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Copyright © 2007 by Paulo Franchetti Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 £ proibida a reproducao total ou parcial sem autorizagao, por escrito, da editora. Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Franchetti, Paulo Estudos de literatura brasileira e portuguesa / Paulo Franchetti. ~ Cotia, SP: Atelié Editorial, 2007. Bibliografia. ISBN: 978-85-7480-353-1 1. Literatura brasileira - Estudo e ensino 2, Literatura portuguesa ~ Estudo e ensino I. Titulo 07-3655 CDD-869.907 ~869.8707 Indices para catdlogo sistematico: 1, Literatura brasileira: Estudo e ensino 869.907 2, Literatura portuguesa: Estudo e ensino 869.8707 Direitos reservados a AvELit EprToriaL. Estrada da Aldeia de Carapicuiba, 897 6709-300 ~ Granja Viana - Cotia - $P Telefax: (11) 4612-9666 wwwatelie.com.br ateliceditorial@terra,com.br Printed in Brazil 2007 Foi feito depésito legal Scanned with CamScanner 4 O INDIANISMO ROMANTICO REVISITADO: IRACEMA OU A POETICA DA ETIMOLOGIA Jracema € um romance dentro de uma carta, acompanhado de profu- sas notas de autor. Essa constituicao singular e as varias partes do livro nao receberam até agora, creio, a devida atencao critica. Tudo se passa como se 0 que de fato importasse fosse a novela, ¢ o texto restante, quase da mesma extensio, fosse uma espécie de excrescéncia, Silviano Santiago, por exemplo, escreve que, para Alencar, “o texto nao pode circular sem a béncao do pai” e que ele “é o escritor brasileiro onde mais claro fica o desejo de sempre cercar, cercear o caminho livre do texto”. B esse também o ponto de vista de Luis Filipe Ribeiro, para 0 qual, com a carta e as. notas, “a incapacidade civil do texto de Iracema estara para sempre decretada’. Penso o contrario: nao s6 que a carta faz parte do livro, mas ainda que a novela sé ganha pleno sentido histérico e literario, quando lida em conjunto com acarta e com a seco de notas que a segue imediatamente e que também. éenvolvida pela carta ao dr. Jaguaribe. Quanto ao sentido histérico, é evidente o valor da carta: é ela que apre- senta ao leitor o romance como seqiiéncia da critica de seu autor ao poema A Confederagao dos Tamoios (1856), de Gongalves de Magalhies, e como Tesposta ao repto de compor uma obra nacional que nao faltasse a verossimi- Thanga na expressao lingitistica das personagens indias. No que toca a este tiltimo ponto, a carta é um manifesto, no qual se em Palavras como estas: Este livro é pois um ensaio ou antes mostra. Vera realizadas nele minhas idéias @ respeito da literatura nacional e acharé ai poesia inteiramente brasileira, haurida Scanned with CamScanner A ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUES: 76 ia dos nomes das diversas localidades e certos i rai ds serge AS das palavras sio de cunho original. modos de dizer tirados da composiao Sem a carta, a novela se deixa ler mais.facilmente como hist6ria sen. timental e como alegoria, que também 6, sendo Tracemaa América * seus amores a imagem sentimental e idealizada do que teria sido ou deveria ter sido a colonizagao do Brasil, do ponto de vista de um brasileiro fo século XIX, interessado em construir, nos moldes do tempo, uma genealogia digna para o seu pais. A carta eas notas dificultam essa leitura preferencial, trazendo para a frente do palco o cardter radical e mesmo violento da invengao lingiiistica de Alencar. & também a carta que destaca um aspecto muito particular da constru- 40 do “estilo indio”: “Todo este improbo trabalho que as vezes custava uma sé palavra me seria levado & conta? Saberiam que esse escrépulo douro fino tinha sido desentranhado da profunda camada, onde dorme uma raca ex- tinta” A operacio 6 de caréter arqueolégico, pois para Alencar a extingao dos Indios era um fato consumado jé na sua época. No que nio estava sozinho. © principe da poesia romantica brasileira, no seu ensaio pioneiro de 1836, na revista Niteréi, também falava dos indios como um povo “desaparecido da face da terra’. Apesar