura subiu pelo braço de
Charlotte e se espalhou pelo corpo.
— Ele era um paciente? Você acha que não pode quebrar o sigilo entre
médico e paciente?
Qualquer coisa que ela dissesse seria errado, e não poderia falar sobre
Bernie.
Trev olhou para além dela. Seu rosto ficou sério.
— O que foi?
Daphne seguia em direção à joalheria, andando com pressa. George e
Bernie estavam de pé.
— George está chateado — disse Charlotte.
— Daphne também. Lá vai o Bernie.
Antes de Daphne chegar na metade do caminho, Bernie saiu
marchando na direção da Casa Palmerston.
Trev abriu o portão com a mão livre.
— Conversamos mais tarde.
— Vou com você.
— Charlotte, se não puder me ajudar, você não virá junto. — Ele
soltou a mão dela, e um calafrio substituiu o calor. — Isso é trabalho para a
polícia. A menos que queira me ajudar quando eu te pedir, é melhor não
estarmos juntos.
A finalidade nas palavras de Trev a consumiram quando ele se afastou.
Num minuto, a mão dele estivera ali para tranquilizá-la, logo depois, tinha a
deixado sem qualquer dúvida de suas expectativas.
Ajude-me ou fique fora do caminho.
— Não posso te ajudar — sussurrou ela, e as lágrimas surgiram.
Piscando e respirando fundo algumas vezes, ela recuperou o controle.
Melhor sozinha.
Era sempre melhor estar sozinha.
39- UM BAÚ IMPORTANTE

D , com enroladinhos de salada, na cozinha da casa de


campo, Christie atualizou Martha e Thomas sobre sua visita a Angus e
Elizabeth.
— Vocês sabem o que Martin está aprontando? — Christie deu uma
mordida no seu enroladinho, mas não deixou de notar o olhar que os dois
trocaram. — Eu vi isso.
— Não fale com a boca cheia, querida. — Martha serviu-se de chá.
— Além disso, o pobre homem está prestes a perder a liberdade. Pelo
menos, deixe-o passar um dia sozinho. — Thomas sorriu quando Christie
quase se engasgou na alface. — Quero dizer, você não tem de saber seja lá
o que Martin estiver fazendo. Ainda não.
— Você e o Angus ensaiaram as respostas? — resmungou Christie. —
Como a Martha te aguenta?
— Fico surpreso todos os dias quando acordo e a encontro aqui. —
Thomas estendeu a mão, e Martha repousou a dela na dele. — Me faz
lembrar de que tenho um ou dois bons atributos.
— Mais do que um ou dois, querido. — Martha apertou a mão dele.
— Enfim, por que vocês subiram no sótão? Não tem muita coisa lá.
— A janela estava aberta.
Prestes a dar uma mordida, Christie parou.
— A janela do sótão?
Thomas assentiu, tirando um pedacinho de tomate do enroladinho e
jogando-o na boca.
— Tenho de admitir que nem vi se estava fechada. Como você notou?
— Ouvi rangendo a noite toda. Ela abre pra fora, não para cima e para
baixo como as outras. Não deve ter sido aberta em décadas, não desde que
eu trabalhava no sótão.
— Provavelmente, deve ter afrouxado com o tempo. Um pouco de
vento e acabou abrindo. — Martha brincou com a própria comida, mas não
comeu nada. — Não precisa se preocupar.
— A gente saiu noite passada. Não ouviram nada antes disso? —
perguntou Christie.
— Nadinha.
— Você tem uma teoria, Thomas? — Christie olhou para Martha, que
arrancava pedacinhos de alface do enroladinho antes de devolvê-los ao
lugar. — Tia, estamos apenas especulando.
— Já nos chateamos demais por aqui.
— E se alguma outra coisa estiver acontecendo? É melhor sabermos.
Martha assentiu e recolheu o enroladinho.
— Só não deixe o velhote se envolver numa confusão.
— Eu estou aqui, sabia que posso te ouvir?
— Então, qual é a teoria? — Christie deu uma piscadinha para Martha
antes de voltar-se para Thomas. — Um gambá gigante?
— O motorista do SUV.
Christie repousou o que restava do enroladinho no prato, sem nunca
desviar os olhos de Thomas. O rosto dele parecia sombrio. O hóspede de
Elizabeth? Sua mente reviveu a conversa com a mulher. Por que Bernie
Cooper estava interessado num baú de madeira?
— Thomas.
— Sim, Christie?
— Que tipo de registro antigo a biblioteca Green Bay tem da Casa
Palmerston?
— Você não está fazendo sentido, o que isso tem a ver com o nosso
sótão? A não ser que…
— O baú.
Martha afastou o prato quando terminou de comer.
— Nenhum de vocês dois está fazendo sentido. Vou esquentar mais
uma chaleira.
— Obrigada, tia. Adoraria tomar mais chá. Desculpa te chatear.
— A Irlanda até parece um lugar tranquilo, onde nada acontece. —
Martha se levantou e começou a recolher os pratos.
— Explique-se. — Thomas se inclinou para frente.
— Tudo bem. Hoje cedo, Elizabeth me disse que Bernie Cooper
perguntou se ela sabia algo sobre um baú de madeira. Aparentemente, ele
tinha dado uma passada na biblioteca de Green Bay e feito uma pesquisa
sobre a região para o livro. Ele acabou encontrando algo que o interessou.
— Supostamente.
— Como assim?
— Você disse “aparentemente”. Para mim, soou como “supostamente”.
Eles têm algumas fotos e jornais, alguma menção sobre as minhas pinturas,
um registro do declínio da indústria madeireira local e da mudança na bitola
da linha de trem. Pode ir lá e confirmar, Christie. Na verdade, posso até ir
com você. Li muito lá, porque me ajudava com o trabalho, mas nunca vi
nenhuma palavra sequer sobre o baú. — Thomas se endireitou na cadeira.
— Elizabeth sugeriu que eu falasse com o George.
— Sim, ele sabe quase tudo sobre Rivers End.
— Talvez ela tenha dito a Bernie para falar com ele também.
— Então é melhor irmos conversar com o George.
A chaleira apitou, e Martha a pegou para encher o bule.
— Tudo isso soa muito interessante, mas o que faz vocês dois
suspeitarem que esse Bernie está fazendo tudo de maneira ilegal?
Thomas tamborilou os dedos na mesa.
— Eu não queria dizer nada, mas na noite em que você saiu com as
suas amigas, ele estava na estrada. Randall tentou me proteger, e tive de
impedi-lo de sair correndo atrás do SUV. Passou com tudo por mim no
escuro.
— O quê? Onde?
— Eu estava no fim da rua, Christie. O Randall ficou imóvel. Na
verdade, ele rosnou. Então, um veículo passou na maior velocidade,
espalhando cascalhos por toda parte. Trev acha que o parou minutos depois,
acelerando montanha abaixo. Alertou-o, mas deixou-o ir.
— Você não disse nada! — Martha trouxe o bule e o repousou num
baque. — Por que não me contou?
Thomas se levantou e envolveu Martha com os dois braços.
— Desculpa. Pensei que eu estava imaginando coisas depois de tudo
que enfrentamos com Derek e Rupert.
Christie sentiu um desconforto na barriga. Com certeza, este não
poderia ser mais um problema na cidade. Anos de paz, então, ela se muda e
todas essas pessoas maravilhosas são submetidas a problemas sem fim.
Apoiou a cabeça nas mãos. Logo em seguida, sentiu a mão de Thomas no
ombro.
— Fale com a gente.
— A Elizabeth disse algo ao Bernie.
— Disse o quê?
Christie ergueu a cabeça.
— Ela disse a ele que o baú estava na casa de campo.
— Por que o baú é tão importante? — Martha se sentou na cadeira,
com os olhos confusos. — E o que isso tem a ver com a janela do sótão?
Thomas e Christie se encararam.
— Alguém pode me explicar?
— Desculpa, titia. Não faço ideia do porquê o baú importa pra esse
homem. Mas, assumindo que importe, ele realmente se daria ao trabalho de
escalar…
— De qualquer maneira, é melhor darmos uma passada na biblioteca
de Green Bay. Caso ele esteja dizendo a verdade. — Thomas balançou a
cabeça para Christie.
— Thomas Blake, não sou uma criança que precisa de proteção! Vocês
acham que ele esteve aqui, não acham? — Martha se virou para Christie. —
Termine de dizer o que você ia falar.
— Martha…
— Não. Eu sei muito bem que isso pode ser algum tipo de problema e
prefiro saber agora do que ter uma surpresa desagradável mais tarde. Ele
escalou até o sótão, pela janela, e desceu pela portinhola?
Christie deu de ombros.
— Se ele fez isso, não tocou em nada que eu tenha percebido. O baú
ainda está na sala de jantar. Você se lembra de mais alguma coisa? É
valioso?
— É velho e único. Mas por que ele o roubaria, querido?
Realmente, por quê?
Nada daquilo fazia sentido a Christie.
— No que está pensando? — Thomas serviu o chá, enquanto Martha o
observava, ainda parecendo chateada.
— Acho que vou visitar o George. Vou descobrir o que esse homem o
perguntou sobre o baú e o que George sabe sobre a peça. Depois disso, não
sei. Vamos ver o que vai acontecer.
— Eu vou com você. — Thomas começou a se levantar.
— Não. Por que não fica e passa um tempinho com a Martha? Não
gosto quando vocês dois ficam bravos um com o outro.
— Não estamos bravos. Podem ir juntos, enquanto eu limpo tudo aqui.
Depois, vou caminhar pelo jardim. — Martha pegou a mão de Thomas,
sorrindo. — Pode ir.
Thomas se inclinou para frente e beijou Martha nos lábios.
— Como você quiser, esposa.
40- CRIANDO CONFUSÃO

B beirada do penhasco para o mar que espiralava abaixo. O


vento ficava mais forte, e o homem se protegia dos golpes. A corda
continuava presa a um dos arbustos, enrolada cuidadosamente sobre a
grama.
Como uma cobra prestes a atacar.
Não muito tempo atrás, ele teria sido a cobra. Teria passado
despercebido pela presa até ser tarde demais.
Ele riu.
De algum lugar acima, o cachorro desgraçado latiu. Bernie deslizou
entre os arbustos e se apoiou contra a lateral da rocha. Por que não o
deixava em paz? Falando nisso, toda a maldita cidade deveria deixá-lo em
paz. Cerrou as mãos, transformando-as em punhos. A única pessoa que
havia sido amigável com ele foi Elizabeth, mas agora que aquele tal de
Angus tinha chegado, até ela deixou de ser hospitaleira. O tempo estava
contra ele.
Não ouviu mais nada vindo do topo do penhasco, então Bernie saiu
outra vez dos arbustos. Dali, quase podia ver o topo da entrada da caverna.
Quão mais fácil seria chegar de barco, se apenas as ondas pudessem
cooperar… A maré alta ao amanhecer ou anoitecer seria perfeita, bem
quando menos pessoas notariam um barquinho do que ao meio-dia. O meio
da noite seria arriscado. Mesmo se alguém conseguisse chegar perto o
bastante com o barco para escalar até a caverna, prendê-lo e enchê-lo de
tesouros na escuridão seria mais do que impossível.
Então, tinha duas opções: para baixo e para cima do penhasco,
arrastando carga atrás de carga de itens preciosos assim que descobrisse
como subir com tudo. Ou pelo túnel. O homem resmungou. Por que a
chave não estava no baú? Agora, teria de caminhar por uma lagoa no meio
da noite fria.

O continuava tão lindo quanto no dia em que


tinha sido feito. Talvez até mais, com o envelhecer da madeira e as
pequenas marquinhas de uma vida longa. George deslizou a mão pela
superfície lisa. Parecia respirar por si próprio.
Que bela história você contaria, se emitisse palavras.
— George? Tudo bem?
Martin deixou a porta se fechar atrás dele, com o tilintar dos sininhos
acima.
George deu uma palmadinha no ombro de Martin antes de contornar o
balcão.
— Vou fechar mais cedo, não tenho nenhum cliente.
— Trev me ligou.
— É mesmo? — George abriu a caixa registradora para contar os
ganhos.
— Eu deveria conversar com esse tal de Bernard Cooper?
— Ele é um jovem muitíssimo confuso.
— Pare de ser educado. Trev me disse que ele te chateou.
George olhou para Martin.
— Essa não seria a palavra correta. — Ele voltou a contar o dinheiro.
— O que ele queria?
— Setenta e dois. Ele parece gostar muito do relógio de pêndulo e da
Casa Palmerston. Agora, ele começou a perguntar sobre uma chave.
Martin se apoiou no balcão.
— Que chave?
Sem falar outra vez e terminando de fazer as contas, George assentiu
para a porta da frente.
Martin trancou-a e voltou ao balcão.
— Você disse que Bernie Cooper veio perguntar sobre uma chave.
— Ah. — George colocou o dinheiro numa bolsinha de algodão e a
guardou. — Ele perguntou sobre um baú que tinha uma chave, me disse que
era propriedade da família Temple.
— Dos Temple? Em que mundo ele vive?
— Exatamente, mas me pareceu bastante obstinado.
— Acho que vou fazer-lhe uma visitinha.
— Trev tem tudo sob controle. E Daphne está cuidando de mim.
Martin deu uma breve risada.
— Fiquei sabendo. O que será que ela fez pra deixar Cooper com medo
dela?
— Ela não gostou nada dele.
— Você sabe o que ele está tramando?
— Eu não disse nada pra ele. Quer beber algo?
— Não, obrigado. Vou dar uma passada na casa de campo e ver como
as coisas estão.
— Mande um abraço para a Christie.
— Pode deixar, George. Tem certeza de que está bem? — Martin
estudou George com atenção. — Eu posso ficar.
— Não precisa, filho. Vou abrir a porta pra você.

D porta da frente da imobiliária, verificando duas


vezes. Então, girou a placa de ABERTO para FECHADO. Eram cinco em
ponto, e ela não esperaria mais nenhum minuto para terminar o dia. John
estava mostrando uma casa em Rivers End Heights a um possível
comprador, e ela tinha de passar no supermercado e comprar algo para a
janta.
Encarou o outro lado da rua, focando na joalheira. Já estava fechada, o
que não era comum para George. Geralmente, estaria varrendo a calçada da
loja quando ela chegasse. E fecharia assim que ela fosse embora. Durante o
dia, se não estivesse trabalhando numa joia ou atendendo a um cliente,
estaria no banquinho em frente da loja, conversando com alguém que ele
conhecia, ou observando o mundo girar.
Suspirando fundo, Daphne desligou as luzes e foi até a cozinha pegar a
bolsa. Alguém precisava fazer algo a respeito de Bernard Cooper! Mais
uma vez, ele tinha incomodado outro habitante valioso de Rivers End.
Apesar de George ter garantido que nada de ruim acontecera, os pelinhos
nos braços dela se eriçaram assim que viu o homem sentado ao lado de
George no banquinho mais cedo. Quando Daphne chegou lá, Bernie já tinha
ido embora. Covarde. Como se uma mulher mais velha e pequenina como
ela fosse uma ameaça.
O telefone tocou assim que Daphne encostou a mão na porta dos
fundos. Hesitou, mas voltou correndo para o balcão da recepção e atendeu.
— Imobiliária Rivers End, Daphne falando.
— Sra. Jones?
— Sou eu.
— Seu marido é o John Jones?
Daphne se sentou. Algo no tom do homem que ligava a preocupou.
— Sim. Ele não está aqui agora, mas posso te ajudar.
— Estou te ligando para avisar que ele está a caminho do hospital.
— O quê? — Daphne se levantou num pulo. — Por quê? Ele está bem?
— Houve um acidente. Acho melhor você se encontrar com a
ambulância lá.
— No Hospital de Green Bay?
— Sim.
A mão de Daphne vasculhou toda a bolsa, procurando as chaves.
— Que acidente?
— Não sei, só me pediram para te ligar.
Encontrou apenas as chaves da casa e do escritório. Ela raramente
usava o carro, então as chaves estavam em casa. Mas, pensando bem, o
carro estava com John.
— Por favor, espere um pouquinho. Eu não tenho carro.
O homem tinha desligado.
— Alô? Ah, não. John… — Ela nem mesmo tinha ouvido uma
ambulância, que teria vindo de Green Bay. E John tinha saído há apenas
vinte minutos, talvez trinta. Aquilo não fazia sentido algum. Com as mãos
tremendo, ligou para a delegacia.
— Delegacia de Rivers End. Coronel Sibbritt.
— É a Daphne. Ah, Trev. John sofreu um acidente.
— Conte-me o que aconteceu.
— Eu não sei. Quero dizer, alguém acabou de me ligar e dizer que ele
estava a caminho do hospital de Green Bay, mas eu não tenho um carro e
não sei se ele está bem e…
— Ei. Ei, respire fundo. Me dê um segundo para verificar, porque não
recebi nenhum alerta.
As pernas cederam, e ela caiu na cadeira num baque. Havia uma
fotografia do dia do casamento perto do telefone – John sorrindo para
Daphne. Que belo jovem. Seu coração deveria estar prestes a parar de bater,
pois ela não sentia mais nada.
— Está aí, Daph?
— Sim. — Sua voz soou baixinha.
— Não estou encontrando nada. Não há nenhum chamado de
ambulância, nenhum registro de acidente… nada. Cadê o John?
— No Rivers End Heights, mostrando uma casa para alguém.
— Certo. Por que não desliga e liga pra ele? Cadê você?
— No escritório.
— Vou chegar aí em dois minutos, tudo bem?
— Tudo bem. — Seria possível que a pessoa que ligou tivesse se
enganado? Mas quem confundiria John com outra pessoa?
— Desligue, Daph.
— Sim, certo. — Daphne desligou e ligou para o celular de John.
Ouviu tocar três, quatro vezes antes de cair na caixa postal.
— Você ligou para John Jones, mas não estou com o celular, então, por
favor, deixe uma mensagem e te ligarei de volta assim que possível.
— John! John, me ligue. Por favor. Por favor, amor. É a Daph. É claro
que é a Daphne. Me ligue de volta.
John era o amor da sua vida, e se algo acontecesse com ele… o que
faria? Iam se aposentar em breve e viajar. Pegou o porta-retrato e beijou a
fotografia dele. Queria ligar outra vez, mas e se ele estivesse tentando ligar
de volta ao mesmo tempo?
E se fosse verdade?
Não podia ser.
O telefone tocou, e Daphne quase o derrubou.
— John?
— Oi, Daphne. Não, é a Christie.
— Não posso falar agora. — Daphne desligou e irrompeu em lágrimas.
41- O MEDO DE DAPHNE

—Q . — Christie franziu a testa ao repousar o celular na mesa


da cozinha.
Martin tirou os olhos do cafezinho.
— Que rápido.
— Ela desligou na minha cara.
— A ligação caiu?
— Não. Ela disse que não podia falar agora e desligou. Parecia
chateada.
— Provavelmente, devia estar com um cliente.
Christie balançou a cabeça.
— Ainda assim, havia algo na voz dela… é melhor eu dar uma passada
lá pra ter certeza de que ela está bem.
— Você se preocupa demais com todo mundo… — Martin segurou a
mão de Christie. — Vamos dar uma olhada na Daphne.
— Obrigada. Vou avisar os outros, enquanto você termina o café. —
Christie se inclinou sobre a mesa e beijou a bochecha de Martin antes de se
levantar. — Acho que ainda estão lá fora.
Desde que voltaram do passeio à biblioteca de Green Bay, Thomas
estava do lado de fora com Martha. Christie os viu caminhando na
plantação de vegetais antes de Martin chegar, tomando sua atenção com as
preocupações quanto a George. Agora, ela saiu correndo, pensando em
Daphne e não nas informações curiosas que ela e Thomas tinham trazido
para casa. De alguma maneira, sentia que estava tudo conectado, apesar de
não saber como. Ainda.
Martha e Thomas estavam sentados perto do pomar, focados na própria
conversa. Educadamente, Christie tossiu ao se aproximar para avisá-los.
— Eu ouvi a voz do Martin, querida? — Martha sorriu.
Christie percebeu o quão forte Martha apertava a mão de Thomas,
então soube que ele deveria ter compartilhado suas preocupações com a
esposa.
— Sim, ouviu. Tudo bem, tia?
— Claro que sim, ela só ama segurar a minha mão.
— Desculpa, sinto muito mesmo.
— Não sei do que você está falando, mas não precisa se desculpar. —
Martha balançou a cabeça para Christie. — Você não tem culpa alguma
pelas ações das outras pessoas. Nunca teve, então supere isso.
Thomas e Christie encararam Martha, com as bocas abertas. Em
seguida, ela riu.
— Ouvi alguém falar isso no rádio e gostei.
— Bem, vou tentar superar. Por ora, Martin e eu vamos ver como a
Daphne está.
— Daphne?
— Eu liguei para perguntar se podíamos nos ver e conversar sobre…
hm…
— Bernard Cooper. Eu já falei com Martha sobre as nossas suspeitas.
— Ah. Daphne conversou um pouco com ele, então liguei para ver se o
Martin e eu poderíamos ir lá falar sobre isso. Ela parecia muito chateada e
disse que não podia falar comigo. Na verdade, até desligou na minha cara,
então vamos ver se ela está bem.
— Será que deveríamos ir junto? — Martha se levantou.
— Ainda não. Eu aviso quando tivermos certeza de que ela está bem. E
se eu chamar ela e o John para um jantar? Posso comprar algo pronto, então
não precisa cozinhar, nem nada disso.
— Besteira. Tenho uma cesta cheinha de vegetais invernais. Posso
preparar algo rapidinho. — Martha estendeu os braços, e Christie a abraçou.
— Tome cuidado, querida.
— Pode deixar. Você está com tudo… já que você gosta tanto desses
termos modernos. — Christie riu. — Eu te ligo, então entrem antes de ficar
muito frio.
— É a melhor época do ano. — Thomas recolheu a cesta de Martha.
— Você sempre diz isso, não importa a estação — lembrou-lhe
Christie.
— Conquanto tenha comida, vai sempre ser a melhor época do ano.

O na mesa de Daphne contava cada segundo como se


fosse uma hora. Nenhuma ligação.
Cadê você, John?
Verificou se o telefone fixo tinha linha e se o celular tinha sinal. Teria
mesmo passado apenas dois minutos desde que deixara a mensagem? Uma
pilha de lencinhos molhados encheu a lixeira perto dos pés. Por alguma
razão, as lágrimas se recusavam a parar. As mãos ainda tremiam tanto que
era difícil digitar no celular, mas precisava tentar de novo.
— Você ligou para John Jones, mas não estou com o celular, então, por
favor, deixe uma mensagem e te ligarei de volta assim que possível.
Bip.
— Amor, por favor, me ligue assim que ouvir isso. Por favor. Por
favor, esteja bem. Eu te amo. É a Daph.
Ela desligou.
Ele sabe que é você.
Agora, sua cabeça latejava tanto que não conseguia nem pensar direito.
Toc. Toc. Toc.
— Daphne! Está aí?
Não era a cabeça dela, Trev estava mesmo na porta da frente. Correu
para destrancá-la.
— Você conseguiu…
— Não achei nada, Daph. Venha e sente-se, você parece prestes a
desmaiar. — Trev segurou o braço de Daphne e a levou para trás do balcão,
até a cadeira. — Vou buscar um pouco d’água.
— Não me deixe, por favor.
— Tudo bem. — Trev se agachou ao lado dela. — Já tentou ligar para
o John?
Daphne assentiu. De repente, sua garganta pareceu apertada demais
para falar.
— Ele não respondeu? Mais cedo, você disse que ele estava com um
cliente. Provavelmente, não atenderia o celular de qualquer maneira, certo?
Ela assentiu outra vez e agarrou a mão de Trev.
— Encontre-o — pediu ela, não mais alto do que um sussurro.
— Eu vou, mas não gosto da ideia de te deixar sozinha.
— Trev? Está tudo bem? — Christie, seguida por Martin, irrompeu
pela porta da frente. Daphne ergueu os olhos, e novas lágrimas escorreram
pelo rosto. Christie correu para o lado dela e jogou os braços ao seu redor.
— O que aconteceu?
Trev se endireitou, abrindo espaço para Christie.
— Alguém ligou para a Daphne há alguns minutos, dizendo que John
tinha sofrido um acidente.
— Não! — Christie apertou o abraço.
— Mas não encontrei nenhum registro, nenhum pedido de ajuda…
nada. Acho que houve um engano.
Martin tirou o celular do bolso e ligou. Ouviu, mas desligou logo em
seguida.
— Caixa postal. Faz quanto tempo que você falou com ele?
— Meia… meia hora.
— Vou pegar um pouco d’água. — Christie se apressou à cozinha.
— Ele foi até Rivers End Heights mostrar uma casa pra alguém. Se
puderem ficar com Daphne, vou dar uma passada lá.
Christie voltou com um copo d’água. Daphne deu um golinho,
derramando um tantinho em si. Esticou a mão para pegar mais lencinhos de
papel, mas a caixa estava vazia.
Martin entregou um lenço de tecido a ela.
— Vou com você, Trev.
— Vou ficar bem. Podem ir. Ligaremos se descobrirmos algo sobre o
John. — Christie pegou o lenço e enxugou o pedacinho molhado no rosto
de Daphne. — Não vai demorar.
Assentindo, Trev saiu de dentro do balcão.
— Fico grato pela companhia. — Guiou o caminho e, num segundo,
havia apenas Christie e Daphne. A viatura, com as luzes brilhando, fez um
retorno e desapareceu na estrada.
Daphne verificou o celular outra vez. Nada.
— Desculpe não poder conversar quando você ligou.
— Devia ter me contado. Eu sabia que algo estava errado, não que algo
realmente esteja… Você entendeu.
— Ele vai ficar bem. Vai, sim.
— É claro que vai, mas o que te disseram? Quem era? — Christie se
sentou na beirada da mesa.
— Não sei, mas a voz soou um tantinho familiar. Ele não disse nada,
exceto que John estava numa ambulância e que eu deveria ir ao hospital.
— Não faz sentido. Levaria pelo menos uns vinte minutos pra
ambulância chegar aqui. Ainda mais para socorrer um paciente e voltar ao
hospital. Você não ouviu nenhuma sirene, ouviu?
— Não, isso é o que me dá esperança. Mas por que alguém diria
aquilo?
— Confundiram os pacientes…, mas Trev disse que não houve
nenhum registro de acidentes. Ah, olhe! John está chegando.
O coração de Daphne acelerou, e ela se levantou, olhando pela janela.
Era o carro dele. E… John! De alguma maneira, ela chegou à porta da
frente. Abriu-a, e ali estava ele. John. Sem nenhum machucado.
— Recebi a sua mensagem, querida. O que houve? Você estava
chorando…
O resto da frase se perdeu quando Daphne se jogou nos braços dele.

D seu quarto, Bernie viu a viatura – com as luzes piscando


– passar correndo na direção de Rivers End Heights. Ele riu, muitíssimo
satisfeito ao ver o policial ocupado, preocupando-se com alguma outra
coisa para variar. O sorriso se transformou numa carranca quando o carro
reapareceu minutos depois, com as luzes desligadas, seguido por um carro
que ele reconheceu ser o de John Jones. Sugou o que restava na garrafinha,
amassou-a e jogou-a no chão.
Na cama, havia um casaco e uma calça à prova d’água, com
suspensórios e botas costuradas na barra. Uma touca. Ademais, uma longa
ferramenta com uma rede numa ponta e um gancho noutra. As luvas à
prova d’água, que chegavam aos cotovelos, complementavam o
equipamento que ele usaria daqui a algumas horas, assim que a casa
estivesse em silêncio, e a irritante Charlotte, dormindo.
Precisava comer. Por mais cedo que fosse, vestiu o casaco e guardou a
carteira no bolso. No último segundo, tirou o diário debaixo do colchão.
Trancou a porta e desceu as escadas.
Quando se aproximou da rua principal, Bernie encontrou a viatura
parada em frente à imobiliária, junto ao carro de John Jones e do Lotus.
Desacelerou, tentado a passar em frente e ver o que acontecia lá dentro. As
luzes estavam acesas, e havia muitas pessoas ao redor do balcão, mas isso
foi tudo o que pôde ver. Não valeria o risco de ser pego bisbilhotando.
Abriu a porta do bar, encontrando música, riso e o cheiro de panquecas
e jantares antecipados. Seu estômago roncou. Era uma boa ideia.
Recarregar-se para a excursão aquática pela noite. Tinha estado ali antes.
Geralmente, comia no balcão, onde as conversas ao redor o faziam lembrar
da mãe. Ela sempre trabalhou em bares e, mesmo quando pequeno, Bernie
aprendera a fazer os deveres de casa num balcão enquanto ouvia a conversa
dos adultos. Uma pessoa podia aprender muito apenas ouvindo.
Hoje, não estava com pressa, então se acomodou num banco
acolchoado vazio. Dali, podia ver a viatura. Um movimento chamou a sua
atenção… havia alguém na porta, observando o pub.
— Boa noite para o fotógrafo mundialmente famoso. — Lance parou
ao lado da mesa, com a sobrancelha erguida, animado para anotar o pedido.
— Lance. Obrigado, mas acho que não sou mundialmente famoso.
— Nunca se desvalorize. Era o que a minha velha e querida mãe
sempre dizia. Então, quer uma cerveja? Ou prefere vinho hoje? Posso te
recomendar o Chardonnay premiado da vinícola na costa, ou o igualmente
maravilhoso tinto da região quente dos pés das montanhas?
— Não gosto muito de vinho branco.
— Você está perdendo. A nossa Christie Ryan gosta muito do sabor
clássico, mas respeito um homem que gosta de tinto, então vou voltar com
uma taça do segundo.
— Na verdade, se o pessoal gosta tanto assim, vou experimentar.
Lance se iluminou, então se apressou para longe.
Mantenha os amigos próximos e os inimigos, mais próximos ainda.
Vamos adentrar a mente dela.
Era muito mais divertido vê-los implodir, em vez de simplesmente
sumir com tudo o que amavam. Bernie pegou o diário. Um pouquinho de
vinho, um jantar e talvez uma sobremesa. Havia tempo o bastante para reler
as anotações de Harry e terminar de elaborar o seu plano de ação.
42- FAMÍLIA, AMIGOS E MEDO

A da casa de campo brilhava com a luz, e a mesa estava


cheia de comida. Martin havia trazido cadeiras extras da garagem para
Angus e Elizabeth. Daphne sentou-se ao lado de John, com o rosto pálido,
apesar de Christie ter insistido em refazer a sua maquiagem. Trev estava no
meio, com Martha e Thomas na ponta mais perto da porta.
— Mas não deveríamos ter convidado a Charlotte e o George? —
perguntou Martha, oferecendo um prato de pãozinho caseiro para Trev.
— É melhor George ficar de fora por enquanto. — Martin encheu as
taças com vinho. — A gente conversou mais cedo.
— Eu tenho de visitá-lo?
— Amanhã, Thomas. Ele estava indo pra casa jantar mais cedo e ler
algo, então está bem.
Elizabeth franziu a testa.
— Não sei se deveríamos estar jantando juntos… não que não esteja
tudo maravilhoso, Martha. Obrigada por nos convidar. Mas nos reunirmos
para discutir um dos meus hóspedes pelas costas dele parece… estranho.
No mínimo.
Angus sorriu para ela.
— Eu amo a sua integridade, mas pense assim… se houver algo
peculiar acontecendo, não é melhor você saber?
— Bem, sim. Então talvez Charlotte devesse estar aqui.
— Charlotte não quer conversar sobre o Bernard Cooper — disse Trev.
Christie abriu a boca para falar, mas fechou-a outra vez, e ele lançou a
ela um olhar curioso.
— Thomas e Christie deram uma passada na biblioteca de Green Bay
pela tarde, foram pesquisar uma conversa que Bernie teve com Elizabeth
sobre o baú. — Martin finalmente se sentou. — O que vocês descobriram?
— Mais importante do que isso: o que a gente não descobriu! —
Thomas repousou o garfo. — Resumindo, fomos até lá hoje, depois de um
punhado de acontecimentos estranhos. Noite passada, enquanto estávamos
fora, alguém deu uma voltinha pela casa de campo.
Todo mundo arfou.
— Uma invasão?
— Não temos certeza, Trev. A janela do sótão estava aberta, mas não
mexeram, nem roubaram nada.
— Então o que isso tem a ver com a biblioteca de Green Bay? — John
deslizou um braço ao redor do ombro de Daphne. — Não estou entendendo.
— Refletimos sobre o porquê de alguém se dar ao trabalho de escalar
até o sótão, atravessar a janela e descer a escada até aqui dentro, mas não
levar nada. Então, lembrei de Elizabeth mencionar um comentário que
Bernie tinha feito sobre o baú. — Christie sorriu para Elizabeth. — Percebi
que o baú poderia ser do interesse dele por algum motivo estranho.
Os olhos de Elizabeth se arregalaram.
— Na verdade, ele foi bem específico. Disse que ficou sabendo do baú
na biblioteca, e que a peça era parte da mobília original que veio da
Inglaterra direto para a Casa Palmerston.
— É isso o que mais me incomoda — comentou Thomas. — Não tem
nada na biblioteca sobre isso. Nada mesmo.
— Mas encontramos algumas coisas sobre Henry Temple, que
construiu a casa — explicou Christie. — Na maior parte, rumores, mas
muitíssimo interessantes. Havia uma menção de ele ter dito a Eoin Ryan
que fizera um registro do que ele chamou de “roubo” da Casa Palmerston,
num diário. Apesar da família ter deixado a cidade, ele ficou e foi expulso
da propriedade mais de uma vez por violar os limites.
— Mas o que raios isso tudo tem a ver com Bernie? — Elizabeth se
voltou para Angus. — Ele parece ser um jovem tão bondoso.
Até então, Daphne não tinha falado. Mas, agora, com as lágrimas
surgindo outra vez, não conseguiu se conter.
— Tem algo de errado com ele. Algo sinistro e nada bom. Sou boa em
julgar as pessoas. Não sou, John? Eu sabia que aquele Derek Hobbs não era
boa coisa, e o Rupert… nem vou comentar nada! Bernard Cooper chateia as
pessoas. Ele chateou George e… e…
— Olhe, temos muitas especulações aqui hoje. — Trev olhou ao redor.
— Não vou deixar que ninguém perturbe essa cidade outra vez. Já comecei
a investigar. Por enquanto, não tenho provas de que Bernard Cooper fez
algo ofensivo ou desrespeitoso, mas estou de olho.
— Como todos deveríamos estar.
— Não, Thomas. Não deveriam, mas vou pedir que cada um de vocês
dê uma passada na delegacia amanhã para conversarmos sobre suas
preocupações e qualquer outra coisa. Mas deixe o trabalho policial comigo.
Por favor. Tudo bem? — Ele encarou Christie.
Ela não tinha nenhuma teoria. Ainda não. Mas, apesar de sorrir para
Trev e assentir, sua mente não descansaria, pois desejava colocar as mãos
num grande pedaço de papel e criar um mapa mental.

