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22/12/2022 14:49 Francesco Tonucci: a criança como paradigma de uma cidade para todos - Educação e Território

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REPORTAGEM

PUBLICADO DIA 21 DE SETEMBRO DE 2016

Francesco Tonucci: a criança como


paradigma de uma cidade para todos
POR RAIANA RIBEIRO

TAGS: ESCOLA INTERSETORIALIDADE PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Pensador, pedagogo e desenhista, o italiano Francesco Tonucci é uma das


vozes mais ativas e influentes do mundo no que diz respeito à participação
social da infância na discussão pública sobre o futuro das cidades.

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22/12/2022 14:49 Francesco Tonucci: a criança como paradigma de uma cidade para todos - Educação e Território

Leia+: Culturas das infâncias e como nós adultos quase as destruímos

Nascido em 1940, em Fano, pequena cidade localizada às margens do mar


Adriático, Tonucci trabalhou como professor já na década de 60, quando pôde
conhecer de perto o cotidiano escolar, experiência que deu base para a sua
concepção de educação e para a crítica ao modelo escolar vigente. “A escola
segue sendo para poucos. O primeiro desafio, portanto, ainda é como fazer
com que a escola seja para todos – e para cada um”, aponta o italiano em
entrevista exclusiva para o Educação e Território.

Sob o pseudônimo Frato, o autor publica uma série de quadrinhos em que


discute de forma irônica o cenário escolar e a estrutura familiar
contemporânea. “A escola da minha neta de nove anos é muito parecida à
minha escola de setenta anos atrás. E não podemos mais suportar isso,
considerando como o mundo mudou.”

Célebre por ter criado a iniciativa “Cidade das Crianças”, que aposta na
transformação das cidades a partir do olhar das crianças que nela habitam,
Francesco Tonucci defende que as políticas públicas urbanas têm como tarefa
garantir o direito ao brincar de meninos e meninas.

“Para todos os estudiosos da infância e do desenvolvimento infantil, a


brincadeira é a experiência mais importante na vida de um homem e de uma
mulher. Ao longo da vida, todo o cimento sobre o qual se constroem nossa
formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de vida, brincando”,
afirma.

Depois de consolidar estratégias para uma Cidade das Crianças em Rosário


(Argentina) e Pontevedra (Espanha), Tonucci lamenta que poucos prefeitos
sejam capazes de escutar as crianças de verdade. “Há muitos que querem

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escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para sair em fotos na


imprensa”, critica.

Ele postula que a escuta efetiva da criança deve servir para gerar
uma mudança de paradigma, uma inversão de prioridades capaz de reverter o
planejamento masculino de cidade. “Eu não quero uma cidade infantil, uma
cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade
para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o
mais novo.”

Durante a entrevista, o educador discorre sobre temas como escola, formação


de professores, relação com as famílias, infância e cidade. O italiano se diz
impressionado com o fato de que, ao mesmo tempo em que as crianças
perderam a possibilidade de sair de casa, novas tecnologias as conectam com o
mundo inteiro. “Uma criança com enorme mobilidade cognitiva não pode sair
de casa.”

E analisa o conflito atual entre as crianças e seus pais. “As crianças pedem, à
escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E seus pais pedem, à escola
e à cidade, mais controle, mais vigilância e mais proteção. São duas visões
conflitivas e devemos escolher de que lado estamos”, defende.

Educação e Território: A sua obra está carregada de críticas ao modelo


escolar tradicional. Em sua opinião, quais foram as principais mudanças na
instituição escolar nas últimas décadas e o que ainda se mantém, apesar
dos novos contextos?

Francesco Tonucci: Acredito que a principal mudança nos países ocidentais


foi o que na Itália veio a ocorrer na década de 60, com a ampliação da
obrigatoriedade do ensino até os 14 anos. Antes disso, havia somente a escola
que eu vivi quando era criança, uma escola para poucos. Isso porque, no final

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do ensino primário, por volta dos 11 anos, tínhamos que escolher se íamos
para o ginásio, que nos prepararia para a universidade, ou se passaríamos
diretamente para o ensino profissionalizante. E esta era a solução mais comum
para a maioria dos meus companheiros – àqueles, claro, que a escola não tinha
perdido no meio do caminho. A primeira reflexão, portanto, é analisar quem
eram esses que seguiam estudando.