da realidade quotidiana do pais, com tribos por contatar e muitas j4 aculturadas ou em Processo de acultura¢ao, Alencar e Gongalves de Magalhaes falam dos indios como extintos habitantes de um passado muito distante. relaca a my a indlgera, nat enn Be & Weria propor como continaldee da tradi¢éo rade colgniaa ta Tecuperasko, a sua reinvencto no quadro da cultu- cae quant cot lato da cultura européia. Culture inde, tanto para Alen a& quanto para Magalhaes, na qual o indian; ees ; edlemento de especficdade, “80 faziao papel de diferencial Ou seja, Scanned with CamScanner O INDIANISMO ROMANTICO REVISITADO... 7 nacional e o indigena. Para ele, como Para os demais indianistas, engajados no projeto de construcao do imaginério brasileiro, o nacional resilta da imi- tagéo do selvagem, da apropriacdo da sua mitologia, vocabulério e formas de dizer pelo homem civilizado, por meio da imaginacao arqueolégica e da pesquisa lingiifstica, O que € 0 mesmo que dizer que o nacionalismo indianista em literatura - eo de Alencar, em especial - é uma espécie de exotismo temporal, de exo- tismo de assunto local, exotismo de tema autéctone. HA um outro aspecto da maneira como Alencar concebia sua ativi- dade de literato brasileiro que mereceria maior atencio. Esse aspecto, que esta na carta ao dr. Jaguaribe, comparece ainda mais claramente num outro texto agregado a um romance. Trata-se do famoso prefacio a Sonhos d’Ouro, no qual Alencar traga o desenho da sua obra e, neste, o lugar que cabia a Tracema: A literatura nacional, que outra coisa nao é sendo a alma da patria, que trans- migrou para este solo virgem com uma raca ilustre, que aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que Ihe serviu de regagos e cada dia se enriquece ao contato de ‘outros povos e ao influxo da civilizacio? periodo orginico dessa literatura conta jé trés fases. A primitiva, que se pode chamar de aborigine, séo as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; so as tradic6es que embalaram a infincia do povo, ¢ ele escutava como o filho a quem a mie acalenta no berco com as canges da pétria, que abandonou. Tracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade ¢ enlevo, para aqueles que veneram na terra da patria a mae fecunda — alma mater, e néo enxergam nela apenas o chao onde pisam. segundo perfodo € historico: representa 0 cons6rcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribufa nos efluivios de sua nature- za virgem e nas reverberacées de um solo espléndido. [...] A cles pertencem O Guarani e As Minas de Prata A terceira fase, a infancia da nossa literatura, comecada com a independéncia po- litica, ainda nao terminou [...' Iracema pertence a fase aborigine da literatura do Brasil, a sua fase pri- mitiva. O seu autor, porém, se situa na terceira fase, a iniciada com a Inde- Pendéncia, O trecho é espantoso, e 0 que me parece nao ter sido devidamente 1. “Bencio Paterna’, em Sonhos d'Ouro, vol. 1 de Ficgo Completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1965, P495. Scanned with CamScanner 78 ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA ressaltado é 0 fato de Alencar nao dizer que Iracema é uma obra sobre a épo- cade contato do colonizador com o aborigine, mas, sim, que ¢ uma obra que Pertence a0 periodo genesfaco da vida brasileira. Tal formulacao 6 escapa ap absurdo se se admite que a literatura é um ato radical de tradu¢ao do passado No presente, por meio da recriagio do modo primitivo de estar no a e de nele se expressar. Que a arte tem a capacidade de operar uma Tessurreicao do que jé foi e estava morto e soterrado pelo tempo. Oindianismo de Alencar é, portanto, um projeto arqueoldgico, de apro- priagdo completa do passado, com especial atengo para aquilo que, nele, permitiria dar o trago distintivo da civilizagio brasileira: a visio de mundo indigena e a histéria da sua destruicéo e assimilagao da sua cultura pelo ho- mem branco. Assimilacao, diga-se, tiltimo, porém decisivo, As fontes de Alencar, tanto em inspiracao