—F aqui, são todos são pessoas boas com corações


gigantes. — Charlotte estava sentada na cama, de pijamas, com as pernas
cruzadas e o celular na mão. — Você ia gostar deles, mamãe.
— Fico muito feliz por isso, querida. Apesar de sentir muita saudade.
Eu também sinto saudade. Sinto saudade do seu eu verdadeiro.
— A praia é linda. Na maior parte dos dias, não tem muita gente aqui,
então dá pra caminhar sem nenhuma outra pegada na areia. Tem um píer
antigo, onde dá pra sentar e ver os peixes nadando logo embaixo, entre as
algas.
— Eu gosto de peixes. O que você jantou?
— O que eu jantei? Ah, fiz um sanduíche tostado. Queijo e tomate.
— Você fez? Querida, deveria pedir a um adulto para te ajudar com
eletrodomésticos como a torradeira.
— Mamãe, eu cresci, lembra? Saí de casa quando fui para a faculdade.
— Por que você foi embora? — O tom da voz da mãe se elevou. — E
por que eu moro aqui? Sozinha!
— Você não está sozinha, mamãe. Tem muitas pessoas maravilhosas
com você aí. É a Maggie quem cuida de você.
— Maggie? Tenho de encontrá-la. Maggie!
— Mamãe, acalme-se. Se apertar o botão ao lado da cama, Maggie ou
alguém vai aparecer aí num minuto. Não quis te chatear. — Charlotte se
levantou, então, caminhou de um lado ao outro do quarto, com o coração
acelerado, tentando acalmar a própria voz. — Você apertou o botão?
— Maggie! Maggie, cadê você?
— Mamãe, vou desligar e ligar para a Maggie. Ela já vai chegar, eu te
amo.
— Não, não vai. Não me deixe aqui. Eu não gosto daqui. Charlotte,
peça para o seu pai te trazer aqui agora mesmo. Ele vai saber o que fazer, eu
quero dar um abraço na minha garotinha. — Soluços acompanharam o
apelo.
— Shhh, mamãe. Tudo bem, você vai se sentir melhor daqui a um
pouquinho. Prometo. Desculpa. — Charlotte desligou e ligou para a clínica,
parando perto da janela, enquanto o celular chamava.
— Lakeview Care, Maggie falando.
— Maggie, desculpa, é a Charlotte Dean.
— Oi, doutora. Tudo bem?
— Eu acabei chateando a mamãe, e ela não quer apertar o botão para te
chamar. Poderia dar uma olhadinha nela, por favor?
— Espere aí. Lee, vá ver se a Sra. Dean está bem. Obrigada. Certo,
voltei. Lee está indo lá agora. O que aconteceu?
— O de sempre. Acha que sou uma criança, que o papai ainda está
aqui. Falou sobre ter sido abandonada. — É claro, mamãe, só você ficou
sozinha. — Você acha que ela está piorando?
— Ela está tomando um medicamento novo, e estava tudo indo bem.
Mas… de vez em quando, uma voz ou um rosto familiar é o bastante para
regredirem.
— Pode me mandar uma mensagem quando ela estiver pronta para
dormir? E me fale o que ela está tomando.
— É claro. Vai voltar logo para Queensland?
Charlotte encarou o reflexo na janela.
— Estou um pouco ocupada agora, mas talvez no fim do ano. Eu te
aviso.
— Tudo bem. Vamos cuidar da sua mãe. Na maior parte do tempo, ela
é um doce, e queremos apenas o melhor pra ela. Talvez seja melhor você
não ligar nos próximos dias, assim ela pode se acalmar de novo. Eu te envio
as informações.
— Obrigada. Obrigada mesmo, Maggie. Sou muito grata por você e
pela equipe.
— Bem, cuide-se.
A ligação acabou. Charlotte largou o celular na mesa. Suspirando
profunda e tristemente, aproximou-se da porta, certificou-se de que estava
fechada e desligou a luz. Então, voltou para a janela e apoiou a testa contra
o vidro. Por quê? Quão cruel era a vida, roubando não apenas a mente, mas
a personalidade das pessoas.
Não vai acontecer com você.
Mas apenas o tempo diria.
Alguém caminhava – ou melhor, cambaleava – em direção à Casa
Palmerston. Charlotte olhou para a figura, mas logo se agachou quando
notou que era Bernie, e que ele a encarava. Com certeza, não conseguia vê-
la ali em cima. Ainda assim, apesar da aparente inabilidade de seguir numa
linha reta, seu olhar parecia firme.
Ele se aproximou da fonte e parou ali, apoiando ambas as mãos no
ornamento. Em seguida, inclinou-se um pouco mais e bebeu de uma das
correntes.
— É sério?
Bernie ficou parado ali, por um ou dois minutos, antes de seguir para a
casa. O cambalear melhorou, mas estava claro que estivera bebendo. Pelo
menos, ficaria quieto hoje à noite e, por isso, Charlotte se sentiu grata.
Elizabeth e Angus tinham saído, e a última coisa de que ela precisava era
ser babá do homem. Ou lidar com ele tentando intimidá-la.
Charlotte se acomodou na cama. Passos se aproximaram. Bernie estava
do lado de fora da sua porta. Ela viu a luz sob a porta ser sombreada pelos
pés.
A maçaneta girou.
— Venha brincar comigo.
Não soou mais alto do que um sussurro, mas arrepios percorreram
Charlotte, e ela puxou os cobertores mais pra cima. No segundo seguinte,
ele tropeçou para longe.
Isso tinha de acabar. Chega de ameaças implícitas. Chega de invadir o
espaço pessoal dela, de testar a sua integridade. Ela não poderia mais viver
assim. Amanhã, visitaria Trev. Iria se entregar à mercê dele, explicando que
teve de respeitar o seu dever com o sigilo do paciente. Ainda mais depois
daquele último encontro. Charlotte encarou o teto. Não aguentava mais.
43- MUDANÇAS E DESCOBERTAS

T casa. Não se preocupou em acender as luzes ao trancar a


porta. A noite de hoje tinha sido interessante, e havia muito a ser digerido.
Por mais que apreciasse o fato de os amigos quererem ajudar, ele só
precisava da ajuda de Charlotte.
Quem me dera…
Trev suspirou e abriu a geladeira para pegar uma cerveja. Charlotte era
tão inteligente e intuitiva. No fundo, ele sabia que, se qualquer outra pessoa
fosse o problema, a mulher estaria ao lado dele, ajudando-o. Em vez disso,
Charlotte falava em enigmas e se recusava a aceitar a proteção dele, seja lá
o que estivesse acontecendo. Mesmo se ela tivesse de quebrar o sigilo,
ninguém ficaria sabendo. Não por ele.
O celular tocou bem quando tomou o primeiro gole. Olhou para o
relógio ao atender.
— Trev Sibbritt.
— É bom que seja ele mesmo!
— Oi, mãe. Tudo bem?
— Sim, querido. Liguei mais cedo, mas caiu na caixa postal.
Trev levou o aparelho com ele ao quarto, empilhando os travesseiros
contra a cabeceira.
— Desculpa, dei uma saída. — Tirou as botas.
— Com uma jovem decente?
— Com muitas dessas, mas não do jeito que você espera. — Ele se
encostou e esticou as pernas na cama, tomando outro gole da cerveja.
— Que pena. Enfim, decidi que está na hora.
— De você parar de se preocupar com a minha vida amorosa?
— Isso nunca vai acontecer. Não, é hora de dar um passo para trás. —
A voz dela, repentinamente, ganhou outro tom. Havia uma pitada de
tristeza.
— Você vai vender a livraria?
— Eu não quero. Não ainda, mas o jovem Braden se formou e recebeu
uma oferta de trabalho maravilhosa em Melbourne. É um garoto muito
inteligente. Quando ele for embora, bem…
— E se você ficar aberta por menos horas?
— Não compensa. Sábado é um dia ótimo para as vendas, e a segunda-
feira é perfeita para encomendas, então tenho de abrir seis dias.
— Contrate outra pessoa.
— Eu tenho uma ideia, e gostaria da sua opinião. Na verdade, preciso
da sua opinião.
— Sou todo ouvidos, mãe.
— Quero contratar alguém que ame a loja tanto quanto eu. Alguém que
seja naturalmente estranho, mas que tenha um olho bom para detalhes, que
ame livros e saiba conversar com as pessoas. Você sabe o que quero dizer…
que entenda os clientes. Mas tem de ser alguém forte e corajoso por dentro.
Que encontre maneiras de melhorar os negócios. Gostaria de treinar a
pessoa e, gradualmente, passar a loja para ela. Planejo vender a loja para
essa pessoa quando a hora chegar.
— Parece bom, já tem alguém em mente?
— Não. Eu não sei onde vou encontrar alguém assim. Tem um
apartamento vazio logo em cima da loja. Então, se a pessoa não for daqui,
pode ser uma oportunidade para se mudar. Pode ser uma oportunidade para
alguém que precise de um recomeço.
Com a garrafa de cerveja quase na boca, Trev fez uma pausa.
Alguém que precise de um recomeço.
Não era isso o que Charlotte queria quando chegou em Rivers End ano
passado? Tinha deixado Queensland, onde atuava como psiquiatra. Largado
– pensou ele – qualquer família que tivesse. Mesmo assim, não havia
procurado um emprego ali, nem encontrado uma casa. Na maior parte do
tempo, ela perambulava pela praia, ajudava Elizabeth e… lia livros. Sempre
andava com um livro na mão ou na bolsa.
— Querido?
— Desculpa. Eu tenho uma… amiga. Ela lê muito. Eu estava pensando
nos livros.
— Entendo. — Ela riu. — Bem, se ela quiser se mudar para a minha
linda cidadezinha e vender livros, traga-a para uma visita. Prometo não dar
uma de cupido.
— Não ia fazer diferença. Acho que ela não me vê assim.
— Que pena, a vida é assim. A não ser que eu veja potencial nela…
— Obrigado, mãe.
— O prazer é todo meu. Mas você tem certeza? Ela teria interesse?
Por que eu diria aquilo a ela? Quero Charlotte aqui, onde eu posso
ver e conversar com ela, além de almoçarmos juntos de vez em quando.
Mas aquilo a faria feliz? Incerteza adentrou o peito dele.
— Talvez, não sei.
— Bem, pergunte a ela. Veja se ela quer me conhecer, certo?
— Vou tentar. Por ora, acho que ela não gosta muito de mim. Tive de
estabelecer algumas regras hoje quanto a um caso.
— Um caso? Ela tem um pouquinho de detetive nela? — A mãe riu. —
É exatamente do que a minha cidade precisa, querido.
— Tudo bem. Vou perguntar pra ela, mas não fique esperando que eu a
leve até aí.
— De que outra maneira você viria me visitar?
Minutos depois, a conversa terminou num tom aprazível. Trev largou a
garrafa vazia de cerveja na mesinha de cabeceira e encarou o teto. Charlotte
e a mãe se adorariam. Charlotte precisava de algo, mas se era um recomeço,
ele não sabia. O que sabia era que pensar nela estando a três horas de
distância quase quebrava seu coração.

L chão do bistrô. Ele gostava da noite, quando todos os


clientes tinham ido embora, bem alimentados e felizes. A maior parte das
luzes estava apagada, e ele cantarolava ao limpar, parando para endireitar
uma cadeira ou apagar uma vela.
No último banco, encontrou um livro preso entre as almofadas.
Repousou-o na mesa e arrumou o assento. Algo sempre era esquecido.
Geralmente, óculos, chaves ou um celular. Poucas vezes era um livro.
Na verdade, um diário. Pegou-o e levou-o até a luz para vê-lo melhor.
Com uma capa de couro, parecia velho e gasto. A data de 1853 tinha sido
gravada nele. Realmente, muito velho. Lance franziu a testa, tentando se
lembrar de quem estivera sentado ali hoje.
Mais cedo, tinha sido o fotógrafo hospedado na Casa Palmerston. Mas,
depois do jantar, ele tinha ido ao bar para continuar bebendo e conversando
com Lance. Houve um grupo de quatro pessoas, que apenas pediu os pratos
principais. Depois, um casal. Dentre todos, Lance só conhecia Bernie, mas
o homem não parecia ser do tipo que tinha um diário.
Abriu a capa. A caligrafia parecia antiquada, muitíssimo inclinada com
voltas e floreios. Por fim, conseguiu ler a dedicatória. Para o meu marido
Harry. Com amor, Eleanor. Deu de ombros. Poderia ser de qualquer um.
Entregaria a Trev pela manhã e deixaria que o homem resolvesse isso.
44- NO LAGO

A salão, Christie parou para deixar a viatura de Trev sair da


garagem. Ele abriu a janela.
— Bom dia, já vai voltar para as montanhas? — Christie sorriu.
— Na verdade, estou indo pra Casa Palmerston.
— O quê?
— Parece que aquele Bernie Cooper caiu no lago de madrugada.
— Ele está…
— Inconsciente. Tenho de ir.
— Espere, vou com você. — Antes que pudesse impedi-la, Christie
entrou no banco da frente. — Vou pro salão mais tarde. Não precisa da
sirene?
Trev entrou na estrada.
— Não, e não toque em nada.
— Ah, nem no…
— Vou ter de te prender?
Dentro de minutos, adentraram a propriedade. Trev estacionou em
frente aos degraus da entrada da Casa Palmerston.
— Podemos ir por aqui. — Christie guiou Trev pela lateral da casa,
através de um jardim incoerente até chegarem à trilha do lago. Correram até
a trilha se abrir. Então, pararam. — Cadê eles? Angus!
— Aqui!
Trev se apressou na direção da voz de Angus, à esquerda do lago que
se alastrava. Entre os juncos profundos, Angus e Elizabeth observavam
Charlotte examinar Bernie.
Trev se agachou ao lado dela.
— Como ele está?
— Vai sobreviver. — Sua voz soou inexpressiva. — Voltou bêbado pra
casa ontem à noite e deve ter resolvido dar um mergulho – ou pescar.
Christie se juntou a eles.
— O que raios ele está vestindo?
— Calça e botas à prova d’água. Só Deus sabe há quanto tempo ele
está aqui, então devem ter impedido que ele congelasse.
— Quem o encontrou?
— Fui eu. — Elizabeth se aproximou, com as mãos fortemente
entrelaçadas. — Fiz um chazinho pela manhã e vim me sentar sob a árvore.
Mas ouvi um som… um gemido. Ele estava um tantinho dentro d’água,
resmungando. Então, eu o ajudei a vir até aqui, mas ele perdeu a
consciência.
— Achamos melhor chamar uma ambulância e você, Trev. Em vez de
arrastá-lo ainda mais, caso esteja machucado… — Angus tocou o braço de
Elizabeth. — Por que não vai trocar de roupa? Tire essas roupas molhadas.
— Eu vou ficar bem.
— Vocês acham que ele se machucou? — Christie se inclinou mais
para perto, enrugando o nariz ao sentir o hálito de álcool saindo da boca
aberta de Bernie. — Ou só está embriagado?
— Ele ainda está respirando, apesar de o coração estar meio lento.
Tudo dentro do normal pra alguém bêbado.
— Você sabe onde ele esteve noite passada? — Trev olhou para
Charlotte.
— Não. E não me importo. Ele chegou cambaleando pela entrada
depois das dez, quando eu estava prestes a me deitar. Ouvi-o subir as
escadas e… e ir pro quarto.
— E o quê? Você hesitou.
— Por favor, Trevor. Não.
Christie se ajoelhou e apoiou a mão no braço de Charlotte.
— Vou ficar sentada aqui com ele. Seus braços estão congelando, entre
e vista algo.
Trev começou a tirar o casaco, mas Charlotte se levantou e balançou a
cabeça.
— Estou bem. Obrigada, mas vou pegar meu próprio casaco. — Ela
saiu correndo antes que ele pudesse responder, e Trevor a encarou. Christie
não sabia se era frustração ou tristeza no rosto dele. Decidiu que era os dois,
e que estava na hora de ter uma boa conversa com Charlotte.
Bernie gemeu, e seus olhos se abriram sem pressa.
— Não… estava lá.
— Fique quietinho, colega. Tem uma ambulância vindo. — Trev se
agachou outra vez. — Sabe onde está?
— Nem sinal dela, procurei por toda parte.
— Nem sinal de quem?
Trev ajudou Bernie, que teve dificuldades para se sentar. Por fim, tirou-
o da água, e ele afundou, encostado numa árvore, com as pernas esticadas.
Bernie olhou ao redor, e seus olhos focaram em Christie.
— Ladra.
Ela pensou não o ter ouvido direito.
— Desculpa, mas o que foi que você disse?
— Você deveria se desculpar — rosnou ele, esticando as mãos para
segurar a perna dela, mas Christie se afastou, quase caindo no lago.
Trev a equilibrou, então, voltou-se com tudo para Bernie.
— Cuidado com o que fala.
— Ladra. Você e toda a sua família – ladrões.
— Olha, não sei o que você acha que sei, mas, quando tiver se
recuperado, podemos conversar.
Bernie se jogou sobre as mãos e os joelhos, esforçando-se para levantar
com ajuda do apoio da árvore. Angus puxou Elizabeth para longe,
colocando-a atrás dele.
— Estou bem. Cadê a minha chave?
— Que chave?
— A que você ou a sua família roubaram. Aqui não é o lugar de
nenhum de vocês e vou provar. Vou despejar todos vocês.
Elizabeth arfou e levou a mão à boca.
— Talvez eu te deixe ficar, você é simpática — disse Bernie a
Elizabeth.
— Você achou que a chave estivesse no lago? — Christie se aproximou
de Bernie. — Por que ela é tão especial?
— Você é idiota? Ou acha que eu sou idiota? Ela me pertence e,
quando eu a tiver, você não vai nem saber o que te atingiu. Ladra. — Ele
pulou para cima de Christie, com os braços estendidos. Assim que Trev se
colocou entre eles, Bernie caiu de rosto no chão.
O grito de uma sirene quebrou o silêncio atordoado do pequeno grupo.
Charlotte voltou correndo, vestindo um casaco grosso.
— Você o matou?
— Você parece esperançosa. — Christie reencontrou sua voz. — Ele se
ajoelhou depois de me acusar de ter roubado uma chave.
— Ah.
— Exatamente. — Trevor verificou o batimento de Bernie. — Está na
hora de você explicar de onde o conhece e o que sabe sobre ele.
— Querida, o que ele quer dizer com isso? Você o conhecia antes da
Casa Palmerston? — Elizabeth se soltou do abraço de Angus. — Ele tentou
atacar a Christie.
Charlotte empalideceu e caiu no chão. Trev chegou ao lado dela em
segundos.
— Respire. Podemos conversar mais tarde, tudo bem? Mas respire. —
Ele esticou a mão e, sem erguer os olhos, Charlotte a pegou.
Angus e Elizabeth foram ao banquinho debaixo da árvore.
Christie se sentou ao lado de Bernie, perto o bastante para ouvir a
conversa.
— Desculpa — sussurrou Charlotte.
— Você vai conversar comigo? Vai ser honesta? — Trev apertou a mão
dela, e os olhos de Charlotte se arregalaram. — Preciso de um depoimento,
Charlie. Já passou da hora de quebrar o sigilo de paciente dele. Bernie teria
machucado a Christie, se eu não estivesse aqui e se ele não estivesse tão
bêbado.
Charlotte se agarrou a ele como se Trevor fosse um bote salva-vidas.
— Eu vou te contar tudo o que sei. Ele não deveria estar agindo de
maneira agressiva.
— Você sabe que ele foi extremamente desagradável com a Jess e com
o George. A Daphne não o suporta.
— Eu… Desculpa.
Vozes se aproximaram pela trilha. Trev se inclinou para ainda mais
perto de Charlotte.
— Vamos conversar daqui a pouco, tudo bem?
Ela assentiu, ele soltou a mão dela e se levantou para cumprimentar os
paramédicos.
Christie saiu dali, abrindo caminho para os profissionais.
— Ele foi examinado por uma médica. Só precisa de uma boa dose de
realidade. — Deu uma risadinha do próprio humor e foi até Charlotte,
estendendo a mão para ela. — Venha. Vamos entrar e tomar um café.
Na cozinha, Christie encheu a chaleira, enquanto Charlotte ficou
parada atrás da cadeira.
— Sente-se. — Christie olhou sobre o ombro. — Puxe a cadeira e se
sente. O café já vai ficar pronto.
Quando Christie levou duas xícaras à mesa, Charlotte estava na
cadeira, abraçando a si mesma apesar de ainda vestir o casaco.
— Vamos, coloque as mãos na xícara e beba devagarinho.
— Eu deveria estar te examinando. — Charlotte, sem pressa, fez o que
Christie havia sugerido. — Você está bem?
— Eu? — Christie se juntou a ela e tomou um golinho do café. —
Preciso de mais do que um homem bêbado e confuso para ficar preocupada.
Me mexi bem mais rápido do que ele. Mas gostaria de saber sobre o que ele
estava falando. Você sabe?
— Ele acha que é descendente de Harry Temple.
— Ah, mas eu não tenho a chave da Casa Palmerston. E o que o baú
tem a ver com isso?
— Baú?
— Era por isso que você estava na sepultura de Harry?
— Ah, Elizabeth mencionou algo sobre isso. Pelo que sei, Harry saiu
de Rivers End pouco tempo depois de perder a Casa Palmerston. A história
que conheço diz que ele seguiu a família e refez a vida em algum lugar ao
norte de New South Wales. Foi onde Bernie cresceu, acreditando no que a
mãe dizia a ele.
— Você sabia quem ele era? — Elizabeth entrou na cozinha e deu a
volta na mesa para encarar Charlotte. Seus olhos estavam vermelhos e
inchados. — Esse tempo todo, você sabia que um louco estava na minha
casa e não disse nada? — As mãos tremiam e o rosto estava branco.
Christie se levantou num pulo e apoiou um braço nos ombros dela.
— Todos nos chocamos hoje cedo, Elizabeth. Cadê o Angus?
— Está com o Trev. Vou fazer um chá, preciso me ocupar. — Ela deu
um sorrisinho fraco para Christie. — Estou chateada.
— Sinto muito mesmo, Elizabeth. — Charlotte remexeu na xícara,
cabisbaixa. — É tudo culpa minha.
— Mas de onde você conhecia o Bernie? Por que, raios, não foi
honesta comigo desde o começo?
Charlotte empurrou a cadeira para trás e se levantou.
— Eu… Desculpa. — Saiu correndo pela porta da cozinha e deu de
cara com Trev.
— Espere aí, aonde está indo? — Ele a encarou. — Não chore. — Sua
voz ficou mais suave.
— Todos estão um pouco nervosos, Trev — disse Christie. — Volte
aqui, Charlotte. Elizabeth está bem e não está nervosa. Café, Trev?
Os olhos dele se desviaram dos de Charlotte.
— Obrigado, mas acho que vou levar a Charlie até a delegacia para
conversarmos. Pode ser?
Charlotte assentiu.
— Seja bonzinho com ela, Trev. Ela teve suas razões.
— Eu sou sempre bonzinho, Christie.
É bom que fosse mesmo.
Christie voltou para a cozinha, onde Elizabeth ainda não tinha feito
muita coisa para preparar o chá.
— Parece que estou pedindo para todo mundo se sentar hoje, então não
discuta. Vou fazer um bule de chá.
— Mas eu estou nervosa. — Elizabeth se sentou, tamborilando os
dedos na mesa. — Escutei o que você disse para a Charlotte, mas estou
muitíssimo chateada com ela. Seria o Bernie algum tipo de criminoso?
— Provavelmente não. Se Charlotte o atendia, ela teve de respeitar o
sigilo entre médico e paciente. Tenho certeza de que ela não imaginou que
ele ficaria bêbado e perderia o bom senso.
— Que seja, não sei se confio nela. E se eu não puder confiar nela, não
sei se ficarei confortável com ela aqui.
Christie parou perto do fogão, com o bule numa mão e a chaleira
noutra.
— Mas aqui é o lar dela, você a faria ir embora?
— Fazer quem ir embora? — Angus chegou. — Bernie está a caminho
do hospital. Ele não se machucou, mas talvez tenha uma dor de cabeça
daqui a algumas horas. Agora, quem vai embora?
O telefone no saguão começou a tocar.
45- UM RETRATO DO QUE ESTAVA POR VIR

G sentado no banquinho do lado de fora da joalheria quando a


ambulância passou pela cidade, com as luzes piscando e a sirene ligada. Ele
a observou entrar na estrada que dava na casa de Martin, e seu peito ficou
apertado. Estava prestes a entrar e ligar para o garoto quando suspirou
aliviado ao ver Martin sair da padaria, com uma sacola cheia. Ergueu a
mão, cumprimentando o jovem que atravessava a rua.
— Pra onde foi? — Martin se sentou ao lado dele.
— Pra falar a verdade, na direção da sua casa. Se bem que… bem,
você está aqui.
— Pare de se preocupar comigo. É a mesma estrada que dá no Rivers
End Heights e num punhado de outras cidades.
— E na Casa Palmerston.
Martin tirou o celular do bolso.
— Vou ligar para eles, então. — Ligou e esperou, mas ninguém
atendeu. — Daqui a pouco, eu ligo de novo. Provavelmente, devem estar
todos do lado de fora, aproveitando o clima delicioso. Teve uma boa noite?
— Joguei paciência e li mais alguns capítulos de um livro que a
Charlotte me recomendou. Ela tem bom gosto em livros.
— Parece relaxante.
Um retrato do que estava por vir.
— O que tem na sacola?
— Uma parte do jantar que estou preparando para a Christie.
— Vocês deveriam jantar comigo qualquer noite. Eu ainda sei preparar
um guisado excelente.
— Adoraríamos. Nos diga quando e iremos. Levaremos a sobremesa.
— Pode ligar de novo?
— É claro. — Desta vez, o telefone tocou apenas algumas vezes antes
de Christie atender. Martin colocou a ligação no viva-voz. — Querida,
George está comigo, e te coloquei no viva-voz.
— Oi, George. Eu ia te ligar. Bernie Cooper caiu no lago e desmaiou.
— Por isso a ambulância…
— Sim, e o Trev. Mas ele está indo até a delegacia com Charlotte
agora.
— Por quê?
— Parece que ela conhecia o Bernie no passado. Não sei de muita
coisa, mas ele acha que, de alguma maneira…
— É o dono da Casa Palmerston — interrompeu-a George. —
Desculpa te cortar, Christie. Tive mais do que uma conversa desconfortável
com o jovem, e cheguei a essa conclusão.
— Bem, você tem razão. Ele acha que é o último descendente de Harry
Temple, ou algo assim. Se bem que não faz sentido como isso faria dele o
herdeiro da Casa Palmerston.
A viatura passou por eles. Charlotte estava no banco da frente,
encarando o horizonte.
— A Charlotte está bem? Trev acabou de passar com ela, e ela parecia
bem infeliz.
— Ela está se culpando por não ter dito nada, mas foi por conta do
sigilo médico. Elizabeth ficou muito chateada com ela. Martin, você pode
vir pra Casa Palmerston?
— Já chego aí.
— Tchau, Christie. Cuide-se. — George se inclinou para perto do
telefone, como se quisesse ser ouvido. — Venha me visitar quando puder.
— Vou, sim. Tchau.
Martin guardou o celular e recolheu a sacola.
— Eu te aviso, se algo acontecer. Não se preocupe, tudo bem?
— Tudo bem, obrigado. Acho que a Daphne está vindo. Vou contar pra
ela o que aconteceu.
— Peça pra ela fazer um cafezinho e se sentar aqui com você por um
tempo. Aproveitem o sol. — Ele se levantou, sorriu para Daphne quando
ela saiu da calçada para atravessar a rua, então, colocou-se a caminho da
Casa Palmerston.
George o observou partir. Amava muito o sobrinho. O sol estava
quente hoje, e não havia ninguém em perigo. Então, por que sentiu um
arrepio percorrer sua espinha?

—C ?—T aproximou da chaleira, indicando que Charlotte


se sentasse à mesa.
— Não — responde ela, num sussurro.
— Bem, eu preciso de um. Nem mesmo tomei café da manhã antes de
Angus ligar.
De qualquer maneira, Trev fez dois cafés e repousou um na frente de
Charlotte. Sentou-se de frente para a mulher.
— Ele era seu paciente?
Suspirando profunda e quase tremulamente, ela assentiu.
— Ontem à noite, eu já tinha decidido falar com você. Depois de…
enfim, eu tratei dele um tempinho em Brisbane.
— Depois do quê?
— Nada.
Com os olhos, ela suplicou para que Trev não insistisse, então ele abriu
mão daquilo. Por ora.
— Há quanto tempo?
— Parei de atendê-lo há quase um ano.
— Você parou? Ou ele parou de ir?
— Isso importa?
— Por que estava cuidando dele?
— Fui indicada por outro médico, pois Bernie tinha ansiedade. Estava
tendo problemas para dormir e para superar a morte da mãe.
— E então?
Ela pegou o café, mas o encarou, mordendo o lábio inferior.
— Charlie?
— Quando aceitou que a mãe tinha morrido, Bernie decidiu provar a
teoria dela quanto a sua linhagem, como ele dizia. Quando criança, ela
contou ao filho, histórias sobre o que era deles por direito – uma grande
casa em Victoria. A construção e o terreno.
— A Casa Palmerston.
— Aparentemente, sim.
— De onde veio essa crença? Quero dizer, o que a mãe dele sabia?
— Ela deu um diário a ele. Bernie o mostrou para mim uma vez… A
capa, pelo menos. Mas ele manteve o conteúdo em segredo. Depois de
algumas visitas, ele me disse que a mãe era uma alcoólatra que sempre se
mudava, que sempre roubava algo de onde viviam ou de feiras de rua.
— Então o diário pode nem ter sido da família dele?
— Sugeri a ele que investigasse melhor, então… — Ela finalmente
bebeu um golinho do café, cabisbaixa.
Então o quê? Por que isso é tão difícil para você?
— Então?
— Nada.
— Charlie, por que você parou de atender ao Bernie?
Seus olhos se voltaram aos dele.
— Não teve nada a ver com ele. Foi por razões pessoais, Trevor. Parei
de atender a todos os meus pacientes, tudo bem?
Trev se reclinou na cadeira.
— Estou aqui por você, Charlie.
Ela empurrou a cadeira para trás e se levantou abruptamente.
— Isso não vai dar certo.
— Por quê?
— Certas coisas simplesmente não deveriam acontecer. Algumas
pessoas não… não podem ficar juntas e… serem felizes. — Ela se colocou
atrás da cadeira, com as mãos agarrando o encosto. — Posso ir?
— Obrigado pela sua honestidade. Vou entrar em contato, se eu
precisar de um depoimento formal. — Trevor manteve o tom neutro,
esperando que a expressão também parecesse inexpressiva. Mas, em seu
peito, o coração martelava com força.
Charlotte hesitou, abrindo a boca. Então, num giro rápido, ela se foi.
Passou pela primeira porta e, depois, pela segunda, fechando-a ao sair e
deixando a delegacia no silêncio.
46- UM FUTURO DUVIDOSO

S onde estava indo, Charlotte seguiu os passos até o rio.


Não poderia voltar à Casa Palmerston – ainda não – e precisava se afastar
da delegacia. A fuga apavorada quase a fez chorar, deixando-a ainda mais
perto do desespero. Confusão dominou seu corpo, e não foi até acompanhar
o rio em direção à lagoa que se sentiu capaz de respirar outra vez.
Tirou os sapatos e ficou parada na água. O frio ajudou-a a controlar as
emoções que ameaçavam tomar conta dela.
Uma, duas respirações.
Curvou os dedos na areia sob a superfície.
Uma, duas respirações. Mais devagar, Charlie.
O ar encheu seus pulmões quando ela inalou, segurou a respiração.
Então, soltou o ar. Ao redor, gaivotas rodopiavam antes de pousarem, com a
esperança de encontrar comida. Repetiu o mantra no ritmo do passo das
árvores.
Uma respiração.
Agora, sim.
Duas.
Caminhou em direção ao mar, agora encorajando a própria respiração a
ir e vir como as ondas. Tudo o que imaginava tinha um propósito. Onde o
rio se encontrava com o mar, Charlotte pisou na areia e seguiu ao píer. Ali,
em seu finzinho, a brisa estava mais forte e transformou seu cabelo numa
confusão emaranhada. Sentou-se, deixando os sapatos ao lado e esticando
os dedos em direção ao oceano.
As gaivotas a seguiram. Uma delas caminhou pelas tábuas de madeira
até que Charlie quase conseguiu tocá-la.
— Quer trocar de vida? — A ave se apoiou numa perna, e Charlotte
fechou os olhos.
Passos no píer invadiram seus pensamentos. Trev a teria seguido? Ela
não poderia se entregar a esses desejos complicados. Reuniu as palavras,
pronta para pedir que ele fosse embora.
Um latidinho alegre a fez girar. Viu Randall vindo correndo. Atrás
dele, Thomas caminhava em sua direção. Resmungando, Randall se
acomodou ao lado de Charlotte, com a cabeça em seu colo e o rabinho
batendo com força o bastante para espantar as gaivotas. Aqueles olhos
gentis fizeram o coração dela derreter e, lá no fundo, a mulher transbordou.
Lágrimas silenciosas escorreram pelo rosto e caíram nos braços, onde
Randall as lambeu.
— Normalmente, não é esse o efeito que ele causa nas pessoas. —
Thomas se agachou no píer antes de enfiar a mão no bolso. — Acho que
isso daqui está limpo. — Ele ofereceu a Charlotte um lenço perfeitamente
passado.
— Obrigada. — As lágrimas não deram sinal de parar, então desistiu
de secar o rosto e deixou-as cair.
Thomas se sentou com ela, dando tapinhas ocasionais em seu ombro,
com Randall entre eles. O cachorro virou de costas, pedindo um carinho na
barriga. Acariciar o pelo dele fez Charlotte se sentir muito melhor.
Cachorros eram simplesmente maravilhosos. As lágrimas secaram.
— Obrigada. Vou lavar e te devolvo.
— Tenho um punhado, não precisa ter pressa. Está se sentindo melhor?
— Um pouquinho. Não sou muito de chorar, desculpa.
— Você chegou aqui primeiro. Chore o quanto precisar.
Charlotte encarou o lenço.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Conquanto não seja algo sobre matemática, pois nunca fui bom
nisso.
— E se for sobre pessoas?
— Sei um pouquinho sobre elas.
— Certo. Então, se você deixa alguém morar na sua casa, confia nela e
tudo mais, mas ela guarda um segredo… um segredo que acreditava não
poder compartilhar. De repente, outra pessoa faz algo ruim, e esse segredo
vem à tona. Você deixaria de confiar nela?
— Espero que isso não seja um jeito estranho de me dizer que Christie
ou Martha estão tramando algo.
Ela encarou Thomas e viu que, obviamente, ele estava brincando.
— Charlotte, tenho experiência com pessoas escondendo segredos de
mim. Dói muito quando a verdade aparece. Danifica a confiança, senão a
acabar destruindo. Isso se trata de Bernard Cooper?
Ela assentiu.
— Está com medo de chatear Elizabeth se dizer algo?
— Aconteceu muita coisa hoje cedo. Elizabeth sabe de tudo, assim
como Angus e Christie. E Trev. Todo mundo está chateado comigo, menos
Christie.
— Então você precisa consertar tudo.
— Não entendi.
— Nem eles entenderam. Já que você perguntou, sugiro que conte toda
a verdade. Erga a cabeça e defenda sua atitude ética, mas explique como se
sente por tê-los machucado. Diga a eles o que você deseja e descubra se tem
alguma maneira de fazer com que isso aconteça. — Thomas se levantou. —
Eles se importam com você. Todos nós nos importamos, não nos subestime.
— Que homem sensato.
— Eu sei, vou te mandar a conta. Venha, Randall, está na hora de te
levar pra casa do Martin.
Lambendo a mão de Charlotte, Randall se levantou e se chacoalhou
antes de correr atrás de Thomas.
O que eu quero?
Talvez fosse mais fácil fazer as malas e ir embora sem fazer barulho.

E A estavam no saguão da Casa Palmerston com Trev.


Os faróis de um táxi que se aproximava brilharam pela janela e Elizabeth
pegou a mão de Angus, com uma expressão resoluta.
— Eu posso falar com ele, querida. Se você quiser.
— Obrigada, Angus. Mas sou eu quem preciso dizer a ele a minha
decisão. Estou muito grata por estarem aqui, vocês dois.
— Nenhuma notícia do seu amigo em Brisbane, Trev? — perguntou
Angus.
— Além de contratar um detetive particular, não tem muito mais que
possamos fazer. Ele parece estar completamente limpo. Vou conversar com
ele e, fique sabendo, vou fazê-lo dizer a verdade.
A porta da frente se abriu assim que o táxi partiu. Bernie fechou a porta
atrás dele. Sua pele estava pálida, e os pés, descalços.
— Estou bem, mas obrigado por estarem todos aqui para me receber.
Significa muito. — Deu alguns passos em direção a eles, mas parou. —
Estou muito envergonhado e tenho de pedir desculpas. Principalmente a
você, Elizabeth.
— Fico feliz de saber que você está bem. Muito feliz, Bernie.
— Hoje, só consegui pensar numa xícara do seu chazinho e em me
desculpar. Tive um jantar tranquilo no pub, mas Lance me encorajou a
experimentar alguns vinhos locais. Geralmente, eu não bebo. Mas antes que
eu percebesse, tinha acordado no lago. Então… Eu poderia tomar um
chazinho?
Elizabeth respirou fundo.
— Acho que não. Apesar de entender que você sente muito, é
responsabilidade minha garantir o conforto e a segurança dos meus outros
hóspedes, assim como a minha. O que aconteceu hoje cedo me deixou
muitíssimo chateada e temerosa. Não posso arriscar que isso aconteça outra
vez.
— Não vai. Eu prometo que não vai. — Bernie deu um grande sorriso.
— Fui um grande tolo, não fui?
— Bernie, gostaria que você fosse embora, por favor.
— Mas eu acabei de chegar.
— Elizabeth quis dizer pra sempre. — Angus assumiu o controle. —
Fizemos um acordo com o Rivers End Motel para que você tenha um quarto
lá hoje à noite, se quiser. Por favor, faça as malas.
Como se as palavras não tivessem feito sentido, Bernie continuou
sorrindo. Olhou de um ao outro antes de focar em Elizabeth.
— Essa é a minha casa.
— Não, querido. É minha, e você era um hóspede pagante.
— Mas eu gosto daqui. E não estou me sentindo muito bem, podemos
deixar essa conversa para amanhã?
— Quer que eu te ajude a subir as escadas, se estiver passando mal?
Ou deveríamos chamar a ambulância de novo? — Trev deu um passo à
frente. — Refazer as malas vai ser rápido.
Raiva e descrença atravessaram o rosto de Bernie. Ele encarou Trev,
que nem mesmo piscou. Então, com um suspiro dramático, o homem
deixou a cabeça cair.
— Cometi um erro. Se essa for sua decisão final, Elizabeth, eu vou
embora.
— É, sim. Obrigada.
— Precisa de ajuda? — Trev gesticulou para a escadaria.
— É claro que não. Não vou demorar. — Ainda cabisbaixo, Bernie
subiu as escadas sem pressa.
Quando o homem sumiu de vista, Trev se voltou para Elizabeth e
Angus.
— Vou levá-lo ao motel. Ele deve alguma coisa a vocês?
— Não. Na verdade, preciso devolver um pouco de dinheiro, pois ele
pagou adiantado. Obrigada. — Elizabeth desapareceu na direção da
cozinha.
— Obrigado, Trev. Sua presença deixou as coisas mais fáceis pra ela.
Ela odeia fazer esse tipo de coisa.
— Bernie não pode ficar aqui. A Charlotte já voltou?
— Não a vejo desde cedo. Pensei que ela estivesse com você.
— Estava. Me ligue quando ela chegar, por favor? Estou ficando
preocupado.
— É claro. Não importa como Elizabeth esteja se sentindo agora, ela
não vai fazer a Charlotte ir embora hoje. Espero que isso nunca aconteça.
— Me mantenha informado. Se ela precisar de um lugar pra ficar,
posso dar um jeito nisso.
O som dos passos de Elizabeth interrompeu a conversa.
— E o carro dele?
— Eu o trago pela manhã, antes do interrogatório, e ele vai poder
buscá-lo sob a minha supervisão.
Trev não tinha qualquer intenção de deixar o homem entrar na Casa
Palmerston outra vez. Bernie poderia estar cooperando agora, mas o coronel
tinha visto, pela manhã, a violência que existia dentro do homem. E sua
intuição dizia-lhe que havia mais coisas acontecendo com Bernie do que
qualquer um sabia.
47- PERDÃO E FÚRIA

M , Trev e Bernie dirigiram-se para longe da Casa


Palmerston, Daphne e John chegaram. John trazia um prato coberto por
papel alumínio.
Angus abriu a porta.
— Ah, meu Deus! O que vocês trouxeram?
— Elizabeth precisa descansar, não cozinhar. Por isso trouxemos uma
refeiçãozinha. Pra ajudar.
Elizabeth atravessou o saguão, com os braços abertos.
— Que gentileza da sua parte, Daphne.
As mulheres se cumprimentaram. Então, Daphne ancorou o braço no
de Elizabeth.
— Vamos pra cozinha. Vou requentar isso, enquanto você fica sentada,
bebendo algo delicioso.
— Não precisava, estou bem. Na verdade, estamos todos bem.
— Está tudo bem agora? — perguntou John, baixinho, enquanto ele e
Angus seguiam as senhoras.
— Está melhorando. Trev acabou de levar Bernie Cooper ao motel da
cidade. Vi que Elizabeth começou a relaxar. Pela primeira vez hoje, devo
dizer. Foi um dia um pouco estressante.
— Daph não gostou dele desde o começo. Ela é muito boa em julgar as
pessoas. — John ajeitou o prato nas mãos. — Não sabia se precisávamos
requentar isso, já está bem quente.
— Muito obrigado por isso. A gente ainda não comeu hoje. Vocês vão
ficar?
— É claro que sim! — gritou Daphne, sobre o ombro. — Tenho boas
notícias para compartilhar.
Minutos depois, ao redor da mesa da cozinha, o grupo se sentou com
uma garrafa de vinho e um prato de coxas de frango assadas, vegetais
cozidos e pão de alho.
Daphne foi incapaz de guardar a notícia.
— É sobre o casamento.
— Parece que você vai explodir de tanta animação, Daphne. Conte-
nos. — Finalmente, Elizabeth tinha voltado a sorrir.
— Então… estou trabalhando nisso faz um tempinho, mas achei que as
coisas não se resolveriam tão depressa — disse Daphne. — Bem, mas com
a celebrante deles tendo se aposentando e tudo mais…
— Oi? Quando foi que isso aconteceu? Christie não disse nada.
— Aconteceu hoje, Elizabeth. Ela vai ligar pra todos os clientes
agendados amanhã cedo. Conseguiram vender o negócio e querem se mudar
para mais perto dos netos o mais rápido possível.
— Bem, fico feliz por eles. São pessoas maravilhosas. Mas e o
casamento?
— Ela disse que voltaria para fazer a cerimônia deles, mas eu disse que
não seria preciso. — Daphne se iluminou. — Sabe no que tenho investido o
meu tempo? Em me tornar uma celebrante!
— O quê? Ah, Daphne! — Os olhos de Elizabeth brilharam. — Vai ser
perfeito, não tem ninguém melhor para casar a Christie e o Martin.
— Exato! Eu estava lá no dia em que se conheceram, quando se viram
pela primeira vez! É claro, foi no funeral da pobre Dorothy, mas ficou óbvio
que os dois tinham sido feitos um para o outro. — Daphne pegou uma das
coxas e deu uma mordida.
Um movimento na porta chamou a atenção de todo mundo. Era
Charlotte.
— Entre, querida — disse Elizabeth, baixinho.
Charlotte deu apenas um passo para dentro. O cabelo parecia
embaraçado, e os olhos estavam vermelhos e tristes. Ela cheirou o ar e
quase suspirou de prazer.
— Não vou incomodá-los.
— Não seja tola. Tem o bastante pra todo mundo. — Daphne se
levantou e buscou outra taça de vinho e mais um prato.
Elizabeth inclinou a cabeça, encarando Charlotte.
Ela parecia tão perdida…
— Charlotte?
Finalmente, olhou para Elizabeth, com algo que parecia uma súplica no
olhar.
— Daphne tem razão. Tem um monte de comida aqui. Por favor, sente-
se conosco.
Angus se levantou e puxou uma cadeira para Charlotte. Então,
inclinou-se e beijou Elizabeth na boca. Na frente de todo mundo.
— Eu te adoro tanto, querida.
Lágrimas cintilaram nos olhos de Elizabeth, e Daphne sussurrou para
John:
— Estou vendo outro casamento no futuro.

R , uma cama grumosa. Uma bancada toda


arranhada servia de apoio para xícaras grossas e feias, além de uma chaleira
questionável. Bernie já tinha se hospedado em diversos motéis como aquele
sem se importar com as aparências. Mas, depois de semanas na Casa
Palmerston, as diferenças eram marcantes.
Eu não deveria estar aqui.
Ainda assim, ali estava ele. Sob a supervisão da polícia, como se fosse
um criminoso. O coronel levou suas malas ao quarto e até mesmo se
ofereceu para comprar uma refeição. O tempo todo, Bernie permaneceu
educado. Obediente. Arrependido. E deveria ter aceitado a comida, pois sua
barriga se recusava a parar de roncar depois de vinte e quatro horas sem
comer.
Empurrou a cortina fininha para o lado. A viatura tinha ido embora.
Não havia nenhum carro no estacionamento, mas por que deveria haver?
Quem, em sã consciência, se hospedaria nesse lixão? Parecia que alguém
tinha morrido ali.
O desenrolar terrível dos acontecimentos daquela noite jogou todos os
planos dele por água abaixo. Agora, teria que repensar alguns detalhes.
Xingando, foi até a cama e abriu uma das malas. Se relesse o diário, poderia
encontrar alguma pista que tinha deixado passar. Alguma outra maneira de
realizar seu sonho.
O sonho da mãe.
Um dia, pegaria uma das joias de Eleanor e deixaria na sepultura da
mãe. Uma homenagem a ela.
Encontrou o celular no fundo da bolsa, sem bateria. Peça a peça,
empilhou as roupas na cama até a mala ficar vazia. Não encontrou diário
algum. Refez a mala, verificando cada um dos bolsos pelo caminho.
A bolsa da câmera foi a próxima. Havia três câmeras e sete lentes.
Algumas bolsas menores com acessórios. A embalagem do tripé. Mas
nenhum diário.
Bernie verificou as roupas que vestia. Nada. Quando o tinha lido pela
última vez? Há alguns dias, no quarto. Mas havia dado uma olhada sob o
colchão quando fizera as malas e, não o encontrando, assumiu que estaria
no meio das roupas.
Alguém deveria tê-lo roubado. Invadido o quarto, encontrado o diário
e, agora, sabia dos seus segredos. Teria sido Lottie? Ou Elizabeth? Sim, ela
tinha a chave e poderia usar a desculpa de ter entrado para limpar. Ainda
assim, ela se posicionou hoje, com uma expressão implacável no rosto,
expulsando-o da própria casa.
— Bem, é claro que ela fez isso. Não ia conseguir chegar ao tesouro
comigo lá.
Estava claro agora. Elizabeth tinha o diário e planejava conspirar com
Christie – a mantenedora da chave – para roubarem os tesouros de Harry.
Os meus tesouros.
Bernie pegou uma das câmeras. Teria de encontrar um outro jeito de
entrar na casa. Ligaria para a polícia, mas todos os policiais da região
estariam em conluio com Elizabeth. A cidade toda queria que ele fosse
embora para porem as mãos imundas no que restava da herança do homem.
O sangue subiu à cabeça de Bernie, e estrelas dançaram em frente aos
seus olhos. Queimaria todo o lugar antes de deixar que lhe roubasse tudo
pelo que havia trabalhado tão duro. Queimaria toda a cidade. Com toda sua
raiva, arremessou a câmera contra a parede.
48- GARRAFAS E CHAVES

D noite de sono inquieto, tendo pesadelos com Charlie


fugindo da cidade sem dizer nada, Trev adentrou o estacionamento do motel
com a viatura. Bernie emergiu do quarto e, com nada mais do que um
resmungou, entrou no carro.
— Conseguiu dormir? — perguntou Trev, com mais animação do que
sentia. Era melhor manter a situação amigável.
— Um pouco.
— Dormi como uma pedra — disse o homem que tinha ficado
acordado pela maior parte da noite. — Trouxe as chaves do seu carro?
— Sim.
Dirigiram pela cidade. George estava sentado na frente da loja, e
Bernie o encarou.
— Ah, ali está o George — disse Trev. — Ele ouviu o meu conselho e
melhorou a segurança. Câmeras e alarmes aos quais tenho acesso, tanto
aqui quanto na casa dele. Hoje em dia, segurança nunca é demais.
— Ele tem algumas peças interessantes. Compensa protegê-las. —
Bernie sorriu.
Interessantes por quê?
Minutos depois, Trev adentrou o terreno da Casa Palmerston.
— Então, pegue o seu carro e me siga até a delegacia para
conversarmos. Depois, está liberado.
— Parceiro, acho que derrubei uma coisa no meu quarto ontem à noite.
Estava um pouco tonto, pode ter ido parar debaixo da cama. O que você
acha de eu perguntar pra Elizabeth se posso dar uma passada lá pra ver?
Trev estacionou atrás do SUV.
— Sem chance. Mas posso perguntar se ela achou algo. Entre no seu
carro, e eu já volto. O que você deixou pra trás?
— Um… um livro com capa de couro, mas eu posso…
Trev caminhou até a porta da frente e bateu.
Elizabeth atendeu, olhando para além de Trev, enquanto Bernie abria a
porta do SUV. Ele ficou parado, observando.
— Ignore-o, Elizabeth. A nossa próxima parada é na delegacia, então
finja que ele não está aqui.
Ela arrastou os olhos de volta a Trev.
— Você acha que ele vai tentar voltar aqui?
— Vou deixar bem claro o que vai acontecer se ele fizer isso. Estou
apenas te incomodando, porque o Bernie acha que derrubou alguma coisa
no quarto. Um livro.
Ela balançou a cabeça.
— Angus me ajudou a limpar o lugar hoje cedo. Foi um choque termos
encontrado um punhado de garrafas d’água vazias debaixo da cama. Todas
amassadas. Mas nenhum livro, nem qualquer objeto pessoal.
Garrafas d’água?
— Sinto muito pela confusão.
— Não tem problema. Angus foi o responsável pela maior parte da
limpeza. — Seus olhos se iluminaram. Estavam todos em Rivers End
apaixonados?
— Certo. Bem, vou tirá-lo da sua propriedade e pedir para que você se
divirta hoje.
— Na verdade, Angus e eu vamos dar uma volta em Warrnambool e
comprar um presente para o casamento. E almoçar. Vai ser divertido.
Trev voltou aos carros. Lentamente, Bernie subiu no SUV.
— Me siga, combinado?
— É claro.
Assim que Trev entrou na viatura, olhou para o retrovisor. Charlotte o
observava da janela do quarto.

—A certeza quanto ao balcão da recepção. Você tem


alguma ideia? — Christie estava parada no meio do salão parcialmente
arrumado, encarando o espaço vazio, com a testa franzida. — Precisa ser a
escolha certa.
— E tem de combinar com a atmosfera do lugar — disse Barry,
anotando algo.
— Exatamente. É uma das primeiras coisas que os clientes vão ver,
então tem de ser perfeito.
— Vou pensar no assunto. Estou esperando alguns bambus chegarem
para a decoração do lado de fora.
— Você acabou de mudar de assunto? Estou preocupada com o balcão,
e você é o construtor mais criativo que conheço.
Barry riu.
— Tem certeza disso?
— Olhe para a casa de campo.
— O Martin não é mais criativo do que eu?
— Bem, sim. Mas ele não constrói. Ah, você está sugerindo que eu
pergunte a ele! Ótima ideia.
— Sylvia me disse que talvez você contrate a Belinda.
— Não tenho dúvidas quanto a isso. — Christie seguiu aos fundos do
lugar, e Barry a seguiu. — Assim que Belinda se formar, vai vir direto pra
cá. Ela é muito talentosa, e os clientes vão amar o seu senso de humor.
— Tem mais alguém em mente? Acho que você não vai conseguir lidar
com tudo sozinha.
— Vou entrevistar uma pessoa amanhã. Talvez eu alugue parte do
espaço para alguns especialistas. Alguns massagistas terapêuticos e
terapeutas naturais demonstraram interesse, então poderiam alugar os
quartos privativos. — Christie parou onde costumava estar a porta dos
fundos. Agora, a luz natural atravessava as paredes de vidro. — Eu amei.
Janelas que são portas!
— No verão, você vai poder abrir tudo até em cima, se quiser.
— É perfeito para eventos especiais. Apenas para convidados, é claro.
— É claro. Me diga, você vai vender vale-presentes?
Christie se voltou para Barry, sorrindo.
— Sim. Também vamos atender aos homens, Barry.
— Não. Não é pra mim. Estou muito feliz com a beleza que tenho,
obrigado.
— Não sei, não… Quando foi a última vez que você se depilou?
Os olhos de Barry se arregalaram.
— Chega desse assunto. Eu queria um vale-presente. Ou melhor,
alguns.
— Pode deixar que vou garantir que a Sylvia saia sempre linda e
relaxada daqui.
— Como você… esqueça.
— Eu vivo dizendo a todo mundo que sou ótima com segredos e
mistérios, mas ninguém acredita em mim.
— Nada disso, todo mundo acredita em você. Então, o que acha dos
segredos da Casa Palmerston?
— Nem me fale. Já é ruim o bastante Bernie Cooper achar que é dono
do lugar. E Thomas suspeita de todo mundo que ele não conhece. Ah, e a
Daphne está cheia de teorias.
— Estou falando sério. — Barry se recostou na parede. — Não ouvi
tudo, então posso estar errado. Mas se Cooper estava procurando uma chave
no lago… O que ela abre? Quem deixaria uma chave lá, e o que isso tem a
ver com você?
Christie mordeu o lábio inferior, pensando.
— A gente acha que ele invadiu a casa de campo e mexeu no baú. A
Martha tem certeza de que o baú estava em outro lugar da mesa na sala de
jantar naquela noite. Mas não tem nada lá dentro.
— É o baú que a sua avó deixou pra você?
— Sim. Ele veio da Casa Palmerston. Martha lembra de vê-lo no
quarto da vovó quando eram meninas. Tinha uma chave, que a vovó
também me deixou, junto com a chave da casa de campo e a da caixinha
com a tulipa. Mas a chave de osso só abre o baú.
— Tem certeza? — Barry deu uma olhada no relógio. — Trancas
podem ser duplicadas… Como você sabe que não existe uma porta ou um
depósito, em algum outro lugar, que a chave também abre? Tenho de dar
uma passada em Green Bay.
— Por onde eu deveria começar a procurar pela tranca?
Ele deu de ombros.
— Eu daria uma olhada no buraco da fechadura no baú, prestaria
atenção nos detalhes e partiria disso.
Quando Barry foi embora, Christie perambulou pelo salão. Ainda havia
tanto a ser feito. A estrutura estava inacabada, faltava encanamento do lado
de dentro para as pias e do lado de fora para a hidromassagem. Fios
pendiam do teto. Em todos os cantos, havia poeira e sobras. Era difícil
imaginar que, daqui a alguns meses, abriria as portas.
Mas antes disso viria o casamento. Não faltava muito tempo para se
tornar a esposa de Martin, para começar uma nova vida, menos de um ano
depois de ter se mudado para Rivers End.
Ao trancar a porta da frente depois de sair, olhou-a mais de perto. Uma
fechadura simples. Barry tinha razão, ela deveria tentar encontrar alguma
informação e, depois, ir atrás das pistas. Uma pontada de animação surgiu
em sua barriga.
49- VIAGEM DE CARRO

N estava pensando?
Charlotte olhou, pela janela, o carro de Trev e viu a paisagem ir das
costas para as montanhas. Por conta de um momento de fraqueza, agora
estava numa viagem de carro.
Uma hora mais tarde, sozinha na Casa Palmerston depois de Elizabeth
e Angus terem pegado a estrada para o dia em Warrnambool, um sedan
velho estacionou na frente do lugar e Trev desceu.
Ela abriu a porta, surpresa. Vestindo calça jeans e uma camiseta, o
sorriso dele era contagiante e a encorajou a aceitar o convite do homem.
— Não vamos voltar até o comecinho da noite, se você tiver outros
planos… — É claro que ela não tinha. — Você vai amar a minha mãe.
Charlotte encarou Trev.
— Tem certeza de que ela não vai ligar se eu aparecer na porta da casa
dela sem aviso?
— Sim. E não vamos visitar a casa dela. Vamos dar uma passada na
livraria.
— Ela tem uma livraria? — Agora, as coisas tinham começado a fazer
sentido. Quando Trev a convidou para ir com ele até Macedon Ranges
numa viagem para ver a mãe, Charlotte tinha se preocupado de que ele
pudesse estar esperando mais dela do que a amizade que tinham. — E você
sabe que eu amo livros.
— Exatamente. Então mesmo se você não estiver a fim de socializar,
vai poder dar uma olhada no lugar, enquanto falo com a mamãe.
Alívio preencheu Charlotte. Ele havia mencionado que a mãe estava
pensando em vender o lugar e que precisava de um tempinho para
conversar com ela. Com Bernie fora da Casa Palmerston, Trev tinha a rara
oportunidade de tirar um dia de folga. E gostaria de ter uma companhia na
longa viagem. Então ela estava ali apenas como companhia, com a
oportunidade de mergulhar nas maravilhas da livraria de uma cidadezinha.
— Você está sorrindo.
— Não estou, não.
— Está, sim, Charlie. Dizem que a comida ajuda a conquistar o
coração dos homens. No seu caso, seriam os livros? — Ele riu. — Não
precisa responder.
Ela não tinha a intenção de fazê-lo. Livros eram a sua fuga. O mundo
no qual ela podia se apoiar quando a realidade parecia estar desmoronando.
Olhou de soslaio para Trev. Ele era muito mais do que os braços
musculosos, o tanquinho e a beleza. Mas isso tudo era, com certeza, a cereja
do bolo.
— Eu te vi mais cedo. Com o Bernie. — Ela diria qualquer coisa para
deixar aqueles pensamentos tolos de lado.
— Ele achou que tinha deixado um livro no quarto, mas tudo que
Elizabeth encontrou foram garrafas d’água vazias.
— Um livro? Deve ter sido o diário de Harry Temple, imagino. Talvez
ele o tenha derrubado no lago.
— Não diga isso! Elizabeth não vai tolerar mais ninguém por lá,
mesmo que seja por uma prova.
— Provavelmente, deve estar no fundo de alguma mala. E você disse
que ela encontrou garrafas d’água amassadas?
Trev olhou para Charlotte.
— Por quê?
— Ele sempre faz isso. A mãe nunca o deixou beber nada engarrafado
enquanto o filho crescia. Nada de refrigerantes, nem água engarrafada. Ela
tinha algum tipo de fobia do som que faziam quando eram amassadas.
Bernie me disse que, no dia depois que ela morreu, ele comprou um pacote
de vinte e quatro garrafas d’água, esvaziou todas e, depois, amassou uma a
uma.
— E agora ele não consegue mais parar.
Charlotte olhou para as próprias mãos.
— Pensei que as garrafas fossem o foco da sua raiva, mas do jeito que
tratou a Christie…
— A inibição desaparece quando tem álcool envolvido, você sabe
disso. Se ele não tivesse bebido tanto, nunca saberíamos.
— Eu deveria ter dito algo antes.
— Deveria ter confiado em mim, eu usaria o seu conhecimento para
avaliar a situação. Mas admiro a sua ética, Charlie.
Talvez não admirasse mais se soubesse o porquê, o motivo verdadeiro.
— Por que você mora tão longe da sua mãe?
— Sempre muda de assunto quando escuta algo de que não gosta?
“Sim, Trev, eu mudo” seria a resposta correta, então não me olhe feio.
Mudando de assunto, então. Quando eu estava procurando emprego, não
achei nada mais perto de casa. Ela e o meu pai sempre moraram lá.
Conheciam todo mundo e nunca saíram dos Ranges. Eu cresci jogando nos
times locais de futebol e de críquete, frequentei as escolas da região e esse
tipo de coisa. Sempre quis encontrar algo pertinho deles.
— E está em Rivers End desde então?
— Eu amo aqui. Não teve nenhum dia em que me arrependi de vir
trabalhar aqui.
— Mas não vê mais a sua família todo dia.
— É verdade. Sinto falta da mamãe. Meu pai morreu faz tempo, mas
ela está rodeada de amigos e sempre recusa as minhas duas ofertas anuais
de vir morar aqui.
Com um suspiro breve, Charlotte voltou os olhos para a paisagem em
movimento. Uma mãe coerente e amorosa. Um pai, um dia. Um lar
enquanto crescia, e um lugar onde todo mundo se conhecia. Parecia um
tantinho com Rivers End. Quão diferente a criação de Trev tinha sido da
dela. Quão perfeita parecia ter sido. E quão totalmente fora de alcance
estava a chance de Charlie experienciar isso.
50- ALÉM DA DESPENSA

M hora depois de ter se escondido nos arbustos do outro lado da


estrada, Bernie teve certeza de que a Casa Palmerston estava deserta.
Primeiro, Angus e Elizabeth saíram naquele Range Rover pomposo e
caro demais. Viraram em direção à Warrnambool, então, com sorte,
ficariam fora o dia todo. Em seguida, algo inesperado aconteceu. Lottie
entrou no carro de Trevor Sibbritt e foram embora. Ela levava consigo uma
bolsa, um livro e um casaco. Até mesmo riram a caminho do carro dele.
Ora, ora. Ele vai ficar muito interessado no seu verdadeiro eu…
Bernie avançou para a estrada e correu pela propriedade. Entrou na
Casa Palmerston pelos fundos, usando a chave que Elizabeth mantinha
escondida sob um vaso cheio de ervas. Devolveu a chave ao lugar, tomando
cuidado para deixar o vaso exatamente da maneira que o havia encontrado.
As chaves de todos os quartos pendiam dos ganchos perto da porta da
adega. Ele as agarrou, rindo. Por que sequer se preocupar em trancar algo?
O cômodo de Elizabeth foi o primeiro. Ela tinha um quarto com um
closet, uma pequena sala de estar e um banheiro. Muito elegante e,
provavelmente, o quarto que tomaria como seu quando a hora chegasse.
Queria se demorar nas fotografias que decoravam as paredes, mas sabia que
o tempo não estava ao seu favor. Havia um monte de quinquilharias, livros
velhos e um diário próprio, mas nada do diário de Harry. Nem mesmo sob o
colchão.
Lottie era organizada. Suas roupas tinham sido dobradas e guardadas
nas gavetas, ou penduradas com cuidado. Não havia muito para ser
vasculhado. Ele trouxe um dos macacões dela para perto da bochecha.
Tão macio.
Então, olhou debaixo da cama, sob o colchão e dentro da mala vazia.
Nada do diário.
Quarto a quarto, Bernie procurou por todo o lugar. Depois de não obter
sucesso na cozinha – o último cômodo –, pendurou as chaves no lugar
correto. Em seguida, abriu a porta da adega.
Ali embaixo, a luz era tão ruim que ele poderia não notar se o diário
estivesse encostado na parede ou sob alguma caixa. Outra busca sem
sentido acabou na porta que levava aos seus tesouros. Tão perto… Antes de
ter tempo para pensar melhor, Bernie empurrou as prateleiras para longe da
pequena porta de pedra.
Subiu correndo os degraus e foi até aos velhos estábulos, onde pegou
um martelo pesado e um pequeno pé-de-cabra. Estava animado com a
oportunidade inesperada.
Por horas, trabalhou, forçando o pé-de-cabra na fechadura e ao redor
da porta. Em seguida, acertou-a com o martelo até ficar profundamente
amassada. Todo o peso que colocou no pé-de-cabra não serviu de nada, pois
não conseguiu fazer com que a porta se movesse nenhum centímetro. De
novo e de novo, tentou até os braços virarem geleia e o chão estar recoberto
de pedacinhos de reboco e madeira. Furioso, acertou o meio da porta com o
martelo, arrancando um pouquinho de pedra, mas a porta se manteve firme.
Bernie recolocou as prateleiras no lugar e reorganizou as caixas.
Chutou a sujeira para um dos lados, pois ninguém veria nada com aquela
iluminação precária. Suor escorria pelo corpo, e todos os músculos doíam.
Tudo por nada. Ele precisava da chave.
Congelou quando um rangido distinto soou acima.
Outro rangido. Uma risada. A risada de Elizabeth.

A Warrnambool foi tão produtiva quanto prazerosa.


Elizabeth e Angus escolheram o presente perfeito para o casamento e
desfrutaram do almoço delicioso com vista para o mar. De volta à Casa
Palmerston, foram direto para a cozinha, pois estavam mais do que prontos
para uma xícara de chá. Enquanto a chaleira fervia, Elizabeth preparou o
bule, e Angus contou a ela uma história do seu tempo em Londres, que a fez
rir. Então, quando a chaleira parou de assobiar, ouviram um som estranho.
Um arranhar, quase como se um passo tivesse sido dado do outro lado da
porta da adega.
— Você ouviu isso? — perguntou Elizabeth.
— Sim, provavelmente foi um rato.
— Um rato! Na minha casa?
Angus sorriu.
— Ou um camundongo.
Elizabeth apoiou as mãos no quadril.
Houve um baque suave, um pouco mais longe da porta.
— É melhor eu dar uma olhada. — Angus foi em direção à porta da
adega. — Pode ser um gambá perdido.
— Ou talvez devêssemos chamar o… não, estou sendo tola.
— Não precisamos de um dedetizador ainda. Deixe-me ver se consigo
encontrar o culpado.
— Não era o que eu tinha em mente, mas tome cuidado.
Enquanto abria a porta, Angus jogou um beijo para ela.
— Nenhum roedor é páreo para mim.
Seus passos esmaeceram, e Elizabeth abriu a gaveta onde guardava as
lanternas.
— Vou te dar um pouco de luz.
— Mas que raios… — As palavras de Angus foram abaladas pela
distância.
Elizabeth atravessou a porta.
— Angus?
— O que você… — Ele foi interrompido por um arquejo.
Passos se aproximaram, com pressa. Medo percorreu todo o corpo de
Elizabeth.
— Angus? — gritou ela, mirando a lanterna ao redor e ao topo dos
degraus.
Bernie surgiu em sua visão, com o rosto vermelho e as roupas cobertas
por uma substância branca. No pé da escadaria, ele parou, desequilibrado.
Numa das mãos, carregava um martelo, na outra, um pé-de-cabra. Elizabeth
se virou e correu.
Não poderia abandonar Angus. Na cozinha, seus olhos estudaram os
arredores, enquanto os passos pesados de Bernie ficavam mais altos. Ela
pegou uma faca que estava na pia e se afastou.
B porta. Cambaleou até parar perto da mesa da
cozinha, piscando contra o sol que atravessava a janela.
Seus olhos percorreram o cômodo, repousando em Elizabeth, que tinha
se encurralado entre o balcão e um punhado de prateleiras altas.
— Está com uma faca?
— Não chegue perto de mim. — Sua voz soou fraca, cheia de medo.
— Eu nunca te machucaria, Elizabeth.
Ela olhou para as ferramentas que ele ainda carregava. Bernie as
soltou, uma a uma, no topo da mesa.
— Está vendo?
— Bernie, por favor, vá embora. Preciso ajudar o Angus.
— Angus? Ah, ele está bem?
— Cadê ele? — Elizabeth deu um passo pra frente, com a faca ainda
nas mãos ao lado do corpo. — O que você fez com ele?
— Nada.
— Não acredito em você! Eu ouvi.
— Ele ficou surpreso em me ver.
— Por favor. Por favor, Bernie. Você disse que gostava de mim. Então,
por favor, vá embora. Deixe-me passar.
— Não me importo se você quiser continuar morando aqui. — Ele
sorriu. — Mas gostei do seu quarto, porque prefiro ter bastante espaço e
uma vista bonita, principalmente se a janela der para o jardim dos fundos.
Você pode ficar com qualquer outro quarto.
— Obrigada.
Do que raios ele estava falando? Da porta que dava na adega, um
gemido soou, e medo revirou a barriga dela.
— Bernie, deixei a cesta de roupas sujas lá fora. Poderia buscá-la pra
mim? Depois, podemos tomar uma xícara de chá.
— Eu não sou louco, sabia? Mas vou embora, porque já fiz tudo que
podia aqui.
— Tudo que podia?
— Eu tentei. Faltando tão pouco, esgotei quase todas as possibilidades.
— Não entendi.
— E você não tem culpa disso. Ah, minha querida Elizabeth, você
simplesmente comprou a propriedade. Como poderia saber que era
roubada? — Ele deu de ombros. — O pobre do meu bisavô Henry ficou
sem nada, graças ao Eoin Ryan. É a família dele quem vai pagar, não a sua.
Elizabeth estava desesperada para encontrar Angus, mas Bernie
continuou falando:
— Vou recuperar a Casa Palmerston. Por Harry. Ele pode não ter tido
dinheiro pelo resto da vida; ele e a família trabalharam como pessoas
comuns, pelo menos ele as tinha.
— Bernie? Você foi ao cemitério?
— Aqui, em Rivers End?
— Perto do penhasco, temos algumas sepulturas que podem ser do seu
interesse. Dos primeiros habitantes daqui. Talvez você devesse dar uma
passadinha lá, para ver quem são.
Ele inclinou a cabeça.
— Talvez eu faça isso.
Então, ele se foi. Segundos depois, a porta dos fundos se fechou num
clique.
51- UM RECEPÇÃO CALOROSA

A outra vez assim que Trev fez uma curva longa e lenta,
descendo por um vale. Como se tivesse voltado no tempo, a primeira visão
que teve da vila quase o levou de volta à infância. Lembrou-se das tardes
longas e preguiçosas de verão, quando mergulhava no riacho do outro lado
da cidade e jogava bola com os amigos. Não havia mudado muita coisa ao
longo dos anos.
— Chegamos? — Charlotte se endireitou no assento, olhando
entusiasmada ao redor.
— Com certeza, está vendo aquele gramado? — Ele apontou para um
campo, aninhado ao lado de uma colina recoberta de árvores. — Fiz o meu
primeiro gol ali.
— Legal. Quão longe estamos de Hanging Rock?
— Não muito. Talvez uns quinze minutos.
— Eu amei o filme. E o livro.
— Minha mãe deve ter alguma edição. Pena não termos tempo de fazer
um piquenique por lá. — Ele riu da própria piada.
— Engraçadinho. Então, aqui parece muito com Rivers End.
— Exceto pelo oceano. Mas parece, sim.
Ali estava a loja. Ficou animado. Tinha tantas lembranças boas de
quando ajudava a mãe quando criança, de quando ganhava um dinheirinho
extra quando adolescente. Pela força do hábito, dirigiu ao estacionamento
que estava sempre aberto do outro lado da estrada, para deixar as vagas em
frente da loja livres para os clientes.
— Aqui estamos.
— Foi um bom passeio, obrigado.
— Não foi longo demais pra você? — Ele desafivelou o cinto.
— Não quando se tem uma livraria como prêmio — sorriu Charlotte, e
o coração dele deu uma cambalhota. Então, a mulher saiu do carro e
esperou que Trevor se juntasse a ela.
— Pensei que passar o dia comigo fosse o prêmio. — Ele trancou o
carro.
— Nada disso, é a livraria.
— Tem uma estação de trem não muito longe daqui. Você levaria…
talvez só um ou dois dias pra chegar em Rivers End.
— Bom saber.
— Ou poderia aceitar o fato de que gosta da minha companhia. Tome
cuidado, nada de atravessar fora da faixa, ou vou te prender. — Ele os guiou
até a faixa de pedestres.
— Você pode atuar aqui? Não que a estrada esteja movimentada.
— Regras existem por uma razão. — A conversa tola continuou
enquanto atravessavam a rua.
Em frente da loja, Charlotte fez uma pausa e deu um gritinho de
felicidade, algo que Trev nunca a ouviu fazer. Bisbilhotou a vitrine, com a
boca um tantinho aberta e os olhos arregalados.
— Quantos detalhes! Olhe como as flores foram perfeitamente
dispostas… assim como as pétalas no prato para destacar os cupcakes. E
são quase da mesma cor do livro que está no centro! Sua mãe faz tudo isso
sozinha?
— Entre e pergunte a ela.
Trev abriu a porta para Charlotte entrar primeiro. Ela esbarrou no peito
dele, e o aroma do seu cabelo invadiu os sentidos do homem. Não havia
como Trev se livrar do sorriso que surgiu no rosto.
A mãe estava nos fundos da loja, reorganizando alguns livros numa
prateleira. Ela ergueu os olhos, sorrindo, quando a porta se fechou. Seus
olhos se iluminaram quando reconheceu quem tinha chegado.
— Querido! Que maravilha.
— Oi, mamãe. Pensei em te fazer uma visitinha. — Encontraram-se no
meio do caminho, e ele se agachou para abraçá-la. Ela o apertou em
resposta, mas não com a força de que ele se lembrava. Um tanto da
felicidade dele se esvaiu. — A cadeira de rodas é nova? Quando foi que
você arranjou outra?
— Faz, no mínimo, uns seis meses.
— Ah. — Fazia tanto tempo desde que tinha estado ali. Quis xingar a
si mesmo.
— Hm, oi. Que loja linda.
Trev endireitou a postura.
— Charlie, venha conhecer a minha mãe – Sra. Rose Sibbritt. Mãe,
esta é a minha amiga, Charlotte Dean.
— Você prefere Charlie ou Charlotte, querida?
— Tanto faz, só não gosto de Lottie.
— Nunca vou te chamar de Lottie! E o meu nome é Rosie, por favor,
me chame assim. — Rosie esticou uma das mãos e Charlotte a apertou. —
É uma longa viagem para uma visitinha. Ou pretendem ficar? — Ela voltou
a cabeça para Trev.
— Desta vez, não. Desculpa. A oportunidade de tirar um dia de folga
surgiu hoje cedo, então aproveitei. A gente aproveitou.
— Tudo bem, querem um cafezinho?
— O que acham de eu ir atrás do café para que vocês dois possam
conversar? — ofereceu Charlotte. — Quem faz o melhor café na cidade?
Depois de algum direcionamento, Charlotte saiu pela porta. Trev a
observou ir embora.
— Eu aprovo. Ela gostou da minha loja.
Ele riu.
— Charlie sempre está com um livro na mão, parece. Eu não tinha
certeza de que viria comigo, mas quando mencionei a livraria, ela quase
pulou pra dentro do carro.
— Tem bom gosto.
— Obrigado, mamãe.
Rosie deslizou em direção ao balcão.
— Eu não estava falando de você.
— Eu sei. — Trev a seguiu. — Charlie vai se entreter aqui por horas,
então… o que acha de falarmos sobre a loja? Se você quiser.
Rosie virou a cadeira e se afastou um pouquinho, abrindo espaço para
que Trev tirasse um banco de baixo do balcão.
— Você dirigiu isso tudo por mim?
— Você precisava de mim, é claro que fiz isso.
Lágrimas inundaram os olhos de Rosie, e ela segurou a mão do filho.
— Temos muito sobre o que conversar.

