Você está na página 1de 25

Accelerat ing t he world's research.

Entre a Inocência e a Morte - Um


monumento fílmico ao sofrimento
infantil na guerra no cinema soviético
Inês Paredes

Related papers Download a PDF Pack of t he best relat ed papers 


Entre a Inocência e a Morte:
Um monumento fílmico ao sofrimento
infantil na guerra no cinema bélico soviético

Inês Paredes

Mestrado em Cinema

Seminário de Investigação

Professora Ana Catarina Pereira

Janeiro de 2020
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Resumo
O “tempo de guerra” é um período de aflição para todos os indivíduos
apanhados no turbilhão da ocupação nazi, das operações militares, da economia
de guerra ou de outras circunstâncias causadas pelos conflitos armados. As
crianças são o segmento mais vulnerável da população, e, uma vez inseridas em
situação de guerra, que os afeta nos seus anos formativos mais delicados, essa
experiência permanece nelas como uma parte integrante das suas vidas.
Durante a II Guerra Mundial, algumas crianças esconderam-se como
forma de resposta a uma ameaça física direta; outras encontraram-se com os
seus pais na prisão ou em campos de concentração. Muitas morreram, e as que
sobreviveram fizeram-se acompanhar posteriormente pelas repercussões da
guerra, pela vida inteira.
Cada nação envolvida na II Guerra Mundial tem a sua própria maneira de
recordar os acontecimentos do grande conflito. A Rússia pós-soviética herdou
da URSS a narrativa heróica da Grande Guerra Patriótica como um instrumento-
chave construtor da identidade nacional. No entanto, houve cineastas,
posteriormente considerados peças-chave do cinema russo, que se desviaram
dessa rota de propaganda política.
“Ivanovo Detstvo”, de Andrei Tarkovsky, e “Idi i Smotri” de Elem Klimov,
são expoentes máximos do cinema bélico do pós-guerra soviético, com Ivan e
Florya, adolescentes arrastados para a guerra, como personagens principais. A
partir do retrato dos seus protagonistas, é possível ilustrar o impacto físico e
psicológico da criança soviética na guerra, bem como dar luz sobre a conceção
de cinema destes cineastas, passando pela criação de um personagem-tipo e da
génese do seu estilo visual, particularmente na sua abordagem ao cinema de
guerra.
Palavras-chave: infância; II Guerra Mundial; cinema soviético; Andrei
Tarkovsky; Elem Klimov

1
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Índice

A Grande Guerra Patriótica: a Rússia na II Guerra Mundial ........................ 4


Um memorial à infância perdida: as crianças na guerra ........................... 5
Uma impressão da realidade da guerra: o cinema soviético do pós-guerra ..... 6
Abolindo os paradigmas do cinema soviético: Andrei Tarkovsky e Elem Klimov 9
Testemunhos singulares do seu tempo: “Ivanovo Detstvo” e “Idi i Smotri”1 ... 1
A construção fílmica é dedicada à memória dos sem nome: o cinema como
arquivo bélico da perda da inocência ............................................... 20
Referências audiovisuais............................................................... 22
Referências bibliográficas ............................................................. 22

2
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

No passado, Dostoiévski fez a seguinte pergunta: e


será que encontraremos absolvição para o mundo,
para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna
se, em nome disso, para solidificar essa base, for
derramada uma lagrimazinha de uma criança
inocente? E ele mesmo respondeu: essa lagrimazinha
não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução.
Nenhuma guerra. Ela sempre pesa mais.

Uma só lagrimazinha...

Svetlana Alexievich, As Últimas Testemunhas, 2013

3
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

A Grande Guerra Patriótica: a Rússia na II Guerra Mundial

A 22 de junho de 1941, a Alemanha nazi invade a União Soviética,


quebrando o pacto de não-agressão celebrado entre as duas nações e dando
início ao que ficaria conhecido como, do lado russo, a Grande Guerra Patriótica.
Quando a II Guerra Mundial irrompe no curso da História, a União
Soviética une-se aos Aliados, uma aliança como um meio de controlar o
autoritarismo alemão e italiano. Desta vez houve a presença de países do
continente americano e asiático, extrapolando os limites de envolvimento que
caracterizaram a I Guerra Mundial.
A União Soviética uniu-se aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha no
combate ao regime nazi, cujas forças armadas eram a combinação do Exército,
da Marinha de Guerra, das tropas das Waffen-SS e da Força Aérea, durante o
período do Terceiro Reich (1935-1945), tornando-se assim no exército mais
poderoso e organizado de toda a Europa – o Wehrmacht.
A URSS promoveu uma forte propaganda ideológica para introduzir no
imaginário do povo soviético que a defesa da pátria significava o combate ao
regime nazi. Nesse sentido, a II Guerra Mundial passou a ser denominada, em
território soviético, de Grande Guerra Patriótica.
O cinema foi o meio utilizado como um dos elementos da máquina
preparatória de guerra na União Soviética, também usado como uma atração
artística e intelectual para resistentes ao regime de Estaline.
A União Soviética, com o seu Exército Vermelho (como eram designadas
as tropas do regime) foi o único país capaz de derrotar o Wehrmacht, sem o
auxílio de tropas estrangeiras e sem acordos de rendição, levando,
posteriormente, à rendição do regime alemão e ao fim da guerra. Mais de 20
milhões de soviéticos – homens, mulheres e crianças – foram mortos em
combate.
Numa entrada de uma notícia da quinta edição da revista Drujba
Naródov, publicada em 1985, lia-se: “Na época da Grande Guerra Patriótica
(1941-5), morreram milhões de crianças soviéticas: russas, bielorrussas,
ucranianas, judias, tártaras, letãs, ciganas, cazaques, uzbeques, arménias,
tajiques...”