Tonucci criou o personagem “Frato” para ironizar as instituições escolares.


Crédito: TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre, RS: Artmed, 1997.

A maioria destes meninos e meninas eram filhos de famílias de nível social alto,
com algumas exceções, como eu, cujos pais não pertenciam a esta classe, mas
sentiam um orgulho imenso de que seus filhos pudessem seguir estudando.
Porém, grande parte desses estudantes vinham de famílias que ofereciam
livros, que tinham adultos que liam, fosse por trabalho ou por gosto, eram
famílias que tinham o costume de ler um livro antes que seus filhos dormissem.

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Eram famílias que frequentavam concertos, livrarias, que viajavam, enfim,


famílias que podiam prover isso que eu considero uma formação de base.

A escola, portanto, completava essa formação. E, por isso, havia um certo


sentido que ela oferecesse coisas estranhas como, por exemplo, caligrafia. Eu
tinha duas notas de Língua: uma de Italiano e outra de caligrafia. E por quê?
Porque uma pessoa que saía da escola e assumia um cargo profissional, como
funcionário, deveria saber escrever bem, porque a maioria dos documentos se
escreviam a mão. Na escola se estudava ainda a História Antiga, dos gregos,
egípcios, romanos; a Geografia exótica, enfim, tudo aquilo que completava a
formação de base proveniente das famílias.

Nos anos 60, então, o parlamento italiano amplia a obrigação escolar até os 14
anos. Nesse momento, teria sido muito importante que a escola se
perguntasse: o que devo mudar para me tornar uma escola para todos?
Entretanto, a única mudança que a escola fez foi apagar as atividades ligadas à
formação para o trabalho, as oficinas, os ateliês, tudo aquilo relacionado às
atividades manuais.

E a escola acabou oferecendo para todos aquilo que era para poucos.

Isso produziu um desastre, porque a maioria dos alunos que estavam nessa
escola não tinham uma base cultural. E eu acredito que isso não mudou
substancialmente nos dias de hoje. A escola segue sendo para poucos. O
primeiro desafio, portanto, ainda é como fazer com que a escola seja para
todos – e para cada um.

ET: E como isso pode ser feito?

A primeira coisa é o que Lóris Malaguzzi, criador e diretor das escolas Reggio
Emilia, disse em um de seus poemas. Para ele, as crianças possuem mais de
cem línguas, cem maneiras de pensar, de sonhar e de fazer, mas lhes roubam
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99. Quem rouba as crianças não é, em minha opinião, apenas a escola. Acredito
que ela tenha muita responsabilidade nesse processo, mas que não seja a
única. E como ela faz isso?

“A criança tem
uma centena de línguas
(E cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
ao separar a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
pensar sem as mãos
fazer sem cabeça
para ouvir e não falar
de compreender sem alegria
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
para descobrir o mundo que já está lá
e do cem
eles roubam 99”
(Loris Malaguzzi, “As Cem Linguagens das Crianças”)

Oferecendo pouco.

A escola diz que o que lhe interessa é saber escrever, contar, um pouco de
ciência e nada mais. O resto não interessa. E, claro, os que nasceram literários,
matemáticos ou científicos se encontram bem nessa proposta. Mas aqueles
que nasceram bailarinas, músicos, artistas, exploradores ou investigadores
ficam de fora. A escola não os reconhece e eles não reconhecem a escola.

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O escritor colombiano Gabriel García Márquez dizia que aquele que nasce
escritor não o sabe previamente. E que a educação deveria assumir como seu
papel principal ajudá-lo a descobrir o que ele chama de seu “brinquedo
favorito”. Porque apenas trabalhando sobre o que é o seu “brinquedo
favorito”, ele poderá chegar ao que chamamos de excelência, ele poderá ser
capaz e ele poderá ser feliz.

A felicidade é um tema que devemos propor à educação. Nos anos 70, na


União Soviética, Mario Lodi, grande educador italiano e meu amigo, disse ao
final de uma palestra: “A criança não é propriedade nem da família, nem da
escola e nem do Estado. E, quando nasce, tem direito à felicidade”. Eu acredito
que esse seja um grande programa educativo: considerar que os filhos não são
nossos e que têm direito a ser feliz.

Bom, mas o que significa tudo isso? O que deveria fazer a escola para alcançar
esses resultados?

Primeiro, ela deveria abrir o leque de opções, não se contentar em oferecer


pouco, mas sim oferecer muito. O leque de linguagens deve ser grande e na
escola deve ser possível trabalhar com as mãos, fazer música, fazer uma horta,
investigar, criar poesias, inventar contos, fazer teatro. Oferecendo muitas
linguagens, a escola gera possibilidades e cada um encontra o que é seu, cada
um pode se dedicar ao seu “brinquedo favorito”. Acredito que esse seja um
tema básico para a escola.

A escola de hoje que eu conheço está muito mais preocupada com o que falta
do que com o que existe. Toda avaliação se dedica a buscar o que falta. As
lições de casa têm como objetivo final ajudar os alunos a recuperar as lacunas.
Pedimos às crianças que dediquem sua atenção ao que não existe, ao que falta,
àquilo que eles não gostam. Ao contrário, deveríamos pedir que se dediquem
ao seu “brinquedo favorito”.

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Nesses últimos cinquenta anos que eu venho acompanhando as escolas da


Itália, Espanha, Argentina – conheço menos o Brasil -, vejo que os governos
foram tentando reformar a escola. Mudaram programas, livros, a arquitetura,
mudaram os horários, enfim, mudou tudo. A única que permaneceu igual foi a
escola. A escola da minha neta de nove anos é muito parecida à minha escola
de setenta anos atrás. E não podemos mais suportar isso, considerando como
o mundo mudou. O que aprendemos, então, é que não se muda a escola com
leis. As leis e as reformas não são capazes de mudar a realidade. E como
faremos então?

A escola de hoje que eu conheço está muito


mais preocupada com o que falta do que com o
que existe.

De uma maneira muito simples. Oferecendo a todos os alunos bons


professores. Então, o que todos os Estados deveriam colocar em pauta não são
mais maravilhosas reformas, senão garantir bons professores. Uma professora
de Barcelona, comentando esse tema, me disse: o pior professor deve ser bom.
Esse deve ser o compromisso de nossas sociedades, governos e parlamentos:
reformar a formação dos professores. Os poucos países que o fizeram, como a
Finlândia, mostram que o primeiro a ser feito é aumentar o salários dos
professores. A segunda medida foi afirmar que nem todos podem ser
professores. Na Itália, funciona exatamente o contrário: vai ser professor
aquele não pôde ser algo mais. Quase sempre a decisão de se tornar professor
é resultado de um compromisso de segundo nível.

Eu, por exemplo, sou formado para ser professor porque era um mau aluno.
No Ensino Médio, eu não gostava da escola, nunca me suspenderam, mas eu
não ia bem. E, como em minha família não havia possibilidade de que os quatro

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filhos fizessem universidade, o melhor dos irmãos foi para o Liceu e eu – que
não tinha boas notas e achava a formação de professores fácil – virei
professor.

A escola de formação dos professores deveria


ser muito parecida àquela que nós acreditamos
que as crianças deveriam viver

Aqui na Itália, eu tenho uma briga grande com relação à ampliação da jornada,
porque acredito que as crianças já passam tempo demais dentro da escola. Na
verdade, não sei como será no Brasil, mas aqui os meninos e meninas quase
não saem de casa, passam a tarde em escolas de tempo integral, fazendo
música, esporte, etc., e chegam em casa com as lições de casa que a escola
passa todos os dias – incluindo fins de semana, feriados e férias. Isso é um
abuso da escola, porque a Convenção dos Direitos das Crianças diz
claramente que elas têm dois direitos, expressos no artigo 28 – o direito à
educação formal; e no artigo 31 – direito ao descanso, ao tempo livre e ao livre
brincar. Para todos os estudiosos da infância, e do desenvolvimento infantil, a
brincadeira é a experiência mais importante na vida de um homem e de uma
mulher. Ao longo da vida, todo o cimento sobre o qual se constroem nossa
formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de vida brincando.
Além disso, brincar é a experiência que mais se parece à investigação científica
e à experiência artística.

Nesse sentido, acredito que a escola deva ocupar a manhã e respeitar a tarde.
Os deveres não contribuem em nada com a formação das crianças, atrapalham
muito e impedem o brincar. Ao contrário, a escola deveria ser uma das mais
interessadas no livre brincar das crianças, porque é assim que elas vivem
experiências e emoções que amanhã poderão ser aportes à vida escolar. As

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boas escolas que eu conheci não enfocavam nos programas ministeriais ou nos
livros, mas sim na experiência de vida dos alunos.

