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veem e, portanto, se expressam de maneira mais ardente e passional. Se o afeto for bem transmi- tido, sera eficaz sem nenhuma ideia clara; fre- quentemente, sem qualquer ideia da coisa que originariamente lhe deu origem. Podia esperar-se da fertilidade do assunto que eu deveria considerar mais amplamente a poesia nas suas relagdes com o sublime e com 0 belo; mas deve se observar que ela tem sido bem ¢ frequentemente trabalhada 8 luz dessas ques- toes. Nao foi meu designio entrar na critica do sublime e do belo em nenhuma arte, mas tentar estabelecer principios tais que pudessem con- tribuir para averiguar, distinguir e formar uma espécie de padrao para elas, propésitos que pen- sei poderiam ser mais bem alcangados por uma investigagao sobre as propriedades de coisas tais na natureza que nos despertassem amor e assom~ bro, bem como pela demonstragéo da maneira por que operam para produzir essas paixdes. As palavras permaneceram distantes de nossas pre~ ocupagées, sendo consideradas apenas para de- monstrar o principio sob o qual eram capazes de ser as representantes dessas coisas naturais, bem, como para revelar os poderes pelos quais se ha- bilitavam a comover-nos muitas vezes to forte- mente como as préprias coisas que representam, € as vezes mais fortemente ainda. & Johann Gottfried HERDER (Mohrungen, 1744 - Weimar, 1803) 2 Seguidor do Kant do periodo pré-critico, foi opositor tenaz do criticismo formulado pelo fildsofo de Kénigsberg, a que contrapde certo vitalismo que, nao raro, empresta a suas especu- lagoes notas misticas ¢ sobrenaturais. Suas prin- cipais contribuigdes dizem respeito a filosofia da historia e a reflexdo sobre as origens ¢ o desen- volvimento da linguagem, vista na sua relacio profunda com as peculiaridades nacionais. Seu pensamento foi essencial para a formulagéo de alguns aspectos basicos do idedrio romantico no inicio do século XIX e particularmente influente nas concep¢es de Hegel e de Nietzsche. ‘Uma ideia moderna de literatura Poesia, lingua e terra natal* (1767)! Na arte poética o pensamento e a expressio~ sio, como corpo e alma, insepardveis Se jd no caso de conceitos sensiveis, ideias empiricas, verdades simples e na linguagem clara da vida natural, 0 pensamento adere fortemen- te a expressio, muito mais para aquele que, na maioria das vezes, tem de haurir dessa fonte, para aquele que, por assim dizer, foi o senhor supremo desta esfera (pelo menos nas antigas épocas sen- siveis do mundo), para ele o pensamento deverd | comportar-se com relagao 4 expresso nao como , © corpo em relacao a pele que 0 envolve, mas sim como a alma em relac¢io ao corpo no qual habita; assim é para o poeta. Deverd exprimir sensagées, 0_ gue, através de uma lingua simplesmente pintada nos livros, ¢ dificil, e em si mesmo até impossivel. ~ Através dos olhos e dos tragos da face, pelo tom, pela linguagem simbélica do corpo, assim € que, na realidade, se exprime a sensacao, deixando ao pensamento morto o terreno da lingua morta. E entao, pobre poeta! Devers pintar tuas sensacdes sobre 0 papel, fazer flui-las através de um canal de liquido preto, deverds escrever para que sejam sentidas; deverds renunciar 8 verdadeira expres- so da sensacio; nao deverds umedecer o papel com lagrimas, fazendo borrar-se a tinta; deverds pintar e dizer toda a tua alma viva em letras mor- tas, ao invés de a expressar. Aqui vemos ~ nesta linguagem das sensacGes, na qual nao devo dizer, e sim exprimir para que me acreditem, na qual no devo escrever, e sim penetrar através do verbo dentro da alma, para que 0 outro sinta ~ que a ex- presséo mesma é inseparavel. Deves imaginar ar- tificialmente a expresso natural da sensacao, tal In; Autores pré-romanticos alemaes, Introdugao e notas de Ana- tol Rosenfeld. Tradugio de Joio Marschner, Flavio Meurer ¢ Lily Steler,Sio Paulo: Herder, 1965. p. 29-33. Titulo atribuido pelo organizador;fragmentos 6¢7 da Terceira Colegio de Frag- rmentos, Tradutor da seco selecionada: Jodo Marschner. Tanto 0s diteitos da introdugio quanto os direitos das tradugdes sio da Eitora EU, sucessora da Editora Herder. 1 Dita da primeira impressio andnima da obra; primeira edigio ‘com autoria identifcada é de 1877 ‘como desenhas um cubo sobre a superficie; deves expressar o tom inteiro de tua sensagio em peri- odos, na conducao e no ligamento das palavras; deves desenhar um quadro para que este sozinho fale & imaginagdo dos outros, invadindo-a e, atra- vés dela, penetrando no coragao sem a tua ajuda; deves conservar em teu poder a simplicidade e a riqueza, a forca e 0 colorido da lingua para, atra- vvés deles, fazeres aquilo que desejas alcancar pe- Ia linguagem do tom e do gesto. Como tudo aqui depende da expressao! Nao apenas em palavras isoladas, mas em todas as partes, na sequéncia das mesmas e no todo. E por isso que comove 0 po- der da arte poética daqueles tempos primitivos, em que a alma dos poetas, acostumada a falar e nio a tagarelar, nao escrevia, mas sim exprimia e, mesmo escrevendo, soava em linguagem viva; daqueles tempos nos quais a alma do outro nao lia, mas sim ouvia, e mesmo lendo sabia ver e ou- vir, porque estava aberta a todos os indicios da expressio verdadeira e natural; dai é que provém aqueles milagres realizados pela arte poética, que nos espantam, dos quais quase duvidamos e que, no entanto, suscitam a zombaria e sé considera- dos tolos por nossos almofadinhas; dai é que pro- ‘vém toda a vida da arte poética — ja amortecida, uma vez que a expresso se tornou apenas arte, uma vez que a separamos daquilo que deveria exprimir; daf toda a decadéncia da poesia, pelo fato de ter sido desencaminhada de sua mae na- tureza para o pais da arte, ai sendo contemplada como filha do requinte; dai a maldigdo que paira sobre a leitura dos antigos, quando nos limitamos a aprender palavras, ou a percorrer historicamen- te o contetido, ou procuramos regras estéticas, ou esquadrinhamos exemplos, em suma, quando ne- Jes contemplamos separadamente os pensamen- tos e as palavras, nao tendo 0 ouvido criador que ouve o sentimento a plenos tons em sua expres- so; nao tendo aquele olho poético que contem- plaa expresso como um corpo, no qual o espirito pensa, fala e atua. Dai é que provém o palavré- rio estético, no qual 0 pensamento é tratado em separado da expresstios disso provém ainda essa maldigio de ser-nos dificil pensar como os anti- gos, uma ver.que se deseja apanhar o pensamento sem expressio ¢ falar como os antigos, uma vez que, de novo, contempla-se a expresséo separada do pensamento. Quanto mais penso em tudo isso, no fato de se ter achado vantajoso ¢ até mesmo necessério tratar, na poesia, do pensamento e da expressio em separado, de, nos tratados da arte poética, ensiné-los em separado ¢, nos antigos, analisd-los em separado, tanto mais estranha se me afigura esta dilaceragio. Um poeta verdadeiro deverd escrever em sua lingua Vou adiante; se, na poesia, o pensamento ea expressao aderem firmemente um ao outro, sem, diivida, entdo, deverei poetar na lingua na qual tenho 0 maior dominio e poder sobre as palavras, © maior conhecimento delas ou, pelo menos, a certeza de que minha ousadia nao se torna anar- quia; e, sem diivida, esta é a lingua materna. Ela imprimiu-se em nés primeiro e nos mais tenros anos, quando através de palavras colecionamos na alma o mundo de ideias e de imagens que se torna um cofre de tesouros para o poeta. E nela, pois, que deveré meditar e encontrar expressdes com maior facilidade; nela deveré encontrar a ri- ‘queza de imagens e cores, inevitavelmente neces- séria ao poeta; nela devera encontrar o ribombar do trovao e o fulgor do relémpago que langaré como mensageiro dos deuses; nela esté como que plantada nossa alma; nosso ouvido e nossos érgios da fala foram com ela formados. Como, pois, poderia exprimir-me melhor do que em ‘minha lingua materna? Como a patria, ela supe- ra em encanto todas as outras linguas aos olhos daquele que foi o filho de seu corago, o lactante em seu seio, a crianga em suas mios e que agora devera ser a alegria de seus melhores anos, a es~ peranga e a honra de sua velhice... a Primeiramente, aquele que escreve em lin- gua estrangeira deve ter uma lingua materna, na qual foi criado. Se despreza esta mie, por ela deve ter sido criado mal, a ponto de nao have- A reflesio ontolégica | Johann Gottfried HERDER rem amadurecido nele as primeiras impresses da formacao; pois, de outro modo, os vestigios dessa primeira estrutura de alma sao indeléveis. Quanto nao perde um escritor cujo espirito no foi poderosamente formado por sua lingua! To- do seu aprender futuro tinge apenas a superficie do seu modo de pensar; vaga por regides des- conhecidas, sem patria e sem deuses familiares; nunca poderd tornar-se um escritor original, no qual o pensamento e a expressio se fundem para formar um retrato inteiro de sua alma. ee Na verdade, 0 poeta que queira reinar sobre a expresso deveré permanecer fiel & sua terra; ne- la podera plantar palavras poderosas, pois conhe- ce o pais; “aqui” poderd colher flores, pois a terra Ihe pertence; “aqui” podera cavar as profundezas 4 procura de ouro, erguer montanhas e conduzir correntezas, pois 6 0 amo. A disposicao verdadei- ra s6 se estampa na lingua materna, e ndo me en- vergonho por declarar a fraqueza de minha alma confessando que nunca confiei em poder dominar por completo mais de uma dnica lingua durante a existéncia inteira. No entanto, com a expressio “por completo” desejo significar que se diante de mim estivessem trés jovens cavalheiros, falando fluentemente francés, italiano e inglés, e trés pro- fessores falando fluentemente latim, grego e cépti- co, ainda assim nao poderiam refutar-me. A cada um felicitaria por talvez nio ser capaz de dizer em qualquer das trés linguas algo que outros nao ja houvessem dito antes e talvez melhor do que ele, que qualquer um poderé dizer depois dele; no entanto, eu os abandonaria, invocando o demé- nio do ignorante Sdcrates para perguntar-lhes se alguém podera ser um completo Homero em mais, de uma lingua, um Pindaro* ou um Horécio em alguma lingua morta ou um Shakespeare em outra Iingua que ndo a sua materna, Apés o que tomba- ria.ao cho, como Brutus,” abragando a terra que minha mae, para que sua lingua seja minha musa! 2 Poeta grego (século VI-V aC). 3. Generale politico romano (81-43 a.C). ‘Uma ideia moderna de literatura

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