4
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Um memorial à infância perdida: as crianças na guerra

As crianças foram a maioria das vítimas civis da II Guerra Mundial. O


horror nazi despiu a Nação Soviética e revelou a incapacidade das suas famílias
no que toca à proteção das suas crianças. De acordo com Fehrenbach (2010),
as crianças foram vítimas intencionais na luta do império nazi pelo domínio
mundial. Devido à sua natureza dependente e não-produtiva e ao medo, por
parte do Terceiro Reich, do seu potencial reprodutivo, as crianças de raças
consideradas inferiores eram automaticamente selecionadas para “morte
imediata”. As taxas de mortandade foram mais altas nas crianças judaicas –
apenas cerca de 11 por cento sobreviveu ao horror nazi na Europa. Adolescentes
de raça negra, nascidos na Alemanha, foram esterilizados; crianças
incapacitadas sofreram eutanásia; crianças ciganas oriundas da zona leste
foram assassinadas juntamente com as suas famílias; e jovens polacos e
soviéticos tornaram-se escravos nas fazendas e fábricas. Além disso, crianças
polacas, tcheco-eslovacas e jugoslavas foram raptadas para serem
“germanizadas” – adotadas por casais arianos, na Alemanha.
A autora anteriormente mencionada relata que intelectuais
contemporâneos da II Guerra Mundial rotularam a opressão nazi como uma
“guerra contra as crianças”.
Na frente soviética, as crianças foram educadas numa cultura de
sacrifício pela pátria, de fruição do combate franco e honesto, de camaradagem
acima de tudo, e de ser mártir pela URSS – nasce aqui, juntamente com o treino
ideológico da “Juventude Hitleriana”, o que poderá ser o protótipo de crianças-
soldado. Jovens como Vália Kotik, um guerrilheiro ativo no território da
Ucrânia, sabotando comboios e explodindo armazéns militares, que morreu aos
14 anos num combate pela cidade de Iziassláv; Marat Kazei, que organizou
dezenas de explosões em ferrovias e participou de ofensivas contra tropas
inimigas, suicidou-se com uma granada aos 14 anos, após ter sido rodeado de
soldados alemães; Lara Mikhéenko, uma guerrilheira fuzilada, aos 14 anos, por
soldados nazis, depois de passar por torturas terríveis; e Volódia Dubinin, um
explorador na Crimeia, morreu na explosão de uma mina terrestre enquanto
desativava minas na cidade de Kerch; são antecessores de, segundo Sullivan

5
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

(2008), mais de meio milhão de crianças e adolescentes, no sudeste da Ásia e


África Central, recrutados e manipulados para viver uma cultura da violência,
muitas vezes dirigida às suas próprias comunidades e famílias.
No entanto, foram jovens que não escolheram irem para a guerra: Kotik
viu a sua vila Khmelevka ser ocupada por tropas alemãs; Kazei viu a sua mãe
ser executada por soldados nazis; e Mikhéenko nunca regressou à sua aldeia
natal, porque esta fora ocupada pelo exército de Hitler. Estes foram jovens que
se viram repentinamente despidos de afeto e de companhia familiar, com um
culpado em mira, e que decidiram juntar-se a exércitos da resistência e
combateram em conflitos até ficarem incapacitados ou, eventualmente,
morrerem.
Estes heróis infantis foram celebrados na cultura de massas soviética
como exemplos de coragem e valor para as futuras gerações infantis, que não
tinham conhecimento dos horrores da guerra. Surgiram imensas interpretações
das histórias de Lara Mikheyenko e Volodya Dubinin, tendo sido eventualmente
incluídas em conteúdos programáticos escolares. Inclusive Musya Pinkenzon,
um violinista prodígio que morreu cravado de balas enquanto tocava o hino da
União Soviética, tornou-se no herói numa obra de animação.
Histórias como estas serviram de inspiração para diversas narrativas no
cinema soviético do pós-guerra. Ivan e Florya são exemplos de personagens,
com idades entre os 12 e os 16 anos, vítimas dos horrores da guerra. No final
do conflito, em 1945, morreram cerca de três milhões de crianças.

Uma impressão da realidade da guerra: o cinema bélico soviético do período


do pós-guerra

A guerra mudou drasticamente todo o espectro temático do cinema de


guerra soviético.
O cinema bélico soviético realizado depois da II Guerra Mundial foi
essencialmente um cinema de propaganda, geralmente realizado com grande
pompa e em coprodução com outras potências cinematográficas, que procurou
institucionalizar a constituição de uma memória coletiva e reforçar a História
oficial e tradicional da URSS, com o objetivo de ser um monumento à
reminiscência, à comemoração de datas nacionais e um incentivo ao
patriotismo soviético.

6
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Para o regime soviético, retratar a realidade passada através do cinema,


significava tentar explicar a realidade presente e legitimar as posições de
grupos mais restritos, que se situam no cume da pirâmide do poder – neste caso,
Estaline – e posteriormente, da liderança coletiva comunista. Este retrato
cinematográfico processava-se por uma inculcação de uma criação de um
inimigo externo e de o tornar ameaçador, e da posterior necessidade de coesão
do povo em torno da liderança como forma de se conseguir igualar a esse
oponente hostil.
Depois de uma primeira coletânea-piloto de curtas-metragens chamada
“Coleções de Batalha”, surgiram as primeiras longas-metragens sobre a Guerra
– “Ona Zashchishchaet Rodinu” (1943), “Raduga” (1944), “Zoya” (1944), entre
outras - onde a guerra já não era retratada como uma série de vitórias fáceis
sobre um inimigo idealizado como sendo exageradamente fraco.
A vitória sobre a Alemanha nazi provocou uma reforma no "culto da
personalidade" do chefe do regime. Mikhail Chiaureli, um cineasta e conhecido
próximo de Estaline, retratava o líder comunista nas suas obras, como um deus
de carne e osso, causando a adoração em massa da população.
Seguiu-se um período de censura: o número de filmes realizados na URSS
decaiu a partir de 1945 – foram produzidos menos filmes do que durante a II
Guerra -, e esta tendência manteve-se até o fim do regime estalinista. Estaline,
um cinéfilo ávido, que nunca deixou os estreitos limites do Kremlin, ou da sua
casa de campo nas proximidades, decidiu criar o Ministério do Cinema em 1946,
que teve como primeiro-ministro Ivan Bolshakov, mas que de nada serviu. A
repressão económica e social que aconteceu a partir de 1946, sobretudo no
campo das artes, foi o fator principal da baixa produção fílmica e de outros
ramos da indústria cultural.
O governo estalinista decidiu baixar o nível de produção de filmes e
seguir o princípio de “qualidade ao invés da quantidade”, selecionando os
cineastas mais distintos e deixando-os realizar um repertório de apenas 12
filmes por ano – as obras que conseguiriam fundos para serem realizadas seriam
aquelas que representassem verdadeiramente o “realismo socialista”. Neste
período foram realizados apenas épicos sobre a Revolução Russa e a Grande
Guerra Patriótica (“Nezabyvaemyy 1919 God” (1951), “Stalingradskaya Bitva”