D café e de uma conversa despreocupada, Charlotte deixou


Trev e Rosie conversarem e mergulhou entre os livros. Prateleiras cobriam
as paredes, mas havia um espaço para leitura no meio. Poltronas macias,
com mesinhas ao lado, luminárias e uma mesa de centro entre dois sofás. O
que ela mais amou foi o espaço para crianças, com o tapete colorido, a pilha
de livros usados e uma mesa cheia de lápis e papel.
Sem mais ninguém na loja, dando uma olhada para garantir que Trev e
Rosie não estavam olhando, ela se sentou no tapete e absorveu o lugar.
Enquanto criança, tudo aquilo ali teria sido um sonho que se tornara
realidade. Havia criatividade por toda parte, e nenhum adulto dizendo a ela
que tinha de limpar a casa ou passar no mercado pela terceira vez no meio
dia. Ali era um lugar para as crianças explorarem e aprenderem de um jeito
divertido. Um lugar onde podiam simplesmente ser crianças.
As vozes dos clientes que chegavam a lembraram onde estava.
Charlotte se levantou num pulo e foi até as prateleiras que Rosie parecia ter
estado arrumando.
Não custaria nada terminar o trabalho.
Livros de suspense e mistério preenchiam as prateleiras, e Charlotte
tocou as lombadas dos que já tinha lido.
— Ah! É o novo livro do J. G. Grogging? — Uma das clientes surgiu
ao lado de Charlotte, assentindo para onde a mão dela estava.
— É, sim.
— Meu amigo me disse que eu devia comprar. Já leu? — A mulher
olhou, sobre os óculos, para Charlotte. — Você parece gostar de mistérios.
— Eu? Sim, já li.
— Não me conte nada!
— Nunca. Já leu os três primeiros?
— Três? Pensei que esse fosse o primeiro da série.
— Você não sabe o que a espera. — Charlotte pegou quatro livros, o
mais novo e seus três predecessores. — Esse daqui é o primeiro, que é um
ótimo começo para toda a série. Eu te sugiro ler em ordem, para não deixar
nenhum detalhe passar.
— São bons?
— Eu amo. Li um depois do outro e mal posso esperar pelos últimos
três.
— Então vou levar todos.
— Vou dar uma passada no caixa, enquanto você continua dando uma
olhada. — Charlotte indicou outro livro na próxima prateleira. — Se você
gostar de algo mais… picante, talvez possa gostar desse. Dê uma lida na
sinopse.
Charlotte deixou a senhora e levou os quatro livros ao balcão. Rosie e
Trev olharam para ela.
— Não são pra mim. A senhora lá atrás quem vai comprar.
— A Sra. Lane? Ela quase nunca compra alguma coisa. Ela passa aqui,
mas depois vai à biblioteca.
— Acho que ela vai comprar esses. Se não, eu os devolvo.
Sorrindo com a expressão surpresa deles, Charlotte voltou às
prateleiras para buscar livros que se passassem na região. Havia alguns. Na
maioria das vezes, registros históricos da fundação da vila, sua importância
para Macedon Ranges, um resumo das primeiras indústrias e algumas belas
fotos.
Fotos como as que Bernie disse que tiraria de Rivers End.
Ela se virou, incomodada pelo homem ter invadido os seus
pensamentos. Por que sequer estava pensando nele? Tinha ido embora da
Casa Palmerston. Mais cedo, Trev mencionou ter sugerido a Bernie que era
hora de partir. Então, quando chegassem em casa hoje à noite, Bernie nem
mesmo estaria em Rivers End. Mas por que ele abriria mão do sonho da
sua vida?
— A sua nova assistente foi um amor e me ajudou muito, Rose!
A Sra. Lane apareceu no balcão e pagou pelos livros. Cinco deles, pois
considerara a sugestão de Charlotte quanto ao outro volume. Um pouco
surpreendente, considerando que era uma leitura picante, mas ela não era
uma mulher que julgava os outros pela aparência.
— A minha nova… Ah, a Charlotte. — Rosie sorriu para a garota. —
Sim, ela é um amor.
Uma ternura repentina dominou Charlotte. Rosie era tão educada e
acolhedora. Ao lado da mãe, Trev encarou Charlotte. Não estava sorrindo.
Em vez disso, exibia uma expressão estranha que parecia tristeza. Teria algo
a ver com a mãe? Ou estaria pensando em Charlotte? Curiosa, aproximou-
se quando a Sra. Lane foi embora com a sacola de livros.
— Desculpa ter confundido a Sra. Lane sobre eu trabalhar aqui.
— Eu queria ter alguém como você por aqui. Eu realmente queria…
— Quando criança, era o meu sonho morar numa livraria. Talvez numa
outra vida…
Trev não havia tirado os olhos de Charlotte, mas agora desviou o olhar
e focou na janela da frente. Piscou rapidamente, e ela teve certeza de que
isso tinha sido culpa de algo que ela dissera ou fizera. Mas o quê?
52- ANGUS

C batendo com tanta força que era difícil respirar, Elizabeth


deu alguns passos hesitantes em frente. Aproximando-se da mesa, onde o
martelo e o pé-de-cabra estavam, ela posicionou a faca ao lado.
E se ele voltasse?
Correu até a porta e trancou-a, fazendo uso da correntinha de
segurança. Então, voltou pela cozinha em direção à adega.
— Angus? Cadê você?
Ele não estava nos degraus, nem na adega. A porta do depósito parecia
entreaberta.
— Estou… aqui.
Num primeiro momento, ela não o viu. Tinha deixado a lanterna na
cozinha. Então, Elizabeth o encontrou no chão, deitado de lado. Quando se
ajoelhou ao lado dele, Angus esticou a mão.
— Você… tudo bem?
— Eu estou bem, mas e você? Onde dói? O que aconteceu? Está
sangrando? — As palavras cambalearam para fora.
— Ele me empurrou. Caí de mal jeito, mas se me ajudar a me sentar…
— Ele gemeu ao se mover.
— Vou pegar o telefone e chamar ajuda. Preciso que fique parado por
enquanto, certo?
— Cadê… ele?
— Foi embora. Pare de falar. Tenho de subir as escadas, mas não vou
demorar.
De alguma maneira, Elizabeth voltou à cozinha e pegou o celular. A
primeira ligação foi pra ambulância e, assim que desligou, ligou para
Christie. Correu para a porta da frente assim que a mulher atendeu.
— Elizabeth! Estava pensando em dar uma passada…
— Christie. Desculpa, mas preciso de você aqui agora.
— O que aconteceu?
— Bernie estava aqui e acho que machucou o Angus. Ele está no
cômodo depois da adega, e não consigo tirá-lo de lá.
— Angus se machucou? Ah, não! Elizabeth, chame uma ambulância!
— Já chamei, querida. Por favor, venha. Venha logo.
Com as mãos trêmulas, destrancou a porta dos fundos outra vez. Ligou
para Trev. Caiu na caixa postal.
Deixe uma mensagem.
Ela deixou, desligou e ligou outra vez pra emergência. De um jeito ou
de outro, conseguiria que a polícia estivesse presente.
Correu até a lavanderia e tirou os cobertores do armário.
Quando alcançou Angus outra vez, seus olhos estavam fechados. Com
cuidado, Elizabeth o cobriu com um cobertor.
— Angus, a ajuda está vindo. Acorde, querido. Angus?
Sentou-se ao lado dele, com medo de tocá-lo, mas desesperada para
saber se ele estava bem. Seus dedos acariciaram o cabelo do homem,
penteando-os para um dos lados. A testa dele estava úmida. Por fim,
Elizabeth deslizou a mão para baixo do cobertor, e seus dedos se
entrelaçaram ao redor dos dele.
— Eu… Angus, preciso de você. — As palavras ecoaram. Ia perdê-lo.
Um chorinho ficou preso na garganta. — Eu te amo. Fique comigo, querido.
Por favor, fique comigo.

P na vida, Thomas dirigiu o Lotus. Com uma olhada


para Christie, pegou as chaves, puxou-a pelo cotovelo e correram até o
carro. Ele a acomodou no assento do passageiro e afivelou seu cinto,
enquanto lágrimas escorriam pelo rosto dela. Martha subiu no carro com
tração nas quatro rodas, caso precisassem de um segundo carro.
— Ele é um homem forte. Ele vai ficar bem.
Dando a ré com o Lotus e entrando na estrada, a mente de Thomas se
agitou. Como Bernie tinha entrado na Casa Palmerston e por que teria
machucado Angus? Sabia que o homem era problema desde quando Bernie
passou por ele naquela noite, espalhando cascalhos pela beirada da grama.
Thomas parou no acostamento, verificando a engrenagem e ajustando
o banco para acomodar as pernas mais longas.
— Ligue para o Martin. Controle-se, menina. Angus vai precisar de
ânimo, não de lágrimas.
Com os olhos arregalados, Christie olhou para Thomas.
— A primeira marcha fica para o outro lado. — Ela tirou o celular da
bolsa que Martha tinha jogado sobre o ombro enquanto lidava com a porta
dos fundos.
Com Martha logo atrás, Thomas seguiu até a Casa Palmerston,
resistindo à vontade de afundar o pé no acelerador. Christie tentou ligar para
Martin diversas vezes.
— Respire fundo e relaxe os dedos. Caramba, seu celular não te deixa
ligar por voz?
— Não. Talvez. — Ela conseguiu, e todo o pânico em sua voz,
enquanto falava com Martin, abalou Thomas.
Ele virou para a cidade, tomando a estrada mais perto da praia, mas
Martha seguiu pelo outro caminho. Ele não fazia ideia do porquê, mas já
tinha coisas demais com as quais se preocupar.
Christie jogou o celular na bolsa.
— Ele vai direto pra lá.
— Que bom. Recomponha-se.
— E se…
— Suposições não importam.
— Ela parecia apavorada. E se…
— E se ela apenas se assustou? Estamos quase chegando. — Teve de
pensar nas marchas outra vez ao virar lentamente numa curva. Carros
esportivos eram diferentes. Confortáveis de se dirigir, mas diferentes. — E
a ambulância está a caminho.
— Por que o Bernie estava lá? Trev não disse a ele pra não voltar?
— Vamos descobrir.
— Cadê o Trev? Vou ligar pra ele.
Christie faria qualquer coisa pra se manter ocupada.
— Trev, quando ouvir isso, por favor, me ligue. É a Christie. Houve
um… quero dizer, Bernie Cooper machucou o Angus. — Sua voz falhou, e
Thomas olhou para ela, chocado com o quão pálida a mulher estava. — Por
favor, venha pra Palmerston — disse ela, por fim.
— Christie, você precisa parar de pensar no pior. Cadê a minha garota
que é sempre positiva?
Thomas atravessou os portões da Casa Palmerston. Quase antes de
estacionar no meio-fio, Christie pulou para fora do carro.
— Vá, estou logo atrás. — Thomas desligou o motor e abriu a porta.
— Se eu conseguir sair… — Com ajuda da mão, colocou uma perna pra
fora. Depois, a outra. Christie estava quase na porta da frente da casa.
— Quer ajuda? — Martin apareceu do nada, arfando um tantinho, e
ofereceu a mão para Thomas.
— Esses carros são baixos demais. — Thomas aceitou a mão e deixou
que Martin o ajudasse. — Não sou mais tão jovem.
— Por que você veio dirigindo?
— A Christie não está muito bem. Vá, vou me esticar e já te sigo.
Martin foi atrás de Christie, subindo os degraus logo depois dela.
— Queria ainda conseguir fazer isso.
53- SEJA CORAJOSA

C a porta aberta da Casa Palmerston.


Cadê eles?
O saguão estava vazio. O que Elizabeth tinha dito mesmo… algo sobre
a adega?
— Angus? — seu grito ecoou.
Christie correu até a cozinha. Quase deslizou pela porta, mas se
segurou à beirada da mesa quando viu o pé-de-cabra, o martelo e a faca
sobre o tampo. Havia uma lanterna no chão, perto da entrada da adega.
Christie a recolheu.
— Elizabeth!
— Aqui embaixo!
Christie se apressou, escadaria abaixo. Lembrou-se de que tinha estado
ali com Elizabeth no dia em que a jovem a levou para buscarem uma foto
da casa de campo, tirada quando Thomas era apenas uma criança.
Ela mesma era apenas uma criança quando Angus apareceu ao seu lado
no pior dia da sua vida, cobrindo sua pequena mão com dedos firmes,
dizendo a Christie que deveria ser corajosa. Uma âncora no funeral dos
pais.
Angus.
Era sempre ele quem Christie procurava enquanto crescia na casa nada
feliz de Dorothy. Ele a ensinou a cozinhar, a dançar e a como voltar a rir.
Christie parou do outro lado da porta, e a mão voou para cobrir a boca.
Elizabeth estava sentada no chão de pedra, segurando a mão de Angus.
Ele parecia ter sido coberto, e apenas o topo da sua cabeça estava visível.
— Não.
Rímel escorria pelo rosto de Elizabeth, e Christie abafou um soluço.
Suas pernas cederam, mas conseguiu chegar ao lado de Angus antes do
corpo amolecer completamente. Ela caiu sobre os joelhos.
O rosto dele estava branco. Ela o encarou, procurando, desesperada,
algum sinal de respiração. Inclinou-se para mais perto e sussurrou:
— Seja corajoso.
— Christie… acho que ele não pode te ouvir.
— Como assim?
É claro que ele pode me ouvir, ele sempre me ouve.
Christie encostou na outra mão dele sob o cobertor. Estava
geladíssima.
— Angus, não desista. Estamos aqui por você – Elizabeth e eu. A
gente te ama.
— E… eu… eu amo vocês duas… muito — sussurrou ele, baixinho.
Fracamente, respondeu à pressão da mão de Christie na sua.
— A gente te ouviu. Angus, a ambulância está vindo. — Christie se
aproximou de Elizabeth e segurou sua mão livre, agarrando-se ao toque,
como se fossem o que estivesse mantendo Angus vivo. — Você bateu a
cabeça? Tente dizer sim ou não.
Levou alguns segundos até, quase sem forças, ele conseguir dizer:
— Sim.
— Então, provavelmente, você sofreu uma concussão. Tem de ficar
acordado. Chega de passar o dia dormindo! — Christie apertou as duas
mãos que segurava. Olhou para Elizabeth. — Cadê a Charlotte?
— Não sei, mas ela não está aqui. Você realmente acha que ele sofreu
uma concussão?
— Acho que seja possível. Ainda está com a gente, Angus?
— Hmm…
— Quem está aqui com você?
— Você. Eliza… Beth. — Ele abriu os olhos. — Martin.
— Oi, Angus. — Martin se agachou ao lado de Christie e acariciou
suas costas. O medo e o pânico diminuíram. Ela se apoiou nele, mas sem
soltar a mão de Elizabeth ou de Angus.
— Tão… cansado.
— Você se lembra do que aconteceu?
— Christie, acho que agora não é a hora. — Elizabeth soltou a mão
para ajustar a sua posição.
— Fui surpreendido. Pensei que fosse um rato.
— Um rato bem grande. — Martin franziu a testa. — O Bernie estava
aqui embaixo? Com o martelo, o pé-de-cabra e a faca?
— Ah… A faca era minha.
Todos olharam para Elizabeth, e até mesmo Angus conseguiu arregalar
os olhos por alguns segundos.
— Tenho de guardá-la depois.
— Talvez seja melhor deixarmos tudo do jeito que está. Até Trev dizer
o contrário. Cadê ele? — Christie olhou sobre o ombro, para a porta. —
Estou ouvindo a ambulância?
Martin se levantou.
— Vou ver. Continue falando, Angus. Não vai demorar.
— Por que… querida, você tinha… uma faca?
Christie falou por ela.
— Para contar um pedaço da sua torta preferida, provavelmente. Com
certeza, estou ouvindo as sirenes.
54- O DESENROLAR DA HISTÓRIA

Q se aproximaram do cemitério, Bernie se escondeu atrás


de uma árvore. Bisbilhotou entre os galhos quando a ambulância passou em
alta velocidade na direção de Rivers End. Assim que desapareceu, ele
perdeu o interesse e voltou a estudar as lápides que Elizabeth lhe tinha
sugerido. Ela realmente era uma boa pessoa, sempre levando em conta o
interesse dele pela Casa Palmerston.
Dos primeiros habitantes, dissera.
Depois do roubo da Casa Palmerston, ele não sabia muito sobre Eoin
Ryan. Talvez tenha tido uma vida curta e miserável logo depois de ter
expulsado os donos verdadeiros de seu lar. Enfiou a mão no bolso,
esperando que o diário estivesse ali. Não estava, o que lembrou Bernie de
que precisava descobrir o que tinha acontecido na noite em que o perdeu.
As primeiras sepulturas tinham nomes que ele não reconheceu. Eram
lápides velhas que não diziam muito. Um monte de sepulturas dos Ryan
vinha logo depois. Gerações de ladrões.
Outra sirene quebrou o silêncio, e ele se agachou antes de olhar sobre a
lápide. Ficou surpreso ao ver uma viatura passar. Primeiro, uma
ambulância. Agora, isso. Teria machucado Angus? O homem aparecera do
nada, logo quando Bernie tinha pegado as ferramentas. Estava pronto para
subir e dizer a Elizabeth que havia arrumado uma prateleira quebrada. Não
queria ter derrubado Angus, mas havia se desculpado e recebido uma
resposta, então esperava que o homem se levantasse e seguisse com a vida.
Quando a viatura foi embora, Bernie se endireitou. Ele se virou para
olhar o mar. Azul-esverdeado, com ondas suaves. Era um dia perfeito para
navegar, mas a maré não estava alta o bastante para alcançar a caverna. Ele
queria o tesouro. Precisava do tesouro.
Minha mãe quer que eu o encontre.
Sentia tanta falta dela. Ela saberia o que fazer em seguida e como
acabar com isso.
Bernie abriu a mochila para pegar outra garrafa d’água. Era a última.
Teria de reabastecer o estoque assim que terminasse tudo por ali. A água o
refrescou quando atingiu sua barriga. Então, o toque familiar e essencial da
vodca espalhou o calor por todo o seu corpo. Esses dias, a bebida consumia
um quarto de cada garrafa.
Continuou lendo as lápides. Algumas tinham recebido cuidado, mas a
maioria parecia ter sido esquecida. E ali estava… Eoin Patrick Ryan.
Ele leu em voz alta, enquanto a raiva crescia:
— “Eoin Patrick Ryan. Mil oitocentos e dezoito… Mil novecentos e
três.” — Não tinha morrido cedo. Foram setenta e cinco anos para roubar,
intimidar e fazer o que quisesse.
Três sepulturas depois, ele parou. Leu. E releu.
Impossível.
Isso não era justo.
Henry William Temple. Nasceu em 1820 em Londres, Inglaterra.
Morreu em 1853.
E mais nada. Nenhuma inscrição elaborada. Apenas uma lápide
simples.
— Harry. — Bernie se ajoelhou ao lado da velha sepultura. — Como?
Por quê?
Repousou a garrafa, encontrou o celular num bolso e o ligou. Enquanto
carregava, o homem encarou a lápide outra vez. Por que tão pequena?
Harry era o homem mais importante a ter vivido em Rivers End. O celular
apitou, e Bernie digitou o nome completo de Harry, perguntando onde ele
tinha morrido.
Por alguns minutos, leu os resultados da pesquisa. Primeiro, rejeitou
todos eles. Em seguida, deixou a cabeça cair, desesperado. Harry tinha
morrido afogado. Acreditavam que por vontade própria. Foi encontrado
esparramado na praia, com o corpo surrado pelas pedras da base do
penhasco.
— Não pode ser verdade. Você deve ter caído da caverna. — Bernie
desligou o celular e devolveu-o ao bolso. Pegou a garrafa d’água que estava
pela metade e a secou num longo gole.
Tão satisfatório.
O som e a sensação de amassar a garrafa.
Desculpa, mãe.
Jogou-a na direção da beirada do penhasco, assim ela não ficaria
sabendo.
Encarou a sepultura de Harry Temple. Seu ancestral. O homem que
criou a Casa Palmerston e, depois, a perdeu para uma fraude, um impostor,
um ladrão. Se um homem como Harry foi incapaz de recuperar o tesouro,
como Bernie conseguiria?
Suspirou. Foi um suspiro profundo e desesperado. Estava tudo perdido.
Era hora de partir de Rivers End.
D M R , Trev atravessou as pedreiras que eram Bacchus
Marsh e seguiu pelo interior em direção à Geelong, que se espalhava ao
lado do mar e só ficava atrás de Melbourne em número de habitantes no
estado. Hoje em dia, um contorno encurtava a viagem. Dali, as pessoas
podiam ir até o começo da Great Ocean Road e acompanhar a linda vista do
oceano. Ou poderiam optar por diversas outras vistas interioranas – como
ele. Estava quase de noite quando o carro passou por Colac.
— Mais uma hora e meia talvez. Tudo bem? — Trev olhou para
Charlotte, entretida num livro que havia comprado da mãe dele. — Não está
ficando um pouco tarde pra ler?
— Ah, desculpa. Talvez. — Charlotte olhou pela janela do passageiro.
— Quando foi que ficou tão escuro?
Trev riu.
Charlotte fechou o livro e guardou-o na bolsa.
— Eu gostei muito da sua mãe.
— E ela gostou de você.
— Conseguiu ajudá-la com o problema que tinha me dito? A razão de
termos ido até lá hoje?
— Podia ter conversado com a gente. Não é segredo, mas você parecia
feliz o bastante no papel de vendedora e vendendo livros obscenos para
senhorinhas.
— A Ara. Lane pensou que eu trabalhava lá, então entrei na dela. Não
ia ser bom envergonhar um cliente, né?
— Mamãe ficou grata pela sua ajuda. — Trev se reacomodou no
assento, sentindo os músculos reclamarem por conta da longa viagem. —
Ela vai vender a loja. Ainda não, mas em breve.
Tinha capturado a atenção dela. O que era que o pai costumava dizer
sobre decisões impossíveis?
“Plante a semente, deixe-a crescer e se tornar o que tiver de se tornar.
Alimente-a, pois, algum dia, você vai querer a sua sombra e o seu abrigo.”
— Trevor? O que foi?
— Ah, nada. Estava pensando em cultivar árvores. Enfim, mamãe está
pronta para parar de trabalhar, mas não está pronta para abrir mão da loja.
Ela queria me ouvir dizer que tudo bem fazer isso, eu acho.
— E tudo bem ela fazer isso?
— Ela não pode trabalhar pra sempre. Eu cresci na loja. Tenho um
monte de lembranças do lugar, mas ela… não está ficando mais jovem.
— Acho que a Rosie é uma mulher incrível. Não apenas pela maneira
que ela cuida da loja e por tudo o que ela faz, mas por dar conta daquilo
tudo sozinha… e com as limitações…
— A cadeira de rodas? Ela machucou a coluna num acidente quando
mergulhou há quase vinte anos.
— O quê?
— Ela e o meu pai gostavam de mergulhar, mas agora ela nem mais me
visita em Rivers End. Acho que ela fica triste ao ver o mar. —
Provavelmente, era mais do que isso. A cidade também lhe traria boas
lembranças. Mas até mesmo boas lembranças podiam machucar quando a
pessoa lembrada já havia partido.
Que saudade de você, papai.
— Trevor, ela merece se aposentar, se é o que ela deseja. Mas eu vi o
quanto ela gosta da loja. Um sócio não seria uma alternativa melhor?
Deixe-a ficar nos bastidores, assim ela vai pode se envolver o quanto e
quando quiser.
Plante a semente.
— Engraçado você sugerir isso… — Um cantinho do coração de Trev
gritou não. — Ela adoraria contratar alguém e ensinar tudo sobre o negócio.
Com a possibilidade de a pessoa assumir a loja mais tarde. — Pronto. Tinha
dito o que precisava ser dito.
Charlotte ficou quieta por um tempo. Ele a observou, iluminada
suavemente pelas luzes do painel de controle do carro. Ela estava pensando.
Deixe-a crescer e se tornar o que tiver de se tornar.
— Hoje, ela disse que o dinheiro não estava nem sendo considerado.
Não num primeiro momento. Mamãe prefere ter alguém que possa aprender
por alguns meses para, depois, chegar num acordo que funcione para ambas
as partes.
— Que generosa.
— E sábia.
Charlotte sorriu para Trev.
— Sim. Ela tem uma página no Facebook pra livraria? Acho que vou
comentar e deixar cinco estrelas. — Ela tirou o celular da bolsa. — Ah,
esqueci que estava desligado.
— O meu também. Depois que ligar o seu, pode fazer o mesmo no
meu? É melhor eu ver se alguém precisa de mim.
— É claro. Você não pode deixar a cidade em pânico por ter passado
um dia fora.
O primeiro apito do celular de Charlotte foi seguido por diversos
outros. Ela ligou o aparelho de Trev. Em seguida, deu uma olhada no
próprio celular.
— Uma mensagem de Christie perguntando onde estou. Outra de
Elizabeth para saber se estou bem. Caramba, deveria ter deixado um recado.
É muito gentil da parte delas se preocuparem. — Charlotte começou a
responder às mensagens.
O celular de Trev apitou. E continuou apitando. Ele riu da quantidade
de mensagens que chegavam.
— O gato de quem foi parar na árvore? Pode dar uma olhada pra mim?
— Trev, acho melhor ligar as luzes e as sirenes. — Charlotte deslizou
pelas mensagens. — Você tem doze ligações perdidas de Elizabeth,
Christie, Martin, Thomas…
— Ligações perdidas? Alguém deixou um recado? Ligue para a caixa
postal.
— Certo. A primeira é da Christie. — Ela colocou o celular no viva-
voz. — “Trev, quando ouvir isso, por favor, me ligue. É a Christie. Houve
um… quero dizer, Bernie Cooper machucou o Angus. Por favor, venha pra
Palmerston.”
Fora de si, Trev xingou alto e acelerou.
— Nada de luz ou sirene nesse caso. Pode ligar para a delegacia de
Green Bay pra mim?
55- O QUANTO NOS IMPORTAMOS

O sol na Casa Palmerston sempre enchia Angus de paz, mas


logo o silêncio, que tinha aproveitado nas últimas semanas – desde que
voltara do hospital –, seria quebrado quando a propriedade começasse as
preparações finais para o casamento, amanhã. Christie estaria ali pela maior
parte do dia, junto com metade de Rivers End. Mais tarde, todos se
encontrariam no pub para um jantar organizado por Martin e Christie.
Angus se sentou na varanda na frente da casa. Ali, foi onde conheceu
Martin, quando o homem foi buscar Randall depois de ter passado o dia
navegando com Christie. Quão surpreso tinha ficado quando soube da nova
confiança que ela sentia no mar. Mas, depois de alguns momentos com
Martin, ele entendeu. Com um homem como Martin ao lado dela, Christie
redescobriu uma parte sua que tinha estado escondida por anos. Reprimida
pela avó por tanto tempo. E, agora, o amor que sentia por Martin era como
o amor de um pai com o filho.
— Você parece estar perdido em seus pensamentos. — Elizabeth deu a
volta no balcão, carregando duas xícaras. Entregou uma a Angus e beijou a
testa dele antes de se sentar ao seu lado. — Tudo bem?
— Estou bem. Pare de se preocupar comigo.
Ela mordeu o lábio inferior, e ele repousou a mão sobre a dela.
— Desculpa, sei que você se importa. Mas já estou quase recuperado.
Até os médicos acham que estou de volta ao normal, então pare de se
preocupar tanto. — Ele sorriu.
— Mas só faz algumas semanas…
— Tempo bastante. Chega de dor de cabeça e de visão embaçada.
Estou liberado para dirigir e me sinto muito bem. Melhor do que bem, na
verdade. Amanhã terei a honra de acompanhar Christie ao altar e entregá-la
ao marido.
Elizabeth sorriu.
— Ela vai ser a mais linda das noivas.
— E graças a você, querida, a Casa Palmerston vai estar perfeita para o
casamento e para a festa.
— Ainda temos muito o que fazer. — Ela franziu a testa. — Temos de
preparar a comida para festa. Toda a decoração. Dar mais uma organizada
ao redor do lago e garantir que a trilha sob o arco esteja limpa. Tudo a
tempo de Daphne poder praticar algumas vezes, já que está nervosa.
Angus levou a mão dela aos lábios e a beijou.
— Vamos colocar as coisas em perspectiva. A preparação da comida
vai ser divertida comigo, você, Sylvia e Martha correndo pela cozinha,
certo?
Quando Elizabeth assentiu, ele continuou:
— Martin, John e Barry – mais alguns homens do Barry – vão cuidar
do paisagismo e erguer o arco. Christie, Thomas e Charlotte irão decorar, e
acredito que Trev vai ajudar onde e quando puder. Esqueci de algo?
— Não, de nada. Todo mundo está sendo maravilhoso.
— A cidade adora casamentos, e eu também. — Encarou Elizabeth por
um momento. Em seguida, soltou a mão dela para tomar um golinho de chá.
Sob a luz do dia, as cores em constante mudança na fonte perdiam o
brilho. Um kookaburra desceu de um galho para beber água. As gralhas
cantaram umas para as outras por todo o gramado.
— O mundo está girando.
— Gosto de ver o dia começar. E já que tenho de preparar café apenas
para nós três – hoje, pelo menos – vou ficar aqui por mais um tempinho.
Vou ficar muito ocupada quando os convidados chegarem para o
casamento. — Elizabeth riu baixinho do olhar surpreso de Angus. — Você é
uma boa influência, meu amor.
— Nesse caso, vou ficar aqui com você. Se eu puder. — Ele deslizou o
braço ao redor dos ombros de Elizabeth, enquanto ela se aproximava para
se apoiar nele.

M dos primeiros raios de luz invadirem o quarto.


Estava deitado de lado, com Christie aconchegada em seus braços,
dormindo profundamente. O corpo dela estava quente contra o seu, além de
muitíssimo relaxado.
Ela precisava descansar. Por mais que Christie acreditasse que fosse
imbatível e invencível, não era. O dia de hoje a deixaria exausta, dado o
volume do trabalho a ser feito e todas as emoções. Martin sabia que ela
seguiria em frente até não aguentar mais.
Mais uma noite e, então, essa mulher incrível seria sua esposa. Fechou
os olhos por um momento, inalando o perfume de Christie no mesmo ritmo
da respiração dela.
Hoje, depois do jantar de celebração com os amigos e a família, daria a
ela um beijo de boa noite, deixaria a mulher na Casa Palmerston e voltaria
para casa com Randall. Passariam quanto tempo fosse preciso no estúdio
para terminar a pintura, pois havia decidido que a daria a Christie. Por mais
triste e comovente que fosse, sem dúvida retratava seu amor eterno por ela
de um jeito que nada mais retrataria.
Christie se remexeu, virando-se nos braços de Martin e o encarando.
Seus olhos se abriram, mas voltaram a se fechar.
Ele beijou a pontinha do nariz dela.
— Volte a dormir.
Ela se aproximou mais um tantinho e se aconchegou nele.
Esses momentos ficariam gravados na memória. Christie, em
segurança, ali com ele. Randall roncando baixinho em sua cama, perto da
janela. Sua pequena família. Um brilho acalentador preencheu todo o seu
coração. Paz. Amor. Contentamento. Tudo o que havia perdido quando
criança. Exceto por sua vida com Thomas.
— Por que está tão triste? — Christie o encarou com os olhos
sonolentos.
— Não. Pelo contrário. Mas você não deveria estar dormindo?
— Quero acordar e aproveitar todos os minutos de hoje. E de amanhã.
— Ela se moveu até a lateral da cama, rindo da expressão de Martin. —
Café! Precisamos de muito café.
— Eu tinha outra coisa em mente.
Christie jogou os pés no chão, mas Martin a seguiu sobre a cama,
deixando-a escapar por segundos depois de ela ter se levantado.
— Você quer mesmo que eu deixe Elizabeth com tanta coisa pra fazer?
— Pegou o roupão e acariciou a cabeça de Randall ao passar por ele. —
Bom dia, cachorrinho.
— Elizabeth vai ter ajuda o bastante hoje.
— Bem, sim, é verdade, mas ainda tem muito a ser feito. Coisas
trabalhosas.
— Tipo laços? Arranjos de flores? Tudo o que você sabe fazer como
ninguém? — Ela não voltaria para a cama, então Martin vestiu um short e
uma camiseta, depois, seguiu pelo corredor até a cozinha.
Com o roupão ao redor do corpo, sem maquiagem, com o cabelo
despenteado e descalça, Christie era a mulher mais linda que ele já tinha
visto. Ela cantarolava enquanto preparava o café, mas notou Martin apoiado
na moldura da porta, observando-a com um sorriso.
Ela sorriu de volta.
— Acostume-se.
— Com você fazendo café? — Ele se endireitou e abriu os braços. —
Ou com quão linda você é?
— Com as duas coisas. — Christie repousou as xícaras e foi até ele,
escorregando as mãos ao redor da nuca do homem. — É claro que estou
falando do café. Eu ainda nem tomei banho.
— Mesmo assim, ainda está com um cheirinho delicioso. — Os lábios
dela eram irresistíveis, e ele os tocou nos dele.
Hora de parar.
Antes que não conseguisse mais.
— Acho que você deve estar sentindo o cheiro do café. Vá tomar um
banho, enquanto eu preparo o café da manhã. É a refeição mais importante
do dia, como você sempre faz questão de me lembrar.
— Comporte-se. — Gentilmente, Martin a girou e a soltou. — Eu te
amo.
Christie voltou para a cafeteira.
— Nunca vou me cansar de te ouvir dizendo isso. E eu te amo. Muito.
Agora, banho.
Randall passou por Martin no corredor.
— Lembre a Christie de te alimentar. — O cachorro balançou o
rabinho e seguiu para a cozinha. O que seria mais perfeito do que a vida
que tinha hoje? Desde quando Christie chegara à Rivers End, a vida dele
tinha mudado. O amor deles era inquebrável, e o futuro dominava o seu
coração.

M T estavam sentados à mesa da cozinha na casa de


campo, ambos perdidos nos próprios pensamentos. Um café da manhã
comido pela metade tinha sido afastado ao centro da mesa, e o café havia
esfriado nas xícaras esquecidas perto do bule. Ao lado da pia, as louças da
noite passada esperavam, numa pilha, serem lavadas. As cortinas ainda
estavam fechadas, em vez de terem sido abertas para deixar a luz do sol
entrar.
O celular tocou, e a música quebrou o silêncio. Martha se assustou.
Thomas pegou o aparelho, rindo brevemente.
— É só o telefone, querida. Nada de ladrão. Thomas Blake, alô?
Martha se levantou e, em seguida, caminhou até o apoio das chaves
perto da porta dos fundos. Tocou a chave feita de osso, que agora balançava
num gancho. Então, suspirando, voltou à mesa para recolher os pratos.
— Não, tudo bem. Na verdade, nos dê meia hora para chegarmos aí. —
Thomas sorriu. — Tudo bem, vinte minutos.
Com um prato em cada mão, Martha inclinou a cabeça para Thomas,
que se levantou e tomou os pratos dela.
— Pare de se lastimar, Martha. Ainda temos coisas dela por toda parte,
como a chave do baú. De que adianta isso?
— Quem nos ligou?
— Se quiser tomar um cafezinho quente, a Christie vai estar na Casa
Palmerston daqui a alguns minutos e nos prometeu um café.
— Christie? Ela está bem?
— Minha querida, faz uma noite que ela se foi. E isso já aconteceu
antes.
— Eu sei, mas… — Martha ficou cabisbaixa.
Thomas repousou os pratos e envolveu Martha, abraçando-a contra o
peito, onde ela apoiou a cabeça.
— Mas ela não vai voltar, eu sei disso. E estou muitíssimo triste.
— Eu sou egoísta.
— Então eu também sou.
— Quero que ela seja feliz, e Martin a faz feliz.
— Na maior parte do tempo, porque tem horas que ele deixa a desejar.
— Que nem você.
— O quê? — Thomas se afastou para encarar Martha. — Ah, você está
brincando… Você está brincando, né?
— Enfim, devíamos estar felizes por eles. Juntos. Nada vai separá-los,
porque não vamos deixar! — A voz dela se elevou um tantinho, e Thomas a
puxou contra o peito novamente.
— Não vamos deixar mesmo, Martha. Ninguém vai conspirar contra
eles. Na verdade, a cidade toda está torcendo pelo casal, e quando disserem
“eu aceito” amanhã, bem… Acredito que vai ser não apenas o dia mais feliz
da vida deles, mas de muitas outras pessoas.
Martha sorriu contra o peito de Thomas.
— Concordo. Lá no fundo, eu sei disso. É só que levou tanto tempo pra
Christie e eu nos reencontrarmos, e estou me sentindo um tantinho egoísta.
— Bem, e eu estou sentindo vontade de tomar café, então pare de se
lamentar e vá se arrumar. Temos um dia cheio pela frente, e eu, pra variar,
mal posso esperar pela janta de hoje.
— É claro que não, querido. — Martha se ergueu para beijar a
bochecha de Thomas. — O jantar é uma das suas três refeições preferidas
do dia.
— Não acredito que deixei metade do café da manhã no prato.
— Talvez podemos encontrar algo para te encher na Casa Palmerston.
Não devemos nos apressar?
— Ainda não. Quero um beijo primeiro. Então, visitaremos aquela
linda noiva.
56- UM AMOR SUBENTENDIDO

D cafezinho rápido, quando o dia mal tinha amanhecido, Trev


pegou uma garrafa d’água e seguiu para a praia, de short e camiseta.
Três voltas e meia na extensão de um quilômetro mais tarde, parou
para recuperar o fôlego na lagoa, livrando-se dos tênis para refrescar os pés.
Arrancou a camiseta pela cabeça. Em seguida, tomou um longo gole da
garrafa.
Enquanto fechava a tampa outra vez, notou uma pessoa no finzinho do
píer.
Charlie.
Trev pegou os sapatos e caminhou na direção dela. Mal a tinha visto
desde quando chegaram da visita à livraria da mãe. Charlotte tinha sido
incrível naquela noite, conversando com Elizabeth, Christie e Martin assim
que voltaram do hospital. Sob pressão, ela era a pessoa mais calma e
coerente que Trev já havia conhecido.
Com um pé ainda na areia, e outro no píer, Trev hesitou.
— O píer é público. — Sem se virar, Charlotte gritou para ele. Com os
sapatos numa mão, e a camiseta na outra, Trev caminhou pelas tábuas de
madeira até chegar ao lado dela.
— Oi.
— Oi. Christie e Martin vão ter o melhor dos climas amanhã. Olhe
quão limpo o céu está, e não vejo sinal algum de que vai mudar.
— Há quanto tempo você está aqui?
— Um tempão. Gosto de me sentar na beirada pra ler, mas preciso me
espreguiçar.
— Então eu passei correndo por você algumas vezes?
— Sim. — Charlotte virou a cabeça e olhou para ele. Seus olhos
desceram ao peito de Trev, onde o suor ainda perdurava em sua pele. —
Você tem uma boa… técnica.
Trev lutou contra o desejo repentino de segurá-la nos braços e
demonstrar quão boa era a sua técnica de beijos. Em vez disso, vestiu a
camiseta, tentando ignorar o quão molhado o tecido estava em alguns
lugares.
— Obrigado. Você corre?
— Só quando tenho de ir a algum lugar com urgência. — Os olhos dela
pareciam entretidos.
Ou quando quer se afastar de mim.
— Você parece que faz isso. Corre, quero dizer.
— Calor e suor? Nada disso, só tenho genes muito bons. Pelo menos,
se tratando do meu corpo.
— E o resto dos seus genes? — Trev desejou poder retirar o que tinha
dito quando o humor desapareceu do rosto de Charlotte.
— Alguma novidade sobre o Bernie Cooper? — Sua voz soou cansada.
— Charlie?
Ela balançou a cabeça e se afastou.
— Preciso voltar. Tenho muito a fazer hoje.
Trev a alcançou, ajustando o ritmo dos passos para acompanhá-la.
— Eu também. Preciso tomar um banho, depois vou ajudar na Casa
Palmerston.
Ela não respondeu, apenas assentiu.
— Bernie se foi. A última vez que alguém o viu, foi um dos
funcionários de Lance quando Bernie comprou vodca na loja de bebidas no
dia em que machucou Angus. Parece que a compra aconteceu uma hora
depois, então ele passou em algum lugar antes. Ninguém o viu deixar a
cidade, mas Bernie fez o checkout no motel antes de ir pra Casa Palmerston.
— Quanta vodca? Quantas garrafas?
— Oi? Por quê?
— Não posso dizer.
— Charlie, pare de andar um minuto. Por favor. — Trev enterrou os
pés na areia. Para o seu alívio, ela também parou.
— Ainda não cheguei a uma conclusão quanto ao que estou pensando,
por isso não posso dizer nada. Não sei de nada, então pare de imaginar que
não estou compartilhando alguma informação valiosa. — Ela apoiou as
mãos no quadril e empinou o queixo.
— Eu ia dizer que ia descobrir a quantidade pra você.
— Ah, obrigada. Mas tem certeza de que ele se foi? Quero dizer… Ele
quer algo da Casa Palmerston, então por que iria embora, mesmo sabendo
que você estaria de olho nele?
— Ele é inteligente. Com certeza, é esperto o bastante para saber que
passou dos limites dessa vez. — Trev suspirou. — Não posso te garantir
nada, Charlie. Queria te prometer que nunca mais o veremos, mas até que
haja alguma confirmação quanto aonde ele está…
— Que poderia ser em qualquer lugar. — Charlotte voltou a andar
outra vez, mas não tão rápido quanto antes. — Estou preocupada com a
Elizabeth.
Seguiram o rio, passando pela fenda do penhasco, quase chegando à
estrada, antes de Trev pensar em algo para dizer que poderia deixar as
coisas melhores entre eles.
— Conversei com a minha mãe ontem à noite. Ela disse pra te dar oi.
Valeu a pena esperar pelo sorriso de Charlotte.
— Que gentil. Ela… bem, ela já encontrou alguém?
— Pra trabalhar com ela e, em algum momento, assumir a loja? Ainda
não.
— Ela precisa de alguém que possa assumir a loja e colocar o negócio
dela online, para competir com os grandões, oferecendo um atendimento ao
cliente muito bom e todos aqueles livros dificílimos de achar nos quais ela
se especializa.
— Não é difícil? Fazer tudo isso acontecer?
— Não muito. Você acha que a sua mãe se importaria se eu sugerisse
isso pra ela?
Alimente-a, pois, algum dia, você vai querer a sua sombra e o seu
abrigo.
— Acho que ela adoraria receber uma ligação sua.
Charlotte encarou Trev por um momento.
— Tudo bem com você? Isso te deixa triste, falar desse assunto?
De alguma maneira, Trev encontrou um jeitinho de sorrir.
— Ligue pra ela. Eu te vejo daqui a pouco, combinado?
Ela assentiu, então se voltou na direção da Casa Palmerston. Trev
atravessou a rua, incapaz de vê-la partir.
57- UM VISITANTE BEM-VINDO. OUTRO, NÃO.

S Casa Palmerston um pouquinho depois do almoço,


trazendo cestas de comida para os trabalhadores e uma surpresa muitíssimo
animada. Quase antes de o carro ter estacionado, Belinda pulou para fora da
porta do passageiro direto nos braços de Christie, mal dando a ela tempo
para repousar a caixa de decorações que trazia da van.
— Você chegou! — Christie abraçou Belinda, alegre. — Pensei que só
te veria amanhã cedo.
— E como você daria um jeito em tudo? Veja agora, por exemplo. —
Belinda soltou Christie e apontou para Sylvia. — Minha mãe não teria
conseguido preparar essas delícias pra todos vocês sozinha.
— Sim, eu teria. Mas você pode me ajudar a carregar tudo.
— Nós duas vamos ajudar. Oi, Sylvia. — Christie deu um beijo na
bochecha de Sylvia. — Quando foi que essa garotinha chegou? — Ela
assentiu na direção de Belinda, que tirava uma cesta do porta-malas aberto.
— Há uma hora.
— Mãe! Em uma hora, eu cobri dezenas de éclairs, recheei os
pasteizinhos de maçã e arrumei um punhado dessas cestas.
— E não parou de falar da escola de beleza. Você pode carregar duas
de uma vez. — Sylvia passou as cestas empilhadas para Belinda. — E eu
ainda te culpo — disse a Christie, mas sorrindo.
— Desculpa, mas não me arrependo. — Apesar de Sylvia ter, no
começo, entrado em pânico com a ideia de Belinda se mudar para
Melbourne e estudar para tirar um diploma no ramo da beleza, com o
tempo, a mulher começou a sentir orgulho da filha mais velha. Sua raiva
contra Christie por ter apoiado a escolha de Belinda desapareceu muito
antes de a filha sair de casa.
— Talvez você se arrependa quando eu bagunçar toda a sua
maquiagem amanhã. — gritou Belinda, sobre o ombro, no meio do caminho
aos degraus da entrada.
Sylvia colocou mais duas cestas no chão e fechou o porta-malas.
Christie pegou uma delas antes de ser repreendida.
— As decorações podem esperar, porque isso daqui está com um
cheiro divino.
Seguiram Belinda e adentraram a Casa Palmerston. Quando chegaram
à cozinha, Belinda estava abraçando Elizabeth. Em seguida, Angus.
— Vou servir tudo como se estivéssemos num buffet, então poderemos
continuar transformando esta propriedade maravilhosa num local perfeito
para o casamento.
— Belinda, tenho certeza de que todos gostariam de fazer um
intervalo. — Sylvia entregou as cestas para Angus. — Se bem que temos
uma pia cheia de batatas bem ali, esperando serem descascadas. Talvez seja
algo para te manter ocupada.
Christie escondeu o sorriso que deu ao ver a expressão de Belinda
minguar.
— Por que não almoçamos lá fora, avisamos todo mundo e
conversamos um pouquinho? Depois, podemos nos organizar quanto ao que
ainda precisa ser feito hoje.
— Maravilha. Sim. Elizabeth, quer almoçar em casa?
— Sim, querida. Use todas as mesas, enquanto trabalhamos ao redor.
— Excelente. Christie, avise o resto do pessoal. Mal posso esperar pra
ver o Martin!
— Sim, senhora. — Christie sorriu e saiu, com o tagarelar de Belinda
ecoando ao fundo.
O dia parecia estar passando num piscar de olhos, com o zunido das
arrumações e decisões. O que parecia funcionar no papel, nem sempre dava
certo na prática, então deu um passo para trás e reconsiderou partes da
decoração. Não que qualquer uma daquelas coisas importasse, pois daqui a
um dia estaria casada com Martin. O coração de Christie ficou quentinho, e
ela se abraçou. Nada nem ninguém impediria aquilo de acontecer.
Mas, onde estava o Martin? Depois de um cafezinho rápido pela
manhã na cozinha com Elizabeth, Angus, Thomas e Martha – e de Thomas
comer um segundo café da manhã – Martin beijara a sua testa, dizendo que
tinha algo a fazer.
Desde então, ele tinha se ausentado. A não ser que estivesse na lagoa,
ajudando os meninos… Quando Christie viu a lagoa, ela arfou. Um arco
branco tinha sido erguido em cima de uma circunferência de tábuas de
madeira brancas, rodeada por um degrau. John e Trev estavam no meio do
processo de organizar os vasinhos de barro em todo o contorno.
— Eu não achei que… — Christie piscou para se livrar da visão
repentinamente embaçada e engoliu em seco. — Nossa.
— Não temos tempo para lágrimas, jovenzinha. — John sorriu para ela
e se ergueu. — Vai estar tudo pronto para a decoração daqui a um
pouquinho.
— A Charlotte está te ajudando, Christie? — A pergunta de Trev soou
casual demais.
— Ela vai. Vamos almoçar todos juntos, deem uma passada na cozinha
quando quiserem. Falando em ajuda, cadê o Martin?
Os homens trocaram um olhar breve.
— Eu vi isso. O que ele está tramando?
— Algo secreto de futuros maridos.
— Talvez eu devesse perguntar pra Daphne…
— Ela não sabe, então pode perguntar. — John ficou satisfeito consigo
mesmo.
— Belinda acabou de chegar. — Christie resolveu mudar de assunto.
— Ela trouxe comida? Veio com a Sylvia?
— Sim, John. E sim. Tenho de avisar o Barry. Na verdade, cadê ele?
Vocês dois fizeram isso tudo sozinhos?
— Não foi difícil quando descobrimos onde cada coisa ia. — Trev
jogou as luvas num vaso. — Não deveríamos deixar as tortas e – quero
dizer, a Sylvia e todo mundo esperando.
— Podem ir. Daqui a pouco eu vou. — Christie sorriu para John e Trev
ao passarem por ela. Em seguida, caminhou sob o arco e ficou parada no
lugar onde, amanhã, iria se tornar a Sra. Blake.

E bambus altos, do outro lado da lagoa, Bernie


observou Christie. Estava tudo pronto para o grande dia, quando ela fingiria
ser alguém que não era.
Esticou a mão e tamborilou cada um dos dedos ao contar mentalmente.
Um.
Ela não era a herdeira da Casa Palmerston, pois seu ancestral tinha
trapaceado e roubado.
Dois.
Christie não era tão amada entre os habitantes quanto pensava.
Ninguém era tão bondoso quanto ela, os outros apenas acreditavam nessa
mentira.
Três.
Christie Ryan não era invencível. Poderia ter sobrevivido ao naufrágio
do navio, mas isso não a transformava numa santa.
Quatro.
Se ela estivesse pensando que o casamento daria certo, estava errada. O
noivo nem mesmo estava ali hoje.
Bernie hesitou, mas tamborilou o dedão.
Cinco.
Não estava segura.
Ele abriu a garrafa d’água o mais silenciosamente possível e bebeu.
Não era um homem violento, nem um criminoso. Precisava apenas corrigir
as coisas. Harry havia morrido por causa dela. E de sua família.
Christie desceu do pódio e ficou parada na beirada da lagoa. O coração
de Bernie quase parou de bater. Os olhos dela estavam focados nele. O
homem congelou. Nenhum músculo se moveu, enquanto Christie o
encarava. Com certeza, ela o teria visto.
— Ah, aí está você. — Lottie apareceu dentre as árvores, caminhando
na direção da outra mulher.
Conversaram por um momento antes de voltarem para a Casa
Palmerston. Quando chegaram à trilha sombreada, Lottie se virou
abruptamente e olhou para o outro lado da lagoa, como se pudesse sentir a
presença dele.
Estavam conectados, sem dúvida. Sempre estiveram. Pena que ela
havia escolhido o lado da família Ryan.
Bernie amassou a garrafa e jogou-a na grama.
58- JANTAR DE CELEBRAÇÃO

—S um jeitinho de desvendar mistérios? — Christie sorriu


para Martin, enquanto esperavam do lado de fora do pub. Ele finalmente
tinha chegado à Casa Palmerston, no meio da tarde, parecendo todo
satisfeito consigo mesmo e se recusando a responder qualquer pergunta.
Essa era a primeira vez que ficavam sozinhos desde a manhã, e Christie não
perderia a oportunidade.
Em vez de responder, Martin puxou-a num abraço e a beijou. De livre
e espontânea vontade, Christie devolveu o beijo. Então, afastou-se um
tantinho.
— Eu sei o que você está fazendo.
— Beijando a minha futura esposa?
— Bem, sim. Mas…
— Mas nada. — Ele a beijou outra vez. — Tudo vai ser revelado
quando eu estiver pronto. — Outro beijo. — O que não vai acontecer agora,
então comporte-se.
— Ah… Os pombinhos apaixonados. — Daphne riu quando se
aproximou, com o braço entrelaçado no de John. — Quando der meia-noite,
terão de se separar.
— Ou o que vai acontecer? — Christie se apoiou em Martin, com as
mãos firmemente envolvidas pelas dele.
— Ou a sua celebrante destemida vai atrasar a cerimônia.
— Eu prometo que meia-noite Christie vai estar na Casa Palmerston, e
eu… — Martin piscou para John. — …estarei do lado de fora da janela dela
fazendo uma serenata.
— Você vai soar mais como um bezerro desafinado e triste.
— Thomas! — Martha deu um puxãozinho no braço dele, enquanto se
aproximavam pela direção oposta. — Martin canta muito bem.
— Se você diz, querida.
Balançando a cabeça, Martha deu um beijo na bochecha de Christie.
— Ignore o seu avô, Martin.
— Sempre ignorei. — Martin abraçou Thomas. — Ainda bem que ele
sabe pintar.
— Na verdade, Thomas, queria te perguntar se você não tem interesse
num trabalho. — Trev esticou a cabeça para fora da porta do pub. —
Preciso repintar a delegacia.
— Conquanto você dê um jeito naquelas multas por excesso de
velocidade.
Todos se voltaram para Thomas, chocados. Ele irrompeu em risos.
Trev saiu na calçada e manteve a porta aberta.
— Pra dentro, todos vocês. Antes que eu tenha de prender alguém.
Lance os cumprimentou, enquanto lotavam o cômodo superior
reservado para eventos, que tinha sido lindamente decorado com velas e
flores sobre uma longa mesa estreita. As luzes estavam fraquinhas, e
garrafas de champagne gelavam em baldes de gelo.
Sylvia – com Barry de um lado, e Belinda e Jess do outro – acenou.
George e Charlotte enchiam as taças de champagne numa mesinha menor
perto da janela. Christie parou sob a moldura da porta, tomada por alegria.
Martin se agachou um tantinho e beijou a sua bochecha.
— Esse momento é nosso, querida.
Sim, era mesmo. Os tempos difíceis estavam no passado. Esse fim de
semana seria uma celebração para toda a cidade, com um casamento, muito
amor e alegria. Uma fuga da rotina que traria esperança ao futuro. Daqui a
algumas semanas, abriria o novo salão de beleza e ofereceria às pessoas de
Rivers End, e dos arredores, um novo ponto de vista quanto às opções de
saúde e bem-estar. Eles não sabiam ainda, mas a primeira semana sairia
totalmente do bolso dela. Gratuita para que todos testassem os serviços.
— Terra para Christie. Venha se sentar. Tudo bem? — Belinda
estendeu a mão.
— Engraçadinha. Tudo bem. Onde?
— Bem, do meu lado, é claro. Martin pode sentar na sua frente, e
Martha ao seu lado. As outras pessoas podem decidir sozinhas.
— Cadê a Elizabeth? E o Angus? — Christie olhou ao redor.
— Estão vindo. O telefone tocou quando eu estava saindo, e Angus
disse que viriam logo atrás. — Charlotte pegou duas taças de champagne e
entregou uma delas a Christie. — A você e ao Martin. — Ela brindou a taça
contra a de Christie, e as duas beberam um golinho. — Como está se
sentindo?
— Feliz. Muito, muito feliz. Grata por toda a ajuda e pelos amigos que
estão aqui hoje.
— A Casa Palmerston já está linda. Quando os convidados chegarem
amanhã, vai estar pronta para um casamento de contos de fada.
— Conquanto não tenha nenhuma bruxa malvada envolvida.
— Ou um lobo mau perambulando pela floresta. — Charlotte franziu a
testa.
A barriga de Christie ficou tensa.
— Está preocupada com Bernie?
Charlotte olhou ao redor, e seus olhos repousaram em Trev, que
conversava com George perto da janela.
— Trev disse que eu não preciso me preocupar.
— E o que você acha disso?
— Bernie está obcecado pela Casa Palmerston.
Trev sorriu para Charlotte, e ela desviou o olhar.
O que está rolando entre vocês dois?
Depois do casamento, Christie estaria determinada a descobrir.
— Ele realmente acreditou que ia se safar dessa com aquelas
ferramentas? Dinamite teria sido uma escolha melhor.
— Como o coronel da região, vou ter de te perguntar por que quer usar
dinamite. E onde? — Trev apareceu atrás de Charlotte, com uma cerveja e
um grande sorriso.
— A gente acha que você anda tendo muito tempo livre. — Charlotte
manteve a sua expressão inflexível. — Uma pequena explosão nos fundos
da delegacia te daria algo no que trabalhar.
— Neste caso, está convocada para um questionamento. Depois do
jantar.
Charlotte corou e, repentinamente, ficou muitíssimo interessada na taça
em suas mãos.
— Estávamos falando sobre a porta da adega na Casa Palmerston.
Descobriu o que tem lá atrás? — Christie decidiu dar a Charlotte um
tempinho para se recompor.
— Isso não seria algo que você faria?
— Tenho estado ocupado. Não quero chatear Elizabeth com as minhas
perguntas antes de ela voltar a se sentir segura.
Trev assentiu, soando mais sério agora.
— Não está nas plantas da casa. Ficou escondida por décadas, e não
encontrei nenhuma chave. Provavelmente, deve ter outro quartinho menor
nos fundos, talvez para bebidas ou drogas ilegais. Com certeza, é algo que
chamou a atenção de Bernie Cooper.
— Alguém o viu por aí?
— Ninguém. Além disso, quão idiota ele teria de ser pra reaparecer por
aqui? Ah, Elizabeth e Angus chegaram.

E se desenrolava, ocorreu a Trev que hoje estava


entre uma das melhores noites de sua vida. Observar Christie e Martin
juntos, nesse último dia como solteiros, era um privilégio. Tinha visto tanto
amor entre os pais dele, e entre Thomas e Martha…, mas isso era algo raro
num mundo de relacionamentos descartáveis.
De novo e de novo, pegou-se encarando Charlotte, que estava mais ao
fim e do outro lado da mesa. O que ela pensaria dessas suas ideias? Trev
sabia que Charlotte sentia algo por ele, apesar de mantê-lo longe. As
palavras estranhas proferidas por ela pela manhã na praia estavam presas
em sua mente. Tenho genes muito bons. Pelo menos, se tratando do meu
corpo. Ela não tinha dito que os outros genes eram ruins? Propensos a ter
alguma doença? Pensar nisso fez a barriga dele se revirar de preocupação.
Christie trocou de assento e se acomodou ao lado de Trev.
— Chame-a pra sair. — Foi apenas um sussurro, mas os olhos de Trev
se voltaram para Charlotte. Ela estava focada numa conversa com Daphne.
— Eu chamei.
— Então qual é o problema?
Trev se aproximou de Christie.
— Ela não sente o mesmo.
— Nada disso, aposto que sente.
— Christie.
— Tudo bem. Mas não tenha medo de chamá-la de novo. Ela não foi
visitar sua mãe naquele dia?
— Ela ama livrarias.
— Foi uma viagem meio longa só pra comprar livros…
Trev se reclinou e pegou a cerveja que vinha tomando pela maior parte
da noite.
— Talvez tenha sido um erro.
— Por quê? Ela não se deu bem com sua mãe?
— Pelo contrário. Até conversam pelo telefone de vez em quando. É
complicado, e não me sinto confortável em falar sobre isso. Ela não ia
aprovar a nossa conversa.
— Desculpa, você tem razão. Só quero que todos sejam tão felizes
quanto eu. Você merece ter amor em sua vida, Trev. — Christie beijou-o na
bochecha e voltou ao próprio assento.
Ele piscou, percebendo que, mais uma vez, estava encarando Charlotte.
Mas, agora, ela o olhava de volta. Rapidamente, Trev ergueu a cerveja
quase vazia e sorriu. A mulher levantou o próprio copo, curvando um
tantinho os lábios. Seus olhos se repousaram na bebida dele.
— Quer outra? — Ela tinha dito isso mesmo?
Charlotte se levantou e seguiu à mesa próxima da janela. Momentos
depois, com uma cerveja e uma taça de champagne em mãos, ela caminhou
em direção a Trev. Quando o alcançou, o homem se levantou.
— Você parece estar com sede.
— Não vou beber muito hoje, caso precise prender algum festeiro
barulhento. — Trev aceitou a cerveja. — Obrigado.
— Então, vou dizer ao George que ele deve maneirar. — Os olhos dela
brilharam. — Sua conversa com a Christie pareceu séria.
Você estava me observando?
— Você conhece a Christie. Ela quer um mundo onde seus amigos
curtam tanto a vida quanto ela.
— Deixe-me adivinhar, então… Ela quer que você compre um iate.
— Não exatamente.
— Um salão de beleza? Tratamentos & Tonificação do Trev.
Trev não se aguentou e irrompeu em risos. Charlotte se juntou a ele e,
por alguns segundos, uma conexão existiu – forte e profunda.
Qualquer coisa é possível. Você merece o amor.
Ele retomou o controle das gargalhadas.
— E você seria a minha primeira cliente?
— Você está insinuando que… preciso de alguma melhoria?
— Você já é perfeita, Charlie. — As palavras saíram antes que ele as
pudesse filtrar, carinhosas e sinceras. O sorriso de Charlotte desapareceu e,
repentinamente, seus olhos começaram a brilhar. Iria a mulher chorar?
Apesar dos sons dos risos e da conversa ao redor, Trev quase conseguiu
ouvi-la respirar. Inspirações curtas e acentuadas.
— Eu não sou perfeita. Você não deveria pensar que… Eu não deveria
deixá-lo pensar que…
— Não estou pensando nada.
Não, trata-se apenas de sentimentos.
— Você não precisa de nenhuma melhoria.
— O George está sozinho. É melhor eu… hm, vou me sentar com ele
um pouquinho.
— Charlie…
Mas ela se afastou, com um sorriso triste, e Trev ficou apenas com o
aroma da mulher. Terminou de beber a cerveja em algumas poucas goladas.
— Ei, Trevor. — Lance surgiu ao seu lado. — Esqueci-me
completamente que estava com isso. Deveria ter te entregado há um
tempão, e ninguém veio procurá-lo. Bem… acabei me esquecendo. Aqui
está.
— Oi? Do que você está falando?
— Disso. — Lance o ofereceu um livro com capa de couro. — Alguém
o deixou num banco, e não tem nenhuma informação para contato. Já que é
velho, deve ser valioso.
— Você não faz ideia de quem o deixou aqui? — Trev aceitou o livro e
o abriu. Não havia nada que facilmente identificasse um dono. Era apenas
velho. Guardou-o no bolso do casaco.
— Não. Desculpa, foi numa noite agitada. Quer outra bebida?
— Ah, prefiro uma água com gás. Obrigado, Lance.
Lance se apressou para longe, e Trev olhou ao redor para descobrir
onde Charlotte estava. Encontrou-a perto de George, ouvindo-o. Mas seus
olhos estavam em Trev.
59- A CHAVE

D , mais difícil entrar na casa de campo. A janela do porão tinha


uma nova moldura e uma nova tranca, então Bernie nem se preocupou em
pegar a escada. Perdeu dez minutos forçando todas as portas e janelas.
Estava tudo trancado, então optou por quebrar a janelinha da lavanderia.
Podia apenas esperar não ser descoberto até conseguir o que queria de
Rivers End.
Assim que enfiou a mão, com cuidado, pela janelinha quebrada e
destrancou a porta por dentro, abriu-a. Antes de adentrar, encontrou uma pá
e uma vassoura. Em seguida, recolheu os cacos de vidro. Puxou a cortina
rendada sobre o buraco. Talvez isso o fizesse ganhar algum tempo. Levou o
vidro à lixeira, por trás da casa, e esvaziou a pá sob alguns outros entulhos.
De volta à casa, começou a busca. Ter se afastado por algumas
semanas lhe deu tempo para analisar, ainda mais fundo, os acontecimentos
recentes. Escondido numa casa vazia no canto mais distante da cidade – o
imóvel estava à venda, aparentemente, há anos e tinha começado a aparecer
abandonado –, passou um tempão vasculhando a internet atrás de qualquer
coisa, desde artigos de jornal a menções em redes sociais. Uma ideia
brilhante foi se tornar amigo de Daphne pelo Facebook. Com uma conta
falsa, é claro.
Nos acervos do jornal local, descobriu um artigo sobre o casamento de
Thomas e Martha. Elogiado como o romance do século, o repórter proveu
história o suficiente para assegurar Bernie de que ele estava no caminho
certo. Uma chave antiga foi deixada para Christie, quem encontrou o baú
mais tarde.
Em sua última visita à casa de campo, a chave não estava com o baú.
Era melhor ter certeza.
Foi até a sala de jantar, mas não encontrou o baú ali. O objeto estava na
entrada da frente, guardado sob a mesa perto da porta. Sem chave.
Apesar de já ter olhado na última visita, seguiu até a cozinha. Se não
estivesse lá, subiria à casa no topo do penhasco, caso Christie já tivesse se
mudado. Havia luz o suficiente entrando pela janela sobre a pia para que ele
visse o suporte de chaves perto da porta dos fundos. Havia uma variedade
de chaves, mas apenas uma o interessava.
Uma chave ornada de osso. Velha e feita para as trancas do século 19.
Quase não acreditando, Bernie tirou-a do suporte e ergueu.
— Te peguei. Harry, achei a chave!

B na cozinha da Casa Palmerston. Uma vez, fora


bem-vindo ali. Serviram-lhe um chazinho terrível e alguns scones muito
gostosos. Ainda se lembrava dos cafés da manhã e de certas conversas
interessantes. Foi uma época boa, apesar das circunstâncias.
Seguir Daphne no Facebook compensou quando viu sua postagem
sobre o jantar celebratório de hoje à noite, com menção aos convidados.
Tudo o que ele fez foi esperar todo mundo ir embora e, agora, o lugar era
dele.
Com a mochila abarrotada de ferramentas e garrafas d’água, correu
degraus abaixo pela adega.
Sob a luz da lanterna, a porta de pedra o zombou. Bernie tirou a chave
de esqueleto de um bolso e, com a mão trêmula, conseguiu inseri-la na
fechadura. Até agora, tudo certo.
— Ajude-me, Harry.
A chave se virou num clique audível.
Bernie empurrou a porta – com força. Com um gemido, abriu-a. Ar
gelado escapou da escuridão ali dentro. Para celebrar, abriu uma garrafa
d’água e bebeu-a toda, sem nenhuma pausa.
Quando terminou, amassou a garrafa e jogou-a num canto.
— Me mostre o caminho, Harry. Estou aqui para consertar as coisas.
— Teve de se agachar para atravessar a porta.
Não havia nenhuma fechadura do lado de dentro, então ele quase
fechou a porta, mas impediu-se de ficar preso colocando uma pedrinha
entre a pedra e o batente. Bernie observou a escuridão com a luz da
lanterna. Havia um túnel longo, estreito e um tantinho declinado de chão
irregular e laterais úmidas.
Bernie pôde ouvir sua própria respiração. Cada passo ecoava. Depois
de alguns segundos, parou e olhou para trás. A porta era, agora, apenas uma
fresta numa posição muito mais alta do que ele esperava. Arrastar-se de
volta lá pra cima, com um uma carga pesada, seria um desafio para
qualquer outro homem, mas ele tinha um propósito.
O teto ficou mais baixo, e o túnel virou para a esquerda. Fissuras nas
paredes sugeriam que o lugar era uma formação natural refinada por Harry.
O diário mencionou que a melhoria tinha sido feita ao mesmo tempo da
construção da Casa Palmerston, mas como conseguiu fazer isso sem que
Eoin Ryan descobrisse era um mistério. Muito mais do que apenas um
homem deve ter sido responsável pela obra e, provavelmente, por um longo
período. Seria possível que os homens encarregados de cuidar do relógio
de pêndulo estivessem envolvidos?
O túnel inclinou-se ainda mais, e pedrinhas deslizavam sob os pés de
Bernie. Sua cabeça roçou o teto. Um homem mais fraco teria dado meia
volta, mas Bernie era irrefreável.
Harry teria se orgulhado.
Compreendeu seu diário, seguiu as pistas e superou todos os
obstáculos.
Escutou um som novo. Ondas atingindo rochas. Com o coração
acelerado, e as pernas tremendo, Bernie adentrou na caverna.

1853
C balançando, Harry estava sentado na entrada da
caverna, com um copo numa mão, e uma garrafa de uísque requintado
noutra. Não havia razão para deixar toda a bebida boa ali. Brindou à noite e
entornou a dose, então, encheu novamente o copo.
Deveria faltar uma hora e pouquinho para a meia-noite. Estava cansado
demais para fazer algo além de se arrastar e voltar para a Casa Palmerston.
Depois que dormisse um pouquinho, traria a última leva para baixo, antes
que Eoin Ryan o despejasse. O sono e a comida o chamavam.
Mas, por alguns poucos momentos, quis apreciar a paz da noite. Ali.
Sozinho. O oceano se movia impacientemente sob uma lua quase cheia.
Ondas atingiam as rochas, e gotículas do mar molhavam sua calça e botas.
Seu corpo todo doía. Fisicamente, é claro, com a grande quantidade de
objetos que foram carregados e arrastados. Já foi difícil descer pelo túnel,
mas ainda havia a longa caminhada de volta. O coração ansiava por Eleanor
e sua garotinha. Pela vida alegre que compartilharam até aquela noite
fatídica.
Forçou-se a se levantar, jogando o copo no precipício. Acertou algo no
meio do caminho e despedaçou-se. Harry estremeceu. Ninguém gostaria de
cair dali. Tomou mais cuidado com a garrafa, fechando-a novamente com a
rolha e deixando-a em cima de sua mesinha de canto favorita. Ainda bem
que fez isso, pois a chave da porta abaixo da Casa Palmerston estava ali em
cima do tampo, e ele precisaria fechar a entrada ao sair.
A jornada de volta à casa levou um bom tempo. Harry parou muitas
vezes para descansar, arrependendo-se de ter bebido tanto. Assim que tudo
aquilo acabasse, pararia. Alcançou a porta de pedra e fechou-a com força,
trancando-a.
Havia apenas mais uma outra coisa para guardar ali. Faria isso quando
acordasse. No quarto da filha, sentou-se na cama, enquanto a tristeza se
misturava com triunfo. Poderia ter perdido muita coisa, mas impedira Eoin
de ter a satisfação de levar tudo embora. Um dia, muito em breve,
conseguiria devolver essas bonecas aos braços da filha e a veria sorrir. Por
ora, continuariam empilhadas no baú, esperando a última viagem até a
caverna.
No andar de baixo, o relógio de pêndulo badalou meia-noite. Harry
fechou a tampa do baú e girou a chave, trancando-o. Exausto, deitou-se na
cama e fechou os olhos. Quase adormecido, imaginou-se outra vez com a
família.
Mas alguém bateu na porta da frente, e Harry levantou-se num pulo.
60- O DIA DO CASAMENTO

N manhã, a Casa Palmerston parecia um formigueiro.


Estacionada na frente, havia uma van com flores. Suas portas estavam
escancaradas enquanto a florista, Christie e Charlotte iam e vinham, com os
braços cheios de arranjos. Ao redor do lago, Martin, John e Trevor
distribuíram fileiras de cadeiras brancas, para que todos os convidados
pudessem ver a cerimônia, independentemente de onde estivessem
sentados. O arco esperava as flores, com Daphne logo abaixo, praticando.
Do lado de dentro, Elizabeth, Sylvia, Belinda e Angus trabalhavam na
comida. Fileiras de pratos cobriam a mesa da cozinha, e havia pilhas de
louças num balcão. A cozinha estava com um cheiro divino – uma mistura
doce e salgada. Aperitivos deliciosos e tortas perfeitas. Toda vez que
Elizabeth e Angus se aproximavam, os olhos se encontravam num sorriso.
Belinda não parava de falar.
Numa parede do saguão, havia pilhas de toalhas brancas sobre mesas
compridas, esperando serem estendidas e decoradas antes da chegada dos
convidados. Baldes de gelo se espalhavam por todos os cômodos
importantes, do saguão até a sala de estar e nos terraços.
Porque Christie e Martin insistiram que Elizabeth participasse da festa
de casamento, ela os permitiu contratar parte da equipe de Lance para
cuidar das coisas. Assim que tivesse se trocado e arrumado, entregaria a
cozinha ao time e aproveitaria a noite como convidada. Antes disso, ainda
tinha muito a fazer.
— Alguém poderia dar uma última olhadinha em todos os quartos dos
hóspedes?
— Pode ir e se certificar de que está tudo perfeito, querida. — Angus
tirou os olhos do fogão, com uma luva em cada mão. — A gente cuida de
tudo por aqui.
— Quer dizer, não posso garantir que não vou comer nenhuma dessas
criações absurdamente fantásticas.
— Criança, se você comer mais uma…
— Estou brincando, mamãe. É brincadeira. — Belinda gargalhou. —
Mas espere a recepção começar, que comerei.
— Daí você vai ter merecido. — Elizabeth deu uma palmadinha nas
costas de Belinda. — Todos vocês terão merecido. São trabalhadores
incansáveis, e não sei como agradecê-los.
Sylvia sorriu sobre as tortas.
— O prazer é nosso. Vá dar uma olhada nos seus quartos.
Elizabeth largou o avental sobre o encosto de uma cadeira e saiu,
apressada, da cozinha. Da mesinha aos pés da vasta escadaria, pegou sua
prancheta com a lista dos hóspedes, que logo chegariam, e em qual quarto
se acomodariam. A porta da frente estava completamente aberta, e um
punhado gigantesco de flores, carregado por Christie, adentrou a casa.
— Ah, minha nossa! Onde é que você vai colocar isso tudo? —
Elizabeth percebeu que uma das mesas já estava quase toda cheia de flores.
— Quer que eu chame alguém pra te ajudar?
Cuidadosamente, Christie repousou as flores e se endireitou, tirando o
cabelo dos olhos enquanto sorria.
— Tem alguém sem alguma coisa pra fazer?
— Talvez a Belinda possa ajudar. Na verdade, talvez isso até ajuda a
Sylvia, porque ela… está tendo dificuldade – por falta de uma palavra
melhor – com a tagarelice sem fim.
— Mande-a me ajudar. Na verdade, acho que vou pegar um pouco
d’água pra mim e para a Charlotte. Eu a busco, se você achar que não tem
problema. Thomas vai cuidar do arco agora.
— Quanto mais ajuda você tiver, melhor. Cuidado com as horas,
querida.
— Eu sei. Assim que for três horas, vou subir. Prometo. — Christie
saiu correndo na direção da cozinha, e Elizabeth subiu ao andar de cima.
A Casa Palmerston estava toda reservada. Os melhores amigos e
antigos vizinhos de Christie – Ray e Ashley – chegariam em breve, e
Elizabeth mal podia esperar para conhecê-los de verdade. Estiveram lá
quando Christie precisou deles em Melbourne, e Elizabeth sentia que já os
conhecia, graças às muitas histórias. Também havia alguns produtores e
diretores cinematográficos – nomes famosos o bastante para acelerar seu
coração. Do lado de Martin, o diretor do acampamento para jovens, que ele
ajudava de vez enquanto, e sua esposa estavam a caminho.
Uma das salas de estar já estava lotada de presentes de casamentos, ou
seja, era um local fora de cogitação para Christie e Martin.
Elizabeth foi a cada um dos quartos e verificou sua lista. O último era o
aposento de Christie. Ela tinha dormido ali noite passada, e seria ali que se
arrumaria para o casamento. No fim do corredor, havia, na verdade, dois
quartos, unidos por uma porta. Perfeito para quando casais se hospedavam
com os filhos. A porta da conexão era grande, de madeira e corrediça.
Estava aberta agora. Um dos lados tinha vista para a fonte, enquanto o outro
provia uma vista linda, entre as árvores, do lago reluzente.
Pendurado numa arara portátil, estava o vestido do casamento. Tão
simples, mas totalmente deslumbrante. Era uma réplica do vestido de noiva
da mãe de Christie. Pelo menos, o mais próximo possível com base nas
poucas fotos disponíveis. Christie optou por uma coroa de flores na cabeça,
em vez do véu, que combinava com o buquê.
Mexeu um tantinho nas cortinas até notar um carro entrando na casa.
Hóspedes, sem dúvida. Elizabeth recolheu a prancheta e fechou a porta
antes de descer.
Quando chegou à porta da frente, Christie estava correndo até onde o
carro havia parado. Jogou os braços ao redor de um homem com cabelo
curtinho e prateado. Segundos depois, o motorista desceu, e Christie correu
até ele. Sim, estava começando. Hoje à noite, haveria um casamento
inesquecível.

M T caminharam pela trilha de entrada da Casa


Palmerston em direção ao portão, cada um levando uma garrafa d’água na
mão.
— Você não precisa me acompanhar até o último segundo, Thomas.
— Vou terminar de ajudar o Trev e o Barry com as luzes nas árvores.
Isso vai te dar uma chance de tirar uma soneca revitalizante.
Martin engasgou-se com o líquido que havia acabado de tomar e
cuspiu-o, fazendo Thomas rir alto. Parou quando Martin ameaçou virar o
resto da garrafa sobre sua cabeça, mas os olhos de Thomas continuaram
cheios de diversão.
— Talvez você devesse voltar a fazer o que estava fazendo, Thomas.
— Eu vou. Mas, brincadeiras à parte, talvez seja melhor descansar um
pouquinho, filho. Sente-se no deque e deixe sua mente vaguear por um
tempo.
— Talvez… tenho algo pra te perguntar.
— Pergunte o que quiser, exceto se for sobre um plano de fuga. Nada
de amarelar ou dar pra trás.
Martin parou no portão.
— Como você bem sabe, esperei minha vida toda pela Christabel
Ryan. Não tem nada na Terra que possa me impedir de me casar com ela
hoje à noite.
Thomas assentiu, com olhos suspeitamente brilhantes.
— Estou orgulhoso de você, Martin. Muito, muito orgulhoso.
— Thomas… Vovô, pelo amor de Deus. — Martin abraçou o avô e,
por um momento, ficaram parados, entrelaçados num abraço. Uma vida
toda compartilhando o luto, a perda incompreensível, criou um manancial
profundo de emoção. Mas, hoje, tratava-se de felicidade.
— Certo, então. Minha esposa não pode me ver assim. — Thomas se
soltou e tirou um lencinho do bolso. — Ela depende da minha força.
— Martha sabe que você tem um coração mole.
— Baboseira. Agora, o que você queria perguntar?
— Preciso de um conselho. Terminei a pintura e vou dá-la para a
Christie, mas não sei quando.
— Não é seu presente de casamento pra ela?
— Não, o balcão e algumas outras pinturas para o salão que são.
— Então espere até depois da lua de mel.
— Como assim?
— É melhor esperar toda a emoção e animação do casamento passar,
na minha opinião.
— Faz sentido. Mas não vamos viajar, Thomas. Nossos planos são
ficar aqui e ajudar a Casa Palmerston a voltar ao normal.
— Bem, então mudem os planos. Christie ainda não sabe, mas Martha
vai levar vocês dois pra Melbourne amanhã à tarde.
— Oi?
Thomas sorriu.
— Estou encrencado… Por favor, diga a Martha que você me forçou a
dizer isso.
— De jeito nenhum. Elabore, por favor.
— Aeroporto. Sydney por alguns dias. Muito tempo pra visitar
algumas exposições de arte, ir num show, apreciar a baía… De nada.
— Mas…
— Não me agradeça ainda. Enfim, você precisa levar a Christie à baía.
Lembre-a do quanto ela ama navegar, antes do Mar de Jasmim voltar para
Willow Bay. Combinado?
Martin esticou a mão e envolveu Thomas em seus braços.
— Não estava esperando isso. Ter vocês dois aqui é suficiente, mas
obrigado.
— Chega disso. — Thomas ficou impressionado consigo quando se
afastou. — Não diga nada até o anúncio oficial. Agora, vá se arrumar, filho.
Vou pedir para o Angus cuidar do meu cachorro enquanto passo em casa e
troco de roupa.
— Meu cachorro. — Martin voltou a andar.
— Deveríamos deixá-lo decidir isso sozinho.
— Então, ele escolheria ser o cachorro da Christie. Já que ela está
prestes a se tornar minha esposa, eu ganhei.
Ao observar Martin atravessar o portão, Thomas sorriu.
— Todos nós ganhamos, filho.
61- UMA DESCOBERTA PERTURBADORA

D redor do lago, recitando os votos do casamento em


voz alta. Estava confiante quanto às passagens da lei, como as chamava,
mas havia uma ou duas frases dos votos lindos escritos por Christie que
ainda não estavam no ponto. Basicamente, por conta da emoção em sua voz
toda vez que as lia.
Enquanto os toques finais eram dados no arco, decidiu dar espaço aos
garotos e se envolveu com a paz relativa no lado oposto da extensão d’água.
Entretanto, ali, os patos grasnavam para ela, seguindo-a em grupos ao passo
que caminhava.
— Não trouxe nenhuma migalha de pão, então vão encontrar algo
melhor para fazer. — Eles não a ouviram.
Mais um ensaio, desde o começo. Um fulgor quentinho de animação a
percorreu. Essa era sua primeira vez como celebrante. Que primeira vez
seria! Duas de suas pessoas preferidas estariam se casando na presença dos
amigos. E John. Sem mencionar as pessoas famosas que viriam celebrar o
dia especial com Christie.
Dali, podia recitar tudo sem atrapalhar ninguém. Daphne plantou os
pés na beirada lamacenta e sentiu a grama fazer cosquinhas em suas pernas.
Abaixou a prancheta, respirou fundo e começou:
— O amor tece seu caminho gentil… não. Vamos, Daph.
Estava cansada. Ensaiou vezes demais. Além disso, tinha anotações e
um pódio, então não ia cometer nenhum erro, conquanto levasse o tempo
que fosse preciso. Talvez, o melhor a se fazer agora seria tomar uma boa
xícara de café e comer um dos biscoitos com gotas de chocolate, que havia
cozinhado para o John. Na verdade, provavelmente, ele já deveria estar em
casa. Depois de passar o dia todo de ontem ajudando em Palmerston, tinha
ido trabalhar no escritório hoje cedo.
Suspirando, virou-se e se posicionou sobre alguma coisa que emitiu um
som de algo sendo esmagado.
— Ah! — Daphne se afastou, assustada. Então, riu quando viu que se
tratava apenas de uma garrafa d’água vazia.
— Minha nossa, o que isso está fazendo aqui? — Resmungando,
recolheu o lixo.
Não havia nenhuma tampa. Enquanto voltava à trilha, algo a
incomodou. Parecia que a garrafa tinha sido amassada muito antes de ela
pisar sobre o plástico. Mas, fora isso, estava nova. O rótulo não apresentava
nenhum dano, e não parecia ter sido jogada ali há muito tempo.
Daphne pensou nisso, acelerando pela trilha. Garrafinhas d’água
amassadas não eram incomuns. A maioria das pessoas fazia isso antes de
reciclá-las. Mas nunca tinha visto essa marca barata na geladeira da
Elizabeth. Na verdade, apenas a viu de passagem numa prateleira do
supermercado… e mais uma outra vez.
— Trev! Barry! — Quase sem fôlego, Daphne os chamou assim que o
arco entrou em vista.
— Daphne? Tudo bem? — Trev deu uma corridinha para alcançá-la, e
Barry veio logo atrás.
Ela parou para respirar, estendendo a garrafa, como se fosse uma
oferenda.
— Você quer se sentar?
— Não… olhem o que acabei de encontrar.
Trev pegou a garrafa e, pela sua expressão, Daphne soube que ele
estava pensando na mesma possibilidade.
— Acho que o Bernard Cooper esteve aqui!
— Hoje? — Barry foi até a beirada da lagoa e estudou o lado oposto.
— Você o viu?
Daphne balançou a cabeça.
— Eu pisei na garrafa, mas é a mesma marca que ele jogou na rua em
frente da padaria. Eu a vi depois que Jess a recolheu. Lembra?
— Sim.
— Então deveríamos ir atrás…
— Ei, não se preocupe. — Trev deu uma apertadinha no braço de
Daphne. — Ele já foi embora, de verdade. Não há sinal algum dele na
região. Ele não usou o cartão de crédito, e ninguém viu seu carro. Aposto
que voltou para Queensland.
— Tem certeza?
— Tanto quanto é possível. Olhe, vá pra casa e relaxe um pouquinho.
Você tem um grande evento hoje à noite!
— Bem… se você acha…
— O que você acha de Barry e eu darmos uma olhada nos arredores?
Mas o Bernie não vai invadir um casamento e arriscar ser preso.
Trev tinha razão. Daphne reencontrou seu sorriso.
— Acho que vou ver se o John já se organizou.
— Quer que eu te acompanhe até o carro? — ofereceu Barry.
— É muito gentil da sua parte, mas não. Tenho de buscar minha bolsa
e me despedir. Não vou dizer nada e deixar os outros preocupados, não se
preocupem.
— Te veremos mais tarde?
— Sim, Trev. Mal posso esperar para vê-los arrumadinhos num terno.
— Daphne riu quando os dois soltaram um resmungo zombeteiro. — Vocês
dois ficarão lindos. — Ela se virou. — Sim, vejo mais casamentos sendo
oficializados por mim no futuro.
O som atrás dela poderia ter sido dos dois homens se engasgando. Ou
nada além da sua imaginação.

T para não chamar os cães farejadores e fazê-los dar


uma olhada nos arredores da Casa Palmerston. Mas ele e Barry não
encontraram mais nada que indicasse a presença recente de Bernie perto da
lagoa. O tempo estava acabando, e trazer a polícia e os cães seria um
exagero.
— Posso chamar alguns dos meus homens que não participarão do
casamento. — Barry se apoiou numa árvore. — Eles podem ficar por perto
hoje à noite. Numa distância discreta, é claro.
— Estou tentando a aceitar…, mas o que diremos a todo mundo? Não,
não podemos dar corda ao medo de Daphne e atrapalhar o que será uma
noite segura e maravilhosa.
— A oferta está de pé, se você quiser.
— Obrigado, cara. É melhor voltarmos.
— Sim. Quero ajudar o Thomas com o resto das luzes assim que
possível.
De volta à trilha, os olhos de Trev vaguearam pelas redondezas da
lagoa.
— Acho que vou chamar alguns policiais de Green Bay para me
substituírem hoje à noite, assumindo que alguns deles estejam disponíveis.
— Você vai poder beber, pelo menos.
— Não vou beber muito, preciso da minha consciência.
— Por quê? Caso alguma das solteiras fique toda emotiva com o
casamento e comece a planejar um futuro com você? — Barry deu um
grande sorriso.
— Mais porque não quero dizer nada que não deveria.
— Para Charlotte?
Trev assentiu.
— Ela vai mudar de opinião, ela gosta de você.
— Como amigo.
— Bem, e como a Sylvia está? — Era hora de virar o jogo.
Barry quase corou.
— Não tenho nada a comentar sobre isso.
— Sei… percebi que você está ficando um pouquinho… maior na
cintura. Seria por que está comendo tortas caseiras demais?
— Estou em forma, mas ela cozinha como ninguém.
— É melhor ficar de olho no buquê mais tarde. Se ela o pegar…
— Ali está o Thomas.
— Vou pedir a opinião dele.
— Sobre o Bernie? Eu não faria isso.
— Não, sobre você e Sylvia. Ei, Thomas…
— Você não tem coisas de polícia pra fazer?
Passaram sob o arco e se encontraram com Thomas, que estava
ocupado, enrolando pisca-piscas numa árvore. Ele os encarou, cheio de
suspeita.
— Onde vocês dois estavam? Vamos perder o chazinho da tarde se não
acabarmos logo com isso.
— Inadmissível. Pode deixar comigo, eu cuido do outro lado. O Trev
tem que se arrumar.
— Ele vai precisar de mais do que algumas poucas horas.
— Obrigado, Thomas. Pensei que fôssemos amigos — disse Trev.
— E amigos são honestos. O que estavam fazendo lá?
— Vendo como a decoração ficou de longe, para as fotos.
Thomas parou o que estava fazendo e encarou Trev.
— Por meia hora?
— Aqueles dois só vão se casar uma vez. Precisamos garantir que
esteja tudo perfeito. Tenho mesmo de ir, então verei vocês mais tarde.
Quanto mais se afastava de Barry e Thomas, mais Trev se preocupava.
Passaria um tempinho na delegacia e faria algumas ligações. Bernie Cooper
estava em algum lugar, e seria bom que fosse bem longe dali.
62- A CALMARIA ANTES DA TEMPESTADE

— V trabalho incrível, Belinda! — Christie se afastou do


espelho. — Ficou perfeito, querida.
— Você acha? — Belinda deu uma olhada sobre o ombro de Christie.
— Gostei muito dos olhos.
— Você gosta mesmo de brilho!
— Ah, foi demais? Vou arrumar…
— Estou brincando. — Christie se virou e abraçou Belinda. — Estou
orgulhosa de você.
— Não foi uma brincadeira engraçada.
— Eu sei, mas estou muito nervosa.
— Que tolice. — Belinda deu um beijo gentil na bochecha de Christie.
— Como você, dentre todas as pessoas, pode estar nervosa? Daqui a um
pouquinho, vai estar caminhando em direção a um dos homens mais bonitos
da região.
— Do país.
— Talvez do universo. Na frente dos seus amigos e familiares mais
próximos, vai se tornar a Sra. Christabel Oliver Ryan Blake. Soa
interessante. Falando nisso… espero que o Thomas não tenha perdido as
alianças.
— Belinda! — Elizabeth parou na porta, com as mãos no quadril. —
Não diga esse tipo de coisa!
— Desculpa. Foi mal, Christie.
Christie riu.
— Ele não perdeu os anéis. Mas, com ou sem anel, nada vai me
impedir de me casar com o Martin. — Ela deu uma apertadinha no braço de
Belinda e, então, foi até Elizabeth e beijou-lhe a bochecha. — Está tudo
perfeito.
— Você está tão linda!
— Tudo graças a Belinda. Agora é a sua vez, então deixe-a fazer sua
magia.
— Onde você vai? — perguntou Elizabeth, enquanto Christie saía pela
porta.
— Tomar uma xícara de café e me sentar no terraço. Belinda, use
aquele batom roxo clarinho. Vai combinar com a pele da Elizabeth.
— Bem pensado. Agora, por favor, sente-se na frente do espelho e
sinta-se em casa.
— Obrigada, querida.
— O que você acha de um tantinho de brilho nos olhos para uma
ocasião esplendorosa como a que estamos nos preparando?
Christie quase se virou, mas ouviu Elizabeth gargalhar.
Elas ficariam bem.
Passando por um espelho, olhou para si mesma. Seu cabelo estava num
coque deslumbrante e jeitoso. Pequenas mechas onduladas caíam ao redor
do rosto, esse cabelo molduraria a coroa de flores que vestiria após o
vestido. Por ora, usava jeans e uma camisa de botões folgada, sem nada nos
pés.
Quase saltitou escadaria abaixo, com sua balaustrada colorida com
flores e iluminada com pisca-piscas. No saguão, as mesas estavam prontas
para receberem as comidas e as bebidas, que seriam servidas pela equipe de
Lance durante a cerimônia. Estava tudo indo de acordo com o planejado.
Até mesmo a chegada de Ray e Ash foi perfeita, exceto pelo fato de estar
ansiosa para apresentá-los a todos e mostrar a eles cada cantinho de Rivers
End.
A cozinha estava vazia pela primeira vez hoje, enquanto Christie
enchia a chaleira. A mesa quase rangeu sob o peso de toda a comida que
tinha sido preparada. Uma bisbilhotada dentro da geladeira deixou-a sem
qualquer sombra de dúvidas quanto ao trabalho que tinha sido feito nos
últimos dois dias.
Tudo pra gente.
Com o café em mãos, Christie atravessou o saguão e saiu. Apesar da
Casa Palmerston estar, agora, lotada de hóspedes, não havia nenhum carro à
vista, já que Elizabeth pediu que todos estacionassem ao lado para manter a
fachada desobstruída.
— Venha se sentar conosco — chamou Angus, de um banquinho no
canto mais distante do terraço. Ao seu lado, Randall balançou o rabinho,
cumprimentando-a.
— O que vocês dois estão fazendo aqui fora? — Ela mergulhou no
banco.
— Que linda você está! — Ele se inclinou e beijou sua bochecha. —
Ah, eu não arruinei sua maquiagem, né?
— Não. Além disso, todo mundo está me beijando. A Belinda vai me
dar uma retocada quando eu estiver vestida.
— Mas, primeiro, você queria um tempinho pra você mesma. Podemos
te deixar em paz.
— Prefiro que fiquem. — Christie puxou as pernas sobre o banco,
cruzando-as. — Como você está?
— Eu? Muitíssimo bem, minha querida.
— Você fez tanta coisa… Você e a Elizabeth para o Martin e eu.
Ele riu.
— Fizemos por amor. Nós dois… na verdade, todos os envolvidos
estão muito animados. Você e o Martin deram algo incrível a essa
cidadezinha. Seus convidados trouxeram o toque de glamour.
— Então você vai descansar um pouquinho?
— Acho que sim, agora a Elizabeth está se arrumando.
— Quando eu saí, a Belinda estava sugerindo uma sombra brilhante a
ela.
— Ah, minha nossa!
— Então, não importa o que ela diga, não deixe a Belinda te convencer
a passar maquiagem. Ela está cheia de travessuras.
Randall se levantou e se esticou.
— Essa deve ser minha deixa pra me deitar um pouquinho. Ei, Randall,
quer subir comigo? — Angus se levantou e sorriu para Christie. — Você vai
ficar bem sozinha?
— Aproveite o descanso. Te vejo daqui a algumas horas.
Logo, ela subiria e cuidaria do cabelo e da maquiagem de Belinda.
Martha chegaria, e Belinda, com certeza, faria outro alvoroço. Tudo que
sempre quis estava acontecendo. Sua vida com Martin estava prestes a
começar.
63- SEQUESTRADA

C cozinha, enquanto Christie guardava a xícara e o


pires recém lavados.
— Nossa, você está deslumbrante!
— Belinda fez um bom trabalho. Vai deixar que ela faça sua
maquiagem?
— Eu? Bem, não quero atrapalhar. Quando eu tiver tomado banho, não
vou demorar pra me arrumar.
— Não vai atrapalhar. Ela precisa praticar pro curso. Além disso, amo
passar um tempinho com você. Ainda temos muito tempo. Por favor, pense
nisso.
— Certo, obrigada. Vou beber um pouco d’água e, depois, tomar
banho.
— Combinado. Te vejo mais tarde. — Num rodopio, Christie dançou
para fora da cozinha, deixando Charlotte com um sorriso no rosto. Você
merece toda essa felicidade.
Encheu um copo na pia, não ousando abrir a geladeira e deixar algo
cair. Tinha visto o quão lotada estava mais cedo, e não fazia ideia de como
Elizabeth fizera tudo caber ali. Com aromas tão deliciosos, arrependeu-se
de não ter almoçado.
Passos se aproximaram do outro lado da porta fechada da adega. A
maçaneta começou a girar. Então, houve um comentário abafado, algo sobre
“não ter mãos suficientes”.
— Espere aí, estou indo. — Charlotte repousou o copo perto da pia.
Tinha visto Angus trazer alguns vinhos da lista que Elizabeth continuava a
aumentar. Abriu a porta. — Prontinho, quer que eu segure algo?
Ele não deveria tê-la ouvido, já que ainda não tinha saído da escada.
Ela atravessou a porta.
— Precisa de ajuda?
A porta se fechou atrás dela, e Charlotte estendeu a mão para reabri-la.
Um braço envolveu seu corpo.
— Shh, Lottie.
Sua mão cobriu a boca dela, enquanto a mulher lutava para se libertar.
Mas Bernie a prendera contra ele. Charlotte chutou para trás, errando o
alvo.
Ele riu.
— Não estamos num filme. Seja boazinha e facilite as coisas,
entendeu?
O som que ela emitiu não pareceu ser uma resposta, enquanto o medo
se transformava em raiva. Ela o faria ser preso. Encarcerado por anos.
Como ele ousou…
— Vamos descer a escada, e vou te levar no colo. Ou você pode andar.
Não importa como, vamos descer.
Charlotte soltou todo o peso do corpo, jogando-se contra ele. Não
funcionou. Bernie a ergueu, resmungando. Então, soltou sua boca.
— Faça qualquer som e algo ruim acontecerá.
O homem parou na base dos degraus, respirando com dificuldade. Em
seguida, atravessou a adega e abriu outra porta com o pé. Estavam no
depósito, onde ele havia machucado Angus. Náusea revirou a barriga de
Charlotte.
Num movimento abrupto, colocou-a no chão e agarrou seus ombros.
— Atravesse a porta. Rápido.
Num primeiro momento, não compreendeu o que ele quis dizer. Então,
seus olhos se acostumaram com a pouca luz. Havia uma porta de pedra
aberta, com uma chave inserida na fechadura.
— Vá logo.
— Não, Bernie. Solte-me.
— Não vou pedir de novo. Ou prefere que eu te prenda aqui e volte lá
pra cima – bem a tempo de participar do casamento?
Descrença inundou Charlotte. Ele não a machucaria, disso tinha
certeza. Seja lá o que ele estivesse tramando, ela o persuadiria a desistir.
Ninguém arruinaria o casamento de Christie. Abaixou a cabeça e atravessou
a entrada. A temperatura caiu.
— Onde estamos?
Bernie a seguiu e ligou a lanterna.
— Num túnel. — Ele iluminou os arredores, e a luz clareou uma pilha
de caixas alinhadas contra a parede de pedra. — Está vendo isso? É meu.
Tudo deixado por Harry para sua família.
— Onde isso estava?
— Você já vai descobrir. — Bernie passou por ela, e apontou a lanterna
para uma pintura emoldurada. — Este é o Harry.
Charlotte deu uma olhada deste lado da porta. Nenhuma fechadura.
Uma pequena pedra a impedia de fechar de vez. Era uma porta
unidirecional.
— Tem certeza?
— É claro. Veja as semelhanças. — Bernie se aproximou da pintura.
— Tem alguma assinatura?
— Sim. Foi pintada por… Hmm… vejamos… — Ele deu uma olhada
no cantinho inferior.
Num instante, Charlotte chegou à porta de pedra. Bernie a agarrou, e
ela caiu com tudo sobre a barriga, mas libertou-se de suas mãos. Charlotte
cambaleou para a frente, com os braços esticados para empurrar a porta
com toda sua força.
— Não, nada disso!
Ele estava quase sobre Charlotte quando ela chutou a pedra e fez com
que a porta se fechasse com tudo, num baque. Ela deslizou ao chão,
cabisbaixa.
— Não! — Bernie tentou empurrar a porta, então, socou-a. — O que
você fez?
— Eu te impedi.
Sem cuidado algum, ele a virou. Aproximou o rosto do de Charlotte, e
seu hálito podre, junto à raiva, irradiaram pelo túnel.
— Você vai se arrepender disso, doutora.
64- UMA AMIGA EM PERIGO

B M terminado o balcão para a recepção do salão de


Christie. A base era de aço inox sob uma peça inteira de tramazeira,
manchada e muitíssimo polida. Ainda mantinha a maior parte da sua forma
original, incluindo certas imperfeições interessantes.
— Realmente única. — Barry a admirou, assim que terminaram de
limpá-la. — Uma em um milhão. Christie vai amar.
— Vou trazê-la aqui pela manhã. Hoje, ela já tem coisas demais com
que se preocupar sem que eu a arraste pro salão.
— De acordo com Daphne, foi ruim o bastante você vê-la hoje cedo,
então provavelmente seja melhor não quebrar mais nenhuma tradição.
— Por vê-la, você quis dizer que ficamos em partes diferentes da
propriedade, mas acabamos trocando um beijo quando nos esbarramos?
— Isso mesmo. Daphne murmurou algo sobre isso dar má sorte.
— Como se algo pudesse estragar o dia de hoje.
E nada estragaria. Outra vez em casa, Martin descansou as duas mãos
no corrimão, coberto por jasmins, que rodeava o deque. Há menos de um
ano, sob um céu iluminado pela lua, quis beijar Christie neste exato lugar.
Não estavam juntos naquela época – não eram nem amigos. Martin estava
protegendo Thomas, e ela estava determinada a desvendar os segredos que
a avó tinha deixado na casa de campo. Ainda assim, a atração entre eles já
era tão forte, que Martin teve de se esforçar para controlar as mãos.
Logo, estaria ao lado do arco, observando Christie se aproximar com
Angus. Seus amigos e familiares, todos presentes para compartilharem
desse dia mais do que especial.
No mar, iates pontilhavam a água. Alguns com velas içadas, outros
simplesmente flutuando. O Mar de Jasmim passaria por mais algumas
verificações de segurança antes de voltar para casa – para Christie e Martin.
Se ela embarcaria novamente era outro problema, mas encarariam qualquer
medo residual juntos.
Martin selecionou alguns filamentos longos de jasmim e os
acompanhou até o outro lado do corrimão, colhendo os de que mais gostou.
Se conseguisse entregá-las à Martha ou Belinda quando chegasse, esperava
que Christie prendesse algumas no cabelo, ou no buquê.
Um som subiu pelo despenhadeiro. Aves marinhas, sem dúvida,
brigando por conta de algum petisco. Mas quando o barulho se repetiu,
Martin parou de colher os jasmins e escutou. Com certeza, não era uma
pessoa pedindo ajuda, era?
Mais uma vez. Nada muito claro, mas evidentemente era a voz de
alguém – duma mulher. De vez em quando, alguns visitantes de Rivers End
adentravam a trilha estreita e sinuosa, penhasco acima, mas acabavam se
perdendo. Com esperança, não era isso o que tinha acontecido hoje. Martin
caminhou até a beirada e olhou para baixo.
— Socorro!
Martin largou as flores e correu, pela trilha, até onde o caminho se
bifurcava.
— Cadê você? — Martin optou seguir pela direita.
— Chame… ajuda.
Forçou seu caminho entre os arbustos, parando bem onde o chão
começava a se esfarelar. Havia uma corda pendurada ali, presa à base de um
dos arbustos maiores. Por que raios alguém tinha decidido fazer aquilo?
Havia placas lá embaixo, avisando para não saírem da trilha.
— Estou indo, aguente firme. — Martin apalpou os bolsos, procurando
o celular, mas lembrou-se de que o aparelho tinha ficado na cama. — Você
se machucou? Vou pedir ajuda. Não se mexa muito.
— Martin? — Era Charlotte.
— Charlotte! Você se machucou? — Martin pegou a corda. O nó
parecia seguro, mas não havia ninguém por perto. Grudou os pés no chão e
usou a corda para ver além da beirada. — Charlotte?
— Socor… — Seu grito foi interrompido, então Martin começou a se
inclinar na beirada. Apoiou os pés nas pedras e, usando a força dos braços e
dos ombros, rebaixou o corpo.
As perguntas de como ela tinha chegado ali embaixo, sem falar no
porquê, foram jogadas para o fundo da mente do homem. Dentro de
minutos, suor começou a escorrer pelas suas costas e braços, que doíam sob
a tensão. Sua respiração tornou-se superficial e apressada.
Idiota. Deveria ter ido buscar ajuda.
Sabia muito bem que não devia se agarrar a uma corda assim, sem
nenhum equipamento de segurança e sozinho.
Descansou, encontrando uma fenda para apoiar o pé e dando uma
breve trégua aos músculos. Não muito abaixo, havia a entrada de uma
caverna. Mas nenhum sinal de Charlotte. Chocado, percebeu que a corda
estava quase no fim. Não era longa o suficiente.
Empurrou-se para longe da parede, verificando o terreno entre onde
estava e a caverna. Havia apoios ao seu alcance, para as mãos e para os pés.
Subir levaria tempo demais. Então, bem no finzinho da corda, cerrou os
dedos num estalo.
Um iate passou navegando não muito longe dali. Cada grama de sua
força estava concentrada em movimentar uma das mãos, então um dos pés –
de novo e de novo. Até ele estar perto o suficiente para pousar numa
pequena saliência do lado de fora da caverna.
Onde estava Charlotte? Olhou para baixo e encontrou o mar batendo
contra as rochas irregulares.
Não. Com certeza, não era isso o que tinha acontecido.
Medo o dominou. Então, algo soou dentro da caverna. Um arrastar de
pés.
Martin entrou, tentando enxergar o interior sombrio.
— Charlotte?
Desta vez, ele a ouviu ali perto. Nenhuma palavra, mas, sem dúvida,
era Charlotte. Seguiu o som, piscando para que os olhos focassem na
escuridão. Contra uma parede, a mulher estava sentada no chão. Seus pés
tinham sido presos, os braços estavam atrás da cabeça, e havia um trapo
enrolado ao redor de sua boca.
Ela olhou para a esquerda, em direção ao fundo da caverna, e balançou
a cabeça. Antes que Martin pudesse alcançá-la, Bernie se colocou entre
eles, com um velho revólver pendurado numa mão.
— Eu não daria nem mais um passo, colega. Na verdade, por que não
se senta bem aí? Você parece cansado.
65- PLANO C

A , deles com quem se preocupar.


