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ANO 9 - n.

23
JANEIRO/ABRIL - 2020 | PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL
ISSN 2238-9695

Revista Fórum de
DIREITO CIVIL

RFDC
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ano 9 - n. 23 | janeiro/abril - 2020
Belo Horizonte | p. 1-248 | ISSN 2238-9695
R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC

Revista Fórum de
DIREITO CIVIL

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R454 Revista Fórum de Direito Civil : RFDC – ano 1, n. 1, Território Nacional
(set./dez. 2012)- . – Belo Horizonte: Fórum,
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Coordenação editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
CDD: 347 Aline Sobreira de Oliveira
CDU: 347 Capa: Igor Jamur
Projeto gráfico: Walter Santos
Sumário

Editorial...................................................................................................................... 7

DOUTRINA E ATUALIDADES

O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à


moradia com base na análise da função social da cidade?
Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque.............................................. 19
1 Introdução....................................................................................................... 19
2 A função social da cidade................................................................................. 21
3 O direito de laje como um direito autônomo....................................................... 26
4 O direito de laje como um instrumento na regularização fundiária urbana como
garantia do direito à moradia............................................................................ 29
5 O direito de laje como um direito real autônomo relacionado ao aspecto da
moradia.......................................................................................................... 32
6 Conclusão....................................................................................................... 35
Referências..................................................................................................... 37

A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento


jurídico brasileiro
Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves........................................ 39
Introdução....................................................................................................... 39
1 Da Usucapião Familiar: uma novidade de contornos paradoxais........................... 41
2 A Usucapião Familiar e a Rediscussão da Culpa no Ordenamento Jurídico
Brasileiro........................................................................................................ 44
2.1 Primeira posição doutrinária: corrente contrária à aplicação da usucapião familiar. 46
2.2 Segunda posição doutrinária: corrente favorável ao instituto da usucapião
familiar sem discussão da culpa....................................................................... 52
2.3 Posicionamento da Jurisprudência Pátria........................................................... 55
3 Conclusão....................................................................................................... 57
Referências..................................................................................................... 58

DIÁLOGOS

Práticas abusivas e publicidades enganosas na Black Friday no contexto do


direito do consumidor brasileiro
Thayanny Teixeira Santos.............................................................................................. 63
1 Introdução....................................................................................................... 63
2 Práticas abusivas e publicidades enganosas comumente realizadas na Black
Friday.............................................................................................................. 64
3 Cuidados que os consumidores devem ter antes da aquisição de produto ou
contratação de serviço na Black Friday............................................................... 69
4 Proteção prevista pelo Código de Defesa do Consumidor.................................... 72
5 Proteção pelo Procon, pelas Associações de Defesa do Consumidor e pelo
Reclame AQUI.................................................................................................. 73
5.1 Secretaria Nacional do Consumidor; Departamento de Proteção e Defesa do
Consumidor; Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor e
Cadastro de Reclamações Fundamentadas........................................................ 74
5.2 Ministério Público............................................................................................ 77
5.3 Defensoria Pública........................................................................................... 78
5.4 Delegacia de Polícia do Consumidor.................................................................. 78
5.5 Juizados Especiais Cíveis, conhecidos também como Juizados de Pequenas
Causas, órgãos dos tribunais de justiça estaduais (ou do Distrito Federal)........... 79
5.6 Reclame AQUI.................................................................................................. 80
6 Conclusão....................................................................................................... 81
Referências..................................................................................................... 82

VOZ UNIVERSITÁRIA

Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à


solução de conflitos familiares e seus reflexos no âmbito do judiciário brasileiro
Juliana Melo Navarro..................................................................................................... 89
Introdução....................................................................................................... 89
1 Mediação: Aspectos gerais, técnicas e especificidades do método que
contribuem para a melhor solução dos conflitos familiares.................................. 90
2 Conflitos familiares: natureza, peculiaridades, posições interesses e
necessidades.................................................................................................. 95
3 Do judiciário brasileiro: legislação brasileira de mediação e sua aplicabilidade...... 98
4 Mediação como método adequado aplicado à resolução dos conflitos familiares.. 102
5 Conclusão....................................................................................................... 108
Referências..................................................................................................... 109

EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA

Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y


retroceso de un proceso inconcluso
Maria Eugenia Marano.................................................................................................. 115
1 Introducción.................................................................................................... 115
2 La Unidad de Información Financiera................................................................. 120
3 La identificación del beneficiario final en la práctica............................................ 122
3.1 El Banco Central y las entidades financieras...................................................... 123
3.2 Organismos de fiscalización de personas jurídicas y registros públicos de
comercio......................................................................................................... 124
3.3 Inspección General de Justicia (IGJ)................................................................... 127
3.4 Dirección de Personas Jurídicas de la Provincia de Buenos Aires......................... 128
3.5 Inspección General de Justicia de Tierra del Fuego............................................. 130
3.6 Registro Público de Estructuras Jurídicas: Contratos de Fideicomisos................... 130
3.7 Comisión Nacional de Valores........................................................................... 132
3.8 Superintendencia de Seguros de la Nación (SSN)............................................... 136
3.9 Las sociedades extranjeras.............................................................................. 138
3.10 El Registro Nacional de Sociedades................................................................... 144
3.11 Los beneficiarios finales y los testaferros.......................................................... 148
4 Conclusiones................................................................................................... 150
ENSAIOS E PARECERES

Perspectivas no campo contratual para os próximos anos


Marcos Ehrhardt Jr....................................................................................................... 159
O desafio da complexidade e o impacto da tecnologia........................................ 159
Como navegar num oceano de desafios. Hora de inflar as velas da colaboração e
da informação................................................................................................. 160
Enfim as perspectivas...................................................................................... 162

Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais


brasileiros e a possibilidade de uma das partes contratantes majorar
economicamente a prestação contratual
em relação a outra parte contratante
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento............................................................. 167
1 Consulta......................................................................................................... 169
2 Aspectos metodológicos do parecer.................................................................. 169
3 Fundamentos jurídicos do parecer e resposta à consulta.................................... 174
4 Conclusão....................................................................................................... 201

JURISPRUDÊNCIA
Superior Tribunal de Justiça
Recurso Especial – Ação de compensação de dano moral – Banco de dados –
Compartilhamento de informações pessoais – Dever de informação – Violação – Dano
moral in re ipsa. Recurso Especial nº 1.758.799............................................................. 207

AGENDAS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações


conjugais e convivenciais
Renata Vilela Multedo................................................................................................... 219
1 Introdução....................................................................................................... 219
2 Liberdade e família.......................................................................................... 224
3 Uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais............ 228
4 Limites e justificativas para e intervenção estatal............................................... 233
5 Conclusão....................................................................................................... 236
Referências..................................................................................................... 239

TESES E DISSERTAÇÕES

Projetos parentais ectogenéticos LGBT: o desafio da construção das famílias


homoparentais e transparentais perante o ordenamento jurídico brasileiro
Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto.......................................................................... 245

Instruções para os autores...................................................................................... 247


Editorial

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE OS IMPACTOS


DO DISTANCIAMENTO SOCIAL NAS RELAÇÕES
PRIVADAS EM FACE DA PANDEMIA DO COVID-19
Não é fácil a tarefa de analisar as consequências de um evento de grande
impacto social enquanto estamos vivenciando a própria situação a ser examinada.
Falta-nos o distanciamento necessário quando novas informações surgem a todo
o momento, graças a uma revolução tecnológica que reduziu distâncias e o tempo
necessário para as interações sociais. Nesse cenário, o crescente fenômeno das
fake news apenas agrava o problema.
Na verdade, não temos um único problema, mas sim uma origem comum
(pandemia) para questões e litígios de várias ordens e graus de complexidade. É
bem fácil sucumbir à falsa noção de que é possível encontrar uma única saída,
vale dizer, uma solução padrão para todos os desafios que estamos a enfrentar.
Os últimos dias, com imposição de distanciamento social, não encontram
precedentes na história de nosso país. Vivemos um teste decisivo para instituições
democráticas e poderes constituídos, ao mesmo tempo que nossa própria
compreensão de solidariedade social vem sendo colocada à prova, quer seja na
fila do supermercado, quer seja nas decisões sobre o que fazer com empregados
ou, ainda, nas relações com nossos vizinhos em um condomínio.
Ainda não temos informações suficientes para avaliar se as medidas tomadas
serão efetivas ou precisarão ser revistas, quer seja para serem intensificadas ou
abrandadas. Viver num país de dimensões continentais, no qual os efeitos da
pandemia ocorrem em ritmos diferentes e as decisões tomadas por cada governo
local apresentam importantes variações, não ajuda muito na tarefa de quem se
propõe a examinar, sob o ponto de vista jurídico, o momento atual da crise.
Ademais, este é um bom momento para lembrar que o Direito não trará todas
as respostas, pois o enfrentamento da questão necessitará de uma abordagem
multi e transdisciplinar. É preciso a exata compreensão desta última constatação
para que os julgadores que se depararem com questões urgentes sobre os efeitos
da pandemia evitem ignorar a realidade dos fatos sociais em seus comandos
judiciais, como, por exemplo, decisões sobre quem deve ter acesso a tratamento
em UTI nos hospitais, uma vez que não é possível suprir toda a demanda. A escolha
do tratamento, dentro das possibilidades, não pode ignorar critérios médicos
baseados em evidências.
Na Teoria Geral do Direito Civil, podemos nos socorrer das regras acerca da
impossibilidade de manifestação de vontade, ainda por causa transitória (inciso III
do art. 4º do CC/02), que ensejam incapacidade para decidir questões atinentes a

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EDITORIAL

pacientes graves que, por estarem entubados e sedados, não apresentem condições
de adotar providências em relação ao atendimento de saúde e a demais atos da
vida civil. É ainda no campo da teoria geral e da presunção geral de capacidade,
a ser interpretada em conjunto com o disposto no art. 9º da Lei nº 10.741/03
(Estatuto do Idoso), que podemos extrair a diretriz para garantir à pessoa idosa a
proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que
permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.
No campo das titularidades, as limitações impostas para o acesso aos bens de
uso comum do povo, como parques e praias, atrai atenção para o disposto no art.
103 do CC/02, que estabelece a prerrogativa da administração de regular a forma
de utilização desses bens, no interesse de toda a sociedade. Interessante e urgente
reflexão há de ser formulada em relação aos espaços comuns em condomínios
residenciais, a partir da constatação de que, nos termos do disposto no §3º do art.
1.331 do Código Civil vigente, a unidade autônoma é parte inseparável das áreas
comuns do prédio. Sendo, por conseguinte, o proprietário da unidade imobiliária,
também o é das áreas comuns na proporção prevista na instituição condominial.
Por essa razão, Rodrigo Toscano de Brito, em recente artigo, ao fazer referência
ao art. 1.335 do CC/02, coloca em discussão os limites e as possibilidades das
decisões de síndicos em todo o país sobre a utilização das áreas comuns, desde
questões atinentes ao uso de academia, piscinas e quadras, até problemas
relativos ao uso do elevador por condôminos que estão infectados pelo COVID-19
ou são profissionais da saúde e necessitam transitar pelas áreas comuns, até
para terem acesso às suas unidades privativas.1
Decisivo para o deslinde da questão é saber se decisões unilaterais do
síndico configuram (ou não) medidas urgentes no benefício da coletividade de
condôminos e se necessitam ser ratificadas ou, ainda, se podem ser alteradas
pela Assembleia. Em princípio, parece que o melhor encaminhamento é avaliar se a
adoção de tais medidas configura impedimento reflexo e abusivo ao uso das áreas
privativas, sendo necessário, em qualquer contexto, bom senso para se perceber
que existirão situações excepcionais que precisam ser avaliadas individualmente.2
Ainda no campo das titularidades, é possível constatar que as limitações de
acesso e funcionamento impostas a estabelecimentos privados (lojas, restaurantes,

1
Para aprofundamento, ver o artigo “Coronavírus: limitações ao uso de áreas comuns no âmbito do condomínio
edilício”, de autoria de Rodrigo Toscano de Brito. Disponível em: https://direitocivilbrasileiro.jusbrasil.com.
br/artigos/822552352/coronavirus-limitacoes-ao-uso-de-areas-comuns-no-ambito-do-condominio-edilicio.
Acesso em: 22 mar. 2020.
2
Imagine-se um advogado que necessita acessar seu escritório a fim de buscar documentos para a
propositura de uma ação urgente num edifício no qual existe condomínio empresarial, cuja proibição de
acesso (até mesmo para os condôminos) foi determinada pelo síndico, ao argumento de que necessita
assegurar o isolamento social. Ou ainda, médico ou serviço de ambulância que necessite utilizar área
comum para prestar atendimento a condômino infectado pelo COVID-19, que carece de pronto atendimento.
Pode-se ainda pensar na proibição de circulação de entregadores de serviços de delivery (para qualquer
condômino, mesmo para os idosos?) ou do uso do elevador por prestadores de serviços que pretendem
realizar conserto no receptor de TV por assinatura ou modem para conexão banda larga no apartamento
de um morador do prédio.

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cinemas, teatros, academias, entre outros) implicaram diversas situações


conflituosas no universo do direito obrigacional. Juntem-se a isso as restrições
ao transporte público e os cancelamentos de voos, pelos mais variados motivos,
que passam inclusive pelo fechamento das fronteiras para viajantes de localidades
atingidas mais gravemente pela pandemia.
São inúmeras as situações em que obrigações contratuais se tornaram inúteis
ao credor, ou hipóteses em que o cumprimento da avença se tornou impossível ou
extremamente oneroso. Diante da escolha entre revisar, resilir ou resolver, resta
aos operadores jurídicos lidar com esses problemas utilizando as ferramentas
disponíveis em nosso ordenamento.
De início, há que se estabelecer uma premissa essencial: não se pode
adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos massificados de
consumo. O caminho para a construção de soluções negociais passa pela análise
do caso concreto, sendo indispensável a verificação do que ocorreu em cada relação
contratual para a constatação da causa (ou das causas) de tal ocorrência, como
bem apontado por Anderson Scheiber.3
Neste sentido, a Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu
a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de
livre-mercado, introduziu importante alteração no art. 421 do Código Civil, que passou
a conter um parágrafo único com a seguinte redação: “nas relações contratuais
privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da
revisão contratual”.
A exigência de intervenção mínima do Estado e de se considerar a excepcio-
nalidade da pretensão de revisão contratual deve ser aplicada aos contratos civis
e empresariais, que por força do disposto no art. 421-A “presumem-se paritários e
simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento
dessa presunção”. Diante desse quadro, a “alocação de riscos definida pelas
partes deve ser respeitada e observada”, sendo a revisão medida “excepcional
e limitada”.
A leitura dos dispositivos citados acima permite extrair a conclusão da
impossibilidade de soluções genéricas, apontando para a revisão contratual de
modo indistinto e uniforme a diversas espécies contratuais sem análise das
peculiaridades do caso concreto, o que demandará bastante do Poder Judiciário
nos próximos meses.
Diante de um quadro no qual o ritmo das decisões judiciais costuma estar
em descompasso com os interesses e as necessidades empresariais, alternativas
para a resolução extrajudicial de tais conflitos devem ser priorizadas em prol da

3
Sobre o tema, ver recente artigo de Anderson Schreiber, denominado “Devagar com o andor: coronavírus e
contratos: importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa
ou revisional”, publicado na coluna Migalhas Contratuais, sob a curadoria do Instituto Brasileiro de Direito
Contratual (IBDCont). Disponível em: https://m.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/
devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-
de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional. Acesso em: 23 mar. 2020.

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conservação dos negócios jurídicos, o que configura um momento importante


para a celebração de compromissos arbitrais e a adoção de técnicas de mediação
empresarial inspiradas pelo dever geral de boa-fé objetiva; esta impõe às partes
a obrigação de adotar um comportamento colaborativo e legal com o objetivo de
se alcançar o melhor adimplemento possível para todos os figurantes da relação
negocial.4
No que diz respeito aos contrários paritários, há quem enquadre a pandemia
do coronavírus como uma questão de força maior, portanto, um evento natural e,
como tal, “externo, inevitável e alheio às ações de uma das partes”, que tem por
consequência eliminar ou limitar a responsabilidade por danos ou outras perdas
resultantes de tais eventos. Contudo, a mera alegação de força maior não é
suficiente para a eficácia exoneratória pretendida. Como esclarece Nelson Rosenvald:
“a parte afetada terá de demonstrar que o evento de força maior escapa ao seu
controle, tenha impedido, dificultado ou atrasado a execução do contrato, apesar
de o contratante ter seguido todos os reasonable steps para evitar ou mitigar as
consequências do evento, o Duty to mitigate the loss. Um contratante não será
eximido de sua própria negligência”.5
Basta imaginar uma situação concreta de um contrato celebrado entre dois
empresários, cuja data de vencimento de determinada obrigação já estivesse
expirada, configurando inadimplemento de um dos contratantes. Não será possível,
após a configuração da mora, a alegação de evento de força maior para se eximir da
incidência da cláusula penal, nos termos do art. 399 do Código Civil.6 A gravidade
da situação não permite tolerar comportamentos oportunistas de quem buscará
eximir-se de obrigações negociais válidas e eficazes sem demonstração de que a
pandemia do COVID-19 alterou a performance contratual. O ônus de demonstrar tal
situação compete à parte que alega e não pode ser presumido sem se ignorarem
as circunstâncias do caso concreto.
Os julgadores devem se deparar com situações em que o contrato celebrado
entre as partes disciplina as consequências de eventos de força maior, mas,
considerando a tradição de grande parte dos empresários brasileiros de só
procurarem consultoria jurídica após a ocorrência de um impasse ou problema,
e não no momento da contratação, há de se vislumbrar um cenário em que, em
muitos casos, não haverá previsão contratual prévia sobre o que deve ocorrer com
o negócio jurídico diante de uma externalidade da magnitude de uma pandemia.

4
Para aprofundamento do tema, sugere-se a leitura do livro Responsabilidade Civil pelo inadimplemento
da boa-fé, editado pela Editora Fórum. Mais informações no seguinte endereço: http://loja.editoraforum.
com.br/responsabilidade-civil-pelo-inadimplemento-da-boa-fe-2a-edicao.
5
Para mais reflexões sobre o tema, ver artigo de Nelson Rosenvald, denominado “Os impactos do coronavírus
na responsabilidade contratual e aquiliana”, publicado em https://www.nelsonrosenvald.info/single-
post/2020/03/06/OS-IMPACTOS-DO-CORONAVIRUS-NA-RESPONSABILIDADE-CONTRATUAL-E-AQUILIANA.
Acesso em: 20 mar. 2020.
6
“Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade
resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção
de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.”

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Sobre esse ponto, tratando especificamente de contratos de locação em


shopping centers, