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Entre A Inocencia e A Morte Um Monumento Filmico Ao Sofrimento Infantil Na Guerra No Cinema Sovietico Ines Paredes-With-Cover-Page-V2
Entre A Inocencia e A Morte Um Monumento Filmico Ao Sofrimento Infantil Na Guerra No Cinema Sovietico Ines Paredes-With-Cover-Page-V2
Inês Paredes
Mestrado em Cinema
Seminário de Investigação
Janeiro de 2020
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior
Resumo
O “tempo de guerra” é um período de aflição para todos os indivíduos
apanhados no turbilhão da ocupação nazi, das operações militares, da economia
de guerra ou de outras circunstâncias causadas pelos conflitos armados. As
crianças são o segmento mais vulnerável da população, e, uma vez inseridas em
situação de guerra, que os afeta nos seus anos formativos mais delicados, essa
experiência permanece nelas como uma parte integrante das suas vidas.
Durante a II Guerra Mundial, algumas crianças esconderam-se como
forma de resposta a uma ameaça física direta; outras encontraram-se com os
seus pais na prisão ou em campos de concentração. Muitas morreram, e as que
sobreviveram fizeram-se acompanhar posteriormente pelas repercussões da
guerra, pela vida inteira.
Cada nação envolvida na II Guerra Mundial tem a sua própria maneira de
recordar os acontecimentos do grande conflito. A Rússia pós-soviética herdou
da URSS a narrativa heróica da Grande Guerra Patriótica como um instrumento-
chave construtor da identidade nacional. No entanto, houve cineastas,
posteriormente considerados peças-chave do cinema russo, que se desviaram
dessa rota de propaganda política.
“Ivanovo Detstvo”, de Andrei Tarkovsky, e “Idi i Smotri” de Elem Klimov,
são expoentes máximos do cinema bélico do pós-guerra soviético, com Ivan e
Florya, adolescentes arrastados para a guerra, como personagens principais. A
partir do retrato dos seus protagonistas, é possível ilustrar o impacto físico e
psicológico da criança soviética na guerra, bem como dar luz sobre a conceção
de cinema destes cineastas, passando pela criação de um personagem-tipo e da
génese do seu estilo visual, particularmente na sua abordagem ao cinema de
guerra.
Palavras-chave: infância; II Guerra Mundial; cinema soviético; Andrei
Tarkovsky; Elem Klimov
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Uma só lagrimazinha...
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autoridades russas, que temiam que os seus próximos filmes não respeitassem
as normas do Partido Comunista da União Soviética.
Todas as suas longas-metragens posteriores enfrentaram problemas com
as autoridades russas: "Andrey Rublev" (1966), foi proibido até 1971; Tarkovsky
quase foi detido por causa do seu filme "Zerkalo" (1975); "Stalker"(1979), teve
que ser re-filmado com um dramático corte na produção depois de um acidente
no laboratório destruir totalmente a primeira versão; "Nostalghia" (1983) foi
realizado sob a estrita vigilância da União Soviética e pouco depois da sua
filmagem, Tarkovsky fugiu com a sua esposa para a Suécia.
O seu último filme " Offret" (1986), foi filmado na Suécia com Ingmar
Bergman, e galardoado com quatro prémios no Festival de Cannes, um feito
nunca alcançado no cinema russo. Andrei Tarkovsky morre aos 54 anos, de
cancro no pulmão, a 29 de Dezembro de 1986, em Paris.
Elem Germanovich Klimov, nasceu no ano de 1933, em Volgograd (antiga
Estalinegrado). O seu pai, German Stepanovich Klimov foi membro da Comissão
de Controlo do Partido do Comité Central do Partido Comunista da União
Soviética.
Klimov formou-se no Instituto de Aviação de Moscovo em 1957 e
trabalhou como engenheiro. Em 1962 ingressou no Partido Comunista. Dois anos
depois, formou-se no Instituto de Cinema (Escola de Cinema VGIK), onde
enquanto estudante conheceu Larisa Shepitko, com quem mais tarde se casaria.
O seu projeto final foi uma comédia de oito minutos, “Zhenikh” (1960), que foi
projetada nas paredes do instituto.
O primeiro filme de Klimov foi “Dobro pozhalovat, ili Postoronnim Vkhod
Vospreshchen” (1964), uma sátira que, no período de Khrushchev, não foi
inicialmente exibido. No entanto, Khrushchev mais tarde viu o filme e autorizou
a sua estreia.
A sua segunda obra, “Pokhozhdeniya Zubnogo Vracha” (1965), que segue
um jovem dentista cujo dom mágico de ser capaz de extrair dentes de forma
indolor fez dele um objeto de escárnio entre colegas menos talentosos, foi
também censurada: a insinuação tirada do enredo era que a sociedade
inevitavelmente ostraciza aqueles que são dotados.
