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Volume II COLEGAO RECONQUISTA DO BRASIL (2* Série) 163. CRONICA DE UMA COMUNIDADE CAFEEIRA - Paulo Mercadante / (1100/6) 164, DA MONARQUIA A REPUBLICA- George C. A. Boehrer - (1029/9) 168. QUANDO MUDAM AS CAPITAIS - J. A. Meira Penna - (1016/1) 166, CORRESPONDENCIA ENTRE MARIA GRAHAME A IMPERATRIZ DONA LEOPOLDINA Américo Jacobina Lacombe - (1117/8) 167, HEITOR VILLA-LOBOS - Vasco Mariz -(1121/2) 168, DICIONARIO BRASILEIRO DE PLANTAS MEDICINAIS - J. A. Meira Penna - (312/1) 169. A AMAZONIA QUE EU VI- Gastio Cruls 170. HILEIA AMAZONICA - Gastao Cruls 171, AS MINAS GERAIS - Miran de Barros Latif - (909/6) 172. O BARAO DE LAVRADIOE A HIGIENE NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL - Lourival Ribeiro - (0614/0) 173, NARRATIVAS POPULARES - Oswaldo Elias Xidich - (315/0) 174, 0 PSD MINEIRO - Plinio de Abreu Ramos - (795/4) 175. 0 ANELE A PEDRA - Pe. Hélio Abranches Viotti- (792/5) 176. AS IDEIAS FILOSOFICAS E POLITICAS DE TANCREDO NEVES - J. M. de Carvalho - (910/1) 177/78. FORMACAO DA LITERATURA BRASILEIRA - 2 vols. - AntOnio Candido - (689/1) 179, HISTORIA DO CAFE NO BRASIL E NO MUNDO - José Teixeira de Oliveira -(797/) 180. CAMINHOS DA MORAL MODERNA; A EXPERIENCIA LUSO-BRASILEIRA -J. M.Cavalho- (9210) 182. A REVOLUCAO DE 1817 EA HISTORIA DO BRASIL - Um estudo de hist6na diplomanca Gongalves de Barros Carvalho ¢ Mello Mourio - (821/5) 183. HELENA ANTIPOFF - Sua Vida/Sua Obra - Daniel |, Antipof - (955/4) 184, HISTORIA DA INCONFIDENCIA DE MINAS GERAIS - Augusto de Lima Jémor -(326/0) 185/86. A GRANDE FARMACOPEIA BRASILEIRA - 2 vols. - Pedro Luiz Napoledo Chernovis - (112300) 187, 0 AMOR INFELIZ DE MARILIA E DIRCEU - Augusto de Lima Kinior - (1102/9) 188, HISTORIA ANTIGA DE MINAS GERAIS - Diogo de Vasconcelos 189, HISTORIA MEDIA DE MINAS GERAIS - Diogo de Vasconcelos 190/191, HISTORIA DE MINAS - Waldemar de Almeida Burbosa 192, INTRODUGAO A HISTORIA SOCIAL ECONOMICA PRE-CAPITALISTA NO BRASIL - Olveira Vianna 193, ANTOLOGIA DO FOLCLORE BRASILEIRO - Luis da Camara Cascudo 194, OS SERMOES - Padre Anténio Vieira 195, ALIMENTACAO INSTINTO E CULTURA - A. Silva Melo 196, CINCO LIVROS DO POVO - Luis da Camara Cascudo 197. JANGADA E REDE DE DORMIR - Lurs da Camara Cascudo 198. A CONQUISTA DO DESERTO OCIDENTAL - Craveiro Costa 199. GEOGRAFIA DO BRASIL HOLANDES - Luts da Camara Cascudo 200, OS SERTOES, Campanha de Canudos - Euclides da Cunha 201, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo I, (Século XVI- O Estabelecimento). — Serafim Leite. S. 1 - (0841/08) 202, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo II. (Século XVI - A Obra). — Serafim Leite, S, I -(0842/2B} 203, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo III (Norte-1) Fundagdo ¢ Entradas Séeulos XI-XVII1) — Serafim Leite. S. 1 - (0843/3B) 204. HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo IV. (Norte-2) Obra e Assuntos Gerais Séeulos XVI-XVIIN) — Seratim Leite. 8. - (0844/4B) 208, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo V, (Da Baia a0 Nordeste - Estabeleci- menos ¢ assuntos locais - Séculos XVII-XVIII) — Serafim Leite. $. 1 - (0845/5B) 206, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo VI. (Do Rio de Janeiro ao Prata 40 Guaporé - Estubelecimentos e assuntos locais - Séculos XVU-XVI]) — Serafim Leite. S. I. - (0846/6B) 207, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo VIL. (Séculos XVIL-XVIII- Assuntos Gerais) — Serafim Leite. S. I - (0887/78) 208, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo VIL (Escritores: de A a M - Suple- mento Biobibliografico - 1) — Serafim Leite. S, 1 - (0848/88) 209, HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo IX, (Escritores: de N a Z - Suplemento Biobibliogréfico II) — Serafim Leite. S. I, - (0849/9B} 210. HISTORIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo X. (Indice Geral) — Serafim Leite. $. L (0850/08) 211. CARTAS DO BRASIL E MAIS ESCRITOS — P. Manuel da Nobrega 212, OBRAS DE CASIMIRO DE ABREU — (Apuracio e revisio do texto, encorgo biogrifico, nots e in- dices) - (01038/0B) FORMACAO DA LITERATURA BRASILEIRA 2° volume COLECAO RECONQUISTA DO BRASIL (2 SERIE) Dirigida por Antonio Paim, Roque Spencer Maciel de Barros e Ruy Afonso da Costa Nunes. Diretor até o volume 92, Mario Guimaraes Ferri (1918-1985) VOL. 178 Capa de CLAUDIO MARTINS a EDITORA ITATIAIA LTDA Belo Horizonte Rua Sao Geraldo, 53 - Floresta - Cep.: 30150-070 — Tel.: (31) 212-4600 Fax.: (31) 224-5151 Rio de Janeiro Rua Benjamin Constant, 118 - Gl6ria — Cep.: 20214-150 — Tel.: (21) 252-8327 ANTONIO CANDIDO FORMACAO DA LITERATURA BRASILEIRA (Momentos decisivos) 2° volume (1836-1880) 9° edigao gs EDITORA ITATIAIA LIMITADA Belo Horizonte — Rio de Janeiro Copyright © 1975, by ANTONIO CANDIDO Sao Paulo FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogagio-na-fonte, (Camara Brasileira do Livro, SP) Candido, Antonio, 1918- Formagao da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizome, Editora ltatiaia Ltda, 2000. ilust. (Colegao reconquista do Brasil. 2* série; vol. 177-178) Bibliografia. Contedido, — v, 1, 1750-1836, — v.2 1836-1880. 