ET: Sobre a formação de professores, ainda há muitos desafios,


considerando que nosso processo histórico nos afastou daquela que
parece ser a principal função de uma escola. Por outro lado, não me parece
que o senhor esteja falando de um professor fora do alcance, uma figura
longínqua. Diante dessa nova/velha realidade, qual seria então o papel de
um professor?

“Temos que esquecer é que o papel de um professor seja ensinar”


Crédito: Fernando Moital

Tonucci: O que temos que esquecer é que o papel de um professor seja


ensinar. Ensinar significa transmitir parte de uma cultura dos que sabem aos
que não sabem. Essa ideia gira em torno de uma ideia muito antiga de que há
um vaso vazio que precisa ser preenchido. Essa hipótese é equivocada: as
crianças são completas desde que nascem e possuem tudo aquilo que

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necessitam para viver. A questão é que cada um está cheio de competências,


desejos e habilidades diferentes do outro.

Então, um bom professor é aquele que escuta e passa a palavra para as


crianças porque precisa conhecer o que eles sabem. Um bom professor é
aquele que favorece o trabalho entre os alunos, porque sabe que as crianças
são construtoras de conhecimento, não são passivas ou apenas receptoras de
conhecimento. Mas isso só será possível se a formação desse professor
considerar esses elementos.

O equívoco fundamental é que, a despeito de todas as reformas educacionais,


os professores saem das universidades tendo feito anotações e avaliações nas
quais devem repetir o que foi dito por seus professores. E está claro que,
embora os conteúdos sejam modernos, isso não é suficiente para prover uma
formação em conexão com os dias de hoje.

Dentro de uns anos, esse professor se encontrará em frente a uma sala de aula
de 30 ou 40 crianças, pensando: o que faço agora? E retomará os últimos
quatro, cinco anos de sua formação, sem encontrar nada que lhe seja útil para
este tempo histórico. E o que fará, então? Retomará o que seus professores
fizeram quando tinha cinco ou seis anos e estava na escola. Essa é uma das
explicações do porque a escola não muda. O único modelo que funciona é
aquele que os professores viveram quando eram crianças. Essa é a melhor
garantia de conservação já criada na história.

A escola de formação dos professores deveria ser, portanto, muito parecida


àquela que nós acreditamos que as crianças deveriam viver, com muitas
linguagens, muita investigação científica, muita criatividade, com a
possibilidade de viver experiências distintas, com trabalhos em grupo e,
sobretudo, com autoria.

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ET: No contexto brasileiro, em que as mães estão trabalhando o dia


inteiro, sobretudo as mulheres das classes mais pobres, a escola de tempo
integral emerge como uma solução para essa equação de difícil equilíbrio.
Gostaria de saber como a sua proposta de que as crianças tenham as
tardes livres se relaciona com esses desafios contemporâneos da vida das
famílias.

Tonucci: Creio que aqui se abre um tema mais complexo que é o tema da
cidade. Algumas relações fundamentais, que antes estavam garantidas, se
quebraram. Uma delas é a relação entre as famílias e a escola. Não sei como
será no Brasil, mas na maioria dos casos não há mais uma relação de
solidariedade e participação entre famílias e escola. A família está sempre em
uma atitude conflituosa e está sempre denunciando o que ocorre na escola, o
que deixa os professores muito preocupados. Há denúncias na Itália sobre
avaliação negativa que professores deram a um estudante. Nunca conheci um
bom professor que teve problemas com as famílias, porque ele sabe que uma
de suas responsabilidades é ter uma boa relação com as famílias.

A outra relação que mudou é com a cidade. Antes, a cidade era o lugar das
crianças. Eu me lembro que minha mãe nos enxotava de casa. Sendo de uma
família humilde, ela não podia estar com as crianças dentro de casa, pois era
impossível dar conta de todas as tarefas com meus irmãos e eu lá dentro.
Portanto, dentro de um marco de regras claras de tempo, espaço, atitudes e de
comportamento, nós saíamos de casa. Falo dessas regras porque não
proponho a anarquia, proponho a autonomia. E a autonomia não é fruto do
abandono, ela é resultado do amor e da confiança. Eu te deixo porque confio
em você.

Autonomia não é fruto do abandono, ela é

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resultado do amor e da confiança

Isso tudo mudou completamente e hoje as famílias culpam a cidade. Dizem: “A


cidade não permite a autonomia das crianças”. Eu acredito que muitas dessas
razões, desses medos, não são verdadeiros ou não correspondem à realidade.
E esse medo é “ajudado” muito pela política e pelos meios de comunicação,
digo, a televisão dedica grande parte de seu tempo em descrever e comentar o
que há de pior na sociedade. É claro que isso torna esses atos muito mais
presentes, dolorosos e mais frequentes do que realmente são. Não temos
dados de que as violências aumentam, mas sim que aumentam a visibilidade
que têm. Outro dado é que a violência contra as crianças e mulheres não
ocorre nas ruas, não é perpetrada por desconhecidos, mas em sua própria
família ou por pessoas conhecidas e, quase sempre, queridas. Isso faz dessas
violências ainda mais inaceitáveis, porque se aproveitam do afeto e do amor
para chegar a esse resultado. Então, não me parece que seja a cidade o
problema. Hoje podemos dizer, paradoxalmente, que os dois lugares mais
inseguros para as crianças são sua casa e o carro de seus pais. Os acidentes
mais frequentes são ou domésticos ou de carro. O melhor que podemos
querer para as crianças é que saiam de casa.

Veja, repito, acredito que esse seja uma das mudanças mais profundas dos dias
de hoje, a que diz respeito à queda da autonomia das crianças. Quando eu era
criança, a autonomia de movimento que meu pai e eu tínhamos era quase igual.
Nós dois tínhamos a bicicleta como meio de transporte e íamos circulando pela
rua. A ideia de viajar não existia. Agora eu cruzo o oceano com facilidade e
minha neta nem sai de casa. Ou seja, nossas experiências de mobilidade são
muito diferentes. O que mais me impressiona é que as crianças perderam a
possibilidade de sair de casa, enquanto as novas tecnologias lhes permitiram
se conectar com o mundo e acessar informações que na minha infância eram
impensáveis de se conseguir. Uma criança com enorme mobilidade cognitiva

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não pode sair de casa. Tenho medo que, dentro de pouco, os adultos digam que
não vale à pena sair de casa porque temos esse meio que eu e você estamos
utilizando para realizar essa conversa. Há momentos da vida que é preciso o
toque, a briga, o contato.

“O que mais me impressiona é que as crianças perderam a possibilidade de sair de casa, enquanto as
novas tecnologias lhes permitiram se conectar com o mundo”
Crédito: Bruno Fontes l Flickr/Creative Commons

ET: Quando se fala sobre o direito à cidade, nem sempre as crianças são
nomeadas. Será que, ao não nomeá-las, corremos o risco de esquecê-las
quando pensamos e projetamos o espaço urbano?

Tonucci: Sim. Isso significa ocupar-se de todos e não de um alguém. Essa foi a
escolha ao dedicar o meu trabalho às crianças. Eu não quero uma cidade
infantil, uma cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero
uma cidade para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém,
escolho o mais novo. Essa é a motivação cultural da Cidade das Crianças que,
traduzidas em decisões administrativas, se trata de mudar três prioridades.

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A primeira é passar dos adultos para as crianças. Os adultos e, sobretudo, os


homens, tivemos a capacidade de reconstruir o que estava destruído no pós-
guerra. Mas o fizemos para nós mesmos: adultos e homens. Essa cidade se
desenvolveu assumindo as necessidades do adulto como sendo as
necessidades da cidade. E, claro, o adulto levava consigo seu “brinquedo
favorito”, que eram os carros. E as cidades assumiram características que o
carro necessitava. Em relação ao desenho das ruas, foram diminuindo as
calçadas e aumentando as ruas, para que os carros passassem.

A segunda é alterar a prioridade entre carros e pedestres. E isso tem um


sentido profundo, porque não é apenas uma decisão psicológica, é uma decisão
democrática, porque todos somos pedestres. Só depois de ser pedestre é que
alguns escolhem o meio privado ou público, mas antes de tudo, somos
pedestres. Portanto, inverter essa prioridade significa tornar as cidades mais
democráticas. Isso implica redesenhar as ruas para que sejam, primeiro, à
medida dos pedestres e, depois, das bicicletas, depois dos meios de transporte
públicos e só depois dos meios privados. Quando cruzamos uma rua, temos
que descer uma calçada, entrar na via e subir uma outra calçada. Ou seja,
abandonamos nosso território de segurança e passamos por um caminho que
não é nosso e é perigoso. Deveria ser o contrário: a calçada deveria entrar na
via na mesma altura, de modo que, se eu estou com um carrinho de bebê, em
cadeira de rodas, ou se levo compras, não preciso realizar esse movimento
incômodo de descer e subir que fazemos hoje. O caminho dos pedestres
deveria ser sempre o mesmo e os carros, que possuem motor, é que deveriam
subir e descer, porque foram feitos para isso.

Algumas cidades no mundo estão assumindo essa proposta da Cidade das


Crianças. Uma delas é Pontevedra, no norte da Espanha, na Galícia. O prefeito
de Pontevedra disse que escutou uma palestra minha e que eu o convenci,
justamente com esse argumento das prioridades. Então, seus assessores
começaram a analisar as ruas dessa cidade que possui 80 mil habitantes e

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viram que a rua tinha, ao todo, nove metros de largura, sendo seis metros para
os carros (ida e volta), mais o estacionamento, sobrando três metros para as
calçadas que, divididas em dois lados, terminavam com 1,5m cada.
Considerando o mobiliário urbano, os pedestres tinham cerca de um metro
apenas para caminhar, o que os obrigava a andar em fila única. Então disseram:
“Bom, façamos o que diz esse senhor, invertamos as prioridades!”. Como
chove muito na Galícia, tomaram como base para definir o espaço dos
pedestres que fosse possível passar duas pessoas com o guarda-chuva aberto.
Esse foi o plano urbanístico da cidade. Somando o mobiliário urbano,
chegamos à três metros de cada lado, totalizando seis metros para os
pedestres. Lamentavelmente, sobraram apenas três metros para os carros.
Sinalizaram todas as ruas e diminuíram drasticamente o espaço para os carros.
Viram que, estreitando as ruas, a velocidade dos carros diminuía. Há estudos
que mostram que, se a calçada tem menos de três metros, os carros não sobem
mais de 30 km. Então, definiram que a velocidade da cidade inteira seria 30
km/h.

O prefeito da cidade, que é médico, me dizia que a 50 km/h morre um pedestre


a cada dois. E a 30 km/h morre um a cada vinte. Essa me parece uma diferença
importante. Com essas mudanças, eles reduziram em 60% a emissão de CO2.
E são alguns anos sem mortos em acidentes de trânsito. Na itália, os acidentes
de trânsito são a primeira causa de morte até os 26 anos. E os custos oriundos
desses acidentes é de 2,5% do PIB. Isso indica que realizar essas mudanças
implica economizar muito dinheiro e salvar muitas vidas.

A terceira é inverter a prioridade entre bairro e cidade. Claro que falar de


Pontevedra a uma pessoa que vive em São Paulo pode ser ridículo, mas não é,
porque São Paulo pode ser a soma de muitas Pontevedras, depende de como
você olha para a cidade. Você pode projetar e olhar de cima, desenhando
muitas linhas, traçando caminhos até onde você está, ou o contrário, definindo
as regras que devem valer dentro de um bairro, já que todos vivemos em um

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bairro. Por isso, é importante garantir um elevado grau satisfatório – da


felicidade que falávamos antes – dentro dos bairros. Temos que pensar que
nos bairros deveria ser possível viver bem, mover-se com tranquilidade, que
todos pudessem viver de forma autônoma, os idosos para comprar seu jornal,
as crianças para ir à escola. Uma vez definidas as regras dos bairros, haveria
que aplicá-las à cidade. Isso significa, por exemplo, que uma estrada não
passaria dentro do bairro, como acontece em várias cidades italianas. Ela
deveria contorná-lo. “Mas então não será reta?”, perguntarão. “Não”. “Mas se
não for reta, será menos veloz?”. “Sim, será menos veloz”.

“Fonte das Crianças” é um marco da cidade galega de Pontevedra.

ET: Como fazer com essas prioridades sejam invertidas e assumidas por
quem detém o poder da decisão nas cidades, considerando a diversidade
de interesses que a compõe?

Tonucci: Nossa proposta é uma proposta política e a colocamos nas mãos dos
prefeitos. São poucos os prefeitos capazes de escutar as crianças de verdade.
Há muitos que querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade,
para sair em fotos na imprensa. Nós renunciamos a todos esses dispositivos.