Deveria ter tudo acontecido de acordo com o planejado. Havia
trabalhado a noite toda, empurrando os tesouros de Harry pela porta de
pedra. Caixa por caixa, ele passou pela cozinha de fininho em direção à
residência antiga e abandonada atrás da garagem. Sua ideia original de içar
tudo pelo penhasco pareceu tola quando adentrou a caverna e viu as rochas
abaixo. Uma deslizada, e tudo poderia cair e ser destruído.
Quando a recepção tivesse começado, tudo o que precisaria fazer era
voltar ao SUV e enchê-lo. Ninguém veria o homem atravessar o pasto se
fosse depressa.
Já seguramente guardadas, havia diversas pinturas, duas caixas
pequenas – que, irritantemente, não continham chaves –, cinco caixotes de
madeira cheios de licores tão velhos que deveriam valer milhares de dólares
e um punhado de armas de fogo.
Depois que dormiu até o meio-dia, almoçou uns pedaços de torta
roubados mais cedo da cozinha, seguido por algumas garrafas de sua água
especial. Tinha esperado o momento certo para levar outra caixa ao carro.
Mesmo sob a luz forte do dia, sabia que estaria seguro quando todo mundo
estivesse no andar de cima. Portanto levou outro caixote de madeira até a
porta de pedra, então, ouviu Christie descer as escadas. Assim que ela saiu
da cozinha, Bernie tentou repetir o feito, mas foi quando deu de cara com o
problema.
Lottie.
O plano B teria de ser o bastante.
Mas, agora, já estava no plano C.
— Você é o Bernie, não é? O que está acontecendo, colega?
— Eu te mandei sentar. Sente-se.
Martin não deu nenhum sinal que sairia de sua posição – pernas abertas
e braços cruzados. Suor escorria pelo seu rosto, e ele tinha dificuldades em
respirar.
— Você desceu pelo penhasco? Impressionante. Desculpe-me por te
obrigar a fazer isso no dia do seu casamento.
Bernie não sentia remorso.
— Dei minhas costas à mulher por um minuto, e lá estava ela…
acenando para os iates e gritando como uma alma penada. — Era
satisfatório ver Lottie tremer de raiva, assim como era maravilhoso o fato
de ela não poder falar. Era bom ser ouvido e estar no controle. Pelo
cantinho dos olhos, viu Martin se aproximar. Bernie se virou para encará-lo,
erguendo a arma. — Sente-se.
Desta vez, Martin Blake fez o que lhe foi ordenado e mergulhou ao
chão, ajoelhando-se.
Que maravilha… quase implorando para ser poupado. O problema era
que a arma – por mais linda que fosse – talvez nem atirasse mais, depois de
todos aqueles anos numa caverna.
— Marty, tudo o que quero é pegar o restante dos meus tesouros e ir
embora. A Casa Palmerston pode não estar ao meu alcance, mas o Harry
queria que eu ficasse com tudo que há nessa caverna.
— Que Harry?
— Harry Temple. Sou descendente direto dele. Sua noiva ladra acha
que vai colocar as mãos nisso tudo, mas agora tenho algo que ela quer –
você.
— Assumo que há um túnel ali atrás, que vai dar na porta de pedra
trancada.
— Mas eu tenho a chave, graças ao descuido dos donos da casa de
campo.
— Você a invadiu quantas vezes? Duas, três?
— Eu tomaria cuidado com seu tom de voz. — Bernie deu alguns
passos para trás, em direção a uma caixa vazia, e se inclinou para frente. —
Você é meu prisioneiro, lembre-se disso.
— E tenho um casamento para comparecer, então vamos resolver isso
logo. Você precisa de ajuda para remover o que falta desse lixo e, então,
levar a algum lugar onde possa se gabar. Vou pedir a todos que te deixem
passar. Te darei uma vantagem antes do Trev chegar, vamos.
— Lixo! — gritou Bernie. Lottie pulou, assustada. — Você ouviu o
que ele disse?
Ela assentiu, encarando-o. Não havia porquê se irritar. Havia uma
garrafa d’água ali perto, então Bernie a pegou com uma das mãos, sem
deixar de apontar a arma para Martin. Conseguiu abri-la e tomou um gole.
— A questão é, Marty, nossa amiga aqui achou que seria uma boa ideia
fechar a porta de pedra. Não temos como abri-la desse lado.
Martin Blake tinha mesmo sorrido?
— Você está preso aqui.
— Todos estamos.
— Você não pensou muito bem no seu plano.
— Sei o que você está tentando fazer. Está tentando me deixar irritado
o suficiente para que eu cometa um erro. Talvez essa arma seja velha
demais e não funcione, talvez nem esteja carregada. Conseguiria se livrar de
mim antes de eu me livrar dela?
Lottie estava assustada. Encolheu-se ainda mais e encarou o chão. Que
bom. Depois de tudo que ela o tinha feito passar…
Muito bom.
— Talvez eu devesse tirar a mordaça dela e deixá-la contar a você o
que fez. — Bernie tinha conquistado sua atenção agora. Ela balançou a
cabeça. — Isso mesmo. Acho que vou dar a ele um pouco de contexto.
— Pare com isso, Cooper.
— Ela se meteu numa enrascada. Como você sabe, fui paciente da
Lottie por um tempo. Realmente pensei que pudesse confiar nela… Assim
como a pobre mulher que ela denunciou por algo que nunca foi feito. Você
quebrou nosso sigilo entre médico e paciente, não quebrou, Lottie? — Ele
sorriu para ela. Aquilo eram lágrimas nos olhos da mulher? — E tem mais.
Quer contar a ele? Não? Tudo bem. Ela internou a própria mãe num
hospício. Para sempre.
Lottie se esforçou para se levantar, mas, porque os pés estavam
amarrados, caiu para trás, e lágrimas escorreram por suas bochechas. Bernie
quase sentiu pena dela. Quase.
— Chega! O que você quer de mim? — Martin não tinha se movido,
mas sua raiva acabou com a diversão de provocar Lottie.
— Quero sair daqui, com o resto das minhas posses. Sugiro que escale
o penhasco e faça com que isso aconteça. Não deve ser difícil destrancar a
porta e dar um jeito para que ninguém me impeça.
— Solte a Charlotte, e vou ensiná-la como escalar o penhasco. O noivo
chegar mais cedo vai deixar todos desconfiados. Uma hóspede, não.
Quando ela não estiver mais aqui, te ajudo a levar tudo o que restar até a
porta.
Ele acha que sou burro?
Bernie estendeu o braço em direção a Lottie, apontando a arma para
ela.
— Não confio nela. Nem em você, mas você tem muito a perder hoje.
Se eu fosse você, escalaria o penhasco… porque minha paciência está quase
no fim, Sr. Blake.
66- PESSOAS DESAPARECIDAS

T caneta contra o teclado, esperando o computador


reagir. Na última hora, enviou perguntas sobre Bernard Cooper e seu SUV
para todas as delegacias que tinha acesso. Nenhuma resposta lhe disse nada
de novo. Não houve nenhum avistamento do homem, nem do carro, desde a
compra da vodca no bar no dia em que machucara Angus.
Era impossível. Nenhum uso do cartão de crédito. Nenhuma fotografia
vinda de nenhum pedágio. A polícia de Queensland tinha falado com velhos
conhecidos, outros fotógrafos e revistas onde o homem trabalhou, e até com
os funcionários do cemitério onde sua mãe estava enterrada. Ninguém se
lembrava de tê-lo visto em meses.
— Onde você está… — rosnou as palavras.
— Senhor?
Trev virou a cadeira.
— Desculpa, policial. Esqueci que eu tinha companhia.
A policial Jacqui Prentiss sorriu ao levar duas xícaras de café até a
outra mesa.
— Pode falar sozinho o quanto quiser, senhor. — Ela repousou uma
das xícaras na frente do policial Gareth Greetham e tomou um golinho da
outra.
— Vou falar, pode ter certeza. Vocês dois vão ficar muitíssimo
entediados hoje. A maior parte da cidade vai estar na Casa Palmerston, e
quase não há nenhum problema a ser resolvido.
— Exceto pelo esquivo do Bernard Cooper. Tem certeza de que não
aceita um café, senhor?
— Obrigado, mas não. Vou me arrumar daqui a pouco. Sim, esse
homem está me deixando preocupado. Adoraria ter uma longa conversa
com ele de novo.
— Quer que fiquemos de olho na Casa Palmerston hoje à noite?
— Não vejo necessidade disso. Podem dar uma volta pela cidade, se
quiserem. Verifiquem se não há ninguém perdido.
— Senhor, mas quem se perderia por aqui? — perguntou Jacqui. Não
recebendo nenhuma resposta, voltou-se para o parceiro.
Quem, de fato?
Trev nunca se esqueceria da primeira vez que viu Charlotte, perdida
nas estradas vicinais da cidade. Agora, ele também poderia perdê-la para
sempre, se ela se mudasse. Bem, hoje à noite, pediria uma dança a ela e
tentaria, mais uma vez, quebrar a barreira que ela mantinha entre eles. Não
havia lugar melhor para isso do que num casamento.
— Certo, estou indo me arrumar. Podem comer tudo que houver na
geladeira.
— Você acha que algo de emocionante vai acontecer, senhor? Gostei
de prender o Derek Hobbs naquela noite.
— Policial Greetham, se você vir o Derek Hobbs, por favor, prenda-o
outra vez. Senão, acredito que teremos uma noite calma.
Então, por que algo continuava incomodando-o? Enquanto se
preparava para o casamento, preocupou-se. A garrafa d’água vazia perto do
lago poderia estar lá desde quando Bernie tinha sido um hóspede.
Esticou a mão para pegar o terno. Acidentalmente, puxou o traje usado
na noite passada. Ficou parado ali, encarando-o.
Recomponha-se, Sibbritt.
Toda aquela conversa sobre homens maus e casamentos estava
mexendo com sua cabeça. No bolso de dentro, estava o livro que Lance lhe
deu. Pegou-o. Guardou o traje, agarrou o terno e o esticou sobre a cama.
Lance disse que o livro tinha sido esquecido por um cliente. Era um
diário, com o ano 1853 inscrito na capa marrom de couro. Decifrou a
dedicatória cheia de floreios. O livro pertenceu a Harry Temple, se tivesse
lido direito.
Era o diário infame de Bernie.
Interessante o homem não ter ido procurá-lo. Deixaria o objeto na
mesa dos policiais, assim, teriam algo sobre o que pesquisar.

—Q , a Charlotte? — Elizabeth enfiou a cabeça na


porta do quarto de Christie. Belinda estava lá sozinha, num vestido verde-
mar que ia até os joelhos, girando na frente do espelho.
— Agora que você perguntou… não a vejo faz tempo. Christie a
convidou para vir fazer o cabelo e a maquiagem, mas talvez ela tenha
mudado de ideia.
— Onde será que ela está? Provavelmente, deve ter encontrado um
lugar silencioso para ler e acabou perdendo a noção do tempo.
— Precisa de ajuda com algo? Vou vestir a Christie quando ela sair do
banheiro e a madrinha chegar. Mas posso te ajudar antes disso.
— Ah, não precisa. Só queria saber onde ela está. Vou mandar a
Martha subir quando ela aparecer.
— Ficaremos esperando – o vestido glorioso, a noiva deslumbrante e
eu, que sou fabulosa.
Elizabeth riu consigo mesma, indo em direção à escadaria. Belinda
conseguia fazer tudo parecer mais interessante e animador do que era.
Apesar de que, hoje, não havia palavras para descrever devidamente a
alegria e ansiedade que envolvia a Casa Palmerston.
A porta da frente estava escancarada para receber os hóspedes. Quando
Angus terminou de se arrumar, juntou-se a ela no saguão para dar as boas-
vindas e oferecer drinques a todos antes da cerimônia. Na cozinha, Lance e
dois de seus funcionários estavam cuidando de tudo, preparando-se para
encher as mesas assim que a cerimônia terminasse.
Martha entrou, seguida por Thomas. Pararam e olharam ao redor,
então, sorriram um para o outro.
— Não faz muito tempo que tivemos nossa recepção, querida. —
Thomas beijou Martha, enquanto Elizabeth se aproximou, apressada.
— Vocês dois estão lindos! — Ela abraçou cada um deles. — Que
vestido perfeito.
Assim como o da Belinda, o vestido verde-mar de Martha se espalhava
ao redor dos tornozelos, partindo de uma cintura marcada.
— Ela parece uma modelo, não parece? — Thomas observava Martha
abertamente, e ela balançou a cabeça, corando. — Cadê o meu cachorro?
— O cachorro do Martin está com o Angus, descerão daqui a pouco.
Martha, querida, vá lá pra cima. A Belinda vai precisar da sua ajuda,
senão… a Christie vai acabar coberta de glitter ou borboletas.
— Vou ficar aqui, esperando o noivo. Ele já não deveria ter chegado?
— Thomas olhou ao redor.
— Daqui a um pouquinho ele chega, tenho certeza. — Martha ergueu a
saia, seguindo à escada. — Te vejo na cerimônia.
— Dê um abraço na Christie.
— Quer um copo de algo? Talvez de champagne? — Elizabeth se
aproximou de uma garrafa, que estava num balde de gelo, perto da porta. —
Acho que vou beber também.
— Deixe comigo. — Thomas serviu dois copos e entregou um a
Elizabeth. — Para a Casa Palmerston, sua herança rica, localização perfeita
para casamentos e sua dona graciosa.
Ela sorriu.
— Que brinde gentil, obrigada.
Bebericaram o champagne na tranquilidade do salão. Do lado de fora,
o céu escurecia, e as luzes piscavam por toda a estrada. Um carro entrou na
propriedade. Depois, outro.
— Assim começa… — Elizabeth repousou o copo no peitoril de uma
janela. — Você poderia me ajudar a receber os hóspedes até o Angus
descer?
— Eu ficaria honrado. Depois, vou dar uma ligada pro rapaz, se ele
ainda não tiver chegado. O noivo não pode se atrasar pro casamento.
67- ENCONTRANDO O NOIVO

U ligações perdidas mais tarde, e Thomas foi buscar Trev,


com Randall logo atrás.
Segundos depois, Trev estava com o próprio celular em mãos.
— Cai direto na caixa postal.
— Eu te disse. Pode me ajudar a encontrá-lo?
— Fique calmo, Thomas. Provavelmente, deixou o celular em casa e
está vindo andando. É algo importante, se casar.
— Ele está atrasado. Ele nunca se atrasa.
— Tudo bem, vou pedir aos policiais que deem uma passada na casa
dele. — Trev ligou para a delegacia.
Martha se juntou a eles.
— Você acha que deveríamos procurá-lo?
— Cadê o noivo? Preciso garantir que ele esteja bonito o suficiente pra
se casar com a Christie. — Belinda passou por ali, apressada. Então, deu
um passo para trás. — Por que vocês parecem chateados?
Trev desligou.
— Vão ligar de volta daqui a alguns minutos. Acalmem-se, todos.
— O Martin não está aqui? — Belinda olhou para a Casa Palmerston.
— A Christie está nos encarando.
— Aja naturalmente — disse Thomas. — Por que ainda não ligaram de
volta?
Martha agarrou a mão de Thomas.
— Ele não perderia o próprio casamento, querido. Deve haver alguma
explicação.
— Fiquem calmos — adicionou Belinda. —Não temos uma hora
marcada para o começo da cerimônia, e ainda nem escureceu.
Randall choramingou. Thomas respirou fundo e coçou a parte de trás
das orelhas do cachorro. Belinda desapareceu ao ir procurar Elizabeth e
Angus. Levando-os ao conglomerado, atualizou-os no caminho.
— Deveríamos avisar a Christie? — perguntou Angus, notando-a na
janela.
— Não vamos preocupá-la ainda. — O celular de Trev tocou, e todos o
encararam ao atender a ligação. Afastou-se alguns passos, dando instruções.
Quando desligou e voltou, sua expressão parecia preocupada. — Talvez seja
melhor conversarmos com ela agora.

C de três minutos para tirar o vestido de


casamento, com a ajuda de Belinda e Elizabeth, e vestir a calça jeans.
Quando chegou à base da escadaria, Trev, Angus, Thomas e Martha
estavam esperando.
— É o Bernie Cooper — gritou Christie, antes de qualquer um deles
falar. — Trev, você precisa encontrar o Bernie.
— Mas, querida, por quê? Como o Bernie ia conseguir impedir o
Martin de vir ao próprio casamento? — Martha segurou a mão de Christie.
— O Martin é forte, e não iria atrás do homem.
— Vocês precisam saber de outra coisa… — Todos se voltaram para
George, que chegou caminhando rigidamente. A bengala suportava a maior
parte do seu peso. — Faz algumas horas que ninguém vê a nossa Charlotte.
— Charlie? — Trev empalideceu. — Ela não está aqui?
— Eu a vi no meio da tarde. Ela ia tomar um pouco d’água e, depois,
tomar um banho. Eu a estava esperando para fazer a maquiagem — disse
Christie. — Precisamos encontrar o Martin. E a Charlotte. Trev, o que
faremos? — Christie agarrou o braço de Trev. — Vou na casa dele.
— Sozinha, não. Na verdade, prefiro que todos fiquem aqui. Meus
policiais estão a caminho… e estão trazendo algo. Talvez isso possa nos
ajudar.
As pernas de Christie não conseguiram mais segurá-la quando o medo
a dominou. Ela se sentou nos degraus. Belinda mergulhou ao seu lado e
massageou os ombros da amiga. Christie mal notou Trev ligando e pedindo
ajuda à Green Bay. Algumas palavras abafadas flutuavam pelo lugar.
Desaparecido. Provavelmente perigoso. Emergência.
Ela sabia que Belinda estava ali, mas não conseguia sentir as mãos da
menina.
George disse algo. Ela não o ouviu, apenas viu sua boca mexer.
Angus esticou a mão, e a de Christie voou, por livre e espontânea
vontade, até a dele.
Os olhos da mulher estudaram os arredores e pararam em Martha. Ela
abraçava Thomas com força. O rosto dele estava branco.
— Thomas. — Christie forçou-se a se levantar. — Escute. — Ele teve
dificuldade para se concentrar. — Vamos encontrar o Martin, e ele está
bem. Você sabe, em seu coração, que ele está bem.
— Senhor? — Jacqui apareceu na porta da frente aberta, com Gareth
não muito atrás. — Era isso o que você queria?
— Sim. Escutem, temos duas pessoas desaparecidas agora. Charlotte
Dean também não é vista desde quando Martin Blake sumiu. — Trev pegou
o diário de sua mão e o ofereceu a Christie. — É do Henry Temple.
— Hmm, senhor… se os dois estão desaparecidos, talvez…
— Policial. Comece as buscas imediatamente. — Ele os guiou para
longe do grupo.
— Eles não fugiram juntos — anunciou Belinda. — Que policial tola.
Obviamente, nunca viu vocês dois juntos antes, porque não existe amor
maior.
— Não tem problema. Foi uma teoria, apenas isso. — Christie sentou-
se outra vez e folheou o diário, tentando segurar as lágrimas. Em algum
lugar, Martin estava lidando com o Bernie. Provavelmente, Charlotte
também estava com eles. Mas onde? — Vocês têm certeza de que fui a
última pessoa a ver a Charlotte?
— Acho que sim, querida. Vamos perguntar pra todo mundo. —
Elizabeth, com as mãos entrelaçadas, estava parada longe de Angus. Ele se
aproximou, e a mulher se afastou. Christie franziu a testa. O que, raios,
estava acontecendo ali?
— Vou dar uma caminhada e perguntar pra todo mundo. Até mesmo
para as pessoas que não a conhecem. — Belinda foi embora, sem nem olhar
para trás.
Martha agachou-se ao lado de Christie no degrau.
— Sou muito boa com quebra-cabeças, querida.
— O Thomas precisa de você.
— O Thomas vai procurar o Randall — disse Thomas. — E vamos dar
um jeito de sermos úteis. Então, resolvam o quebra-cabeça e me digam
onde devo procurar meu filho. — Ele se virou e caminhou em direção aos
fundos da casa.
— Certo, titia. Precisamos encontrá-los. Só vou me casar uma vez, e é
melhor que o noivo esteja aqui antes do fim da noite.
68- UM IMPASSE

—N nenhum. — Martin esticou as pernas e se apoiou na


parede da caverna, comprovando sua afirmação.
Bernie caminhou até a entrada da caverna e olhou para o horizonte,
com a arma balançando outra vez. Era um revólver antigo, provavelmente,
feito entre os anos 1840 e 1850. Martin sabia um pouco sobre aquilo graças
a George. Não acreditava que ainda funcionava, nem que Bernie tivesse
tido a chance de recarregá-la.
— A Charlotte está passando mal, Bernie. — Ele encontrou os olhos
de Charlotte, pedindo que ela entrasse no jogo. — A mordaça não a está
deixando respirar direito. Ela tem asma. Fala sério, cara. Tire a mordaça.
Aproveite e desamarre-a.
— Acha que sou burro?
— Nem um pouco. Na verdade, estou impressionado por você ter
perdurado sob tanta oposição.
Bernie se virou.
— Não sei como você sabe que é descendente do Harry.
Independentemente disso, você tinha um objetivo e o cumpriu. A maioria
das pessoas teria desistido.
— Eu não.
— Você não. Deixe-me desamarrá-la, e poderemos planejar um jeito de
sair dessa. Pode ser?
— A Lottie gosta de me analisar.
— Acho que isso não está na lista de prioridades dela agora. Ela
precisa respirar.
— Tudo bem, desamarre-a. Mas se ela se fizer de espertinha, juro que a
jogarei…
— Sim, sim. Sabemos disso. Obrigado, colega. — Martin chegou ao
lado de Charlotte, antes que Bernie pudesse mudar de ideia, e desatou os
nós. — Você é um bom homem numa situação fora do seu controle.
— Minha mãe costumava dizer algo assim. — Bernie perdeu o
interesse e voltou a encarar o horizonte.
Enquanto Martin libertava Charlotte, sussurrou:
— Concorde com ele.
Ela assentiu. Ele arrancou a mordaça e ajudou-a a se levantar.
— Não temos como sair por aqui? — Martin gesticulou em direção ao
túnel.
— Está trancado do outro lado, você deveria ir embora.
— Não sem você.
— Em vez de planejarem algo contra mim, sugiro que pensem numa
forma de me tirarem em segurança daqui, junto com meus tesouros.
— Não temos muitas opções. — Martin se colocou diante de Charlotte.
Seus olhos demonstravam medo, e ele sentiu o quanto ela tremia. —
Podemos subir ou descer. A não ser que você tenha alguma dinamite numa
dessas caixas, para a porta de pedra?
— Já olhei. Harry, obviamente, não viu necessidade disso naquela
época.
— Foi uma piada. Mas temos cordas? Alguma ferramenta?
Bernie encarou Martin.
— Não tem nada de engraçado nisso. Se ela não tivesse fechado a
porta, eu estaria bem longe daqui, e você, a caminho do seu casamento. Se a
sua noiva ladra tivesse feito a coisa certa, eu estaria sediando o casamento
numa Casa Palmerston que foi, por direito, devolvida a mim.
Martin precisou de todo seu autocontrole para se impedir de responder
da maneira desejada. Assim que Charlotte estivesse segura, teria uma boa
conversa com Bernie. Homem para homem.
— Temos corda? Ferramentas? Algo útil?
— Te mandei escalar e abrir a porta do outro lado. Essa é a saída, e está
na hora de você se mexer.
— Só se a Charlotte vier comigo.
— Isso está carregado, colega. — Bernie ergueu a arma. — Cansei da
sua enrolação. Faça a escolha certa.
69- O DIÁRIO

—E nos ajude, titia. — Christie franziu a testa para uma


página do diário. — Henry Temple admitiu ter perdido a Casa Palmerston
para Eoin Ryan num jogo de pôquer. A esposa o deixou. Ele escondeu
alguns dos seus bens preferidos num quarto secreto – provavelmente, do
outro lado daquela porta que não conseguimos abrir. Eoin tomou a casa
antes do esperado, e Harry foi embora com pouco mais do que as roupas no
corpo.
— E ele voltou algumas vezes, invadindo a casa… pelo que você leu
mais cedo. — Martha esticou uma perna, depois, outra.
Continuaram sentadas na escada, debruçadas sobre o diário. Belinda
tinha passado por ali, dizendo que ninguém vira Charlotte depois de
Christie. Isso fez com que Trev se reunisse com os policiais antes de
partirem, apressados. Angus, Elizabeth e Daphne estavam do lado de fora,
ponderando, em voz baixa, a necessidade de atrasar a cerimônia e como
fariam isso sem preocupar os convidados.
— Da última vez, ele foi capturado perto do lago. Ele voltou por conta
de uma chave. — Christie virou as páginas. — Isso explica por que Bernie
passou metade de uma noite no lago. Deve ser a chave da porta de pedra.
— Não podemos, simplesmente, chamar um chaveiro?
— O George disse que talvez não seja tão fácil assim. Ele vai dar uma
olhada, mas não sei como vai lidar com os degraus.
— O que isso tem a ver com o Martin e a Charlotte? Com certeza, se
estivessem nesse quarto, nós os teríamos ouvido — disse Martha.
— Interessante… tem um relógio antigo que pertence à Casa
Palmerston. Seria o relógio de pêndulo? Harry Temple o doou! Sim, aqui…
ah, ele deixou dois irmãos cuidando do objeto, para que continuasse sempre
na família. Onde será que esse relógio está?
— Na minha loja.
Martha e Christie ergueram os olhares, surpresas, quando George
mancou pelo salão.
— Foi dado aos meus antecessores e, seja certo ou errado, eles o
protegeram por todos esses anos.
— É o relógio que estava na casa de campo? — perguntou Martha.
— Sim. Meu pai e o pai do Tom mantiveram a peça lá por um tempo,
então, foi parar na loja. Bernie Cooper reconheceu o relógio e tentou me
fazer admitir minha parte na fraude. Ele acreditava que o objeto era dele,
assim como a Casa Palmerston. — George se apoiou na bengala, e seu rosto
se encheu de lamento. — Há poucos dias, tomei a decisão de devolvê-lo ao
seu lugar de origem. Bem aqui, contra essa parede. — Ele apontou para a
posição original. — Elizabeth ainda não sabe disso.
— George, era por isso que você estava tendo problemas com o
Bernie? Ele te ameaçou?
— Ele disse algumas coisas, Christie. Imaginei se ele não invadiria em
algum momento, então Trev e eu inventamos a história sobre as câmeras de
segurança.
— Quando você esteve na loja pela última vez?
— Ontem. Você não acha que…
Christie se levantou num pulo, entregando o diário a Martha.
— Continue lendo, caso eu esteja errada.
— Querida, você vai atrás deles?
— Tenho de procurar em algum lugar, e faz sentido, se o relógio for
realmente importante para o Bernie. Talvez ele queira que o ajudem a
roubá-lo. — Ela subiu as escadas correndo. — Vou pegar minha bolsa.
— Vou pegar o carro, Christie. — George deu uma palmadinha no
ombro de Martha. — Duvido que estejam lá, mas isso deu esperança a ela.
Poderia avisar ao Trev?
— Sim, é claro. Por favor, tomem cuidado e liguem se descobrirem
algo.
Enquanto George atravessava a porta de entrada, Belinda surgiu do
corredor.
— Alguma novidade?
Christie correu escadaria abaixo e passou por Belinda.
— Ainda não.
— Espere. Onde vocês vão? Você é a noiva, não pode ir embora.
— Martha vai te explicar.
— E… ela se foi. Simples assim. — Belinda se uniu a Martha,
jogando-se ao seu lado no degrau. — Eu deveria ir atrás dela?
Martha balançou a cabeça.
— O George está com ela. Vão dar uma olhada na loja dele, mas acho
que não vão encontrar ninguém.
— Me atualize das pistas, vou me transformar numa super detetive
com você.
70- A CASA DE MARTIN

T o controle sobre as emoções até entrar no quarto


de Martin.
O terno estava esticado sobre a cama, pronto para ser usado. Havia
uma camiseta branca passada e pendurada no cantinho do armário. Ao lado
do terno, estava o celular do homem. O aparelho tocou de repente, exibindo
o rosto sorridente de Christie.
Esticou a mão para responder, mas se impediu. Ela acreditaria, por um
instante, que era Martin do outro lado da linha. Não poderia fazer isso com
ela. A mulher parecia tão feliz na foto do celular… Uma Christie diferente
da que ele deixou na Casa Palmerston, confusa e perdida em tudo aquilo.
E Charlie.
Cadê você?
Seu desaparecimento estaria conectado ao do Martin, ou seria
coincidência? Trev cerrou as mãos em punhos, engolindo o medo
indesejado, e afastando ainda mais os pés para se manter equilibrado.
— Senhor?
Respirando fundo, forçou-se a agir.
— Encontrou algo, Gareth? — Trev tinha dado uma olhada na casa,
enquanto os policiais verificaram o galpão e o estúdio.
— Nada fora do normal. Não conseguimos entrar no estúdio, mas são
basicamente janelas. Não tem onde se esconder por lá, e não há sinal de
nada, senão pinturas em cavaletes.
— O galpão parece intacto — disse Jacqui. — Pranchas nas prateleiras,
uma velha moto… tudo organizado.
— Então a moto dele está aqui… vamos nos separar e dar uma olhada
na propriedade. Eu cuido da beirada do penhasco.
Trev dirigiu-se ao portão. Do outro lado, havia duas viaturas – a dos
policiais e a dele. Tinha ido buscá-la na delegacia, junto com seu kit, apesar
de ainda estar com as roupas do casamento, exceto o casaco. Com o cinto e
o rádio, tinha condições melhores de fazer seu trabalho. Seja lá o que isso
significasse hoje.
Dali, foi até o canto mais distante da propriedade, onde a cerca dava
passagem ao penhasco. Recentemente, Martin havia mencionado que
construiria uma borda de segurança quando estivessem prontos para
começar uma família.
— Cadê você?
Chegou onde a trilha até a praia começava. A brisa da noite farfalhou a
grama, erguendo um aglomerado de jasmins do chão. Trev o recolheu.
Frescas, com filamentos compridos.
— Martin! Consegue me ouvir?
Nada.
Trev curvou as mãos ao lado da boca.
— Martin!
— Senhor, você o encontrou? — Jacqui e Gareth vieram correndo de
direções opostas.
— Olhem.
— Flores?
— Sim, policial. Flores. Jasmins recém-colhidas e deixados numa
pilha, como se Martin as tivesse colhido e largado. — Trev entrou na trilha,
e os policiais o seguiram. Na bifurcação, gesticulou para que eles fossem
para a direita, enquanto ele seguia para a esquerda.
Deu num beco sem saída cheio de arbustos na beirada do penhasco.
Mas, sob um arbusto, havia uma garrafa. Trev a pegou. Estava amassada e
vazia. Era da mesma marca da qual Bernie bebia.
Trev abriu caminho pelas plantas, tomando cuidado para não cair no
desfiladeiro. Mais garrafas, e uma corda amarrada num grande arbusto bem
na beirada. Deitou-se sobre a barriga e, por um momento, olhou para baixo.
Então, levantou-se outra vez e pegou o rádio.
71- CADÊ VOCÊ, MEU AMOR?