1. Literatura brasileira — Hist6ria e critica 1. Titulo, Il. Série: Reconquista do Brasil, 2. Série; vol. 177-178. CDD-869.909 Indice para catdlogo sistematico; 1. Literatura brasileira : Hist6ria e critica 869 909 2000 Direitos de Propriedade Literdria adquiridos pela EDITORA ITATIAIA LTDA Belo Horizonte - Rio de Janeiro Impresso no Brasil Printed in Brazil | | {NDICE CAPITULO 1 — 0 INDIVIDUO E A PATRIA 1.0 Nacionalismo Literério . W 2.0 Romantismo como posigao do espirito e da sensibilidade .. 1... ee es 22 3. As formas de expresso... eee 31 CAPITULO II — OS PRIMEIROS ROMANTICOS. 1, Geragio vacilante 6... . 41 2. A viagem de Magalhdes . . . . 48 3. Porto Alegre, amigo dos homens e da poesia 60. 4Emulos . 6.2.2.2. ee . 66 5. Gongalves Dias consolida o Romantismo 7 6.Menores 0. eee eee eee 86 CAPITULO Ill — APARECIMENTO DA FICCAO. 1. Um instrumento de descobertae interpretagio . 6... eee ee eee 7 2. Os primeirossinais . 6... 6. ee - 106 3. Sob o signo do folhetim: Teixeira e Sousa 12 4.0 honrado e facundo Joaquim Manuel de Macedo 121 CAPITULO IV — AVATARES DO EGOTISMO L Mascaras 6 eee eee ee » 133 2. Conflito da forma e da sensibilidade em Junqueira Freire . 138 3. As flores de Laurindo Ribeiro . 145 4, Bernardo Guimaraes, poeta da natureza . 151 5. Alvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban. . . 159 6. 0 “belo, doce e meigo”: Casimiro de Abreu » 173 . 180 7. Os menores CAPITULO V — 0 TRIUNFO DO ROMANCE 1. Novas Experiéncias . 2. Manuel Anténio de Almei 3. Os Trés Alencares 4. Um contador de casos: Bernardo Guimaraes CAPITULO VI — A EXPANSAO DO LIRISMO. 1. Novas diregdes na poesia. . . 2. Transicao de Fagundes Varela 3, Poesia e oratéria em Castro Alves 2... ee eee 241 A, Amorte da dguia eee eee - 256 CAPITULO VII - A CORTE E A PROVINCIA 265 1, Romance de passagei. 2. 0 regionalismo como programa e critério estético: Franklin Tavora . 267 . 275 3. A Sensibilidade e 0 bom senso do Visconde de Taunay . . . . CAPITULO VIII - A CONSCIENCIA LITERARIA 1. Raizes da critica romantica 2. Teoria da literatura brasileira . 3. Critica retérica 293 4, Formagio do canon literério 310 5. A critica viva 317 Biografias Sumarias .. . . . bee 331 Notas Bibliograficas . . . . 349 373 Indice de Nomes CAPITULO 1 O INDIVIDUO E A PATRIA 1, 0 NACIONALISMO LITERARIO 2. 0 ROMANTISMO COMO POS:CAO DO ESPIRITO E DA SENSIBILIDADE 3. AS FORMAS DE EXPRESSAO 1 O NACIONALISMO LITERARIO 0 movimento arcadico significou, no Brasil, incorporacao da atividade intelectual aos padrées europeus tradicionais, ou seja, a um sistema expressivo, segundo 0 qual se havia forjado a literatura do Ocidente. Nesse processo verificamos 0 intuito de praticar a literatura, a0 mesmo tempo, como atividade desinteressada e como instrumento, utilizandoa ao modo de um recurso de valorizagdo do pats — quer no ato de fazer aqui o mesmo que se fazia na Europa culta, quer exprimindo a realidade local. © perfodo que se abre a nossa frente prolonga sem ruptura essencial este aspecto, exprimindoo todavia de maneita bastante diversa, gracas a dois fatores novos: a Independéncia politica e o Romantismo, desenvolvido este a exemplo dos pafses de onde nos ver influxo de ciilizagdo. De tal forma, que o movimento ideologicamente muito coerente da nossa forma¢ao literdria se viu fraturado a certa altura, no tocante expresso, surgindo novos géneros, novas concepgées formais; e, no tocante aos temas, a disposi¢do para exprimir outros aspectos da realidade, tanto individual quanto social e natural. Como as formas e temas tradicionais jd se jam revelando insuficientes para traduzir os modernos pontos de vista, foi uma fratura salutar, que permitiu sensivel desafogo, devido a substituigéo, ou quando menos reajuste dos instrumentos velhos, como evidente beneficio da expressdo. Isto compensou largamente os prejuizos, uma vez que seria impossivel guardar as vantagens do universalismo e do equilibrio éssico, sem asfixiar a0 mesmo tempo a manifestagio do espitito novo na patria nova. Gracas ao Romantismo, a nossa literatura pode se adequar ao presente. Por outro lado, essas tendéncias reforcaram as que se vinham acentuando desde a segunda metade do século XVIIL. Assim como a Ilustragdo favoreceu a aplicacao social da poesia, voltandoa para uma visio construtiva do pais, a independéncia desenvolveu nela, no romance e no teatro, o intuito patridtico, ligando-se deste modo os dois perfodos, por sobre a fratura expressional, na mesma disposicdo profunda de dotar o Brasil de uma literatura equivalente as européias, que exprimisse de maneira adequada a sua realidade prépria ou como entdo se dizia, uma “literatura nacional”, Que se entendia por semelhante coisa? Para uns era a celebragio da patria, para outros 0 indianismo, para outros, enfim, algo indefinivel, mas que nos exprimisse, Ninguém saberia dizer com absoluta preciso; mas todos tinham uma nogdo aproximada, que podemos avaliar lendo as varias manifestagdes a respeito, algumas bastante compreensivas para abranger varios ou todos os temas reputados nacionais. E 0 caso de um ensaio de Macedo Soares, lamentando que os escritores nao se esforgassem por dar & nossa literatura uma categoria equivalente as européias. “Entretanto — ajunta — ll no se carece de muito: inteligéncia culta, imaginagao viva, sentimentos e linguagem expressiva, eis 0s requisitos subjetivos do poeta; tradicées, religiio, costumes, instituigdes, histéria, natureza, eis, os materiais”. As nossas tradigdes so “duiplices”, devendo o poeta, se quiser ser nacional, harmonizar as indigenas com as portuguesas. "Os costumes sio, se assim me posso exprimir, a cor local da sociedade, 0 espirito do século. Seu cardter fixa-se mais ou menos segundo as cren¢as, as tradigGes e as instituicdes de um povo. Eles dever transparecer em toda a poesia nacional, para que 0 poeta seja compreendido pelos seus concidadaos” “Quanto & natureza, considerada coino elemento da nacionalidade da literatura, onde ir buscéla mais cheia de vida, beleza e poesia (..) do que sob os trépicos?”, “Se nossas instituigies nao nos sio inteiramente peculiares, se nossa histéria nao tem essa pompa das paginas da meiaidade, temos ao menos instituicdes € histérias nossas”. “Em suma: despir andrajos e falsos atavios, compreender a natureza, compenetrar-se do espirito da religido, das leis e da histéria, dar vida as reminiscéncias do passado; eis a tarefa do poeta, eis os requisitos da nacionalidade da literatura”. Como se vé, é um levantamento bem compreensivo, feito ja no auge do Romantismo e tendo por mola o patriotismo, que se aponta ao escritor como estimulo e dever. Com efeito, a literatura foi considerada parcela dum esforgo construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nagio. Mantevese durante todo o Romantismo este senso de dever patridtico, que levava os escritores nao apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuigio ao progresso. Construir uma “literatura nacional” é afa, quase divisa, proclamada nos documentos do tempo até se tomar enfadonha. Folheando a publicacao inicial do movimento renovador, a revista Niterdi, notamos que 0s artigos sobre ciéncia € questées econémicas sobrepujam os literdrios; no apenas porque o mimero de intelectuais brasileiros era demasiado restrito para permitir a divisio do trabalho intelectual, como porque essa geracdo punha no culto a ciéncia o mesmo fervor com que venerava a arte; tratava-se de construir uma vida intelectual na sua totalidade, para progresso das Luzes e conseqiiente grandeza da patria. A Independéncia importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idéia romantica, para a qual contribuiu pelo menos com trés elementos que se podem considerar como redefinigao de posigdes andlogas do Arcadismo: (a) desejo de exprimir uma nova ordem de sentimentos, agora reputados de primeiro plano, como 0 orgulho patristico, extensdo do antigo nativismo; {b) desejo de criar uma literatura independente, diversa, nao ar2nas uma literatura, de vez que, aparecendo o Classicismo como manifestagao do passado colonial, o nacionalismo literdrio e a busca de modelos novos, nem classicos nem portugueses, davam um sentimento de libertacao relativamente 4 mae-patria; finalmente (c) a nogdo ja referida de atividade intelectual nao mais apenas como prova de valor do brasileiro e esclarecimento mental do pais, mas tarefa patridtica na constru¢ao nacional. Na exposicao abaixo, procurarse-A sugerir principalmente a diferenca, a ruptura entre os dois periodos que integram 0 movimento decisivo da nossa formacdo literdria, acentuando 0s tragos originais do periodo novo. Para isto é preciso analisar em que consistiu o Romantismo brasileiro, decantando nele os elementos constitutivos, tanto locais quanto universais. 1. Macedo Soares, “Consideracdes sobre a atualidade de nossa literatura”, III, EAP, ns. 34, pags. 396 e 397 (1857). 12 Um grupo em Paris Comecemos pelos dados necessdtios. No volume anterior ficaram indicadas certas linhas que podem ser consideradas préromanticas, como a nostalgia de Borges de Barros, o cristianismo Kirico de Monte Alverne, o exotismo de certos franceses ligados ao Brasil, as vagas e contraditérias manifestagdes da Sociedade Filomatica. $6 se pade falar todavia de literatura nova, entre nés, a partir do momento em que se adquiriu consciéncia da transformagio ¢ claro intuito de promovéla, praticando-a intencional- mente. Foi o que fez em Paris, de 1833 a 1836, mais ou menos, um grupo de jovens: Domingos José Goncalves de Magalhies, Manuel de Araujo Porto-Alegre, Francisco de Sales Torres Homem, Jodo Manuel Pereira da Silva, Candido de Azeredo Coutinho, sob a lideranga do primeiro. La se encontravam para estudar ou cultivar-se, e Id travaram contacto com as novas orientacées literdrias, cabendo certamente a Magalhies a intuigio decisiva de que elas correspondiam a intencao de definir uma literatura nova no Brasil que fosse no plano da arte o que fora a Independéncia na vida politica e social. Para esta verificagao, j4 os predispunha a doutrina e exemplo de Ferdinand Denis e os franco-brasileiros, reapreciando e valorizando a tradigio indianista de Basilio e Durdo; as vagas aspiragées antipagis hauridas em Sousa Caldas e Monte Alverne, que admiravam estremecidamente; 0 pequeno mas significativo esforgo de Januario da Cunha Barbosa para, continuando Denis, identificar uma literatura brasileira autonoma; 9 incentivo de Evaristo da Veiga, chamando a mocidade & expressio do pais livre. Como ainda nao se fez uma pesquisa sistematica sobre a estada daquele grupo na Europa, € impossivel acompanhar a marcha da sua adesio ao Romantismo. Sabemos que Porto-Alegre foi talvez o primeiro a ter alguns vislumbres, através de