como em método, sao 0s li- ros de Fenimore Cooper, ¢, principalmente, os de Chateaubriand sobre os indios da América do Norte, de onde vém ao livro brasileiro 0 tom de poema m prosa e muitas imagens, expressdes e inclusive um deus. Mas ha um as- ém do modelo francés, e que a carta devidamente destaca como o principal aspecto do livro, Esse aspecto é a construca da quala obra de Alencar é um momento ‘a Europa para fazé-lo “falar como sel- vagem na pintura dos costumes, ieee E completava: “Sem isso, teri Ja Alencar deu a solucéo oposta ao blema: icalizaca Sussuges ae Problema: optou pela radicalizacao «Segundo se lé na carta, dianista, Acreditando, porém, ue isso inviabilizaria a escrit i laem Verso, Brifos |...) e de notas que nin, iguém 12”, Scanned with CamScanner O INDIANISMO ROMANTICO REVISITAD: 79 e “as imagens poéticas do selvagem’ Além disso, a prosa sofreria melhor as notas necessarias 4 compreensio da obra e do estilo. Iracema tem 128 notas, que se dividem em d desdobram as palavras, de modo a exp que explicam 0s “modos de dizer” Dentre os varios tra¢os do estilo indio ~ isto é, os “modos de dizer” - a comparagao é o mais forte. Tanto a comparacio implicita, por meio de jus- taposicéo € equiparacdo de duas frases (como nesta fala de Iracema: “Que vale um guerreiro 6 contra mil guerreiros? Valente e forte é 0 tamandué, que mordem os gatos selvagens por serem muitos eo acabam”), quanto a comparacao explicita, por meio de um “como” ou um “qual” Nao € 0 caso de tratar aqui das comparacées, fundadas sempre num ele- mento da natureza americana. Cavalcanti Proenga, a esse respeito, escreveu jéum belo ensaio. Mas vale a pena destacar que as comparacées, 08 epitetos as metéforas de Iracema apresentam muito freqiientemente uma raiz etimo- l6gica, que o autor se encarrega de expor, no interior da seqiiéncia narrativa ou nas notas que a acompanham. lois tipos principais: as que or 0 sentido dos nomes indigenas, e as O melhor exemplo do procedimento, porque permite ver seu completo alcance, talvez seja este: “- O dia vai ficar triste, disse Caubi. A sombra cami- nha para a noite. E tempo de partir”. Em nota a essa passagem, Alencar expée a base etimoldgica da ex- pressio: O dia vai ficar triste - Os tupis chamavam a tarde caruca, segundo 0 dicionério. Segundo Lery, che caruc acy significa “estou triste’. Qual destes era o sentido figurado da palavra? Tiraram a imagem da tristeza, da sombra da tarde, ou imagem do crepis- culo, do turvamento do espirito? Estabelecida a base etimolégica, a metéfora pode entao ser explorada ao maximo. Num primeiro momento, vé-se apenas, na boca de Iracema, a confirma- Ao da metéfora de acordo com o sentido etimolégico, mas ja acrescida de desenvolvimento: “— A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vao ser longas tardes sem manhi, até que venha para ela a grande noite’. : Na seqiiéncia, a metafora reaparece, ja “naturalizada’, porque incorpora- daao discurso do narrador: “Quando as sombras da tarde entristeciam o dia, © cristéo parou no meio da mata’. ahah Por fim, fixada a metéfora, ela pode ser levada 4s ultimas conseqiiéncias: Scanned with CamScanner $0 ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA © sol brilhava sempre sobre as praias do mar, ¢ as areias refletiam dentes; mas nem a luz que vinha do céu, nem a luz que refletia da terra, a sombra nalma do cristéo. Cada vez 0 crepuisculo era maior em sua xxv). 