7
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

(1949)), e biografias sobre cientistas (“Zhukovsky” (1950), “Przhevalsky”


(1952)), comandantes (“General Nakhimov” (1968), “Admiral Ushakov” (1953))
e artistas (“Kompozitor Glinka” (1952), “Belinskiy” (1953)). Os grandes nomes
do cinema russo da época, como Mikhail Romm, Vsevolod Pudovkin e outros,
juntaram-se a esta curta seleção.
A era de produção mínima de filmes acabou pouco depois da morte de
Estaline, surgindo posteriormente a “Era Khrushchov”, também chamada de
“Era da Desestalinização”, imposta por Nikita Khrushchov na URSS, entre 1953
a 1964, período em que o regime soviético sofreu os chamados processos de
"desestalinização".
Na segunda metade dos anos 50, houve um aumento na produção
cinematográfica e uma afluência de estreias nas áreas da realização e
representação. A figura mais relevante foi Grigory Chukhrai (“Sorok Pervyy”
(1956), “Ballada o Soldate” (1959), “Chistoe Nebo” (1961)). Contudo, a geração
mais velha de cineastas continuou a produzir grandes obras – “Letyat Zhuravli”
(1957), do realizador Mikhail Kalatozov, ganhou a Palme d'Or em Cannes.
Apesar de a era popularmente chamada de “Era do Degelo” ter sido um
período menos opressor do que o regime de Estaline, houve ainda cineastas
cujas obras foram reprimidas: “Andrey Rublev” (1966), de Andrey Tarkovsky,
tornou-se também vítima deste período de censura. Este filme capturou o
caráter nacional, a beleza artística e cultural, e a história trágica da Rússia. Foi
banido durante anos pelas autoridades soviéticas devido a conotações religiosas
e filosóficas que não se comportavam com a ideologia oficial.
Em meados da década de 1960, o Kremlin declarou guerra ao "filme do
autor" soviético, uma corrente no cinema que não se encaixava no proposto
"realismo socialista”. Os filmes de Andrey Konchalovsky (“Istoriya Asi
Klyachinoy, Kotoraya Lyubila, da ne Vyshla Zamuzh” (1966)), a dupla de
Alexander Alov e Vladimir Naumov (“Kvernyy Anekdot” (1966)) Larisa Shepitko
(“Nachalo Nevedomogo Veka” (1967)), Alexander Askoldov (“Komissar” (1987))
também foram ignorados.
No entanto, o período de degelo permitiu estrear novas versões
cinematográficas de clássicos literários como “Voyna I Mir” (1966) de Sergei
Bondarchuk, “Anna Karenina” (1967) de Alexander Zarkhi, “Hamlet” (1964) de

8
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Grigory Kozintsev e “Bratya Karamazovy”(1969) de Ivan Pyrev e Kirill Lavrov;


fornecer entretenimento ao público com as comédias de Leonid Gaidai
(“Operatsiya 'Y' i drugie priklyucheniya Shurika" (1965), “Kavkazskaya plennitsa,
ili Novye priklyucheniya Shurika” (1967), “Brilliantovaya Ruka” (1969)) e Eldar
Ryazanov (“Beregis avtomobilya!” (1966)) e Georgy Daneliya (“Ya Shagayu po
Moskve” (1964)) e dos filmes de “art house” de Gleb Panfilov (“V Ogne Broda
Net” (1968)), de Larisa Shepitko (“Krylya” (1966)), e de Andrey Tarkovsky,
como por exemplo “Ivanovo Detstvo” (1962).

Abolindo os paradigmas do cinema soviético: Andrey Tarkovsky e Elem


Klimov

Tarkovsky e Klimov permanecem como sendo duas figuras-chave do


cinema do pós-guerra soviético. Divididos entre os blocos Este e Oeste,
esforçaram-se por fazer cinema sob as restrições colocadas pelo comunismo e
capitalismo. Oriundos do período da URSS, nascidos na Rússia, pertenceram à
mesma geração: nasceram nos anos 30, experienciaram as crueldades da II
Guerra Mundial enquanto crianças, e como jovens artistas, sofreram os ideais
ortodoxos do Estalinismo.

Andrei Arsénievich Tarkovsky nasceu na aldeia de Zavrazhye, Ivanovo, na


região do rio Volga, na URSS, em 1932. O seu pai, Arseny Alexandrovich
Tarkovsky, natural da Ucrânia, foi um dos mais reconhecidos poetas russos
modernos.
Na sua juventude, estudou música, pintura e escultura e aprendeu
línguas orientais (o árabe) em Moscovo, antes de se interessar por cinema.
Em 1954, Tarkovsky começou a estudar na conceituada Escola de Cinema
VGIK (Instituto Estatal de Cinematografia da Rússia), no curso de cinema – onde
mais tarde, estudaria Elem Klimov.
Realizou curtas-metragens e conheceu aqueles que seriam os seus
melhores amigos e colegas Sergéi Parajanov e Mijaíl Vartanov. O filme que
realizou como trabalho final de curso chamou-se "Katok i Skripka" (1961).
Com “Ivanovo Detstvo” (1962), Tarkovsky obteve o Leão de Ouro no
Festival de Cinema de Veneza e tornou-se rapidamente no centro de atenção
de todos. No entanto, Tarkovsky caiu rapidamente sob a estrita vigilância das