Garrett, que conheceu e freqdentou em Paris no ano de 1832, dele recebendo uma espécie de revelacdo, que transmitiria ao amigo Magalhies, chegado no ano seguinte. “Foi Garrett o primeiro poeta portugués que me fez amar a poesia, porque me mostrou a natureza pela face misteriosa do coracio em todas as suas fases, em todas as suas sonoras modificagies””. Em 1834 teve lugar a primeira atividade comum do grupo: uma comunicagdo a0 Instituto Histérico de Paris, sobre o estado da culture brasileira, publicada na respectiva revista, tratando Magalhdes de literatura, Torres Homem de ciéncia ¢ Porto-Alegre de belasartes; o primeiro, sumaria e mediocremente; muito bem o dltimo’, A oportunidade foi devida com certeza a Eugene de Monglave, um dos fundadores, e secretério da agremiago, que se ocupou na Franga mais de uma vez com assuntos nossos*, 2. Ver José Verissimo, Estudos de Literatura, Il, pig, 182: “E quase certo que foi sob a influéncia do Bosquejo e da obra critica e literéria de Garrett que, fazendo violencia ao seu proprio temperamento, eles entraram na corrente puramente romantica”. de la littérature, des sciences et des arts au Brésil, par trois brésiliens, membres de VInstitut Historique”, JIH, Premitre Année, Premiére Livraison, Paris, Aodt 1834, pégs. 4753. 4, Deu um curso (diz Santiago Nunes que talvez na Sorbonne) sobre literatura brasilcira e portuguesa, reconhecendo a autonomia da nossa. Isso teria sido no decénio de 30 ou primeiros anos do de 40 (V. MB, [, p4g.11). Em 1844, tomou a defesa do Brasil, ante certos ataques da imprensa francesa (V. MB, Il. pég 666). Muito conhecido e estimado no Brasil é provavel que o seu Institut Historique tenha inspirado a Januérioe ‘outros a idéia do nosso Instituto Histérico e Geografico, fundado quatro anos depois. 13 Este documento precioso e modesto, transigao simbélica entre o Parnaso de Januario ea Niterdi, constituiu um ponto de partida. Nele se exprime o tema proposto por Denis na Historia Literdria: ha no Brasil uma comunidade literdria, um conjunto de mani- festacdes do espirito provando a nossa capacidade e autonomia em relacao a Portugal. Exprimesse, de modo vago e implicito, a idéia (acentuada por Denis apenas na parte relativa ao indianismo) de que alguns brasileiros, como Duro, Basilio, Sousa Caldas, José Bonifacio, haviam mostrado o caminho a seguir, quanto a sentimentos e temas. Bastava prosseguir no seu esforco, optando sistematicamente pelos assuntos locais, 0 Patriotismo, o sentimento religioso. Passo decisivo foi a revista publicada em Paris no ano de 1836, gracas 4 munificéncia de um patricio, Manuel Moreira Neves, e cujos dois nicos numeros contém o essencial da nova teoria literdria; Niterdi, Revista Brasiliense de Ciéncias, Letras e Artes, que trazia como epigrafe: “Tudo pelo Brasil, e para o Brasil”. O solicito Monglave anunciou-a ao mundo culto da Franga, e os rapazes escreveram sobre literatura, mtisica, quimica, economia, direito, astronomia. Os estudos criticos de Magalhdes e Pereira da Silva estabeleceram o ponto de partida para a teoria do Nacionalismo literdrio, como veremos noutra parte, aclimando as idéias de Denis, que lhes servia de bussola. Inspirado, 0 jovem autor dos Suspiros Poéticos perguntava com énfase, para logo propor a resposta, dentro das idéias de ligagio causal entre o meio e a literatura, acentuando as forcas sugestivas da natureza e do indio: “Pode o Brasil inspirar a imaginagdo dos poetas e ter uma poesia prépria? Os seus indigenas cultivaram porventura a poesia? Tao geralmente conhecida é hoje esta verdade, que a disposicao e cardter de um pals, grande influéncia exerce sobre 0 fisico € ‘o moral dos seus habitantes, que a damos como um principio, e cremos inutil insistir em demonstrélo com argumentose fatos por tantos naturalistas e fildsofos apresentados”, Estava Jangada a cartada, fundindo mediocre, mas fecundamente, para uso nosso, 0 complexo Schlegel-Staél-Humboldt-Chateaubriand-Denis. O maior trunfo, porém — para quem pesquisa as emergéncias misteriosas da sensibilidade, mais do que as racionalizagées espetaculares — no est no ensaio ambicioso do futuro Visconde. Encontra-se no mimero 2 da mesma revista, numa pequena nota de PortoAlegre &sua “Voz da Natureza”, talvez o primeiro poema decididamente romantico publicado em nossa literatura; pequena e singela nota, onde o entusiasta de Garrett encerrava todas as aspiragdes da nova escola e definia a sua separacdo da literatura anterior: “Algumas expressées se encontram, pode ser, desusadas, mas elas sio filhas das nossas impresses, ¢ de mais vemos a natureza como Artista, e ndo como Gramatico”®. Sao palavras decisivas: desprezando a regra universal, a arte das impressdes pessoais e intransmissiveis descia sobre a nossa pequena e débil literatura. 5, Magalhdes, “Ensaio sobre a histéria da literatura do Brasil, reproduzido em Opusculos Histdricos Literdrios, pig. 264. 6.N. Il, pa. 213, © poema finaliza um longo escrito sobre os “Contornos de Népoles”, pags. 161-211, 4 Local e universal Com isto j4 possivel indicar os elementos que integram a renovacio literdria designada genericamente por Romantismo — nome adequado e insubstituivel, que ndo deve porém levar a uma identificacdo integral com os movimentos europeus, de que constitui ramificagdo cheia de peculiaridades. Tendo-se originado de uma convergencia de fatores locais ¢ sugestdes externas, é a0 mesmo tempo nacional e universal. 0 seu interesse maior, do ponto de visia da historia literdria e da literatura comparada, consiste porventura na felicidade com que as sugestées externas se prestaram a estilizacao das tendéncias locais, resultando um momento harmonioso ¢ integro, que ainda hoje parece a muitos 0 mais brasileiro, mais auténtico dentre os que tivemos. Os contempordneos intuiram ou pressentiram esse fato, arraigando-se em conseqiién- cia no seu espirito a nogao de que fundavam a literatura brasileira. Cada um que vinha = Magalhaes, Goncalves Dias, Alencar, Franklin Tavora, Taunay — imaginava-se detentor da f6rmula ideal de fundagao, referindo-se invariavelmente as condicdes previstas por Denis e retomadas pelo grupo da Niterdé: expressio nacional auténtica Digamos, pois, que a renovagao literdria apresenta, no Brasil, dois aspectos basicos: nacionalismo e Romantismo propriamente dito, sendo este o conjunto dos tracos especificos do espitito e da estética imediatamente posteriores ao Neoclassicismo, na Europa e suas ramificagdes americanas. Deixando-o para um pardgrafo especial, abordemos o primeiro, que engloba o nativismo em sentido estrito e jé entio tradicional em nossa cultura, (ligado pura celebragdo ou aos sentimentos de afeto pelo pais), mais o patriotismo, ou seja, o sentimento de apreco pela jovem nagio ¢ o intuito de dota de uma literatura independente. No nativismo, predominando o sentimento da natureza; no patriotismo, o da polis. Teoricamente, o nacionalismo independe do Romantismo, embora tenha encontrado nele o aliado decisivo. Podemos mesmo supor, para argumentar, formas nao-romanticas em que se teria desenvolvido. Ha com efeito na literatura uma aspiragdo nacional, definida claramente a partir da Independéncia e precedendo o movimento romantico. Exemplo tipico ¢ a obra nao obstante arcadica de Janudrio da Cunha Barbosa, acatado e prezado pelos renovadores, que o chamaram “decano da Literatura Brasileira", porque eram antes de tudo nacionalistas. Inversamente, a aceitacao dos primeiros romanticos pela opiniao e 0 poder pubblico (habituados aos moldes neoclissicos) se prende as mesmas razées: eram os que vinham estabelecer nas letras o correspondente da Independéncia, promovendo as Luzes de acordo com as novas aspiragies. O Romantismo brasileiro foi por isso tributario do nacionalismo; embora nem todas as suas manifestacdes concretas se enquadrassem nele, ele foi o espirito diretor que animava a atividade geral da literatura. Nem é de espantar que assim fosse, pois sem falar da busca das tradigdes nacionais e o culto da histéria, o que se chamou em toda a Europa “despertar das nacionalidades”, em seguida ao empuxe napoleénico, encon- trou expressdo no Romantismo. Sobretudo nos paises novos e nos que adquiriram ou tentaram adquirir independéncia, 0 nacionalismo foi manifestagao de vida, exaltacéo afetiva, tomada de consciéncia, afirmagao do préprio contra o immosto. Dai a soberania do tema local e sua decisiva importéncia em tais paises, entre os quais nos enquadramos. Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentido nacional, era 15 libertar-se do jugo da literatura clssica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado abstrata — afirmando em contraposigéo o concreto espontaneo, carac- teristico, particular. Veremos no préximo pardgrafo que tais necessidades de indi- viduagao nacional iam bem com as peculiaridades da estética romantica. Esta tendéncia era reputada de tal modo fundamental para a expressdo do Brasil, que os jovens da segunda geragéo manifestaram verdadeiro remorso ao sobrepor-lhe os problemas estritamente pessoais, ou ao deixé-la pelos temas universais e 0 cendrio ue outras terras. Ninguém mais elogiiente a esse respeito que Alvares de Azevedo, o tnenos pitoresco de todos, 0 mais obcecado pelo seu drama intimo e os modelos curspeus, Hi um trecho importante do Macdrio em que se desdobra nos personagens © faz um deles acusar enquanto 0 outro defende, um poeta céptico, pouce nacional, que & vevtamente ele préprio. Penserosc fala por toda a geragéo e pela consciéncia putridtica do autor, quando brada: "Esse americano nao sente que ele & filho de uma nagao nova, nao a sente uv mald.to cheia de sangue, ce mocidade e verdor? Nao se lembra que seus arveredos OceaHlOs ESCUIESOS, OS SeUS rios, Stas cataratas, que tudo Li € glunde suolue! Mas ventunias Jo sertio, nas trovoadas do sul, no sussurra das Nurestas 4 noite nae svuted Tufed us Jieludivs Jaquet musica gigante da terra que eistug 4 Matha a epupela do fuinem de gus? Nau setiu ele que aqueta sua ayo infante Gav se ental nos titios da sstupelu cite Jupiter tus cavertias do Ida no alarido dos Conhatites ~ tem tate censura darbficalidade do indianismo ¢ da powskt america, numa sete fealista “Falun ios gemidus da noite no sertdo, nas wadighes as Layds fetutdas das Hlucestas, Has tou entes das serranias, como se li tivessum durmidu oo Mehos UMA noite, Como se dordassem procurando tumulos. ¢ perguntatide como Hom eto no cemiterio u cada caveira do desert o seu passado, Aaloiitescas, seus Metitides! Tudo isso lhes veio & mente lendo as paginas de algum viajante que