A uma perda de tempo. Christie e George verificaram todos


os cantos, incluindo os quartinhos nos fundos, num desalento crescente.
Reencontraram-se em frente ao relógio de pêndulo.
— Sinto muito, Christie. Trouxe você ao lugar errado.
— Tive certeza de que algo estava errado. Você não tem de se
desculpar.
— Sobre isso… — Apontou o relógio. — …eu preciso. Se eu tivesse
te contado sobre as perguntas do Bernie, poderíamos ter percebido antes
que ele é um homem perturbado.
O celular de Christie tocou, e ela o arrancou da bolsa. Então, seus
ombros caíram.
— Thomas. Alguma novidade?
— Não sobre o Martin, mas estou na casa de campo. Pensei em dar
uma olhada aqui, por precaução.
— Estou na joalheria pelo mesmo motivo.
— Alguém invadiu nossa casa.
— O quê?
— Pela janela da lavanderia. Nada sumiu, mas foi o Bernie. Tenho
certeza. Randall ficou doido assim que entramos pela porta.
— Tudo bem com você? Vai ligar para o Trev?
— Daqui a pouco. Você acha que ele estava procurando algo? E o seu
salão?
— Vou dar uma olhada lá, depois, vou até você.
Assim que Christie desligou a chamada, atualizou George e pediu que
o homem fosse até a Casa Palmerston. Assim que começou a correr pela
estrada na quase escuridão, percebeu que estava indo contra tudo o que
Martin sempre lhe dizia sobre segurança pessoal. Mas, sem ele, nada
importaria.
Destrancou a porta do salão. Vazio. Para ter certeza, correu até os
fundos, mas estava tudo fechado. A caminho da saída, viu o balcão. Com a
mão trêmula, tocou a superfície lisa de madeira. O talento artístico de
Martin era inigualável. Agora, ela sabia onde ele tinha estado durante todas
aquelas horas ontem.
— Cadê você, meu amor? — Mesmo sussurrando as palavras, lágrimas
inundaram seus olhos, e ela não mais conseguiu ignorar o medo em seu
peito. Afundou no chão e chorou.
O celular deveria estar tocando há um tempinho antes de ela ouvi-lo
acima dos soluços. Quando atendeu, era Martha.
— Christie? Você está aí, minha filha?
— …Sim.
— Ficou sabendo de algo? — De repente, a voz de Martha soou
alarmada.
— Não. Não, titia. Só estou… triste.
— Tudo bem, então. Belinda e eu encontramos algo no diário. É sobre
a chave.
— Que está perdida.
— Talvez não.
— Como assim, titia?
— Sou uma detetive muito esperta — opinou Belinda, na distância.
— Sim, ela é mesmo — continuou Martha. — Henry Temple escreveu
sobre a noite que ele foi despejado. Estava desesperado para ir ao quarto da
filha.
— Por quê?
— Querida, o quarto dela, pela descrição, foi o quarto de Dorothy na
infância. Ela amava aquelas bonecas antigas, que foram passadas de
geração em geração dentro do…
— Baú. — Christie se levantou num pulo. — Ah, como não percebi
antes? A chave é a que está no baú. Tenho de ir. Ligue para o Trev.
Com os dedos trêmulos, Christie, de alguma maneira, ligou para o
Thomas.
— Não tenho novidades, mas você poderia, por favor, dar uma olhada
nas chaves ao lado da porta dos fundos?
— O que devo procurar?
— A chave do baú.
— Isso fica do outro lado da casa. Venha, Randall, por aqui. Por que
estou indo atrás disso?
— Tenho uma teoria. Depois, você precisa ir até a Casa Palmerston
com ela.
— Eu ia de qualquer maneira. Mas… a chave não está aqui.
— Tem certeza? — Havia esperança na voz de Christie. Ela saiu do
salão.
— Meus olhos ainda não estão tão ruins. Foi por isso que ele invadiu a
casa?
— Sim. Acho que sei onde Martin e Charlotte estão. Apresse-se, mas
dirija com cuidado.
72- GUARDIÃ DOS SEGREDOS

— C T ? — Christie irrompeu pela porta de entrada no salão,


assustando Martha, Angus e Elizabeth, todos amontoados ao redor do
diário.
— Não sabemos, exatamente — disse Angus. — Não me olhe assim,
ele não está desaparecido, mas as ligações estão caindo na caixa postal.
— Bem, alguém poderia ligar pra ele de novo? Diga ao Trev que
precisamos dele aqui. — Christie correu pelo saguão.
— Onde você vai?
— Lá pra baixo, tia. Vamos, temos de ver se a porta está aberta.
— Não! Christie, você não pode fazer isso. Angus, pare. — Com a voz
trêmula, Elizabeth continuou: — Eu vou. Essa casa é minha, e é minha
responsabilidade enfrentar seja lá qual for o perigo que estiver…
— Elizabeth, querida, pare. — Angus segurou as mãos dela nas dele.
— Olhe para mim.
Ela afastou as mãos, recusando-se a olhar nos olhos do homem.
— Ninguém mais vai se machucar por minha causa.
— Não é culpa sua, o Bernie ter me empurrado. É por isso que ficou
toda quieta e distante, não é, Elizabeth? — Angus envolveu Elizabeth em
seus braços.
Ela balançou a cabeça, numa linguagem corporal defensiva.
Christie se virou.
— Ah, Elizabeth… Você não tem culpa de nada relacionado ao
comportamento terrível de Bernie Cooper! Você me culpa pelo que Derek
fez contra a cidade?
Não houve nenhuma resposta, mas Angus sorriu para Christie quando
Elizabeth relaxou em seu abraço. Ele murmurou um agradecimento.
— Pessoal, tem um casamento me esperando. Eu gostaria muito de
encontrar meu futuro marido, então…
— Desculpa, Christie. — As palavras de Elizabeth foram abafadas
pelo peito de Angus. Seus braços se enrolaram ao redor dele por um
momento.
Martha desligou o celular assim que Christie passou por ela.
— Deixei uma mensagem longa. Ele deve estar sem sinal. Você sabe
onde o Thomas está?
Christie olhou sobre o ombro.
— Ele vai chegar daqui a pouco. Por que não fica aqui e, depois, vão
juntos lá pra baixo?
— Deixe isso de lado. Vou encontrar o Martin e a Charlotte!
Correndo pela casa, Christie se viu sendo perseguida por Belinda,
John, Daphne e Sylvia, assim como Martha, Angus e Elizabeth. Sylvia disse
algo sobre Barry ter ido à praia, mas isso não fez sentido para Christie, que
continuou andando.
Depois de pegar uma lanterna na cozinha, ela desbravou os degraus até
a adega, então, seguiu ao depósito. Num primeiro momento, toda sua
esperança desapareceu, pois a porta de pedra continuava, sem dúvida,
fechada. Lágrimas subiram aos seus olhos. Christie, impacientemente,
mandou-as para longe.
— Ah… ainda está fechada. — Belinda repousou o braço ao redor dos
ombros de Christie. — Tudo bem, vamos encontrar outro caminho.
— Acho que sou a pessoa mais velha aqui, mas a única com boa visão!
Pelo amor de Deus, Christie, gire a chave! — Martha chegou à porta
quando Christie encostou na fechadura.
Ali, estava a chave do baú. Primeiro, foi a guardiã dos segredos da
família Ryan, agora, dos da Casa Palmerston.
73- DESCIDA FATAL

—A ligue para a Casa Palmerston. Diga a eles para ficarem


onde estão, e que talvez tenhamos notícias em breve. Tenho um montão de
mensagens no meu celular, então vamos atualizados. — Trev se encaixou
no equipamento de escalada.
Barry estava num barco com um de seus homens. Deram uma olhada, à
distância, ao redor da lateral do penhasco, relatando tudo a Trev. Dali, a luz
de busca deles se tornou visível quando contornaram a ponta mais distante
do desfiladeiro. A busca toda levou apenas alguns minutos com a ajuda do
motor lateral.
— Tudo pronto, senhor? — Jacqui verificou as fivelas do equipamento.
— A corda está segura. Pode ir.
— Maravilha. — Trev vestiu o capacete. — Gareth está ligando pra
Elizabeth?
— Sim. Ele vai voltar daqui a um pouquinho. Não tinha sinal aqui.
Trev tocou na arma de fogo. Agora não haveria mais espaço para
brincadeira.
— Assim que ele voltar, suba e coordene os reforços. Não importa o
que aconteça, não deixe que nenhum dos convidados do casamento desça
aqui.
— Não vou deixar, senhor. Não consigo nem imaginar o quão
estressante isso deve estar sendo pra noiva.
— Vamos resgatar o noivo. E a Charlie.
Gareth irrompeu pelos arbustos, ofegante.
— Pronto. Mas Elizabeth disse que a Christie encontrou uma chave.
Algo relacionado a uma porta de pedra.
— Jacqui, entre em contato com alguma das viaturas que estão vindo
de Green Bay. Mande seguirem em frente e investigarem a chave que a
Christie achou. Certo, pode ir. Gareth, me dê as luvas e segure a corda.
Enquanto os policiais seguiam suas ordens, Trev foi à beirada do
penhasco, sentindo a corda tensionar para aguentar seu peso. Seu rádio
chiou, e ele apertou o botão.
— Barry?
— Sim. Trev, estamos vendo a entrada da caverna, e há algum tipo de
movimento lá. Não quero assustar ninguém, então vou dar uma olhada de
longe.
— Então há pessoas lá?
— Duas. Ou talvez três. Estamos longe demais. Estou vendo uma
lamparina, ou algo assim, mas não tenho certeza.
— Obrigado. Vou descer agora. Lenta e cuidadosamente.
BANG!
O som atravessou o ar, ecoando pela água.
— Senhor… isso foi…
O pior dos sons. Temido por policiais por toda parte.
— Aguente firme, policial. Foi um tiro. — Trev se lançou da beirada.
74- TÚNEL PARA O MAR

A pedra se abriu. Christie ergueu a lanterna. Atrás dela, Belinda e


Martha – e, agora, Thomas – bisbilhotaram a escuridão.
— É um túnel! — Christie atravessou a porta, e Thomas se juntou a
ela. — Olhe essas pinturas, e caixas. E garrafas.
— Christie? — Elizabeth enfiou a cabeça na porta. — Ah, minha
nossa. Um túnel.
— Sim, mas você precisa voltar. Vamos até onde for possível. Tudo
bem, Thomas?
— Espere, querida. Um policial simpático ligou para avisar que o Trev
está indo até a caverna pelo penhasco.
Christie se virou.
— Perto da casa do Martin? É perigoso demais.
— Tenho certeza de que ele sabe o que está fazendo. De qualquer
maneira, queria nos avisar de que talvez tenhamos notícias em breve.
Mandou ficarmos aqui em cima.
— Não posso. Todas essas coisas… — Ela direcionou a luz para as
caixas. — …são velhas demais. Olhe para as pinturas. Esse não é o Henry
Temple? Nada disso veio parar aqui sem ajuda.
— Você tem razão. Estou vendo algumas marcas no chão, parece que
tudo foi arrastado. Alguém moveu esses objetos recentemente. — Thomas
tinha a própria lanterna. — Está sentindo o cheiro do mar?
Agora que ele havia mencionado isso, Christie reconheceu o aroma
salgado sob o cheiro úmido e frio do ar estagnado e cheio de poeira.
— Você acha que esse túnel acaba na caverna?
— Só temos um jeito de descobrir. — Thomas voltou pela porta e
conversou com Martha. Ela o beijou, então, Thomas voltou. — Vamos
resgatar o noivo desaparecido?
— Querem ajuda? — Belinda enfiou a cabeça pela porta. — Posso ir
na frente.
— Obrigada, mas preciso de você aqui. Por favor, fique de olho em
todo mundo e diga a Daphne para não sair da cozinha, porque ela vai ter
trabalho em breve.
— Cuidado. Você vai ser minha prima, então preciso que volte num
pedaço só. Os outros também.
Christie lançou um beijo para Belinda, então, segurou a mão de
Thomas.
— Pronto?
Ele apertou a mão dela em resposta, assentindo. Christie encarou seu
rosto determinado, com preocupação enrugando a pele ao redor dos seus
olhos.
— Vamos encontrá-los.
Por um tempinho, caminharam um ao lado do outro. Os passos eram o
único som, até entrarem numa curva extrema. Então, viram o oceano. Havia
ondas acertando a rocha ao longe. Pararam e trocaram um olhar.
— Como ninguém sabia da existência desse lugar? — perguntou
Christie.
— Havia rumores. Quando eu era um menino, George, eu e alguns dos
outros garotos escalávamos um tantinho a lateral do penhasco. Por isso
mandei o Martin, quando ele ainda era criança, aprender a escalar do jeito
certo, porque seu noivo era tão horrível quanto eu, nisso. Curioso. Sempre
tentou quebrar barreiras… Enfim, George e eu quase chegamos à caverna
uma vez, mas o terreno começou a despedaçar, e as ondas nos assustaram.
Há pedras lá embaixo, saindo d’água. Subimos de volta e nunca mais
tentamos.
— Mas o Martin sabe escalar.
— Como uma cabra da montanha. Ele é forte, rápido e sabe encontrar
os apoios seguros. Por quê?
— Quando a vi pela última vez, Charlotte estava na cozinha. Talvez o
Bernie tenha pensado que a cozinha estivesse vazia…
— E deu de cara com ela? Arrastou-a por esse túnel até a caverna?
Chegaram noutra curva e pararam. Thomas estava ofegante. O túnel
era inclinado ali, e continuar de pé vinha se tornando um esforço constante.
— Descanse. Vou continuar.
— Me dê um segundo. — Ele forçou a respiração a desacelerar.
— Talvez Charlotte tenha gritado, e Martin a escutou.
— Da casa?
— Estou sendo tola, só queria…
Thomas deu uma palmadinha no braço dela.
— Eu também. Vamos.
Christie guiou o caminho, enquanto o túnel não apenas se estreitava,
mas também perdia altura. As ondas soavam mais altas, e havia um
pouquinho mais de luz. Mas o sol já deveria ter se posto, então de onde
aquela luz estava vindo? Christie escorregou, e Thomas a segurou.
— Não faça isso!
A voz de Martin os fez congelar no lugar, e o som ecoou pelo túnel.
BANG!
Um grito. Charlotte.
Então, silêncio.
Christie correu sem ver aonde estava indo, tropeçando e cambaleando
mais de uma vez. Derrubou a lanterna assim que o tiro foi disparado.
Thomas estava um pouquinho atrás. A luz da lanterna brilhou nas laterais,
no teto e no chão. O senhor deve ter chamado seu nome, mas Christie não
parou.
Martin.
De repente, tudo ficou em silêncio. Talvez as ondas tivessem se
aquietado para lamentar.
— Martin! — soluçou Christie, desesperada em meio a um grito de
quebrar o coração, pois não mais conseguiu se conter.
Ela deslizou pela lateral do túnel, e seus pés perderam a tração. A dor
se espalhou pelo corpo, enquanto a coxa era arranhada pela pedra. Sobre as
mãos e os joelhos, perdeu o senso de direção.
A luz envolveu Christie. Thomas estava ali, com a mão estendida, e os
olhos desesperados.
De alguma maneira, ela se levantou.
Agora, Thomas estava na dianteira, e ela agarrou a parte de trás da
camiseta dele. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. O cabelo estava solto e
grudado no rosto.
Com ajuda da luz estreita da lanterna, viraram numa terceira curva.
O mar estava logo em frente. Uma caverna aberta. O céu não parecia
tão escuro, pois faixas rosadas e douradas sugeriam que ainda estava de
tarde.
Thomas parou. Christie se chocou nele, então apoiou a cabeça contra
suas costas fortes, com o coração partido.
Ela tinha visto.
Na entrada da caverna, contornado pelo pôr do sol, havia um homem
deitado de lado. Charlotte havia se ajoelhado ao seu lado.
Os joelhos de Christie cederam, e ela caiu.
Sem qualquer aviso, Trev apareceu na entrada da caverna, preso numa
corda.
Thomas se agachou e tocou no rosto dela.
— Acabou.
Por que você está sorrindo?
Agora, seus olhos não conseguiam mais enxergar. Havia apenas
imagens borradas. Charlotte a abraçou.
— Ei, tudo bem?
Ela não estava bem.
Como poderia estar bem?
O calor envolveu Christie. Braços fortes, reconfortantes e calorosos a
seguraram, ergueram-na e a carregaram até a entrada. Gentilmente, foi
aconchegada num colo familiar. A brisa do mar ergueu o cabelo da testa, e
ela esfregou os olhos.
— Querida, a Belinda vai ter de refazer sua maquiagem. — Martin
pressionou-a contra o peito, e seu coração batia. Ele estava vivo.
75- UMA CIDADE CHEIA DE HISTÓRIAS DE AMOR

— N do que você fez para estragar meu trabalho


maravilhoso…, mas, pelo menos, sei consertar as coisas. — Belinda jogou
os braços ao redor de Christie. — Até mesmo nesse roupão, você continua
fantástica. Imagine quão deslumbrante vai ficar no vestido de noiva! Desta
vez, você não vai tirá-lo até depois da cerimônia.
— Sim, senhora. — Christie gargalhou, talvez por conta da garrafa
meio vazia de champagne. Ou, possivelmente, como um efeito dos
acontecimentos de mais cedo. De qualquer maneira, queria que Belinda se
apressasse e a deixasse apresentável, para que pudesse ir se casar com
Martin.
— Beba o resto do champagne. Estou surpresa por ainda estar gelado.
O Lance sabe muito bem o que está fazendo. Não chega aos níveis da
mamãe, mas também não é ruim. Agora, já que você está numa posição
vulnerável, terei de me aproveitar e cobrir suas pálpebras com glitter.
— Vá em frente.
Belinda maquiou o rosto de Christie até ambas começarem a tossir.
— Tudo bem, acho que isso vai encobrir suas lágrimas. Quanto você
chorou?
— Muito. — Charlotte chegou com a própria taça de champagne. —
Seu homem nunca esteve em perigo. Martin é muitíssimo corajoso e
confiante.
Christie segurou a mão de Charlotte.
— Estou tão feliz por você estar segura.
— Bernie tem alguns problemas. Quero dizer, uma pessoa inteligente
não recarrega uma arma que tem mais de cem anos e atira contra um barco.
Quando a situação saiu do controle, ele teve sorte de a arma tê-lo derrubado
no chão, não do penhasco.
— E Martin estava logo ao lado para prendê-lo. Feche os olhos, por
favor. — Belinda tinha se armado com uma paleta de sombras.
— Vamos logo com isso, preciso me casar. Que horas são?
— Ainda não é meia-noite, não se preocupe. — Charlotte riu. — Seus
convidados estão sendo incríveis. Acho que ouvi um murmurinho sobre um
filme do que aconteceu hoje… aparentemente, não temos apenas produtores
e diretores na plateia, mas roteiristas.
Christie resmungou.
— Vou pedir pro Ashley conversar com eles.
— Mas é ele quem está por trás de tudo — anunciou Belinda. — Certo,
isso vai ter que dar pro gasto. Não deixe ninguém me creditar por essa
maquiagem. Uma profissional tem seus limites…
Quando Christie abriu os olhos, deu de cara com o espelho. Não havia
sinal algum das lágrimas que havia derramado mais cedo, antes de Martin a
abraçar na caverna, nem marca alguma da preocupação que achou que
nunca mais a deixaria. Seus olhos brilhavam, e ela estava animada. Mas seu
cabelo, agora, tinha sido solto e ondulado ao redor de uma coroa de flores
que, de alguma maneira, agora incluía feixes frescos de jasmim.
— Eu te adoro, Belinda. Muito obrigada pela maquiagem, minha
priminha querida. — Ela beijou a bochecha de Belinda e esticou a mão para
a taça, mas Belinda a pegou primeiro.
— Agora não. Seu batom está perfeito, e… honestamente? Cansei de
consertar sua maquiagem. Seja uma boa noiva, fique no vestido, com seu
cabelo e maquiagem deslumbrantes, e se case.
— Você não é minha madrinha? Não deveria avisar às pessoas de que
estou prestes a descer? — Christie deu um grande sorriso ao passo que
Belinda saiu correndo do cômodo. Então, voltou-se para Charlotte e
segurou suas duas mãos. — Obrigada.
— Pelo quê? Se eu não tivesse gritado do penhasco, você já seria a Sra.
Blake.
— E você estaria desaparecida.
Charlotte respirou fundo.
— Trev teria me encontrado em algum momento.
— Pensei que ele fosse chorar quando te encontrou. Charlotte, ele…
— Não. Não diga nada, por favor.
— Mas você sabe que é verdade. Eu vejo nos seus olhos.
— Você sabia que a noite de hoje é todinha sua e do Martin? Vou
dançar com o Trevor, quem sabe… Talvez o amor incrível dessa cidade,
entre você e o Martin, Thomas e Martha, John e Daphne… e, se eu não
estiver errada, entre Angus e Elizabeth…
— Você não está errada.
— E Barry e Sylvia?
— Parece que Rivers End está cheia de histórias de amor.
Charlotte entregou a taça de champagne a Christie.
— Não vou contar pra ela.
— Nem eu. Mas, em algum momento, vai ter de conversar com o Trev.
Ele merece.
— Vamos, filha. Deixe-me te levar ao seu noivo. — Da porta, Angus
estendeu a mão.
76- SEU ÚNICO CASAMENTO

—O uma teia mágica ao redor daqueles que toca, intensificando


os sentidos e ressuscitando sonhos há muito esquecidos.
Sob o céu estrelado, entre amigos e parentes mais do que pacientes,
Christie e Martin se encaravam sob o arco florido, com as mãos dadas.
— Une duas pessoas – dois indivíduos com pensamentos e atitudes
independentes…
O lago reluzia, sua superfície refletindo a lua. Os convidados mal se
moviam, e muitos deles seguravam a mão da pessoa ao seu lado.
— …dando a eles o desejo e a coragem de compartilharem suas vidas.
— Daphne fez uma pausa, para efeito.
Momentos como esse são muitíssimo preciosos.
— Aprendendo um sobre o outro e sobre si mesmos. Desenvolvendo
confiança e compreensão.
Martin sussurrou:
— Eu confio em você.
Contra sua vontade, lágrimas de felicidade inundaram os olhos de
Christie. Ela murmurou:
— Eu te compreendo.
Quando Martin ergueu uma sobrancelha, a felicidade dominou
Christie, e ela riu.
Daphne os encarou, cheia de seriedade. Christie segurou as mãos de
Martin com ainda mais força.
— Bem… O encantamento do amor pode ser mantido vivo e forte ao
cuidarem um do outro nos momentos difíceis e tristes.
E nos sequestros e nos naufrágios de iates...
Deveria ter sido uma reação aos acontecimentos do dia, mas Christie
quis rir, cantar e dançar ao redor do lago. Tinha certeza de que Martin não
aprovaria isso, então se impediu. Esse seria, afinal de contas, seu único
casamento.
Daphne continuou, se se dar conta da necessidade quase forte demais
que Christie sentiu de pegar os votos, que ela mesma havia escrito, e
transformá-los numa canção romântica. Martin compreendia. Seus olhos a
estabilizaram, mas continuavam cheios de humor. Ele realmente a
compreendia. Amava-a. Mas nunca mais seria permitido que algum deles
ficasse em perigo.
— Amar é o desafio final, constante e sempre em mudança. Uma
parceria maravilhosa que oferece felicidade quando simplesmente estar
junto é o bastante. Um sorriso compartilhado significa mais do que as
respostas do universo.
O universo, finalmente, tinha se alinhado àquela noite incrível. Acima,
o céu aveludado cintilava com as estrelas de diamante, e quando Christie
olhou para cima, reconheceu Vela e Carina. Uma brisa suave ondulou o
lago. De repente, a mulher soube que seus pais sempre a protegeriam. Não
haveria mais medo nem insegurança.
— Ser celebrado e respeitado, sabendo que o riso é o presente mais
puro de todos… Martin e Christie, esse é o amor que o casamento celebra.
Randall trotou plataforma acima e se sentou entre Christie e Martin,
com o rabinho balançando. Olhou de um para o outro. Houve risadinhas
abafadas entre os convidados, então, a boca de Daphne tremeu e, de
repente, todos estavam rindo.
77- UM DIA, VAI QUERER SUA SOMBRA

AC P estava em polvorosa, cheia de luzes, música e riso. Do


lado de fora, a trilha à lagoa estava coberta de confete e iluminada apenas
pelos pisca-piscas. Trev e Charlotte caminhavam ao lado, sem se tocar, nem
falar. Encontraram um banquinho contra a velha árvore e se sentaram.
Trev estendeu a mão e, segundos depois, Charlotte repousou a sua na
dele. O calor irradiou pelo homem – um gostinho do que poderia surgir.
Mas a noite de hoje pertencia a Christie e Martin Blake. Sem sombra de
dúvidas, eram o casal mais feliz que ele conhecia.
— Os dois merecem.
— Os recém-casados? — Charlotte assentiu. — Estão aproveitando
cada segundo.
— Tive minhas dúvidas quanto ao casamento ainda acontecer. Quando
ouvi o tiro…
— Todo mundo ficou assustado. Bernie estava acenando a arma há um
tempão. Quando viu o barco, antes que Martin pudesse alcançá-lo, tentou
mirar e atirou.
— Os socorristas disseram que ele vai ficar bem, apesar de a mão estar
um caco.
Charlotte encarou a lagoa. Trev a observou.
O que você está pensando?
Por fim, ela olhou para ele, com uma expressão séria.
— Não posso fazer isso.
— Fazer o quê?
Charlotte apertou a mão dele.
Decepção substituiu a fagulha anterior de esperança.
— Charlie, pensei que a tivesse perdido…
— Isso nunca vai acontecer. Mas tenho coisas com que lidar…
Problemas familiares.
— Você vai embora.
— Eu… Sim. Sua mãe acha que vai ser perfeito se eu trabalhar com ela
por um tempinho e ver o que acontece. Eu amo livros.
— Rivers End não tem uma livraria… E se abríssemos uma?
Plante a semente, deixe-a crescer e se transformar naquilo que é.
Cuide dela, pois, um dia, vai querer sua sombra e proteção. Ele havia
plantado a semente da oportunidade, regado e cuidado dela. Agora, queria
desfazer isso tudo.
— Ótima ideia, mas, Trev… Sua mãe precisa de ajuda. Eu posso
ajudá-la.
— Vou ter de visitá-la com mais frequência.
O sorriso de Charlie irrompeu pela dor no coração de Trev, e ela tocou
seu rosto.
— Acho que você deveria. — Ela se inclinou contra ele e beijou seus
lábios, apenas um roçar.
Ele a trouxe para perto, e Charlotte repousou a cabeça em seu ombro.
Ela não está dizendo adeus.
Trev era paciente, e ela valia a pena.
78- FINALMENTE EM CASA

C no topo da escadaria, balançando-se lentamente ao


ritmo da música enquanto observava os convidados dançarem e
conversarem. Tinha abandonado os sapatos na pista de dança. A exaustão
em seu corpo ameaçava reaparecer, e sua coxa doía, onde havia acertado as
rochas no túnel. Mas seu coração estava pleno, e se lembraria das últimas
horas por toda sua vida.
Martha e Thomas dançavam devagarinho, com os olhos um no outro.
Não faz muito tempo que se casaram, numa época quando Christie sabia
que amava Martin, mas tinha certeza de que ele não sentia o mesmo por ela.
— Acho que você vai precisar disso. — Martin sentou-se no degrau, ao
lado da esposa, oferecendo-lhe um lencinho branco.
Ela olhou o tecido, com suspeita.
— Por quê?
— Sempre uma pergunta… porque você chora muito. Porque mandei
fazer um punhado desses. — Ele desdobrou o paninho e revelou as iniciais
C. B. num cantinho. — Está vendo?
— Ah, muito obrigada! Eu precisava disso mais cedo.
— Nada de ruim aconteceu comigo, querida.
— Sei… Você sempre desaparece logo antes do próprio casamento,
desce por um penhasco, com a ajuda de uma corda apenas e se recusa a
fazer o que um homem armado te ordena?
— Não faço nada que me ordenam.
— Agora, você é um homem casado.
— E? — Martin deslizou a mão pelas costas de Christie, enviando um
arrepio delicioso por todo o corpo dela – da cabeça aos pés.
— Eu te amo.
— Ótima resposta. — Ele a beijou de levinho nos lábios. — Quer
dançar mais um pouco?
— E depois?
— Depois, Sra. Blake, planejo te levar pra casa. Para a nossa casa.
A promessa nos olhos dele fez os de Christie lacrimejarem. Ela sorriu
quando Martin, gentilmente, usou o lencinho para enxugá-los.
Randall subiu os degraus e ficou parado, encarando-os, com a boca
aberta no que parecia ser um sorriso canino.
— Oi, cachorrinho. — Martin esticou a mão para acariciá-lo, mas
Randall se deitou no degrau logo abaixo de Christie. — Eu sabia que isso ia
acontecer.
— Ele ainda te ama.
— Infelizmente, sou o terceiro na lista de pessoas favoritas dele. Pelo
menos, me casei com a mulher que está em primeiro.
— Ah, então foi por isso que se casou comigo?
— Sim.
Christie subiu no colo de Martin.
— Só por isso?
Seus braços a envolveram.
— Você tem um cheirinho gostoso. Muito gostoso. E você cozinha
bem.
— Você cozinha melhor. Falando nisso, você deveria cozinhar sempre.
— Então você vai ter de plantar os ingredientes na estufa chique que o
John e a Daphne nos deram.
— Então… Eu cheiro bem, sei plantar ingredientes e o cachorro me
ama?
— Tem gente que se casa por muito menos… Ai!
— Desculpa, meu cotovelo acidentalmente acertou sua costela?
— Você costumava ser uma boa pessoa.
— Estamos casados. Agora, você vai conhecer meu verdadeiro eu. —
Ela riu.
Martin ergueu o queixo dela e o segurou. Os olhos escuros dele
refletiam o amor de Christie.
— Conheço seu verdadeiro eu desde a primeira vez que nos vimos,
Christabel Blake. Eu te amo hoje e para sempre. Acho que é melhor
deixarmos a dança de lado e irmos pra casa.
— Estou em casa, Martin. Onde quer que você e Randall estejam
comigo, estarei em casa.
O coração dela era dele. Para sempre.
A CERIMÔNIA DE CASAMENTO DE CHRISTIE E MARTIN
O amor tece uma teia mágica ao redor daqueles que toca,
Intensificando os sentidos e ressuscitando sonhos há muito esquecidos.
Une duas pessoas –
Dois indivíduos com pensamentos e atitudes independentes,
Dando a eles o desejo e a coragem de compartilharem suas vidas,
Aprendendo um sobre o outro e sobre si mesmos.
Desenvolvendo confiança e compreensão.

O encantamento do amor pode ser mantido vivo e forte


Ao cuidarem um do outro nos momentos difíceis e tristes.
Oferecendo e aceitando compaixão.
Dando o primeiro passo, quando isso for um desafio.
Estar pronto para ouvir e conversar sem reservas ou julgamentos.
Lembrando, com alegria e humor, os primeiros dias do romance.

Amar é o desafio final, constante e sempre em mudança.


Uma parceria maravilhosa que oferece felicidade
Quando simplesmente estar junto é o bastante.
Um sorriso compartilhado significa mais do que as respostas do
universo.
Ser celebrado e respeitado
Sabendo que o riso é o presente mais puro de todos.
Esse é o amor que o casamento celebra.

Phillipa Nefri Clark 1990


Próximo Lançamento da Série

D V

Somente o próprio tempo apagará nosso amor...


Na beira do Grande Oceano, um antigo píer oferece um refúgio para
aqueles que buscam consolo. Um lugar à beira-mar para pensar. Planejar.
Sonhar.
Como filha da família mais rica da região, Martha Ryan tem tudo o que
uma garota poderia pedir. O dinheiro não significa nada porque sua alma
anseia por aventura, amor e uma família própria.
Thomas Blake é um artista sobrecarregado pelo dever. Previsto a seguir
seu pai no emprego pela família Ryan como chefe de estação, ele anseia
pela liberdade de pintar.
Um encontro fortuito no cais, ao amanhecer, muda a vida de ambos.
Mas será que as expectativas e preconceitos de suas famílias destruirão seu
futuro?
Apaixone-se por Thomas e Martha em Domando o Vento, prequel de
Uma Questão de Tempo. Perfeito para ser um independente com seu
próprio felizes para sempre, ou seguir as vidas e os amores dos moradores
de Rivers End em todos os seis livros.
Série Rivers End

L 1

Phillippa Nefri Clark


9786580754076
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Thomas e Martha acreditavam que seu amor era invencível até que uma
série devastadora de eventos os separou. Para seu encontro final, eles
prometeram se reunir no cais onde se conheceram.
Cinquenta anos depois, Christie Ryan herda uma casa de campo em
ruínas em uma cidade litorânea da qual nunca ouviu falar. Com a descoberta
de um mistério comovente, se torna obcecada para desvendar velhos
segredos de família.
O artista recluso Martin Blake cresceu com seu avô depois de perder os
pais. A chegada em sua cidade de uma garota da metrópole com uma
conexão para o passado desafia tudo o que ele sabe sobre si mesmo.
Em lados opostos de um mistério, dois estranhos têm algo em comum e
correm o risco de ver seus mundos seguros destruídos. Cinquenta anos de
segredos estão prestes a ruir.
Uma história fascinante de amor perdido, coragem e redenção, e de
como as consequências da manipulação de uma mulher se espalha por três
gerações.
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L 2

Phillippa Nefri Clark


9786599110610
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O romance cresce ...


... e o mistério se aprofunda.
O amor sobreviverá à tempestade no horizonte?

Foram os laços familiares que levaram Christie Ryan a Rivers End, a


pequena cidade litorânea da costa australiana. Mas é seu coração que está
dizendo para ela ficar.

Tendo arrumado o chalé de sua avó, Christie está pronta para deixar o
passado para trás e dar uma chance para um futuro com o artista local,
Martin. Quando Martin é abordado por uma desconhecida para um retrato,
ele aceita, ansioso para construir um novo lar para sua vida com Christie.

Martin não conhece a infeliz cadeia de eventos que essa encomenda


colocará em movimento. Nem das forças sombrias da antiga vida de
Christie, que ainda não estão preparadas para deixá-la ir...

Juntos Christie e Martin terão que resistir à tempestade para descobrir


quem está por trás dos esforços para arruinar sua felicidade. E ao fazer isso,
aprender que para que o amor triunfe, às vezes é preciso ter fé para afundar
ou nadar...

Você vai adorar este segundo livro da série Rivers End, por causa das
reviravoltas, do suspense que aumenta a pulsação e do calor que derrete o
coração.

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Sobre a autora

Phillipa mora pertinho de uma linda cidade no


condado de Victoria, na Austrália. Ela também
mora nos diversos mundos de sua imaginação
e nas pilhas de histórias ao lado de seu laptop.
Além da família, os grandes amores de Phillipa
incluem música, leitura, cultivar vegetais... e
animais de todos os tipos.
Ela ama conversar com os leitores e envia
mensalmente um e-mail com notícias, concursos, recomendações e diversas
coisinhas interessantes.

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