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publicado em 1996, reafirma o profun- do compromisso ético de Paulo Freire na defesa da existéncia digna. Neste seu tiltimo livro publicado em vida, 0 educador aprofunda sua teoria-ética de uma vida voltada para a liberdade, a verdade e a autenticidade dos sujeit revolucionério e do rigor critico, reflete sobre o que o ato de ensinar exige de educadores e educandos. s, contra a légica do capital. A partir do amor £ um dos brasileiros mais célebres e um dos fil6sofos do século XX mais lidos do mundo, segundo levantamento do Massachusetts Institute of Tech- nology. Escreveu dezenas de livros, entre eles, Pedagogia do oprimido, a terceira obra de ciéncias sociais e humanas mais citada no mundo, de acordo com a London School of Economics. ‘SBN 978-85.01-90322.6 MND 9 "rsaso1ls0a2z6 3uldud O1NWd Y PEDAGOGIA DA AUTONOMIA ®D SSO etre eran PEDAGOGIA DA AUTONOMIA, de Pauto Freire, é um livro de poucas paginas, mas de uma \ensidate de ideias pouco vista em qualquer outra de suas obras. Este poder de sintese demonstra sua maturidade, lucidez e vontade de, com simpli- cidatle, abordar algunas das questies fundamentals para a formagao dos(as) educadores(as). ‘Sua linguagem é poética e politica. Calma, tranguila e, 20 mesmo tempo, inquleta, proble- matizadora e exuberante, a servig¢o do pensar, do decidir e do optar para a agao transformadora. Demonstra perseveranga, ousadia e crenga nos homens @ nas mulheres @ na educagao auténtica ‘como o caminho necessério para a justica e a paz. Paulo faz um chamamento aos(as) educadores(as) Para, com a ética critica, competénci e amorosidade auténtica, sob a égide de engaja~ ‘mento politico libertador, ensinarem a seus(suas) educandos(as) serem Seres Mais, Sentimos ao ler este livro 0 seu corpo consciente presente, com a mesma forca de sua cabeca escla- recedora ¢ justa. A sua voz tema e mansa falando apaixonadamente de suas convicgses. Suas mos firmando a esperanga que jamais 0 abandonou. 0 sou escutartradhizindo a sua postura de humildade presente nas referncias aos que com ele dialoga~ ram. 0 seu olhar esté o tempo todo voltado para totlos e todas que ousam ensinar-aprendendo, Quanto mais nos aprofundamos na leitura deste livro, mais percebemos que Paulo se fez texto! O ‘sou bem-querer pelos seres humanos, a gentidade de seu eu pessoa/eu educadore a sua fé na edu- ‘cago estdo vivamente presentes, evidencianda ter ‘sido um apaixonado pelo mundo e pela vida, PEDAGOGIA DA AUTONOMIA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA SABERES NECESSARIOS A PRATICA EDUCATIVA 60° oicao ®D Paz &cTerra, Rio de Janeiro | Sdo Paulo 2019 Copyright © Edizora Villa das Leteas Direitos de edigdo da obra em lingua portuguesa no Bras] adqui- ridos pela Eorrona Paz b Tex Todos os direitos reservados. Ne ‘uma parte desta obra pode ser apropriada eestocada em sist sma de banca de dados ou process similar, em qualquer forma ou ‘meio, soja eletrbnico, de fo1ocbpia, gravagdo et, sem a permission do detentor do copyright Bitora Paz Tecra Lda, Rua do Paraiso 139, 10° ander, conjunto 101 ~Paraiso— ‘io Paulo 04103000 wwwvicecord.com br Sejs um letor preferencial Record. CCadasite-ee receba informagGes sobre nossos anyamentos € nossa promoges _Atendimento e venda deta 20 leitor: sac@record.com br “Teatorevisado segundo o nove Acordo Ortogrifco da Lingua Portuguesa. ‘CP ERASIL CATALOGAGAO NA FONTE: SINDICATO NACIONAL OOS EDITORES DE LIVKOS, Paulo (921-1997) G0'ed, _Pedagogitdaautonemia:saberes necessros peta educeta/ Palo Freie — {650° ed Rio de Janeiro So Paulo: Pa Tea, 209 1. Autoromia(pscoogi) 2. Baaagto 3 sina 4 Peta de ening 5 Profsores Forms ‘ho profesional Tilo, St sues cop: s70115, ‘AANA Mania, MINHA MULHBR, COM ALEGRIA # AMOR Pavto Fass A FERNaNno GASPARIAN, A CUJO GOSTO DA REMELDIA EA CUJA DISPONIBIIDADE A LTA PLA LInERDADE PELA DEMOCRACIA MUITO DEVEMOS. Pato Praine A mamma ng ApManno Sear DE OLIVEIRA. Paulo FReine A Joio Francisco pe Souza, reTELEcTuat Cujo [RESPEITO AO SABER DE SENSO COMUM JAMAIS O FEZ [UM AASISTA E CUJO ACATAMENTO A RIGOROSIDADE ‘CUENTA antats 0 TORNOU UM BLITISTA, BAINES DB ‘SOUZA, SUA COMPANHEIRA E AMIGA, COM ADMIRAGRO DE Pato Frans ‘A Bure SanTiAco, ew cUyA PRATICA DocENTE -ENSINAR JAMAIS FOL TRANSFERENCIA DE CONHECIMBNTO RITA PELA EDUCADORA 408 ALUNOS. AO CONTRARIO, PARA ELA, ENSINAR f UMA AVENTURA CRIADORA. Pauvo Fees ‘AOS EDUCANDOS & EDUCANDAS, AS EDUCADORAS 8 EDUCADORES DO PROJETO Axs, DE SatvapoR DA Banta, NA PHSSOA DE SCU INCANSAVEL ANIMADOR Cesare Dé La ROCA, COM MINHA PROFUNDA ADMIRAGiO. Pau Feene A Aneta Antunes Crsusxi, Moacir Gaborti, Pavto Rosexro Papiuia # Sonia Couro, bo INstrruro PavLo FREine, CoM mBUS [AGRADECIMENTOS PELO EXCELENTE TRABALHO DB 1L0S DESTA PEDAGOGIA DA OnGANTZAGRO DOS Cai AUTONOMIA. auto Fees Gosranta IGUALMENTE DE AGRADECER A CHRISTINE ROninuc £ A EQUIPE DE PRODUGKO B RavISKO Da Paz 8 ‘ThRRA PELA DEDICAGRO COM RELAGKO NKO SO A ESTE, como A OUTROS LIVROS MEUS. Pawo Frame Sumario Prerhcio Ewa Castro De Oniverna PRiMEIas PALAVRAS Pritica docente: primeira reflexio 1.1 Ensinar exige rigorosidade metédica 1.2 Ensinar exige pesquisa 1.3 Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos 1.4 Ensinar exige criticidade 15 Ensinar exige estética e ética 1.6 Ensinar exige a corporificagao das palavras pelo exemplo 1,7 Ensinar exige risco, aceitagio do novo e rejeigo a qualquer forma de discriminacao 0 5 30 3 Eo 35 36 1.8 Ensinar exige reflexdo critica sobre a pratica 1.9 Ensinar exige o reconhecimento e a assungao da identidade cultural Ensinar nao é transferir conhecimento 2.1 Ensinar exige consciéncia do inacabamento 2.2 Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado 2.3 Ensinar exige respeito 4 autono- mia do ser do educando 2.4 Ensinar exige bom-senso 2.5 Ensinar exige humildade, toleran- cia € luta em defesa dos direitos dos educadores 2.6 Ensinar exige apreensio da realidade 2.7 Ensinar exige alegria e esperanca 2.8 Ensinar exige a conviccaio de que a mudanga € possivel 29 Ensinar exige curiosidade 39 a 49 60 9 70 m & 3 Ensinar € uma especificidade humana 3.1 Ensinar exige seguranga, compe- téncia profissional e generosidade 3.2 Ensinar exige comprometimento 3.3 Bnsinar exige compreender que a educagao é uma forma de interven- go no mundo 3.4 Ensinar exige liberdade e autoridade 3.5 Ensinar exige tomada consciente de decisdes 3.6 Ensinar exige saber escutar 3.7 Ensinar exige reconhecer que a educagio ¢ ideolégica 3.8 Ensinar exige disponibilidade para 0 didlogo 3.9 Ensinar exige querer bem aos educandos 96 102 106 110 2 138 PREFACIO ACEITEI 0 DESAFIO DE ESCREVER O preficio deste livro do prof. Paulo Freire movida mesmo por uma das exigén- cias da agio educativo-critica por ele defendida: a de testemunhar a minha disponibilidade 4 vida aos seus chamamentos, Comecei a estudar Paulo Freire no Cana- dé, com meu marido, Admardo, a quem este livro é em parte dedicado. Nao poderia aqui me pronunciar sem a ele me referir, assumindo-o afetivamente como companheiro com quem, na trajetéria possivel, aprendi a cultivar varios dos saberes necessarios & pratica educativa transformado- ra, E 0 pensamento de Paulo Freire foi, sem divida, uma de suas grandes inspiragbes. As ideias retomadas nesta obra resgatam de forma atualizada, leve, criativa, provocativa, corajosa ¢ esperan- osa, questdes que no dia a dia do professor continua. a instigar o conflito e o debate entre os educadores ¢ as educadoras. O cotidiano do professor na sala de aula € fora dela, da educacdo fundamental 4 pés-graduacao. E explorado como numa codificagdo, enquanto espago de reafirmacio, negacio, criagio, resoluio de saberes que constituem os “contetdos obrigatérios 4 organi zacio programitica e o desenvolvimento da formagio docente”. So conteiidos que, extrapolando os j6 cris- talizados pela pratica escolar, 0 educador progressista, principalmente, no pode prescindir para o exercicio da pedagogia da autonomia aqui proposta. Uma pedagogia fundada na ética, no respeito a dignidade ¢ a propria au- tonomia do educando. Como os demais saberes, este demanda do educador ‘um exercicio permanente. a convivéncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa ¢ aberta que assume e, a0 mesmo tempo, provoca-os a se assumirem enquanto sujeitos s6cio-histérico-culturais do ato de conhecer, & que ele pode falar do respeito a dignidade e autonomia do educando, Pressupde romper com concepges € pré- ticas que negam a compreensio da educagdo como uma situago gnosolégica. A competéncia técnico-cientifica € 0 rigor de que o professor nao deve abrir mao no de- senvolvimento do seu trabalho nao so incompativeis com a amorosidade necesséria as relagées educativas. Essa postura ajuda a construir 0 ambiente favoravel & produgio do conhecimento onde 0 medo do professor € 0 mito que se cria em torno da sua pessoa vio sendo desvelados, E preciso aprender a ser coerente. De nada adianta 0 discurso competente se a ago pedagégica € impermedvel a mudangas. No Ambito dos saberes pedagogicos em crise, ao re- colocar questdes to relevantes agora quanto foram na década de 1960, Freire, como homem de seu tempo, tra duz, no modo hicido e peculiar, aquilo que os estudos das ciéncias da educacéo vém apontando nos iiltimos anos: a ampliacao e a diversificagdo das fontes legitimas de saberes e a necessiria coeréncia entre 0 “saber-fazer € 0 saber-ser pedagégicos” 2 | Paso Fame Num momento de aviamento e de desvalorizagao do trabalho do professor em todos os niveis, a pedagogia da autonomia nos apresenta elementos constitutivos da compreensio da pratica docente enquanto dimensio social da formagao humana. Para além da reducio ao aspecto estritamente pedagégico e marcado pela natu- reza politica de seu pensamento, Freire adverte-nos para a necessidade de assumirmos uma postura vigilante contra todas as praticas de desumanizacao, Para tal, 0 saber-fazer da autorreflexio critica e o saber-ser da sabe- doria exercitados, permanentemente, podem nos ajudar a fazer a necesséria leitura cr ica das verdadeiras causas da degradaco humana e da razo de ser do discurso fatalista da globalizacdo, Nese contexto em que 0 ideario neoliberal incorpora, entre outras, a categoria da autonomia, é preciso também atentar para a forga de seu discurso ideolégico e para as inversées que pode operar no pensamento e na pratica pedagégica ao estimular o individualism e a competiti- vidade. Como contraponto, denunciando o mal-estar que ‘vem sendo produzido pela ética do mercado, Freire anun- cia a solidariedade enquanto compromisso histérico de homens e mulheres como uma das formas de luta capazes de promovere instaurar a “ética universal do ser humano”. Essa dimenséo utépica tem na pedagogia da autonomia uma de suas possibilidades. Finalmente, impossivel nao ressaltar a beleza produzida traduzida nesta obra. A sensibilidade com que Freire proble- ‘matiza e toca 0 educador aponta para a dimensio estética de sua pritica que, por isso mesmo, pode ser movida pelo desejo Panacoau pa auronouan | 2 €evivida com alegria, sem abrir mao do sonho, do rigor, da se- riedade e da simplicidade inerente ao saber-da-competéncia. Edna Castro de Oliveira Doutora em Educagio pela Universidade Federal Fluminense Professora do PPGE — Centro de Educagio (UFES) va | Pano Pasns PRIMEIRAS PALAVRAS ‘A Qusstdo Da FonMaGAo DOCENTE ao lado da reflexao sobre a pritica educativo-progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos é a tematica central em torno de que gira este texto, Tematica a que se incorpora a anilise de saberes fundamentais aquela pratica e aos quais espero que o leitor titico acrescente alguns que me tenham escapado ou cuja importancia nfo tenha percebido. Devo esclarecer aos provaveis leitores ¢ leitoras 0 seguin- te:na medida mesma em que esta vem sendo uma tematica sempre presente as minhas preocupagées de educador, al- ‘guns dos aspectos aqui discutidos nao tém sido estranhos a anilises feitas em livros meus anteriores, Nao creio, porém, que a retomada de problemas entre um livro e outro € no corpo de um mesmo livro enfade o leitor. Sobretudo quan- do a retomada do tema nio é pura repeti¢io do que ja foi dito. No meu caso pessoal, retomar um assunto ou tema tem que ver principalmente com a marca oral de minha es- rita, Mas tem que ver também coma relevancia que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de objetos a que direciono minha curiosidade, Tem que ver também com a relagdo que certa matéria tem com outras que vém emergin- do no desenvolvimento de minha reflexao. & neste sentido, por exemplo, que me aproximo de novo da questo da in- conclusio do ser humano, de sua inser¢io num permanente movimento de procura, que rediscuto a curiosidade ingénua ea critica, virando epistemoldgica. E nesse sentido que rein- sisto em que formar é muito mais do que puramente treinaro educando no desempenho de destrezas, e por que nao dizer tambér da quase obstina¢o com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens es mulheres, assun- to de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dé pela primeira vez. Dai a critica permanentemente presente em mim A malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexivel ao sonho e & utopia. Dai o tom de raiva, legitima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro as injustigas a que sio sub- metidos os esfarrapados do mundo. Dai 0 meu nenhum interesse de, nfo importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos. Em tempo algum pude ser um observa- dor “acinzentadamente” imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posi¢io rigorosamente ética. Quem ob- serva 0 faz de um certo ponto de vista, 0 que nao situa 0 observador em erro, O erro na verdade nao é ter um certo ponto de vista, mas absolutizé-lo ¢ desconhecer que, mes- mo do acerto de seu ponto de vista, é possivel que a razio ética nem sempre esteja com ele. © meu ponto de vista ¢ o dos “condenados da Terra”, 0 dos excluidos. Nao aceito, porém, em nome de nada, ages terroristas, pois que delas resultam a morte de inocentes ¢ a inseguranga de seres humanos. O terrorismo nega o que ve- nho chamando de ética universal do ser humano. Estou com os drabes na luta por seus direitos, mas ndo pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpiadas de Munique. 16 | Pano Fans Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nés mesmos, profes- sorese professoras, anossa responsabilidade ética no exercicio de nossa tarefa docente, Sublinhar esta responsabilidade igualmen- te aquelas e aqueles que se acham em formaciio para exercé-la Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessiriaeticidade que conota ex- pressivamente a natureza da pritica ecucativa, enquanto prética formadora. Educadores e educandos no podemos, na verdade, cescapar a rigorosidade ética. Mas & preciso deixar claro que a ética de que falo ndo é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro, Em escala interna- ional comega a aparecer uma tendéncia em acertar os reflexos cruciais da “nova ordem mundial” como naturais e inevitiveis. ‘Num encontro internacional de ONGs, um dos expositores afir- ‘mou estar ouvindo com certa frequéncia em paises do Primeiro ‘Mundo a ideia de que criangas do Terceiro Mundo, acometidas por doencas como diarreia aguda, nfio deveriam ser salvas, pois tal recurso s prolongaria uma vida jé destinada & miséria e a0 sofiimento.' Nio falo, obviamente, desta ética. Falo, pelo con- trério, da ética universal do ser humano. Da ética que condena ‘© cinismo do discurso citado acima, que condena a exploracio da forga de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falseara verdade, iludir 0 incauto, golpearo fraco ¢ indefeso, so- terrar 0 sonho e a utopia, prometer sabendo que nao cumprir’, a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal. A ética de que falo €a que se sabe traida ¢¢ negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversio hip6crta da pureza em purtanismo. A ética de que "gina L. Gari e Vicor V Val A fila dos excidos’. Camus Ce, 38,1996, Proxcocta va azrononaa | 17 falo éa que se sabe afrontada na manifestaglo discriminatoria de raga, de género, de classe. E por esta ética inseparavel da pratica ‘educativa, no importa se trabalhamos com criangas, ovens ou. com adultos, que devemos lutar: E a melhor maneira de por ela Jotaré vivé-la em nossa prética, étesternuné-la,vivaz, aos edu candos em nossas relac6es com eles. Na maneira como lidamos com os contetidos que ensinamos, no modo como citamos au- tores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos. [Nao podemos basear nossa critica a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra de suas obras. Pior ainda, tendo lido ape- nasa critica de quem s6 leu a contracapa de um de seus livros, Posso nao aceitar a concepedo pedagégica deste ou da- quela autora, ¢ devo inclusive expor aos alunos as razGes por que me oponho a cla, mas © que nao posso, na minha cri ca, é mentir. & dizer inverdades em torno deles. O preparo cientifico do professor ou da professora deve coincidir com sua retiddo ética. & uma listima qualquer descompasso en- tre aquela e esta. Formagio cientifica, correcao ética, respeito 0s outros, coeréncia, capacidade de viver e de aprender com © diferente, ndo permitir que o nosso mal-estar pessoal ou ‘a nossa antipatia com relagdo ao outro nos fagam acusilo do que nio fez so obrigagies a cujo cumprimento devemos humilde, mas perseverantemente, nos dedicar. E no s6 interessante mas profundamente importante que os estudantes percebam as diferencas de compreensio dos fatos; as posig&es as vezes antagénicas entre profes- sores na apreciagao dos problemas € no equacionamento de solugGes. Mas é fundamental que percebam o respeito ¢ a lealdade com que um professor analisa ¢ critica as posturas dos outros. v6 | Pao Faas De quando em vez, ao longo deste texto, volto a este tema, E que me acho absolutamente convencido da natu- reza ética da pritica educativa enquanto pritica especifi- camente humana. & que, por outro lado, nos achamos, a0 nivel do mundo e nao apenas do Brasil, de tal maneira sub- metidos ao comando da malvadez da ética do mercado, que me parece ser pouco tudo 0 que facamos na defesa e na pratica da ética universal do ser humano. Nao podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisao, da ruptura, da opcao, como sujeitos histéricos, transformadores, a nao ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressio dos principios éticos é uma possibilidade mas no é uma virtude. Néo podemos aceité-la. Nao é possivel ao sujeito ético viver sem estar perma- nentemente exposto a transgressio da ética. Uma de nossas brigas na historia, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no mo- ralismo hipécrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. Mas faz parte igualmente desta luta pela eticidade recusar, com seguranca, as criticas que veem na defesa da ética precisa- mente a expresso daquele moralismo criticado. Em mim, a defesa da ética jamais significou sua distorcZo ou negacio. Quando, porém, filo da ética universal do ser humano estou falandlo da ética enquanto marca da natureza humana, enquan- to algo absolutamente indispensivel 4 convivéncia humana. Ao fazé-lo estou advertido das possiveis cxiticas que, infigis a meu pensamento, me apontaro como ingénuo e idealista. Na ver- dade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocagao ontolégica para o Ser Mais, como. falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente no Pspacocin oa avrovonta. | 19 como um a priori da hist6ria. A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na historia. & uma natureza em processo de estar sendo com algumas conotagGes fundamentais sem as quais nio teria sido possivel reconhecer a propria presenga humana no mundo romo algo original e singular. Quer dizer, mais do que umn ser no mundo, o ser humano se tornou uma presenga no mundo, com o mundo e com os outros, Presenga gue, reconhecendo a outra presenca como um “no eu” se re- conhece como “si prépria”, Presenga que se pensa a si mesma, ‘que se sabe presenca, que intervém, que transforma, que fala cdo que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no dominio da de- cisio, da avaliacZo, da liberdade, da ruptura, da opgao, que se {nstaura a necessidade da ética e se impde a responsabilidad A ética se torna inevitével e sua transgresso possivel é um desva- Jor, jamais uma virewde. Na verdade, seria incompreensivel se a consciéncia de minha presenga no mundo no significasse jé a impossibili- dade de minha auséncia na construcao da propria presenca. Como presenca consciente no mundo nio posso escapar A responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinacdo genética ou cultural ou de classe, sou irresponsivel pelo que fago no mover-me no mundo, e se careco de responsabilidade nao posso falar em ética. Isso nao significa negar os condicionamentos genéti- cos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas nao determi- nados. Reconhecer que a histria € tempo de possibilidade € nfo de determinismo, que o futuro, permita-se-me reite- rar, é problemdtico nao inexordvel. 20 | Provo Fass Devo enfatizar também que este é um livro esperango- so, um livro otimista, mas no ingenuamente construido de otimismo falso de esperanga va. As pessoas, porém, inclusive de esquerda, para quem o futuro perdeu sua pro blematicidade — 0 futuro ¢ um dado dado —, dirdo que ele € mais um devaneio de sonhador inveterado. o tenho raiva de quem assim pensa, Lamento apenas sua posicio: a de quem perdeu seu endereco na histéria. A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pos-moderni- dade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra arealidade social que, de histérica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mes- mo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo & uma fatalidade do fim do século” expressam bem 0 fatalismo desta ideologia e sua indiscutivel vontade imobilizadora. Do onto de vista de tal ideologia, s6 ha uma saida para a prética ‘educativa: adaptar o educando a esta realidade que ndo pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é 0 treino técnico indispensivel a adapta¢ao do educando, a sua sobrevi- véncia. O livro com que volto aos leitores é um decisivo nao a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente. De uma coisa qualquer texto necessita: que o leitor ou aleitora a ele se entregue de forma critica, crescentemente curiosa. B isto o que este texto espera de vocé, que acabou de ler estas “Primeiras palavras” Paulo Freire Sao Paulo Setembro de 1996 Panacocia oa aoronoua | 21 iL PRATICA DOCENTE: PRIMEIRA REFLEXAO. Divo DEIKAR CLARO QUE, embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me parecem indispensa- vveis A pritica docente de educadoras ou educadores criticos, progressistas, alguns deles so igualmente necessérios a educadores conservadores, Sd saberes demandados pela pratica educativa em si mesma, qualquer que seja a op¢io politica do educador ou educadora. Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercicio de perceber se este ou aquele saber re- ferido corresponde a natureza da pratica progressista ou conservadora ou se, pelo contrario, é exigéncia da pratica educativa mesma independentemente de sua cor politi- ca ou ideol6gica. Por outro lado, devo sublinhar que, de forma nao sistematica, tenho me referido a alguns des- ses saberes em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é legitimo acrescentar, da importancia de uma re- flexdo como esta quando penso a formacio docente ¢ a pratica educativo-critica. O ato de cozinhar, por exemplo, supe alguns saberes concernentes a0 uso do fogio, como acendé-lo, como equilibrar para mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos, mesmo remotos, de incéndio, como harmonizar os diferentes temperos numa sintese gostosa e atraente. A pratica de cozinhar vai preparando 0 novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, € vai possibilitando que ele vire cozinheiro. A pratica de ve- lejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o do dominio do barco, das partes que 0 compéem e da fungao de cada uma delas, como o conhecimento dos ventos, de sua forca, de sua direcio, os ventos ¢ as velas, a posicio das velas, 0 papel do motor e da combinacio entre motor € velas, Na pratica de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses saberes. ‘A reflexdo critica sobre a pratica se torna uma exigéncia da relacéo Teoria/Pratica sem a qual a teoria pode ir viran- do blé-blé-bl e a pritica, ativismo. ‘© que me interessa agora, repito, € alinhar e discutir alguns saberes fundamentais a pratica educativo-critica ou progressista e que, por isso mesmo, devem ser contetidos obrigatérios a organizagao programatica da formacao do- cente. Contetidos cuja compreensao, to clara € tao licida quanto possivel, deve ser elaborada na pratica forma- dora. f preciso, sobretudo, ¢ ai jé vai um destes saberes indispensaveis, que 0 formando, desde o principio mes- mo de sua experiéncia formadora, assumindo-se como sujeito também da produgio do saber, se convenga defi- nitivamente de que ensinar nao é transferir conkecimento, ‘mas criar as possibilidades para a sua produgio ou a sua construcéo. Se, na experiéncia de minha formacao, que deve ser per- manente, comeco por aceitar que 0 formador é 0 sujeito em relagdo a quem me considero 0 objeto, que ele € o sujeito ag | Pavia Pass que me forma e eu, 0 objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos — con- tetidos — acumulados pelo sujeito que sabe € que sfo a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver © processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanha, de me tornar 0 falso sujeito da “formago” do furu- 10 objeto de meu ato formador. E preciso que, pelo contrario, desde os comecos do proceso, va ficando cada vez mais claro que, embo- ra diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado, & neste sentido que ensinar nao é transferir conhecimentos, conteiidos, nem formar € aco pela qual um sujeito criador dé forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Nao ha docéncia sem discéncia, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferengas que os conotam, nfo se reduzem A condigio de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina algama coisa a alguém. E por isso que, do ponto de vista gramati- cal, o verbo ensinar é um verbo transitivo relativo. Verbo que pede um objeto direto — alguma coisa —e um objeto indireto — a alguém, Do ponto de vista democratic em que me situo, mas também do ponto de vista da radi- calidade metafisica em que me coloco ¢ de que decorre minha compreensio do homem e da mulher como seres histéricos e inacabados e sobre que se funda a minha in- teligéncia do processo de conhecer, ensinar é algo mais que um verbo transitivo relativo. Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa, e foi aprendendo socialmente que, Paoacocia ox arronowaa | 25 historicamente, mulheres ¢ homens descobriram que era possivel ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres ¢ homens perceberam que era possivel — depois, preciso — trabalhar manei- ras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluia na expe- rigncia realmente fundante de aprender. Nao temo dizer que inexiste validade no ensino de que nao resulta um aprendizado em que o aprendiz néo se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que no foi apreendido no pode ser realmente aprendido pelo aprendiz. Quando vivemos a autenticidade exigida pela prética de ensinar-aprender, participamos de uma experiéncia to- tal, diretiva, politica, ideolégica, gnosiolégica, pedagégica, estética ¢ ética, em que a boniteza deve achar-se de maos dadas com a decéncia e com a seriedade. As vezes, nos meus siléncios em que aparentemente me perco, desligado, flutuando quase, penso na importancia singular que vem sendo para mulheres ¢ homens sermos ‘0u nos termos tornado, como constata Frangois Jacob, “seres programados, mas para aprender”.* & que o proces so de aprender, em que historicamente descobrimos que era possivel ensinar como tarefa no apenas embutida no aprender, mas perfilada em si, com relacéo a aprender, & tum processo que pode deflagrar no aprendiz uma curio- sidade crescente, que pode torné-lo mais € mais criador. © que quero dizer € seguinte: quanto mais criticamente + Frangois jacob, “Nous sommes programmés, mas pour apprende™ Le Courrier, Unesco, fevereiro de 1991. 26 | Paso Fas se exerga a capacidade de aprender, tanto mais se cons- tr6i € desenvolve 0 que venho chamando “cutiosidade epistemol6gica”?’ sem a qual nfo alcangamos 0 conheci- mento cabal do objeto. B isto que nos leva, de um lado, a critica e a recusa a0 ensino “bancério”,* de outro, a compreender que, apesar dele, 0 educando a ele submetido nao esté fadado a fenecer; em que pese o ensino “bancério”, que deforma a necessi- ria criatividade do educando e do educador, o educando a ele sujeitado pode, nfo por causa do contetido cujo “co nhecimento” the foi transferido, mas por causa do proceso ‘mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemo- Iogico do “bancarismo”. © necessario & que, subordinado, embora, a pratica “bancéria”, 0 educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, agucando sua curiosidade ¢ estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma © “imuniza” contra o poder apassivador do “bancarismo”. Neste caso, ¢ a forca criadora do aprender de que fazem parte a comparacdo, a repeticdo, a constatagdo, a divida rebelde, a curiosidade no facilmente satisfeita, que supera 08 efeitos negativos do falso ensinar. Esta é uma das signi- ficativas vantagens dos seres humanos — a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionantes. Isso nfo significa, porém, que nos seja indiferente ser um. educador “bancério” ou um educador “problematizador”, > Paulo Freire, A sombra desta manguera. So Paulo: Otho gua, 