8 ralos a. espancaram, fronte (Cap Ao dizer que havia crepuisculo no rosto de Martim, apés fixara imagem da tristeza do dia como sinénimo do entardecer, Alencar faz uma ‘Operacio metaforica por assim dizer reversa, em relagao a base etimolégica: antes, era a etimologia que motivava a metéfora, fazendo dela a tradusao da concre- tude de expressio indigena; agora, associada a idéia de tarde com tristeza, Alencar consegue o maximo rendimento de uma imagem que, sem a base etimolégica indigena, seria apenas banal. Sao muitas as formas de Alencar trabalhar com as duas pontas da tradu- ao etimoldgica. Uma das mais brilhantes é a criagao de um subtexto a partir do sentido das palavras e étimos indigenas e sua traducio para o portugues, O melhor exemplo se encontra na motivagao do nome da personagem prin- cipal, Iracema: “em guarani significa labios de mel - de ira, mel, ¢ tembe - labios” Jé houve quem contestasse seriamente essa etimologia, afirmando que, se o nome de Iracema tivesse esse sentido, deveria soar como “Eiremb Ora, Alencar produz a etimologia de Iracema — talvez mesmo para criar 0 anagrama famoso ~ a partir do nome histérico do chefe tabajara Mel-Re- dondo (Irapua). Com isso, além do ganho erdtico de nomear a heroina com uma metéfora do beijo e da voz, faz de Iracema/Irapua um par de opostos no qne diz respeito & relagao com 0 colonizador. Irapua, que deseja Iracema,¢ inimigo de Martim, que também deseja Iracema ¢ é por ela desejado. Ao longo do romance, as imagens ligadas ao mel proliferam. Limito-me para nao alongar a exposigao, a duas, de grande elogiiéncia. A primeira ocorre em palavras de Iracema ao filho: “A jati fabrica 0 mel no tronco cheiroso do sassafras [...]; mas ela nao prova sua dogura, porate? irara devora em uma noite inteia toda a colméia, Tua mae tambén lho de minha angistia, nao beberd em teus labios o mel de teu sorriso” 2. Frederico G, Edelweiss, José de Alencar: O Tupinista segundo as Notas do Roman is a H. Campos, Metalinguagem ¢ Outras Metas, op. cits p. 134. A propésito, CME ule? dado é suficiente para avaliarmos o abismo de incompreensio que se pode 2 jenny, 4a pesquisa tupinolgica [ea lve inventiva podtica do tpinist-amador ‘scripulo da primeira pretende ‘corrigt’ 0 projetoestético da segund Scanned with CamScanner om: PIANISMO ROMANTICO REVISITADO... a A segunda, ecoando negativamente marca 0 momento 4 vara enna had Agen en a gu i 5 lo 0 ldbio ama is i to que devia restaurar-lhe as ea rgo de tristeza recusava 0 alimen- Se as comparagdes sio apenas mod da etimologia dos nomes indigenas, as n. notas de etimologia. Muitas delas parecem ter apenas a funcio de motivar os nomes de lugares ou scien geograficos. Como esta, Por exemplo, a fala de Martim, no capi- be ee oe guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do A nota, no caso, diz apenas: “Jaguaribe ~ Maior rio da provincia; tirou 0 nome da quantidade de ongas que povoavam suas margens. Jaguar ~ on¢a; iba - desinéncia para exprimir c6pia, abundancia’, Basta aguardar, entretanto, que 0 procedimento se revela: 0 que a nota diz seré incorporado ao texto; no caso, o acidente geogréfico passaré a ser nomeado nao pela palavra indigena, mas pela sua tradugdo, dada na nota, quando do seu primeiro aparecimento no texto: “Poti conhece toda a terra [...], até a margem do rio onde habita o jaguar (capitulo x1)”. “[...] foi ele que veio pelas praias do mar, até 0 rio do jaguar [...] (capitulo XxII)”. Uma variante desse procedimento pode ser vista no capitulo XXII, quan- do o narrador afirma que Poti e Martim “foram seguindo 0 curso do rio até onde nele entrava o ribeiro de Pirapora’. Nesse ponto, surge uma nota, que diz: “Rio [...] notavel pela frescura de suas Aguas e exceléncia dos banhos chamados de Pirapora, no lugar das cachoeiras. Provém o nome de Pira - peixe, pore — salto; salto do peixe”. E cis 0 pardgrafo seguinte, no texto do romance: “A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas, onde saltao peixe no meio dos borbotées de espuma, As éguas ali sdo frescas e macias, como a brisa do mar, que passa entre as palmas dos coqueiros, nas horas da calma’. eats Nesse caso, é nota que prepara construgio da cena, pois® 50° Git afirma a qualidade das aguas e é da etimologia do nome ave Bee cascata, Ou seja, é na nota que sé monta, a partir da CE : aa “a quando lida na seqiiéncia, aparece como ‘uma extensa tradug da palavra indigena que nomeia rio. a etimologia do nome da heroina, leradamente baseadas na exploracdo }otas, pelo contrério, sao basicamente bio amargo” [grifo meu, no extol ae ecoa, por contraste, 