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As crianças que participam do Conselho das Crianças são escolhidas a partir


de sorteio. Ou seja, não são os pequenos políticos profissionais da escola. Te
digo isso porque acredito que a resposta para o que você pergunta só pode ser
a participação. O interessante de incluir as crianças é que eles não têm
interesses como nós, ou seja, interesse de dinheiro, de poder. Tudo isso está
bastante fora do mundo infantil. Trabalhamos com crianças bem pequenas,
que expressam de forma muito simples suas necessidades mais fundamentais.
Nesse diálogo, acredito que um bom administrador pode encontrar força para
colocar-se ao lado de todos os cidadãos, sem perder ninguém. É uma escolha
de valor, porque as crianças levam consigo um conflito. E a cada proposta que
fazem, abrem um conflito com os adultos.

Hoje vivemos um conflito novo entre as crianças e seus pais, porque as


crianças pedem à escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E seus
pais pedem à escola e à cidade, mais controle, mais vigilância e mais proteção.
São duas visões conflitivas e devemos escolher de que lado estamos. Temos
que saber que, se estamos com os pais, estamos contra os filhos, porque se
aumenta o controle, diminui a autonomia. Mas se estamos com os filhos, não
estamos contra os pais, porque quanto mais as crianças tiverem autonomia,
mais autonomia terão seus pais. E isso eu aprendi observando e refletindo
sobre as batalhas de vocês, mulheres. Tudo o que vocês conquistaram
melhorou o mundo. E eu acredito que isso vale para as crianças também: tudo
o que fazemos para que seja melhor a vida das crianças, faz com que seja
melhor a vida para nós e para a cidade, como um todo.

Não é fácil encontrar prefeitos que se coloquem ao lado das crianças, porque
isso os coloca em conflito com seus eleitores, que são os pais. Por isso falo com
muito orgulho dessa experiências de Pontevedra, porque o prefeito
praticamente retirou os carros da cidade, mas segue sendo eleito por sua
população.

https://educacaoeterritorio.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como-paradigma-de-uma-cidade-para-todos/ 18/21
22/12/2022 14:49 Francesco Tonucci: a criança como paradigma de uma cidade para todos - Educação e Território

ET: Essas medidas parecem impor à gestão pública um trabalho


intersetorial. O senhor poderia falar sobre isso?

Tonucci: Colocamos essa proposta na mão do prefeito porque sabemos que é


transversal, ou seja, não deve estar dentro de uma secretaria apenas. Deve
envolver a cidade como um todo, de forma intersetorial. É uma proposta para
administradores inquietos, para administradores que veem que o que está
ocorrendo está mal, que o que fizemos até hoje não resolveu nossos principais
problemas. Creio que a Victória, uma menina de Rosário (Argentina), que
participa do Conselho das Crianças, resume bem: “Tudo o que está ocorrendo
é culpa dos adultos. É preciso limitar o poder dos adultos”.

Esse me parece um diagnóstico claro de como vão as coisas. E acredito que


isso se relaciona com o que você falou sobre os interesses que compõem a
cidade, sobre quem tem poder na cidade. É preciso reduzir o poder dos que
têm poder. E as participações são a forma democrática de reduzir esse poder.
Essa é uma proposta complexa porque significa renunciar à parte desse poder.

*A foto de destaque da reportagem foi gentilmente cedida por Fernando Moital.

C OM E N TÁR IO S C OM E N TÁR IO S VIA FACE B O OK

CL IQ UE AQ UI PAR A C OM E N TAR

https://educacaoeterritorio.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como-paradigma-de-uma-cidade-para-todos/ 19/21
22/12/2022 14:49 Francesco Tonucci: a criança como paradigma de uma cidade para todos - Educação e Território

2 comentários

Turk
5 de outubro de 2016 às 08:57

Hola, me parece muy interesante y práctico gac.onseoche.com pero, al introducir Cabrerizos en


Salamanca, que es donde resido ahora, no sale una gasolinera que está justo al lado, en carretera de
Aldealengua, es de Galp, ¿esto por qué sucede? Gracias
Responder

tatiane
4 de outubro de 2019 às 16:53

que legal, não sabia


Responder

EDUCAÇÃO E TERRITÓRIO
Conheça os idealizad ores e parcerias da iniciativa aqui.

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