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ser uma procura espiritual, é também um retrato cru dos horrores da guerra,
que em nada difere das obras de cinema que retratam o combate com toda a
violência exercida e todo o sangue jorrado. A dor, a separação, e o medo,
interpretadas em “Ivanovo Detstvo”, também são cicatrizes de guerra.
A infância de Ivan foi singular, no entanto, comum a muitas crianças que
viveram na época: o jovem órfão não viveu essa etapa a brincar com a sua mãe
e amigos (na verdade, ele tem esse sonho, apresentado numa das muitas
sequências oníricas do filme), pelo contrário, cruza as paisagens em ruínas da
sua terra natal e traz informações secretas preciosas sobre o inimigo alemão
aos seus superiores do exército soviético.
O quotidiano de guerra observado pelos olhos de Ivan, uma visão
absurdíssima para uma pessoa tão jovem, entrelaça-se com os seus sonhos,
sucedendo-se quatro sequências oníricas durante a longa-metragem.
Esta interseção entre o mundo real e o mundo dos sonhos faz-nos pensar
numa fusão entre o espaço objetivo e subjetivo, fusão esta que se torna na
essência da personagem de Ivan: a perda da infância na guerra, e o seu desejo
de recuperar os anos perdidos dessa etapa que nunca viveu. Ao contrapor as
sequências de sonho e os planos da realidade objetiva, Tarkovsky cria um
mundo exterior subjetivo (que se perde na deambulação de Ivan entre o mundo
real e onírico) e o mundo interior objetivo (o impacto psicológico do poder
destrutivo da guerra para uma criança e o desejo palpável de poder reencontrar
a sua mãe).
O filme inicia-se com Ivan a olhar para o horizonte, através de uma teia
de aranha. A trama da teia é passível de ser comparada com a vida e destino
de Ivan. O olhar de Ivan é observador, que pretende absorver tudo à sua volta,
comportamento comum de uma criança saudável, mas também é perdido e algo
angustiado, um indício dos seus dias futuros. De seguida, temos planos de Ivan
a seguir o voo de uma borboleta – as borboletas são efémeras, assim como será
a vida de Ivan.
A câmara vai seguindo Ivan até este começar a voar (o que nos dá um
indício de que esta é uma sequência onírica) e desce para uma figura feminina
na estrada até se deter numa encosta enraizada. Ivan encontra mais tarde a
figura feminina (que se deduz que seja a sua mãe) e molha a cara no balde que
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mãe ser atingida por algo, ao som de tiros. O balde cai para dentro do poço,
atingindo-o. O plano seguinte é o da mãe caída no solo, e alguém fora de campo
lança-lhe água. Ivan acorda do sonho quando um dos soldados soviéticos lhe
atira com um copo de água.
O terceiro sonho de Ivan começa com o som de gotas de água a pingar,
que logo se transforma numa tempestade, através das imagens em negativo,
quando transpomos o mundo onírico. Um camião carregado de maçãs transporta
Ivan e uma menina nunca antes vista ao longo do filme. Ivan oferece à menina
uma maçã por três vezes, mas esta recusa-a por duas vezes.
Este é o primeiro sonho onde a figura da mãe não está presente. A mãe
possivelmente foi substituída pela figura da menina, o que implica uma
transição da infância para a pré-adolescência - o início da puberdade e da
procura pelo amor.
Os planos, repetidos três vezes, com as imagens em negativo como pano
de fundo, do rosto da menina, que mostra uma expressão angustiada, é um
prenúncio de que esta personagem pressentia uma tragédia iminente. Aliás, a
tempestade, a recusa da menina em receber as maçãs e a queda destas na
praia, com o camião a seguir caminho, são sinais da tragédia de Ivan, que está
cada vez mais próxima de acontecer. A última cena do sonho foi
deliberadamente filmada perto de água, para ligar esta sequência onírica à
anterior.
No mundo real, Ivan parte para a sua última missão, da qual não voltará.
A travessia para a frente alemã é feita por rio: num pequeno barco, estão Ivan,
Galtsev e Kholin. Apenas Galtsev sobrevive, com graves sequelas psicológicas.
Atravessam o rio para resgatar os corpos de Lyakhov e Moroz, enforcados pelo
inimigo e deixados com uma mensagem de boas vindas na margem alemã.
Galtsev e Kholin tratam de levar os corpos para a frente soviética, enquanto
Ivan tem a função de atravessar a floresta e seguir para a frente alemã.
Perdemos o seu rasto.