05 [ge , no texto), 7 3 Refro-me, claro expresso “ll ee “libios de mel” A frase encerra o capitulo Scanned with CamScanner 2 ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA O procedimento inverso também é freqiiente: primeiro eas traducio, depois o termo traduzido, como nesta frase, do capitulo XXIX; “e afinal pisam as lindas ribeiras da enseada dos papagaios’. A nota a essa pas- sagem diz: “E a baia de Jericoacoara, de jeru — papagaio, cua ~ varzea, coara ~ buraco ou seio: enseada da varzea dos papagaios. E um dos bons portos do Ceard’. Besse também o caso desta frase de acentuado sabor épico: “Chegam os viajantes 4 foz do rio onde se criam em abundancia as saborosas trafras”. A nota mostra que se trata de outra tradugao de nome de acidente geogréfico, Mas basta, ao redigir a frase, privilegiar o sentido puramente denotativo para perceber de imediato 0 efeito obtido com a incorporacao, ao discurso narrativo, da tradugdo dos nomes e locugées indigenas: “Chegam os viajan- tes 4 foz do Trairi”. ‘Uma terceira forma de trabalhar com a etimologia dos nomes é fazer a glosa do seu sentido, no interior do préprio discurso ficcional, por meio de uma perifrase, um aposto ou uma tradugio direta. E 0 caso deste trecho: “Os guerreiros pitiguaras [..] chamavam a essa lagoa Porangaba, ou lagoa da beleza, porque nela se banhava Iracema [...)” A nota, nesse caso, operacdo tradutéria. No que diz respeito a relacdo entre as notas e 0 texto, um dos casos mais interessantes é 0 desta passagem, do capitulo XXVI: “sentava-se [Iracema] junto a flecha, até que descia a noite; entio recolhia a cabana, reiros [...] chamavam aquele sitio de Mec Na nota, Alencar reconhece que é “a opiniao geral é que 6 nome desse fen ie dee pc ra nm gegen ora Ga dap neal Prevalecer a hipétese da origem india ou do sentido fica supérflua, Comparece apenas como reiteracao da Os mesmos guer- ejana, que significa a abandonada’, Nesse caso, vemos em plena aco a poética da eti i é passivel de traducao, Poética da etimologia: se um termo segundo o principio de que na linguagem india todos 2 aga0 do verbo. Cejana significa o. ‘que abandona. Junta foilugar €ocasido de abandonar, A opi Danian, - eaace isn os chap x do geral que o nome deste povoa, : cote dons Neus devin eceerseMagana ee one PL gutlon Cat dnnanee gc i user no atl i v0 : 7 todos outs nome derge Ista Pr BM ls conservaram, ems PE Scanned with CamScanner © INDIANISMO ROMANTICO REVISITADO... 83 os nomes sio motivados e dizem respeito a um dado concreto, por que acei- tar a idéia corrente, que faz. de um nome cheio de significado uma mera he- ranga lingiistica sem sentido préprio? Tudo se passa como se houvesse uma sinon{mia entre uma expresso da lingua indigena ¢ uma palavra da lingua comum, e que ao escritor coubesse escolher qual etimologia desenvolver. Ou ainda: 0 escritor, com a chave decifratéria na mio, pode operar a descoberta do sentido primeiro, mesmo quando ele esta escondido sob um outro senti- do, por conta da coincidéncia dos significantes. Assumindo que na lingua tupi todas as palavras eram analiséveis, que a anilise delas mostraria que o seu sentido estava colado as coisas concretas do mundo, e ainda que nem sempre os termos originais eram facilmente iden- tificaveis no processo aglutinativo, Alencar constréi a utopia de uma lingua inteiramente motivada, concreta, na qual os termos abstratos eram sempre metéforas a espera de decifracdo. Constréi a utopia de uma lingua adamica, portanto, frente 4 qual mais vale a capacidade postica de interpretaco do sentido do que os documentos lingiiisticos existentes’. Quanto a etimologia dos nomes indigenas, Alencar se baseava nos dicio- narios, e informagées disponiveis no seu tempo, que eram parcos e lacuna- res. JA quanto aos principios analiticos que regiam a sua etimologia, deixou registrada a perspectiva que o animava, numa nota do romance Ubirajara. Nela, transcreve uma passagem de Alfred Maury, erudito francés, que afir- mava que nas linguas ind{genas as palavras se encapsulavam umas nas outras para formar novos vocabulos, com deformacao dos termos incorporados*, Dai que se esforce ao maximo para motivar os nomes indigenas, ou para interpretar como indigenas nomes que talvez fossem portugueses ou arabes, ou ainda de origem latina, como “oitib6” ou “noitibo””. E dai também que, ao 5. C& Haroldo de Campos, op. cit, p- 163: “quando Alencar fala em ‘termos ¢ frases que paregam naturais na boca do selvagem; nio esté pensando em ‘realismo' ou ‘verisme; mas nesse naturalis- mo adamico que torna alinguagem motivada,reduzindo-Ihe o arbitréio, conaturalizando-a 20 in a fazendo-a um corpus onde os signos so tatuagens das coisas’ anti en & Ua 323), 0 trecho transcrito por Alen- 6. Trata-se da nota 19 de Ubirajara (Obra Completa, vol. I. p. ° car pertence a0 Vor de Alfred Maury (1917-1892) 1a terre et Thome ov aperet Hore de -éologie, de géographie et dethnologie générales (1857): "Nas linguas americanas, = ee ‘uma sintese que concentra em uma palavra todos os elementos a iin mals comp O92 da engranzamento (enchevétrement) das palavras umas nas outras: €0 due MLB Liber came éencapsulagdo, comparando a manera por que as paavras entram numa fuss © Ot So tt ual se conteria outra que a seu turno conteria terceira, esta uma quarts. ¢ SAS Por incorporacdo das palavras é por vezes levada a extrema exageraio nesses : 4 mutilago dos vocibulos incorporados’ Scanned with CamScanner 84 nSTUDOS DB LITERATURA BRASILEIRA B PORTUGUESA lavras tupis, decifradas com base no seu i al mesmo tempo em que incorpora P' tipts. método pottico-etimoldgico, se dedique a criagao de novas palavras na sua a. aaa entusiasmo pela etimologia, pela inyengao neoldgica e pela busca de uma espécie de linguagem sintética, inteiramente motivada, por meio da traducio/incorporagio de uma lingua morta ou extinta, Alencar ndo estava isolado em sua época e pais. Odorico Mendes e Sousindrade compartilhavam do mesmo objetivo poético estavam animados da mesma ousadia de Alencar, Por isso mesmo, sofreram também a acusa¢io de “bar- barismo”, de mau gosto e de falta de senso de medida. Sendo Iracema um livro vinculado a série enorme das obras “indianistas” e “nacionalistas’, o seu caréter profundamente perturbador, enquanto objeto lingiiistico, acabou por ficar obscurecido, exceto pela questao da ofensa ao vyernaculismo lusitano. Mas nao tenho diividas de que 0 que de mais novo € mais interessante esse livro guarda é, além da sua estrutura brilhantemente arquitetada, o que vim denominando “poética da etimologia’. Embora nao seja possivel tracar aqui os pontos de contato entre a preo- cupagio de Alencar com a etimologia, por um lado, e a poesia de Sousan- drade ea atividade tradutéria de Odorico, por outro, penso que vale a pena fazer um tiltimo registro: 0 de que, em clave humoristica, mas de grande importancia para a definicao de toda uma linhagem da literatura moder- na, o neologismo aglutinante, praticado pelo tradutor brasileiro de Virgilio ¢ Homero, e o método de decifracio das palavras aglutinadas, utilizado por Alencar, tiveram uma outra realizacao contempordnea deles, bem mais co- nhecida e valorizada. Trata-se da palavra-valise de Lewis Carroll, cujo Alice no Pais das Ma- ravilhas é do mesmo ano de Iracema e cujo Através do Espelho e o que Alice Encontrou lé saiu junto com a segunda edigéo do romance de Alencar*. A palavra-valise, cuja utilizacao sistematica ser, cingiienta anos mais tarde, uma das caracteristicas da prosa de James Joyce, é, por assim dizes © avesso complementar da pottica da etimologia de Alencar. Ali se trata de 8. Nesse iltimo livro, no capitulo V1, utiliza as palavras da forma que tity todos os poemas jé escrit Ales on oe no poema “Jabberwocky’ 0 sentido das palavras-valise, que ele define em te" aie lembram o“engranzamento” de Maury: “You see it’s like a portmanteau - there ate ‘¥° ‘meanings packed up into one word” (“Ve} numa se pelea) 2 one word” ("Veja € como uma valise~ ha dots sigificados gard#0™* ro episédio