9
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

autoridades russas, que temiam que os seus próximos filmes não respeitassem
as normas do Partido Comunista da União Soviética.
Todas as suas longas-metragens posteriores enfrentaram problemas com
as autoridades russas: "Andrey Rublev" (1966), foi proibido até 1971; Tarkovsky
quase foi detido por causa do seu filme "Zerkalo" (1975); "Stalker"(1979), teve
que ser re-filmado com um dramático corte na produção depois de um acidente
no laboratório destruir totalmente a primeira versão; "Nostalghia" (1983) foi
realizado sob a estrita vigilância da União Soviética e pouco depois da sua
filmagem, Tarkovsky fugiu com a sua esposa para a Suécia.
O seu último filme " Offret" (1986), foi filmado na Suécia com Ingmar
Bergman, e galardoado com quatro prémios no Festival de Cannes, um feito
nunca alcançado no cinema russo. Andrei Tarkovsky morre aos 54 anos, de
cancro no pulmão, a 29 de Dezembro de 1986, em Paris.
Elem Germanovich Klimov, nasceu no ano de 1933, em Volgograd (antiga
Estalinegrado). O seu pai, German Stepanovich Klimov foi membro da Comissão
de Controlo do Partido do Comité Central do Partido Comunista da União
Soviética.
Klimov formou-se no Instituto de Aviação de Moscovo em 1957 e
trabalhou como engenheiro. Em 1962 ingressou no Partido Comunista. Dois anos
depois, formou-se no Instituto de Cinema (Escola de Cinema VGIK), onde
enquanto estudante conheceu Larisa Shepitko, com quem mais tarde se casaria.
O seu projeto final foi uma comédia de oito minutos, “Zhenikh” (1960), que foi
projetada nas paredes do instituto.
O primeiro filme de Klimov foi “Dobro pozhalovat, ili Postoronnim Vkhod
Vospreshchen” (1964), uma sátira que, no período de Khrushchev, não foi
inicialmente exibido. No entanto, Khrushchev mais tarde viu o filme e autorizou
a sua estreia.
A sua segunda obra, “Pokhozhdeniya Zubnogo Vracha” (1965), que segue
um jovem dentista cujo dom mágico de ser capaz de extrair dentes de forma
indolor fez dele um objeto de escárnio entre colegas menos talentosos, foi
também censurada: a insinuação tirada do enredo era que a sociedade
inevitavelmente ostraciza aqueles que são dotados.

10
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Com “Agoniya” (1981), a terceira longa do cineasta, demorou cerca de


dez anos a ser produzida novamente devido à censura: o filma continha cenas
de orgias e fazia um retrato simpático do czar “sanguinário” Nicolau II.
“Proshchanie” (1981), um projeto iniciado pela sua esposa Shepitko, que
perdeu abruptamente a vida em 1979, reflete sobre o dilema do preço a pagar
pelo progresso quando uma velha aldeia na Sibéria tem de ser destruída, e a
sua comunidade realojada em apartamentos nada conformes com os seus
antigos rituais.
“Idi i Smotri” (1985), descrito como "um épico de loucura”, estabelece o
nome de Klimov na história do cinema soviético. Foi o último filme do cineasta.
Em 1986, Klimov foi escolhido pelos seus colegas para ser o Primeiro
Secretário da União de Cineastas após o V Congresso dos Cineastas Soviéticos.
A sua administração assistiu à libertação tardia de muitas obras
anteriormente proibidas e à reintegração de vários cineastas apagados pelo
regime soviético. Na história do país, este período é considerado como o início
do declínio do cinema soviético e a ascensão da Chernukha, um período onde
se traçou um retrato ultrarrealista das realidades soviéticas e criou-se uma
tendência pessimista no panorama das artes e nos mass media.
Klimov morreu com 70 anos de idade, em 2003, devido a uma hemorragia
cerebral, após seis semanas de coma.

Testemunhos singulares do seu tempo: “Ivanovo Detstvo” e “Idi i Smotri”

No cinema bélico soviético, “Ivanovo Detstvo” (1962) e “Idi i Smotri”


(1985) destacam-se das demais obras realizadas nas décadas do pós-guerra.

Apesar de a última longa de Klimov sofrer comparações com a estreia e


Tarkovsky no cinema, “Idi i Smotri” não é de todo um espelho de “Ivanovo
Detstvo”.
“Ivanovo Detstvo” foi o resultado de oito longos meses de trabalho,
depois da obtenção do diploma pelo VGIK. Inspirado em “Ivan”, um conto de
Vladimir Bogomolov, o filme segue Ivan, um jovem órfão que perdeu os pais na
II Guerra Mundial e que trabalha para o exército soviético como espião na
retaguarda da defensiva alemã.

11
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Tarkovsky adotou “o estilo narrativo seco, minucioso e fleumático” do


autor para construir, com extrema dificuldade, uma adaptação cinematográfica
de uma imagem literária indivisível, original e precisa.
De acordo com o cineasta russo, este conto distingue-se pela suas ideias,
clareza e solidez na sua estrutura e originalidade do tema, não parecendo
preocupar-se pela elaboração estética das ideias que contém (Tarkovsky,
1998).
No conto, que causou um forte impacto em Tarkovsky, foi ideia do
destino do protagonista: acompanhamos o jovem órfão até à sua morte. No
entanto, aqui a morte ganha um significado especial. Ao invés de haver
qualquer espécie de etapa posterior que serve como consolação (nestas
situações, é comum dar-se recompensas póstumas pelas façanhas militares), a
morte torna-se definitiva e única, não havendo mais nada para além dela. É
este ponto final na vida de Ivan que nos torna conscientes da monstruosidade
da guerra.
A personagem literária de Ivan é interessante porque, segundo o
cineasta, é exteriormente estática nas suas emoções, mas no seu interior, é
cheia de energia e de uma paixão avassaladora que quando alcança o seu nível
máximo de intensidade, manifesta-se de um modo mais vivo e convincente do
que seria num processo de modificação gradual das emoções da personagem.
A longa-metragem pertence, de acordo com Denise Youngblood (2001),
a uma série de filmes de guerra “silenciosos”, opostos às adaptações
cinematográficas que glorificavam a Grande Guerra Patriótica, favorecidas por
Estaline. “Ivanovo Detstvo” não mostra batalhas grandiosas nem enaltece a
experiência de guerra, pelo contrário, transporta-nos para a mente do
protagonista (interpretado por Nikolay Burlyaev) e testemunhamos os seus
sonhos, a perda da sua mãe e a perda da sua inocência, talvez já ausente antes
do início da guerra.
“Ivanovo Detstvo” procura compreender como toda uma geração de
jovens europeus passou, ou terminou, os anos da sua infância no mais violento
conflito da história da humanidade.
Semelhante a Ivan, Andrei Tarkovsky viveu a sua infância durante a II
Guerra Mundial. A sua interpretação cinematográfica sobre a guerra, além de

12
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

ser uma procura espiritual, é também um retrato cru dos horrores da guerra,
que em nada difere das obras de cinema que retratam o combate com toda a
violência exercida e todo o sangue jorrado. A dor, a separação, e o medo,
interpretadas em “Ivanovo Detstvo”, também são cicatrizes de guerra.
A infância de Ivan foi singular, no entanto, comum a muitas crianças que
viveram na época: o jovem órfão não viveu essa etapa a brincar com a sua mãe
e amigos (na verdade, ele tem esse sonho, apresentado numa das muitas
sequências oníricas do filme), pelo contrário, cruza as paisagens em ruínas da
sua terra natal e traz informações secretas preciosas sobre o inimigo alemão
aos seus superiores do exército soviético.
O quotidiano de guerra observado pelos olhos de Ivan, uma visão
absurdíssima para uma pessoa tão jovem, entrelaça-se com os seus sonhos,
sucedendo-se quatro sequências oníricas durante a longa-metragem.
Esta interseção entre o mundo real e o mundo dos sonhos faz-nos pensar
numa fusão entre o espaço objetivo e subjetivo, fusão esta que se torna na
essência da personagem de Ivan: a perda da infância na guerra, e o seu desejo
de recuperar os anos perdidos dessa etapa que nunca viveu. Ao contrapor as
sequências de sonho e os planos da realidade objetiva, Tarkovsky cria um
mundo exterior subjetivo (que se perde na deambulação de Ivan entre o mundo
real e onírico) e o mundo interior objetivo (o impacto psicológico do poder
destrutivo da guerra para uma criança e o desejo palpável de poder reencontrar
a sua mãe).
O filme inicia-se com Ivan a olhar para o horizonte, através de uma teia
de aranha. A trama da teia é passível de ser comparada com a vida e destino
de Ivan. O olhar de Ivan é observador, que pretende absorver tudo à sua volta,
comportamento comum de uma criança saudável, mas também é perdido e algo
angustiado, um indício dos seus dias futuros. De seguida, temos planos de Ivan
a seguir o voo de uma borboleta – as borboletas são efémeras, assim como será
a vida de Ivan.
A câmara vai seguindo Ivan até este começar a voar (o que nos dá um
indício de que esta é uma sequência onírica) e desce para uma figura feminina
na estrada até se deter numa encosta enraizada. Ivan encontra mais tarde a
figura feminina (que se deduz que seja a sua mãe) e molha a cara no balde que

13
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

esta carregou. O sorriso da mãe apaga-se ao som de tiro de metralhadoras. Ivan


grita por ela e acorda em feno, num lugar escuro e fechado. É este sonho que
nos informa da perda da mãe.
Os planos pertencentes ao mundo onírico pairam constantemente sobre
Ivan ao longo do filme, devido à dificuldade de este lidar com a morte da mãe,
cuja figura aparece sempre nos sonhos do protagonista, onde este pode ser
criança e ter a sua mãe viva.
Os espaços onírico e real simbolizam temporalmente o passado e o
presente: o mundo onírico corresponde ao mundo da infância de Ivan, vasto e
natural (representado pelos campos e pela praia), onde é verão e existe a figura
materna; o mundo real é o mundo da guerra, que é fechado, artificial
(representado pelo moinho e pelo bunker), onde aparenta ser inverno e a sua
mãe está ausente. Ivan é assim uma personagem simultaneamente deslocada
do seu tempo e que se fratura entre estes dois campos temporais,
transportando elementos oníricos para o espaço real e confrontando-se com a
ausência destes.
A segunda sequência onírica começa com um plano da água a pingar para
um alguidar, que também pinga da mão estendida de Ivan, que dorme. A
câmara sobe pela parede de madeira molhada e apercebemo-nos que estamos
dentro de um poço. Não conseguimos saber, porém, se as gotas que caiem da
mão do órfão fazem parte do mundo objetivo ou onírico. Do fundo do poço
vemos Ivan e a sua mãe. Ivan, do fundo do poço, olha para Ivan, que está à
superfície. O Ivan da superfície atira uma pena para dentro do poço. A câmara
sobe e encontra-se bem perto dos rostos de Ivan e da mãe. No diálogo que
trocam, a mãe diz-lhe que existe uma estrela que brilha no fundo do poço. O
facto de Ivan questionar-se se é de noite quando visivelmente, no mundo
onírico, é de dia, é mais um indício do desdobramento da personagem entre os
mundos objetivo e subjetivo. O dia, do sonho, observa a noite, do mundo real.
Os planos real e onírico confrontam-se, tornando-se palpável a elasticidade
destes dois mundos: afinal qual é a infância que Ivan vive: é a do mundo dos
sonhos ou a do mundo real?
Quando procura a estrela, o Ivan onírico refraciona-se e encontra-se no
fundo do poço a tentar tocar na estrela. Ao olhar para a superfície, vê a sua

14
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

mãe ser atingida por algo, ao som de tiros. O balde cai para dentro do poço,
atingindo-o. O plano seguinte é o da mãe caída no solo, e alguém fora de campo
lança-lhe água. Ivan acorda do sonho quando um dos soldados soviéticos lhe
atira com um copo de água.
O terceiro sonho de Ivan começa com o som de gotas de água a pingar,
que logo se transforma numa tempestade, através das imagens em negativo,
quando transpomos o mundo onírico. Um camião carregado de maçãs transporta
Ivan e uma menina nunca antes vista ao longo do filme. Ivan oferece à menina
uma maçã por três vezes, mas esta recusa-a por duas vezes.
Este é o primeiro sonho onde a figura da mãe não está presente. A mãe
possivelmente foi substituída pela figura da menina, o que implica uma
transição da infância para a pré-adolescência - o início da puberdade e da
procura pelo amor.
Os planos, repetidos três vezes, com as imagens em negativo como pano
de fundo, do rosto da menina, que mostra uma expressão angustiada, é um
prenúncio de que esta personagem pressentia uma tragédia iminente. Aliás, a
tempestade, a recusa da menina em receber as maçãs e a queda destas na
praia, com o camião a seguir caminho, são sinais da tragédia de Ivan, que está
cada vez mais próxima de acontecer. A última cena do sonho foi
deliberadamente filmada perto de água, para ligar esta sequência onírica à
anterior.
No mundo real, Ivan parte para a sua última missão, da qual não voltará.
A travessia para a frente alemã é feita por rio: num pequeno barco, estão Ivan,
Galtsev e Kholin. Apenas Galtsev sobrevive, com graves sequelas psicológicas.
Atravessam o rio para resgatar os corpos de Lyakhov e Moroz, enforcados pelo
inimigo e deixados com uma mensagem de boas vindas na margem alemã.
Galtsev e Kholin tratam de levar os corpos para a frente soviética, enquanto
Ivan tem a função de atravessar a floresta e seguir para a frente alemã.
Perdemos o seu rasto.
Terminada a guerra, vemo-nos em Berlim, agora sobre alçada russa. O
tenente Galtsev, que cuidava de Ivan durante a sua temporada na guerra,
apanha o dossiê de Ivan, por entre os milhares de dossiês de prisioneiros, nas

15
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

ruínas de um bunker nazi. Sabe-se finalmente o destino de Ivan: enforcado pelo


inimigo.
A última sequência onírica já não é um sonho vivido por Ivan. No mundo
real, o seu rosto estático e sem vida, contrapõe-se com o da mãe que, no mundo
dos sonhos, lhe sorri. Como no início, agora na praia, Ivan bebe água do balde,
que a mãe lhe oferece. Não se houve tiros com a aparição da figura da mãe.
Esta despede-se de Ivan e segue pela linha das ondas que batem na areia. Ivan
brinca com outras crianças ao jogo das escondidas. Encontra a mesma menina
do sonho das maçãs, que foge dele para não ser apanhada. O jovem alcança-a,
mas continua a sua corrida para dentro do mar. Ivan aponta para o horizonte
(para a sua morte?) e a câmara fecha no tronco escuro da árvore morta.
Ao construir ligações entre o campo dos sonhos de Ivan e a sua vida
consciente, Tarkovsky traz o mundo real para uma paisagem de sonhos que se
afasta da edição e montagem convencionais. No entanto, a essência onírica que
o filme apresenta não torna a representação da guerra menos credível e
realista. De facto, os sonhos de Ivan conseguem descrever as condições da
guerra com mais exatidão do que propriamente a natureza realista do enredo,
pois em tempo de guerra, perde-se a noção do espaço-tempo e a ordem dos
eventos desintegra-se completamente.
Uma guerra onde livros são queimados em praças, milhões de pessoas
são aniquiladas em campos de concentração, famílias inteiras são separadas,
deixando crianças selvagens e inflamadas de ódio, transformadas em máquinas
de matança - não existe uma explicação causal. Esta guerra é um sonho, porque
desconstrói o que é familiar, desde as coisas materiais e banais, até ao âmago
do ser humano, que é o amor e o afeto.
Tarkovsky pontua as sensações oníricas da vida tangível e o ciclo da
guerra em torno dos sonhos, a fim de ilustrar o pesadelo inevitável que é a
guerra.
“Ivanovo Detstvo” é o protótipo do estudo da memória de Tarkovsky.
Aqui, o tema da memória, retratada através de sonhos, conjuga-se com o
trauma da perda da mãe e da pátria. O filme é a história dos pensamentos e
das lembranças de Ivan – a partir da revelação do seu mundo interior, traça-se
o retrato da personalidade individual do herói.

16
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Como Tarkovsky escreveu no seu livro “Esculpir o Tempo”, as obras


criativas têm de estabelecer uma relação orgânica entre as impressões
subjetivas do artista e as representações objetivas do mundo real em que este
se encontra inserido - sem esta ligação, o autor não criará obras credíveis e
autênticas. “Ivanovo Detstvo” serviu como ponto de partida para os guiões de
“Andrey Rublev”, “Nostalghia” e “Offret”.
Klimov, sendo contemporâneo de Tarkovsky, sofreu também em criança
o impacto da invasão nazi e retrata-a austeramente na sua última longa-
metragem “Idi i Smotri”, embora não seja tão uma representação tão cruel dos
horrores sofridos pelo cineasta:
"As a young boy, I had been in hell. The city was
ablaze up to the top of the sky. The river was also
burning. It was night, bombs were exploding, and
mothers were covering their children with whatever
bedding they had, and then they would lie on top of
them. Had I included everything I knew and shown
the whole truth, even I could not have watched it." 1
(obituário escrito pelo jornal The Guardian, 4 de
novembro de 2003)
Toda a história é contada pelos olhos de Florya (interpretado por Aleksey
Kravchenko) e cada momento fica impresso no seu rosto, como uma cicatriz.
Ao longo do filme, vemos o protagonista a sofrer um envelhecimento precoce.
O enredo dura apenas alguns dias, no entanto, no rosto de Florya estão
presentes anos de horrores testemunhados na guerra. Ele definha ao longo da
história, tornando-se num ser que não tem mais por que viver, apenas
sobrevive.
Na sequência inicial, Florya e um amigo procuram equipamento de
guerra numa praia, para se poderem alistar nos partisans soviéticos. Esta
artilharia será o passaporte de entrada na resistência aos alemães que
invadiram o seu país. Quando finalmente o protagonista encontra uma
espingarda, surge nos céus um avião de guerra alemão a transmitir via rádio um

1 Disponível em https://www.theguardian.com/news/2003/nov/04/guardianobituaries.russia

17
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

discurso de Hitler e o hino nazi. Esse avião é uma presença constante, não
permitindo a Florya esquecer as suas decisões. Simultaneamente relembra-nos
a perversidade e o domínio (sentimento de vigilância) da ocupação nazi. Florya
regressa a casa onde a sua mãe, em desespero, implora-lhe que não a abandone
nem às suas irmãs, preferindo até que as matasse, como que pressentindo ser
a última vez que visse o seu filho.
Já integrado numa milícia soviética, Florya sofre um bombardeamento,
anunciado anteriormente pelo avião nazi que percorria os céus.
Testemunhamos o primeiro presságio das tragédias que se avizinhariam para
Florya: enquanto vagueia pelo bosque, pisa sem querer um ninho de pássaros
que fora anteriormente esmagado por soldados. Abandonado pelo seu grupo, e
acompanhado apenas pela jovem Glasha, Florya retorna à sua terra natal e
descobre que toda a sua família fora assassinada. Testemunhamos o início da
perda da humanidade existente no órfão, simbolizada pela travessia deste do
pântano - ainda com os ouvidos danificados da bomba lançada anteriormente,
Florya afunda-se na lama e vê na água o reflexo do seu rosto envelhecido. Esta
travessia transmuta-lhe as feições, elimina a sua jovialidade, e mata-lhe o
espírito. A morte está na revelação física da desgraça - nos corpos da sua família
e dos outros habitantes; nos gritos de Glasha e na sua tentativa morosa e
desesperada de atravessar o pântano.
O filme é um retrato do rosto de Florya, sorridente e jovial no início, que
vai definhando no seu cerne e que se torna num semblante melancólico,
envelhecido e vazio - que testemunhou por inúmeras vezes atos de bestialidade
e a banalização do mal.
O abandono é um conceito que atravessa todo o filme, no sentido em
que Florya sofre várias perdas: a perda da sua família, do seu pelotão que o
protegia durante a sua temporada de guerra, e da sua infância.
A fisicalidade do mal é apresentada não só nas mudanças do rosto de
Florya, mas também em tudo o que o acompanha ao longo do filme: os corpos
incinerados de civis e soldados soviéticos, as gargalhadas desdenhosas dos
soldados alemães, e a necessidade de normalizar a violência.
No momento em que os soldados apontam uma arma à cabeça de Florya,
o seu rosto não tem reação. Todo este momento é uma encenação para que

18
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

uma fotografia seja tirada, colocando a existência do protagonista como algo


sem significância – além de este ser um ato doentio a nível físico, é também
banal naquele contexto.
Florya torna-se em algo que já não é considerado humano - é apenas um
corpo, que só responde a instintos vitais e caminha pelas planícies destruídas,
sem ter qualquer tipo de perceção sobre o bem e o mal.
Na última sequência do filme, Florya vê o retrato de Hitler, flutuando
numa poça enlameada, e, pela primeira vez em muito tempo, o seu rosto
enruga-se de fúria e surge dentro dele uma enorme vontade de perfurar a
pintura com balas. É a primeira vez que usa a sua espingarda – aquela que
encontrara na cena inicial do filme. À medida que Florya baleia o retrato, essas
imagens arquivo retrocedem cronologicamente em velocidade rápida, até que
Hitler regressa aos seus primeiros anos de vida. As imagens cessam e Florya não
consegue disparar mais. Florya apercebe-se de que, no final, somos todos
corpos, vítimas de algum tipo de poder e ausentes de sentimentos no nosso
semblante. O horror e a dor estampados no rosto de Florya projetam-se também
no nosso rosto.
Embora “Idi i Smotri” siga predominantemente os ritos de passagem de
Florya, e o seu envelhecimento precoce, é uma obra notável na medida em que
também observa os rostos de todas as outras personagens que impactam a vida
de Florya, numa litania de olhares, contemplações e fitares hiper-realistas.
Tudo em “Idi i Smotri” é físico: “Kill Hitler”, o título inicial, censurado
pelas autoridades russas, implica uma ação violenta e representa o clamor
universal que emana desta tragédia; Klimov encontrou então a expressão “Vem,
e vê!” repetida variadas vezes no último livro do Novo Testamento – Apocalipse.
Ainda dentro da sequência final, depois de balear inúmeras vezes o quadro de
Hitler, Florya olha para a câmara, no entanto, não olha para a imagem de Hitler
fora de campo, mas para nós – o reconhecimento é mútuo. Nós, pertencentes a
um outro espaço-tempo, também estamos inseridos nesta tragédia. A guerra
está ali para toda a gente ver, mesmo à nossa frente – a tradução do título em
português é “Vem e Vê”. Há apenas morte e brutalidade, onde a sobrevivência
é obra do acaso. Na guerra há apenas vítimas.

19
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Numa entrevista à revista Kinema, Klimov disse que “Idi i Smotri” é uma
memória coletiva sobre a guerra, sendo que também é uma reflexão das
emoções do cineasta sentidas durante o seu tempo de guerra. O filme é um
aviso sobre o potencial deste tipo de conflitos. Aquando da estreia de “Idi i
Smotri” no festival de cinema de Moscovo, um cinéfilo japonês abordou Klimov:
“A tua aldeia bielorrussa parece-se muito com a nossa Hiroshima. Todo o mundo
poderá tornar-se futuramente numa Hiroshima.”2.
De acordo com Brubaker (2010), “Idi i Smotri” é considerado uma
resposta direta a filmes de guerra soviéticos precedentes: uma ideia construída
sobre as fundações de conhecimento que o cinema de guerra anterior ergueu,
que pretende criar uma abordagem inovadora. “Idi i Smotri” é uma obra
singular, mas não pode tornar-se num marco independente das obras prévias do
cinema soviético, especialmente do filme predecessor de Tarkosvky, “Ivanovo
Detstvo”.
O trauma infligido a Ivan e Florya traça naturalmente relações íntimas
com o conceito do mal. Em “Ivanovo Detstvo”, o mal manifesta-se na mente de
Ivan e na sua própria angústia interna e este sofre sequelas vitalícias
predominantes na sua memória cognitiva.
O mal é físico em “Idi i Smotri”, retratado em corridas desesperadas,
rostos desfigurados pela raiva e corpos empilhados. Klimov mostra-nos a
exteriorização da sua experiência traumática. Os traumas são físicos e é a
memória física que fica com sequelas predominantes.

A construção fílmica é dedicada à memória dos sem nome: o cinema como


arquivo bélico da perda da inocência

Ao lado da Revolução Industrial, da evolução tecnológica e digital, e de


todas as mudanças político-sociais, as guerras são também responsáveis por
modelar o mundo que hoje conhecemos. No entanto, o preço a pagar é
irreparável: a II Guerra Mundial afetou a vida de cerca de 20 milhões de pessoas,
entre civis e membros do exército, entre 1939 e 1945.
No final de II Guerra Mundial, milhões de crianças foram mortas ou
desapareceram. Na Europa, crianças de várias nacionalidades e etnias ficaram

2 Tradução da autora deste artigo.

20
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

órfãs, mutiladas, traumatizadas, e muitas famílias foram separadas, a um nível


nunca antes imaginado.
Tarkovsky e Klimov filmam as suas experiências de guerra “a cru”, longe
das fantasias cinematográficas exigidas pelo governo de Estaline. São retratos
francos onde se exalta a inocência dos mártires, feitos com um realismo
implacável. Em “Ivanovo Detstvo” e “Idi i Smotri” explora-se a ideia do vazio,
a loucura constante, tanto individual como coletiva, bem como a luta pela
sobrevivência, o instinto mais básico conhecido pelo Homem – ideias que se
encontram longe de conceitos como o orgulho e a glória nacional.
Este nível de desumanização ultrapassa a bestialidade comum a
predadores e presas, e só se encontra ao alcance do ser humano.
O terror perpetrado pelo exército nazi, a imagética das execuções em
massa e outros detalhes horrendos do conflito, não teriam a dimensão
alcançada, não fosse o protagonista uma criança. O seu espectro cognitivo
abrange muita mais informação visual e os sentimentos que experienciam
formam cicatrizes no seu espírito, especialmente quando estas são criadas nos
seus anos formativos. Assim, estes traumas, físicos e psicológicos, irão
acompanhá-las toda a vida.
Os traumas de Tarkovsky e Klimov marcaram em certo grau toda a sua
filmografia. Tarkovsky refugiou-se no mundo dos sonhos de Ivan, enquanto
Klimov abrigou-se nas ruínas pantanosas da vila dizimada de Florya. Ambas as
formas de refúgio da realidade que os cineastas conceberam, e que as suas
personagens habitaram, é semelhante às zonas de conforto que as crianças em
tempo de guerra criaram para poderem escapar dos horrores que viviam.
O tempo presente, será vivido em função das guerras passadas - estas
criam espaços dúbios e interpõem-se entre o sujeito e o seu destino, toldando
o seu discernimento e desestabilizando as fronteiras entre o que é o real e o
subjetivo. Todo este espaço que a tragédia ocupa na mente das gerações mais
jovens é muito difícil de ser representado, interpretado e explicado.
É no cinema que temos uma representação aparentemente fiel às
imagens mais contundentes da guerra. Com as vitórias e derrotas, tornadas
mitos, erige-se todo um mural de traumas e de histórias sobre o orgulho da
pátria, nas quais e pelas quais o cinema bélico soviético alimenta a sua imagem.

21
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Referências audiovisuais

Idi i Smotri (Vem e Vê). Realização: Elem Klimov. Produção: Belarusfilm e


Mosfilm. 1985. 142 min. Stereo. Color. 35 mm.
Ivanovo Destsvo (A Infância de Ivan). Realização: Andrey Tarkovsky. Produção:
Mosfilm e Trete Tvorcheskoe Obedinenie. 1962. 95 min. Mono. Black & White.
35 mm.

Referências Bibliográficas

Alexievich, S. (2013). As Últimas Testemunhas – Cem histórias sem infância.


Portugal. Elsinore.

Bergan, R. (04/11/2003) Elem Klimov – Russian film director famed for his
devastating portrayal of war but frustrated by the Soviet system. Acedido a
10 de dezembro e disponível em:
https://www.theguardian.com/news/2003/nov/04/guardianobituaries.russia

Brubaker, L. (2010). Klimov’s Come and See as a Work of Cinematic Response.


Acedido a 10 de dezembro e disponível em:
https://www.bu.edu/writingprogram/journal/past-issues/issue-3/brubaker/

Davis, M (04/05/2015). How World War II shaped modern Russia. Acedido a 21


de novembro e disponível em
https://www.euronews.com/2015/05/04/how-world-war-ii-shaped-modern-
russia

Embaixada da Rússia no Brasil (sem data). Face jovem da guerra: a história de


cinco heróis soviéticos que morreram antes de completar 15 anos. Acedido a
20 de novembro e disponível em: https://brazil.mid.ru/web/brasil_pt/2-
guerra-mundial/-/asset_publisher/m8kiiegIZdab/content/face-jovem-da-
guerra-a-historia-de-cinco-herois-sovieticos-que-morreram-antes-de-
completar-15
anos?inheritRedirect=false&redirect=https%3A%2F%2Fbrazil.mid.ru%3A443%2F
web%2Fbrasil_pt%2F2-guerra
mundial%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_m8kiiegIZdab%26p_p_lifecycle%3D0%26p
_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn1%26p_p_c
ol_count%3D1

22
Seminário de Investigação Universidade de Beira Interior

Fehrenbach, H. “War Orphans and Postfascist Families: Kinship and Belonging


after 1945,” em Histories of the Aftermath: The Legacies of the Second
World War in Europe (pp.175-95), capítulo IV do livro Histories of the
Aftermath: The Legacies of the Second World War in Europe. Berghahn Books.
Acedido a 20 de novembro e disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/307888834_War_Orphans_and_Po
stfascist_Families_Kinship_and_Belonging_after_1945

Rusakova, T. Exchanging the gifts of childhood for the ultimate sacrifice.


Acedido a 20 de novembro e disponível em:
https://www.rbth.com/defence/2014/05/09/exchanging_the_gifts_of_childh
ood_for_the_ultimate_sacrifice_36523.html

Sullivan, John P. Crianças Soldados: desespero, retorno a barbárie e conflito.


Acedido a 20 de novembro e disponível em:
http://www.au.af.mil/au/cadre/aspj/apjinternational/apjp/2008/3tri08/sull
ivan.html

Tarkovsky, A. (1998). Esculpir o tempo. Brasil. Martins Fontes.

Youngblood, D. (2001). A War Remembered: Soviet Films of the Great Patriotic


War em The American Historical Review, Volume 106.

23

Você também pode gostar