Terminada a guerra, vemo-nos em Berlim, agora sobre alçada russa. O
tenente Galtsev, que cuidava de Ivan durante a sua temporada na guerra,
apanha o dossiê de Ivan, por entre os milhares de dossiês de prisioneiros, nas
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1 Disponível em https://www.theguardian.com/news/2003/nov/04/guardianobituaries.russia
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discurso de Hitler e o hino nazi. Esse avião é uma presença constante, não
permitindo a Florya esquecer as suas decisões. Simultaneamente relembra-nos
a perversidade e o domínio (sentimento de vigilância) da ocupação nazi. Florya
regressa a casa onde a sua mãe, em desespero, implora-lhe que não a abandone
nem às suas irmãs, preferindo até que as matasse, como que pressentindo ser
a última vez que visse o seu filho.
Já integrado numa milícia soviética, Florya sofre um bombardeamento,
anunciado anteriormente pelo avião nazi que percorria os céus.
Testemunhamos o primeiro presságio das tragédias que se avizinhariam para
Florya: enquanto vagueia pelo bosque, pisa sem querer um ninho de pássaros
que fora anteriormente esmagado por soldados. Abandonado pelo seu grupo, e
acompanhado apenas pela jovem Glasha, Florya retorna à sua terra natal e
descobre que toda a sua família fora assassinada. Testemunhamos o início da
perda da humanidade existente no órfão, simbolizada pela travessia deste do
pântano - ainda com os ouvidos danificados da bomba lançada anteriormente,
Florya afunda-se na lama e vê na água o reflexo do seu rosto envelhecido. Esta
travessia transmuta-lhe as feições, elimina a sua jovialidade, e mata-lhe o
espírito. A morte está na revelação física da desgraça - nos corpos da sua família
e dos outros habitantes; nos gritos de Glasha e na sua tentativa morosa e
desesperada de atravessar o pântano.
O filme é um retrato do rosto de Florya, sorridente e jovial no início, que
vai definhando no seu cerne e que se torna num semblante melancólico,
envelhecido e vazio - que testemunhou por inúmeras vezes atos de bestialidade
e a banalização do mal.
O abandono é um conceito que atravessa todo o filme, no sentido em
que Florya sofre várias perdas: a perda da sua família, do seu pelotão que o
protegia durante a sua temporada de guerra, e da sua infância.
A fisicalidade do mal é apresentada não só nas mudanças do rosto de
Florya, mas também em tudo o que o acompanha ao longo do filme: os corpos
incinerados de civis e soldados soviéticos, as gargalhadas desdenhosas dos
soldados alemães, e a necessidade de normalizar a violência.
No momento em que os soldados apontam uma arma à cabeça de Florya,
o seu rosto não tem reação. Todo este momento é uma encenação para que
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Numa entrevista à revista Kinema, Klimov disse que “Idi i Smotri” é uma
memória coletiva sobre a guerra, sendo que também é uma reflexão das
emoções do cineasta sentidas durante o seu tempo de guerra. O filme é um
aviso sobre o potencial deste tipo de conflitos. Aquando da estreia de “Idi i
Smotri” no festival de cinema de Moscovo, um cinéfilo japonês abordou Klimov:
“A tua aldeia bielorrussa parece-se muito com a nossa Hiroshima. Todo o mundo
poderá tornar-se futuramente numa Hiroshima.”2.
De acordo com Brubaker (2010), “Idi i Smotri” é considerado uma
resposta direta a filmes de guerra soviéticos precedentes: uma ideia construída
sobre as fundações de conhecimento que o cinema de guerra anterior ergueu,
que pretende criar uma abordagem inovadora. “Idi i Smotri” é uma obra
singular, mas não pode tornar-se num marco independente das obras prévias do
cinema soviético, especialmente do filme predecessor de Tarkosvky, “Ivanovo
Detstvo”.
O trauma infligido a Ivan e Florya traça naturalmente relações íntimas
com o conceito do mal. Em “Ivanovo Detstvo”, o mal manifesta-se na mente de
Ivan e na sua própria angústia interna e este sofre sequelas vitalícias
predominantes na sua memória cognitiva.
O mal é físico em “Idi i Smotri”, retratado em corridas desesperadas,
rostos desfigurados pela raiva e corpos empilhados. Klimov mostra-nos a
exteriorização da sua experiência traumática. Os traumas são físicos e é a
memória física que fica com sequelas predominantes.
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Referências audiovisuais
Referências Bibliográficas
Bergan, R. (04/11/2003) Elem Klimov – Russian film director famed for his
devastating portrayal of war but frustrated by the Soviet system. Acedido a
10 de dezembro e disponível em:
https://www.theguardian.com/news/2003/nov/04/guardianobituaries.russia
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