de Alice e Humpty Dumpty. Humpty Dumpty fe parece melhor, Por conta disso, talvez, julga-se capat tos ¢ a maioria dos que ainda estéo por escrever. Instado POF Scanned with CamScanner © INDIANISMO ROMANTICO REVISITADO,,. idiomas. Aqui, de descobrir a lingua-outra, mos comprimidos nas palavras primitivas, Na ficgao de Alencar, a decifragao etimolégica e a invencao de palavras, junto com a liberdade sintatica de opor ao uso Portugués o uso brasileiro, apontam para uma concepgao de lingua literdria muito distante do padro conservador, castico e lusitanizante, que se imporia progressiva e hegemoni- camente desde Machado de Assis até 0 momento de esplendor parnasiano, na virada do século XIX para 0 XX. Mario de Andrade, num texto célebre, no qual atribui ao Modernismo de 22 “a conquista do direito permanente de pesquisa estética”, reconheceu no autor de Iracema um homem animado do mesmo ideal, terminando por invocé-lo, na antevisao de um “outro futuro movimento modernista” (que se alinharia, por certo, com o romantismo e 0 movimento de 22), como “amigo José de Alencar, meu irmao”?. Entretanto, a perspectiva modernista, se pode destacar 0 que em Alen- car havia de preocupagao nacional e reivindicacao de novidade estética, nao Jevou ao reconhecimento e valorizagao do que venho denominando “poética da etimologia’, nem dos tracos de familia entre essa atividade de traducio e decifracao das palavras tupis aglutinadas e a atividade de tradugao, recria- $40 e “miscigenacao” vocabular de contemporaneos como Odorico Mendes Por meio da decifracao dos éti- e Sousandrade. ' Na verdade, a continuidade da visada modernista, no Brasil, acabou por produzir um obscurecimento dos resultados poéticos obtidos por Alencar em Iracema, da mesma forma que o fez com os de Odorico, nas suas tradu- Ses de Homero e Virgilio, reduzindo um a mero precursor (algo desfocado) do Modernismo de 22 ¢ relegando o outro ao dominio da teratologia”®. ” it rasileira, Rio de 9. Mario de Andrade, “O Movimento Modernista’, em Aspectos da Literatura Bra io 1 rg inn tome No Odorico Mendes tradutor de Homero um pice de tolees BD Ort reldos = aficmando emipora que raemaesth ene outs romances de ASN ts Tr ber Avontade eo seu valor tenderi certamente a crescer Patt opeament linguistic de lencer, = otra Assinalar a sua forga criadora” ~ no faz mengao a bo Pre “mals conscentc ebem arms- Feduzindoaaua “ate literdre, que termina or rconhectr Ee Teac eet a do que suporiamos & primeira vista’, aos aspectos de construsa ;poriamos Scanned with CamScanner 86 ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA Hoje, & distancia de um século e meio da publicago one cise quadro parece mudar, com o enfraquecimento da leitura “re: ist da obra, centrada nas velhas reivindicagées de pendor documental e realista. Na ver- dade, faz-se cada vez mais significativa, desde os trabalhos de Proenca e dos ensaios de Haroldo de Campos, a leitura que privilegia a fatura textual de Alencar, dela deduzindo tanto a sua concepgao de linguagem e literatura quanto a de lingua e literatura nacional. Com essa mudanga de foco, o préprio indianismo de Alencar comega a ser objeto de releitura, com nova hierarquia dos seus fatores constitutivos, vindo para primeiro plano, tanto em importancia quanto em novidade in- ventiva, a aposta radical do autor na construgao de uma espécie de evocacao da linguagem adamica, cuja extingao e absor¢ao pela lingua européia, com a perda do paraiso indigena situado nas encostas das montanhas do interior brasileiro, parece condigao necesséria para a construgao da civilizagio mes- tica ao longo do litoral, onde a guerra e os varios interesses europeus passam a nio s6 a dominar a denomina¢ao dos lugares, mas também a impor um novo tempo e um novo ritmo para a vida e para a morte, cimento do momento genésico, cuja memaria Iracema e indianistas de Alencar buscam reinventar, bem como o esque- os dois outros livros Scanned with CamScanner

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