1995. “Id, Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro: Paz Terra, 1994(48'edig6o, S¥0 Paulo: Pax Terra, 2011}. Pamaooi oa actoma | 27 1.1 ENSINAR EXIGE RIGOROSIDADE METODICA O educador democratico nao pode negar-se o dever de, na sua pritica docente, reforgar a capacidade critica do educando, sua curiosidade, sua insubrissao. Uma de suas tarefas primor- diais € trabalhar com os educandos a rigorosidade metédica com que devem se “aproximar” dos objetos cognosciveis. EB esta rigorosidade metédica nao tem nada que ver com o dis- curso “bancério” meramente transferidor do perfil do objeto ‘ou do contetido. & exaramente neste sentido que ensinar nao ‘se esgota no “tratamento” do objeto ou do contesido, superti- Gialmente feito, mas se alonga a produgio das condigées em que aprender criticamente é possivel. E essas condicGes im plicam ou exigem a presenca de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, hu- miildes e persistentes. Faz parte das condig6es em que aprender criticamente é possivel a pressuposi¢ao por parte dos educan- dos de que o educador jé teve ou continua tendo experiéncia da produgao de certos saberes e que estes nfo podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrario, ras condigdes de verdadeira aprendizagem os educandos v3o se transformando em reais sujeitos da construgdo e da recons- trugio do saber ensinado, ao lado do edhucador, igualmente sujeito do processo, Sé assim podemos falar realmente de sa- ber ensinado, em que 0 objeto ensinado é apreendido na sua razdo de ser e, portanto, aprendido pelos educandos. Percebe-se, assim, a importancia do papel do educador, ‘0 mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente nao apenas ensinar os contetidos, mas também ensinar a pensar certo. Dai a impossibilidade de 28 | Povo Penne vir a tornar-se um protessor eritico se, mecanicamente me- morizador, é muito mais um repetidor cadenciado de frases € de ideias inertes do que um desafiador. O intelectual me- morizador, que 1é horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de meméria — nao percebe, quando realmente existe, nenhuma rela¢io entre o que leu e 0 que vem ocorrendo no seu pais, na sua cidade, no seu bairro, Repete o lido com preciso mas raramente ensaia algo pes- soal. Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. £ como se os livros todos a cuja leitura dedi- ca tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo. A realidade com que eles tém que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um dado ai, desconectado do concreto. Nao se lé criticamente, como se fazé-lo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria por atacado, Ler vinte livros, trinta livros, A leitura verdadeira me compromete de ime- diato com o texto que a mim se dé ea que me dou e de cuja compreensio fundamental me vou tornando também sujei- to. Ao ler no me acho no puro encalgo da inteligéncia do texto como se fosse ela produgo apenas de seu autor ou de sua autora, Esta forma viciada de ler ndo tem nada que ver, por isso mesmo, com o pensar certo € com 0 ensinar certo. $6, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, as vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma cas condigdes necessérias a pensar certo é nao estarmos de- masiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, Proacocta na avronoma | 29 ‘me parece inconciliével com a desvergonha da arrogincia de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo. O professor que pensa certo deixa transparecer aos edu- candos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo ¢ com o mundo, como seres historicos, é a capa- cidade de, intervindo no mundo, conhecer mundo, Mas, histérico como nés, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo su- pera outro que antes foi novo e se fez. velho e se “dispée” a ser ultrapassado por outro amanhi.’ Dai que seja tio fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos a produgao do conheci- mento ainda no existente, Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiol6gico: 0 em que se ensina e se aprende o conhecimento jé existente © 0 em que se trabalha a produgio do conhecimento ainda nio existente, A “dodiscéncia” — docéncia-discéncia —e a pesquisa, indicotomizaveis, so assim praticas requeridas por esses momentos do ciclo gnosiolégico, 1.2 BNSINAR EXIGE PESQUISA io hé ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino.* Esses quefazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando, Ensino porque * ‘esse propisio, cf. Alvaro Vieira Pinto, Cénciac exiténda, Rio de Janeiro: Paz Terra, 1989. «Palas hoje, com insisténca, no professor pesqusidor. Nomen entender, 0 que |i de pesquisadorno professor ndo & uma qualidade ou uma forma de ser ou de stuar que se acescente & de ensina. Far parte da nanreza da pritica docente a indagagio, a busca, pesquisa. O de que se precisa ¢que, em ua formacio perma: ‘nent, © professor se perceba ese assum, porque profesor, como pesquisador, 30 | Pao Fass busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pes- quiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo ‘educo ¢ me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda nfo conhego e comunicar ou anunciar a novidade. Pensar certo, em termos criticos, ¢ uma exigéncia que os momentos do ciclo gnosiolégico vio pondo a curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamen- te rigorosa, transita da ingenuidade para o que venho chamando “curiosidade epistemolégica”. A curiosidade ingénua, de que resulta indiscutivelmente um certo sa- ber, nao importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza 0 senso comum. O saber de pura experiéncia feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessaria superacdo quanto o respeito € 0 estimulo A ca pacidade criadora do educando. Implica 0 compromisso da educadora com a consciéncia critica do educando, cuja “promogio” da ingenuiidade nfo se faz automaticamente. 1.3 ENSINAR EXIGE RESPEITO AOS SABERES DOS EDUCANDOS Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, a escola, o dever de néo s6 respeitar os saberes ‘com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela — saberes socialmente construidos na prética comunitéria —, mas também, como ha mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razao de ser de alguns desses saberes em relacio com o ensino dos contet- dos. Por que nao aproveitar a experiéncia que tém os alunos de viver em areas da cidade descuidadas pelo poder pibli- co para discutir, por exemplo, a poluigéo dos riachos e dos Pepacocta pa auronomta | 31 CCorregos € os baixos niveis de bem-estar das populagdes, os lixGes € os riscos que oferecem a saiide das gentes. Por que no hé lixées no cora¢do dos bairros ricos e mesmo pura- mente remediados dos centros urbanos? Essa pergunta considerada em si demagégica e reveladora da mA vontade de quem a faz, B pergunta de subversivo, dizem certos de- fensores da democracia. Por que nao discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo contetido se ensina, a realidade agressiva em que a violéncia é a constante € a convi- véncia das pessoas € muito maior com a morte do que com a vida? Por que nao estabelecer uma “intimidade” entre os sabe- res curriculares fundamentais aos alunos e a experiéncia social que eles tém como indivicuos? Por que nao discutiras irnplica- ‘g0es politicas e ideolégicas de um tal descaso dos dominantes pelas areas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? “Porque, dira um educador reacionariamente prag- matico, a escola ndo tem nada que ver com isso. A escola nao € partido, Ela tem que ensinar os conteticlos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.” 1.4 ENSINAR EXIGE CRITICIDADE No ha para mim, na diferenga e na “distancia” en- tre a ingenuidade a criticidade, entre o saber de pura experiéncia feito e 0 que resulta dos procedimentos me- todicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superagio. A superacio e nao a ruptura se da na medida em que a curiosidade ing@nua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrario, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao cri- ticizar-se, tornando-se entdo, permito-me repetir, curiasidade x | Pawo Fret Ee epistemolégica, metodicamente “rigorizando-se” na sua apro- ximagio ao objeto, conota seus achados de maior exatidao. Na verdade, a curiosidade ingénua que, “desarmada”, est associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosida- de que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscivel, se tor- na curiosidade epistemoldgica. Muda de qualidade mas nao de esséncia. A cnriosidade de camponeses com quem tenho dia- logado ao longo de minha experiéncia politico-pedagégica, fatalistas ou j4 rebeldes diante da violéncia das injustigas, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos cs- pantada diante de “nfo eus”, com que cientistas ou filésofos académicos “admiram” 0 mundo. Os cientistas € 0s filéso- fos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do campo- nés e se tornam epistemologicamente curiosos. ‘Acuriosidade como inquicta¢io indagadora, como inclina- io ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou nao, como procura de esclarecimento, como sinal de atencio. ‘que sugere alerta, faz parte integrante do fendmeno vital. N3o haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos ‘poe pacientemente impacientes diante do mundo que néo fi zemos, acrescentando a ele algo que fazemos. ‘Como manifestacio presente & experiéncia vital, a curiosi- dade humana vem sendo hist6rica e socialmente construfda ¢ reconstruida. Precisamente porque a promocio da inge- nuidade para a criticidade ndo se d& automaticamente, uma das tarefas precipuas da pritica educativo-progressista € exatamente 0 desenvolvimento da curiosidade critica, insa- tisfeita, indécil. Curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes do ou produzidos por certo Pepacosia pa avronoma | 33 ‘excesso de “racionalidade” de nosso tempo altamente tecno- logizado. E nfo vai nesta consideracao nenhuma arrancada falsamente humanista de negacao da tecnologia e da ciéncia. Pelo contratio, € consideracdo de quem, de um lado, ni diviniza a tecnologia, mas, de outro, nao a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa. 1,5 ENSINAR EXIGE ESTETICA E ETICA ‘A necesséria promogio da ingenuidade a criticidade nao pode ou nao deve ser feita a distincia de uma rigorosa for- magio ética ao lado sempre da estética. Decéncia e boniteza de maos dadas, Cada vez me conven¢o mais de que, desperta com relacéo a possibilidade de enveredarse no descaminho do puritanismo, a prética educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decéncia e de pureza, Uma critica permanente aos desvios faceis com que somos tentados, as vvezes ou quase sempre, a deixar as dificuldades que os cami- nos verdadeiros podem nos colocar. Mulheres ¢ homens, seres histérico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. S6 somos porque estamos sendo. Estarsendoé a condiclo, entrenés, para scr. Nio épos- sivel pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela, Estar longe ou, pior, fora da ética, entre nés, mulheres e homens, é uma transgressao. B por isso que trans- formar a experiéncia educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que ha de fundamentalmente humano no exercicio educativo: o seu carater formador. Se se respcita a natureza do ser humano, o ensino dos contetidos nao pode se | Pano Teens dar-se alheio a formagao moral do educando, Educar & subs- tantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia? ou a ciéncia é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado, De testemunhar aos alunos, as vezes com ares, de quem possui a verdade, um rotundo desacerto. Pensar certo, pelo contrétio, demanda profundidade e no superfi- ialidade na compreensio e na interpretagao dos fatos. Supe a disponibilidade & revisio dos achados, reconhece no ape- nas a possibilidade de mudar de opeo, de apreciago, mas 0 direito de fazé-lo. Mas como nao hé pensar certo a margem de principios éticos, se mudar € uma possibilidade e um diei- to, cabe a quem muda — exige o pensar certo— que assuma amudanga operada. Do ponto de vista do pensar certo ndo é possivel mudar e fazer de conta que néo mudou. B que todo pensar certo é radicalmente coerente, 1.6 ENSINAR EXIGE A CORPORIFICACAO DAS PALAVRAS PELO EXEMPLO professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha 08 contetidos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a formula farisaica do “faga o que mando € nfo o que en faco”. Quem pensa certo esti cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem, Pensar certo é fazer certo. Que podem pensar alunos sérios de um professor que, hé dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e hoje, dizendo que nao mudou, faz.o discurso pragmitico contra os sonhos A este propésito ef. Nell Postman, Teehnopaly: The Surrender of Culture to ‘Tecnology. Nova York: Alfred A. Knopf, 1992. Proncoota pa arronouta | 35 pratica a transferéncia de saber do professor para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a formagio da classe trabalhadora e que, pragmitica hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neoliberal, com o puro trei- namento do operatrio, insistindo, porém, que é progressista? Nao ha pensar certo fora de uma prética testemunhal que o re-diz em lugar de desdizé-lo. Nao € possivel ao profes- Sor pensar que pensa certo mas a0 mesmo tempo perguntar a0 aluno se “sabe com quem esta falando”, (O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamen- tea segurancana argumentacio, € 0 de quem, discordando do seu oponente, néo tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, as vezes, do que a razao mesma da discordancia. Uma dessas pessoas desmedidamente raivosas proibiu certa vez uma estudante que trabalhava em uma dissertacdo sobre alfabetizagao e cidadania que me lesse. “Ja era’, disse com ares de quem trata com rigor e neutralida- de o objeto, que era eu. “Qualquer leitura que vocé faga deste senhor pode prejudicé-la.” Nao é assim que se pensa certo nem é assim que se ensina certo." Faz parte do pensar cer- to o gosto da generosidade que, ndo negando a quem o tem o dizeito a raiva, adistingue da raivosidade inrefreada, 1,7 ENSINAR EXIGE RISCO, ACEITAGAO DO NOVO E REJEIGAO A QUALQUER FORMA DE DISCRIMINAGAO proprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a acei- taco do novo que nao pode ser negado ou acolhido s6 porque € novo, assim como o critério de recusa ao velho néo € apenas 0 cronolégico. O velho que preserva sua validade Gf Paulo Prive, Cartas a Cristina. Rio de Janeiro: Pe Terra, 1955p. 207 36 | Pavio Prone ‘ou que encarna uma tradig4o ou marca uma presenga no tempo continua novo. Faz parte igualmente do pensar certo a rejeicéo mais decidida a qualquer forma de discriminagao. A prética precon- ceituosa de raga, de classe, de pénero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quao lon- ge dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que ‘matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quo ausentes da demo- cracia se acham os que queimam igrejas de negros porque, certamente, negros nao tém alma. Negros nao rezam. Com sua negritude, os negros sujam a branquitude das oragdes... ‘A mim me da pena e nao raiva, quando vejo a arrogincia com que a branquitude de sociedades em que se faz. isso, em que se queimam igrejas de negros, se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia, Pensar e fazer errado, pelo visto, ndo t€m mesmo nada que ver com a humildade que 0 pensar certo exige, Nao tém nada que ver com o bom-senso que regula nossos exageros € evita as nossas caminhadas até oridiculo e a insensatez. Asvezes, temo que algum leitor ou leitora, mesmo que ainda nao totalmente convertido ao “pragmatismo” neoliberal, mas por ele jé tocado, diga que, sonhador, continuo a falar de uma educagao de anjos endo de mulheres ede homens, O que tenho dito até agora, porém, diz respeito radicalmente & natureza de mulheres ¢ de homens. Natureza entendida como social c histo- ricamente constituindo-se, ¢ ndo como um a priori da historia? * Paulo Freie, Palagga da eperanga, Rio de Janeiro: Paze Tera, 1994 [17 edigio, So Paulo: Paze Terra, 2011} Prpacocia na auroNoMia | 37 © problema que se coloca para mim & que, compreen- dendo como compreendo a natureza humana, seria uma contradigao grosseira nao defender que venho defenden- do, Faz. parte da exigencia que a mim mesmo faco de pensar certo, pensar como venho pensando enquanto escrevo este texto. Pensar, por exemplo, que o pensar certo a ser ensinado concomitantemente com 0 ensino dos contetidos nao é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é que ensinar a pensar certo nao € uma expe- riéncia em que ele —o pensar certo — é tomado em si mes- mo ¢ dele se fala ou uma pratica que puramente se descreve, mas algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a forca do testemunho. Pensar certo implica a existéncia de su- jeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o proprio pensar dos sujeitos. Pensar certo no é que- fazer de quem se isola, de quem se “aconchega” a si mesmo na solidao, mas um ato communicante, Nao ha por isso mes- ‘mo pensar sem entendimento, ¢ 0 entendimento, do ponto de vista do pensar certo, ndo é transferido, mas coparticipa- do, Se, do angulo da gramitica, 0 verbo entender € transitive no que concerne & “sintaxe” do pensar certo, ele é um verbo cujo sujeito é sempre coparticipe de outro. Todo entendi- mento, se nao se acha “trabalhado” mecanicistamente, se no vem sendo submetido aos “cuicados” alienadores de um tipo especial e cada vez mais ameacadoramente comum de mente que venho chamando “burocratizada’, implica, ne- cessariamente, comunicabilidade. Nao ha inteligéncia — a nao ser quando o préprio proceso de inteligir é distorcido — que ndo seja também comunicagdo do inteligido. A grande tarefa do sujeito que pensa certo nao é transferir, depositar, 3 | Pato Preis oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusivel pratica de inteligir, desafiar 0 educando ‘com quem se comunica, a quem comunica, a produzir sua ‘compreensao do que vem sendo comunicado, Nao ha inte- ligibilidade que n3o seja comunicagao e intercomunicagao e que no se funde na dialogicidade. O pensar certo, porisso, dialogico e no polémico. 1.8 ENSINAR EXIGE REFLEXAO CRITICA SOBRE A PRATICA © pensar certo sabe, por exemplo, que niio é a partir dele como um dado dado que se conforma a prética docente cri- tica, mas sabe também que sem ele ndo se funda aquela. A pratica docente critica, implicante do pensar certo, envolve 0 movimento dinamico, dialético, entre o fazer € o pensar sobre o fazer. O saber que a pritica docente espontinea ou quase es- pontdnea, “desarmada”, indiscutivelmente produzé um saber ingénuo, um saber de experiéncia feito, a que falta a rigorosi- dade met6dica que caracteriza a curiosidade epistemolégica do sujeito, Este no é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, ¢ fundamental que, na prética da formacio docente, 0 aprendiz de educador assuma que o indispensivel pensar certo no ¢ presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde 0 centro do poder, mas, pelo contrério, o pensar certo que supe- 20 ingEnuo tem que ser produzido pelo préprio aprendiz em comunhio com o professor formador. E preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz. do pensar ingénuo, como a do critico, & a curiosidade mesma, caracteristica do fendmeno Proscoai on asronown | 39 vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tio curioso 0 pro- fessor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto 0 professor de filosofia da educagio na universidade A on B. de que se precisa € possibilitar, que, voltando-se sobre si mes- ma, através da teflexio sobre a pratica, a curiosidade ingénua, percebendo-se como tal, se vi tornando critica. Por isso € que, na formagio permanente dos professo- res, 0 momento fundamental € 0 da reflexio critica sobre a pratica. B pensando criticamente a pratica de hoje ou de conte que se pode melhorar a préxima pritica. O proprio discurso tedrico, necessirio A reflexio critica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a pritica. 0 seu “distanciamento epistemolégico” da pratica enquanto objeto de sua andlise deve dela “aproximé-lo” ao maximo. Quanto melhor faca esta operacdo tanto mais inteligéncia ganha da prética em anilise e maior comunicabilidade exer- ce em torno da superagio da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, quanto mais me assumo como estou sendo percebo a ou as razées de ser de por que estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingénua para o de curiosidade epis- temol6gica. Nao é possivel a assunc3o que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar ¢ de cujo processo se faz necessariamen- te sujeito também. Seria, porém, exagero idealista afirmar que a assuncio, por exemplo, de que fumar ameaga minha vida ja significa deixar de fumar, Mas deixar de fumar passa, em algumn sen- tido, pela assungao do risco que corro ao fumar. Por outro: lado, a assuncdo se vai fazendo cada vez mais assungao na 4p | Paro Frome medida em que ela engendra novas opsées, por isso mesmo ‘em que ela provoca ruptura, decisio e novos compromissos. Quando assumo 0 mal ou os males que o cigarro me pode causar, me movo no sentido de evitar os males, Decido, rompo, opto. Mas é na pritica de ndo fumar que a assungio do tisco que corro por fumar se concretiza materialmente. Me parece que ha ainda um elemento fundamental na assungZo de que falo: 0 emocional, Além do conhecimen- to que tenho do mal que o fumo me faz, tenho agora, na assung0 que dele faco, legitima raiva do fumo. E tenho também a alegria de ter tido a raiva que, no fundo, ajudou que eu continuasse no mundo por mais tempo, Est errada a educacao que nao reconhece na justa raiva,"* na raiva que protesta contra as injusticas, contra a deslealdade, contra © desamor, contra a exploracio e a violéncia um papel al- tamente formador. O que a raiva nao pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que cor- re sempre o tisco de se alongar em odiosidade. 1.9 ENSINAR EXIGE © RECONHECIMENTO E A ASSUNGKO DA IDENTIDADE CULTURAL B interessante estender mais um pouco a reflexio sobre a as- sungio. O verbo assumir é um verbo transitivo € que pode ter como objeto 0 proprio sujeito que assim se assume. Eu tanto assumo o risco que corro ao fumar quanto me assu- ‘mo enquanto sujeito da propria assungGo. Deixemos claro Ade Cro conta os vendihées do Templo. A do progresists contra os inimigos da reforma agdsa, a dos ofenidos conta vilEaca de toda dic rminago, de clase, de raga de gero. A dosinjustgados contra a impunkade. ‘A de quem tem fome contra a forma luxuriosa com que alguns, mais do que ‘comem, esbanjam e transformam a vida num desirute, Psoacocta na acronoata | 4 que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assungio de que fumar ameaga minha vida, com assungio eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar e de suas consequéncias. Outro sentido mais radical tem a assungio ou assumir quando digo: uma das ta refas mais importantes da pratica educativo-critica é propiciar as condigdes em que os educandos em suas relages uns com 05 outros € todos com o professor ou a professora ensaiam a experiéncia profunda de assumir-se. Assumirse como ser social ¢ histérico, como ser pensante, comunicante, trans- formador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer:se como objeto. A assungéo de nés mesmos nio significa a exclusdo dos outros. # a “outredade” do “no eu”, ou do ty, que me faz assumir a radicalidade de meu eu. A questdo da identidade cultural, de que fazem parte a di- ‘mensio individual e a de classe dos educandos cujo respeito € absolutamente fundamental na pratica educativa progres- sista, é problema que nao pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assungdo de nds por nés mesmos. f isto que o puro treinamento do professor no faz, perdendo-se € perdendo-o na estreita e pragmatica visio do processo. A experiéncia histérica, politica, cultural e social dos ho- mens € das mulheres jamais pode se dar “virgem” do conflito entre as forcas que obstaculizam a busca da assungdo de si por parte dos individuos e dos grupos e das forcas que trabalham. em favor daquela assungao. A formagio docente quese julgue superior a essas “intrigas” nao faz outra coisa sendo traba- Ihar em favor dos obsticulos. A solidariedade social e politica de que precisamos para construir a sociedade menos feia € 4 | Pavio Freme menos arestosa, em que podemos ser mais nés mesmos, tem na formagéo democritica uma pritica de real importancia, ‘A aprendizagem da assungéo do sujeito é incompativel com o ‘reinamento pragmatico ou com o elitismo autoritério dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado. As vezes, mal se imagina o que pode passar a represen- tar na vida de um aluno um simples gesto do professor. © que pode um gesto aparentemente insignificante valer como forca formadora ou como contribuicgo a assungao do educando por si mesmo. Nunca me esqueco, na histéria ja longa de minha meméria, de um desses gestos de profes- sor que tive na adolescéncia remota. Gesto cuja significacao ‘mais profunda talvez.tenha passado despercebida por ele, 0 professor, e que teve importante influéncia sobre mim. Esta- va sendo, entao, um adolescente inseguro, vendo-me como tum corpo anguloso ¢ feio, percebendo-me menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas possibilidades. Era muito mais mal-humorado que apaziguado com a vida. Facilmente me erigava. Qualquer consideracao feita por um colega rico da classe jé me parecia o chamamento a atencao de minhas fragilidades, de minha inseguranca O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares ¢, chamando:nos um a um, devolvia-os com o seu ajuizamen- to. Em certo momento me chama ¢, olhando ou re-olhando 0 ‘meu texto, sem dizer palavra, balanca a cabeca numa demons- tragio de respeito e de consideragi0. O gesto do professor valeu mais do que a propria nota dez. que atribuiu a minha redagio. O gesto do professor me trazia uma confianca ainda obviamente desconfiada de que era possivel trabalhar e pro- duzir. De que era possivel confiar em mim, mas que seria tio Penanocta na aronouan | 4 cerrado confiar além dos limites quanto errado estava sendo nao confiar, A melhor prova da importincia daquele gesto que dele falo agora como se tivesse sido testemunhado hoje. B faz, na verdade, muito tempo que ele ocorreu... Este saber, o da importancia desses gestos que se mul- tiplicam diariamente nas tramas do espaco escolar, & algo sobre que teriamos de refletir seriamente. & uma pena que o cardter socializante da escola, o que hé de informal na experiéncia que se vive nela, de formacao ou defor- magio, seja negligenciado, Fala-se quase exclusivamente do ensino dos contetidos, ensino lamentavelmente qua- se sempre entendido como transferéncia do saber, Creio gue uma das razGes que explicam este descaso em torno do que ocorre no espago-tempo da escola, que nao seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensio es- treita do que é educacio e do que é aprender, No fundo, passa despercebido a nés que foi aprendendo socialmen- te que mulheres ¢ homens, historicamente, descobriram que € possivel ensinar. Se estivesse claro para nés que foi aprendendo que percebemos ser possivel ensinar, terfamos entendido com facilidade a importdncia das ex- periéncias informais nas ruas, nas pracas, no trabalho, nas, salas de aula das escolas, nos patios dos recreios,"' em que "sta € uma preocupagio fundamental da equipe coordenada pela professor Miguel Aroio ¢ que vem propondo ao pais, em Belo Horizonte, uma dss me- Ihoresreinvencoes da escola. & uma listima que no tenha havido ainds uma cemissora de TV que se dedicasse a mostrar experiéncias como a de Belo Horizonte, a de Uberaba, a de Porto Alegre, a do Recife e de tantas outras cspalhadss pelo Brasil. Que se propusesse revelar priticas criadoras de gente ‘que se artisca, vividas em escolas privadas ou piblics. Progeama que po- dria chamar-se “Mudar ¢ dificil mas € possivel”. No fund, um dos saberes fundamentas pritica educativa, 44 | Provo Faene variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significacao. Hé uma natureza testemunhal nos espacos tio lamentavelmente relegados das escolas, Em A educagdo na cidade" chamei a atencao para esta importancia quando discuti o estado em que a administraggo de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de S40 Paulo em 1989. O desca- so pelas condic&es materiais das escolas alcangava niveis, impensiveis. Nas minhas primeiras visitas a rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: como cobrar das criancas um minimo de respeito as carteiras escolares, as mesas, as paredes, se 0 Poder Publico revela absoluta desconsideragao 4 coisa piiblica? E incrivel que nao ima- ginemos a significagio do “discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaco. A eloquéncia do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chlo, na bo- niteza das salas, na higiene dos sanitéios, nas flores que adornam. Ha uma pedagogicidade indiscutivel na mate- rialidade do espago. Pormenores assim da cotidianidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase sempre pouca ou nenhuma atencio se di, tém na verdade um peso significativo na ava- liagdo da experiéncia docente. O que importa, na formacio docente, nao é a repeti¢ao mecanica do gesto, este ou aquele, ‘mas a compreensio do valor dos sentimentos, das emocées, do desejo, da inseguranca a ser superada pela seguranca, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem. Nenhuma formacao docente verdadeira pode fazer: -se alheada, de um lado, do exercicio da criticidade que 1 Paulo Freire A educa na edade. S50 Paulo: Cortez Bator, 1991 Pepacocia pa auranomia | 45

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