vsqueceirse lalvez de contar que nos ma.gues € nas aguas do Amazonas e do Orenoco ha mais mosquitos e sezoes do que inspiragdo: que na fluresta ha insetos repulsivos, repteis imundos, que a pele furtacor do tigre nao tem o perfume das flores — que tudo 7 ‘ oT tsto é sublime nos livros mas é soberanamente desagradavel na realidade"’. Trechos capitais, exprimindo a ambivaléncia do nosso Romantismo, transfigurador de uma realidade mal conhecida e atraido irresistivelmente pelos modelos europeus, que acenavam com a magia dos paises onde radica a nossa cultura intelectual. Por isso ao lado do nacionalismo, hé no Romantismo a miragem da Europa: o Norte brumoso, a Espanha, sobretudo a Itélia, vestibulo do Oriente byroniano. Poemas e mais poemas cheios de imagens desfiguradas de Verona, Florenca, Roma, Napoles, Veneza, vistas através do Shakespeare, Byron, Musset, Dumas, e das biografias lendarias de Dante ou Tasso, num universo de oleogravura semeado de géndolas, marmores, muralhas, venenos, punhais, veludos, rendas, luares e morte. Em Alvares de Azevedo, em Castro Alves, noutros menores, perpassam em contraposicao as “belas filhas do pais 7. Manoel Antonio Alvares de Azevedo, Obras, 7* edicdo, vol. 3%, pags. 508 e 310, 311. Uso sempre, neste trabalho, a 9* edigo, de Homero ~ires, cujo texto é melhor e mais completo, Mas como no trecho citado vem rela um grave erro, penso que de tipografia, preferi, no caso, a de Joaquim Norberto, 16 @- MUSEU "JULIO _DE CASTILHOS! S Desenho de Porto Alegre (Cortesia do D. P, H. A.N.) Marabé, por Rodolfo Amoédo (Cortesia do D. PH. A. N.) do Sul”, as “italianas” — brancas e hierdticas, ou dementes de paixdo, encarnando as necessidades de sonho e fuga, libertacio e triunfo dos sentidos, transplantadas, como flores raras, das paginas de Byron para os jardins da imaginagéo tropical. Religiao Dentre os temas nacionais, onde esta imaginagdo se movia por dever e prazer, ocorriam alguns prediletos. A celebracao da natureza, por exemplo, seja como realidade presente, seja evocada pela saudade, em pecas que ficaram entre as mais queridas, como “Cangio do Exilio” e “O Gigante de Pedra”, de Goncalves Dias, “Sub Tegmine Fagi”, de Castro Alves. Ou os poemas histéricos, como o ciclo do 2 de Julho, o da Confederacao do Equador, que inspiraram Castro Alves e Alvares de Azevedo; os poemas da América, tomada no conjunto, objeto de varias poesias de Varela; a guerra do Paraguai, que mobilizou todas as musas do tempo. O interesse pelos costumes, regides, passado brasileiro, se manifestou largamente no romance, como veremos. A religido foi desde logo reputada elemento indispensdvel 4 reforma literaria, nao apenas por imitacdo dos modelos franceses, mas porque, opondo-se ao temario pagao dos neocléssicos, representava algo oposto ao passado colonial. Tanto mais quanto dois Ppoetas considerados brasileiros e precursores, So Carlos e Caldas, versaram lar- gamente esse tema, enquanto Monte Alverne dera exemplo de novos sentimentos através da oratéria sagrada. Embora os poetas da primeira fase tivessem sido os mais declarada- mente religiosos, no sentido estrito, todos os romanticos, com poucas excegdes, manifestam um ou outro avatar do sentimento religioso, desde a devocdo caracterizada até um vago espiritualismo quase pantefsta. E preciso, com efeito, distinguir mais de um aspecto nessa tendéncia. Temos em primeiro lugar a religido como fé especifica, como crenga ¢ devogio ao modo da que aparece num ensaio de Magalhies, publicado no pOrticg da nova literatura que foi a Niteréi, como que assinalando o seu papel indispensavel®, No prefacio a Os Tres Dias de um Noivado, Teixeira e Sousa redige verdadeiro manifesto contra 0 materialismo, apontando nas convicgdes religiosas nao apenas a filosofia reta, mas 0 requisito da inspiragao poética. Em sentido estritamente devoto, temos, por exemplo, 0 livro de poesias de um estudante de Olinda, compactamente catdlico e quase devocional, constando apenas de poesias do tipo de propaganda diocesana: a Oblacdo ao Cristia- nismo, de Torres Bandeira. O Anchieta, de Varela, é certamente o mais alto produto neste sentido realizando um catecismo metrificado com mais largueza de espirito. Mas foi a segunda modalidade que dominou: religiao concebida como posicao afetiva, abertura da sensibilidade para 0 mundo e as coisas através de um espiritualismo mais ou menos indefinido que é propriamente a religiosidade, tao caracteristica do Roman- tismo e jd encontrada por nés no 1° volume. Assim a vemos tanto num meticuloso devoto, como Magalhaes, quanto num céptico irreverente, como Bernardo Guimaraes. espiritualismo era um pressuposto da escola, e todos pagavam o seu tributo. 8 Goncalves de Magalhies “Filosofia da Religiio”, reproduzida em Ospuisculos Histdricos e Literdrios, pags. 273304. VW No campo da critica, volta e meia surgem declaragdes de que sem a religido nao ha literatura possfvel, aparecendo ela quase como sindnimo de densidade psicoldgica, senso dramdtico. Neste sentido a concebera um mestre de todos os romanticos, Schlegel, para o qual o sentimento do pecado, levando ao dilaceramento, interior, marcou o fim do classicismo pagio e o advento de uma arte mais complexa e movimentada. “Sem religido nao hd arte”, afirma dogmaticamente © jovem Macedo Soares, mas esclarece em nota: “Ninguém ignora que é ao sensualismo e a0, cepticismo, sua natural conseqiiéncia, que se deve a aridez da literatura no século pasado, Quando falo em religiéo, no quero apontar o catolicismo, nao obstante ser aquela onde mais predomina o espiritualismo; falo do sentimento religioso; da religido do belo, ao menos”®, Nao se podia exprimir mais limpidamente a posigéo roméntica, oscilando numa gama bem ampla entre a devocio e a vaga religiosidade. Indianismo A forma reputada mais lidima de literatura nacional foi todavia, desde logo, o indianismo, que teve 0 momento dureo do meado do decénio de 40 ao decénio de 60, decaindo a partir dai até que os escritores se convencessem da sua inviabilidade. Naquele momento, porém, encontrou em Gongalves Dias e José de Alencar representantes do mais alto quilate. As suas origens sao dbvias: busca do especifico brasileiro, jd orientada neste sentido (com meia consciéncia do problema) pelos poemas de Durdo ¢ Basilio e as metamorfoses de Diniz, além duma crescente utilizagdo alegérica do aborigine na comemoracao plastica e poética. Nas festas do Brasil joanino ele aparecia amplamente com este significado, representando o pais com uma dignidade equiparavel a das figuras mitolégi- cas. O processo se intensifica a partir da Independéncia, pela adogio de nomes e atribuigao de titulos indigenas; pela identificagdo do selvagem ao brio nacional e o seu aproveitamento plastico. Em 1825, uma gravura representava D. Pedro recebendo nos bragos o Brasil liberto de grilhdes, sob a forma duma india; segundo Schlichthorst, o modelo foi a entio viscondessa de Santos.” 0 empuxe decisivo foi dado pelo exotismo dos franceses, principalmente Chateaubri- and, aplicado ao Brasil, como vimos, pelos pré-romanticos franco-brasileiros, Podemos dizer que esta foi a influéncia que ativou a de Basilio e Durdo, reinterpretados, gracas a ela, segundo as aspiragdes romanticas. Seria preciso também lembrar a opiniio de Capistrano de Abreu (infelizmente sumaria e mal formulada), que o indianismo, sendo “muito geral para surgir de causas puramente individuais, reflete profunda tendéncia popular, manifesta no folclore, de identificar o indio aos sentimentos nativistas”. Patece, ao contrério, que tal identificacdo provém de fonte erudita, a utilizacio nativista do indio é que se projetou na consciéncia popular. Jé 0s ilustrados da fase joanina utilizavam-no como simbolo, bastando lembrar o nome dado por José Bonifacio aa seu jornal, O Tamoio, evocando o adversirio dos portugueses nas campanhas contra Villegai- 9, Macedo Soares, “Cantos da Solidio (Impressdes de leitura)”, EAP, ns. 34, pig. 397 (1857). 10. C. Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é, p4g. 55. 11, Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos, 1" série, pag. 93-95, 18 gnon e encarnando nele a resisténcia nativista; ou ainda os nomes que aparecem na sociedade secreta que fundou, 0 Apostolado, onde ele era Tibiri¢d e se verificava, expressivamente, “grande confusdo de pseuddnimos de sugestao classica e nativista”. Como Grao-Mestre do Grande Oriente do Brasil, 0 préprio D. Pedro, que acabara de proclamar a Independéncia, foi Guatimozim, nome que exprime a inclinagao dos ilustrados pelos nativos mais adiantados da América Espanhola, que ofereceram resistencia efetiva ao conquistador™. Contribuiria por ventura neste sentido a influencia d’Os Incas de Marmontel, traduzido e muito lido em Portugal e Brasil. Lembremos a propésito a simpatia de Basilio da Gama pelo ultimo revel que foi Tupac Amaru e a tragédia inacabada eperdida de Natividade Saldanha sobre Atahualpa, tomado como simbolo da resisténcia e rebelido do americano de cor — puro e mestigo — contra 0 jugo colonial. Segundo Joao Francisco Lisboa, um dos fatores do indianismo teria sido a natural reagio contra os desmandos e violéncias do colonizador, por parte dos que estudavam o passado brasileiro. Neste sentido, deram no extremo oposto, louvando o indioe vituperando o portugues com igual demasia. E faz troca: “O nosso atual Imperador, dizem, mostra grande interesse € curiosidade por tudo quanto diz respeito 8s racas aborigines, que antigamente senhoreavam seu vasto império, Um grande poeta (e os poetas sao também reis e imperadores a seu modo, e dentro da sua esfera) no primeiro ardor de uma imaginaco ainda virgem, ¢ longe da patria ausente, cantou, envernizou, amenizou, poetizou enfim os costumes ingénuos, as festas inocentes e singelas, as guerras herdicas, a resignacdo sublime, e a morte corajosa, bem como 0s trajes elegantes, e as decoragdes pomposas dos nossos selvagens. E eis af todo 0 mundo a Compor-se e menear-se a exemplo e feicdo dos reis, e aturdindonos em prosa e verso com tabas. muguranas, jamibias e maracés”.!? & visivelmente irdnica a referéncia a Goncalves Dias e a0 pendor de Pedro II, partilhado pelos membros do Instituto Histérico — associagdo que foi um fator igualmente importante do movimento indianista, com o incentivo aos estudos etnografi- cos, resultando monografias como O Brasil e a Ocednia, do autor dos Timbiras (1852). Ja vimos, na Niterdi, os reformadores encararem o indio como elemento basico da sensibilidade patriética; ao discorrer sobre a sua capacidade poética e o interesse que apresentava como tema, Magalhaes lhe dava um primeiro e jeitoso empurrao para 0 lado do cavaleiro medieval. Nao ha duvida que, deformado pela imaginagdo, ele se prestava a receber as caracteristicas que a este conferiu 0 Romantismo. Em nossos dias, 0 neo.indianismo dos modemnos de 1922 (precedido por meio século de etnografia sistemética)iria acentuar aspectos auténticos da vida do indio, encarando-o, nao como Sentithomem embriondrio, mas como primitivo, cujo interesse residia precisamente no que trouxesse de diferente, contraditério em relagio & nossa cultura européia. O indianismo dos romanticos, porém, preocupouse sobremaneira em equiparélo qualitativamente ao conquista dor, realgando ou inventando aspectos do seu comportamento que pudessem fazélo ombrear com este — no cavalheirismo, na generosidade, na poesia. 12, Octavio Tarquinio de Sousa, A Vida de Pedro 1, vol. 28, pig. 405. 13, Jodo Francisca Lisboa, Obras, vol II, pag. 200. 19 A altivez, 0 culto da vindita, a destreza bélica, a generosidade, encontravam alguma ressonancia nos costumes aborigines, como os descreveram cronistas nem sempre capazes de observar fora dos padres europeus e, sobretudo, como os quiseram deliberadamente ver escritores animados do desejo patridtico de chancelar a independéncia politica do pais com o brilho de uma grandeza herdica especificamente brasileira. Deste modo, o indianismo serviu no apenas como passado mitico e lendério, (a maneira da tradigao folclérica dos germanos, celtas ou escandinavos), mas como passado histérico, 4 maneira da Idade Média. Lenda e histéria fundiram-se na poesia de Gongalves Dias e mais ainda no romance de Alencar, pelo esforgo de suscitar um mundo poética digno do europeu. Estes dois movimentos se prefiguram, em 1843, num artigo onde Joaquim Norberto tenta mostrar a capacidade poética dos indios e o valor estético dos seus costumes, num vislumbre de que o tema indianista serve & dupla necessidade da lenda e da histéria. “Seus costumes, suas usancas, suas crencas forneceram o maravilhoso tio necessério 8 poesia”, diz no primeiro sentido; e, no segundo: “Nao temos castelos feudais, nem essas justas, torneios, lidas e combates de ricos homens, de infangdes e cavaleiros” (segue uma enumeragio do armarinho medievista); “... mas possuiremos a idade desses povos primitivos, com todas as suas tradices” — seguindo a enumeracdo do correspon- dente armarinho indianista, com evidente intuito comparativo. E muito significativa esta utilizagdo do tema indigena como compensacao: era preciso, dentro do espirito romantico, encontrar um equivalente daqueles temas, e a preocupacio é visivel tanto nos escritores eminentes quanto nos secundarios, como um que escrevia patrioticamente: “Por que ter’o a Escécia e Alemanha a presuncio de s6 elas possuirem esses, rios, lagos, matas, montes ¢ vales misteriosos donde surgem essas imagens languidas, transparentes, aéreas, qual névoa que sempre encobre a natureza desses torrées? ‘Nao. Nés também aqui temos os nossos mitos: génios dos rios, lagos, matas, montes e vales”. E conclui, numa tirada que revela o sentido de afirmagao particularista do indianismo: “Tudo temos em sobejo, s6 nos faltam os pincéis com que tragar os formidaveis quadros d’Ossian, Faust e Ivanhoé”.'® Esta tendéncia define um desejo de individuagao nacional, a que corresponde o de individuagao pessoal: libertagio gracas 4 definicdo da autonomia estética e politica (expressa principalmente pelo indianismo) a conquista do direito de exprimir direta e abertamente os sentimentos pessoais (manifesta sobretudo nas tendéncias propriamente roménticas do lirismo individual). Na medida em que toma uma realidade local para integréa na tradigdo classica do Ocidente, o indianismo inicial dos arcades pode ser interpretado como tendéncia para dar generalidade ao detathe concreto. Com efeito, concebido e esteticamente manipu- lado como se fosse um tipo especial de pastor arcddico, o indio ia integrar-se no padrao corrente do homem polido; ia testemunhar a viabilidade de incluir-se o Brasil na cultura do Ocidente, por meio da superacdo de suas particularidades. 0 indianismo dos romanticos, ao contrério, denota tendéncia para particularizar os grandes temas, as grandes atitudes de que se nutria a literatura ocidental, inserindo-as 14. J. Norberto de S. S. (sic), “Consideragdes gerais sobre a literatura brasileira” MB, il, pags. 415 € 416. 15, Carlos Miller, “Um fragmento do romance de A..”, BF, 1, n® 21, pg. 7. 20 na realidade local, tratando-as como préprias de uma tradigao brasileira. Assim, 0 espfrito cavalheiresco é enxertado no bugre, a ética e a cortesia do gentilhomem so trazidas para interpretar o seu comportamento. A distingdo pode parecer especiosa mas © seu fundamento se encontra na atitude claramente diversa de um Basilio da Gama e de um José de Alencar, Aprimeira composigdo em que o tema indigena aparece tratado ao modo romantico embora de passagem, é a “Nénia” de Firmino Rodrigues Silva (1837), reconhecida por todos os sucessores imediatos como ponto inicial do indianismo roméntico.'® Nela o indio ainda nao aparece como personagem pottico individuado, mas como alegoria, estabelecendo a passagem do indio-signo, do fim do periodo neo-

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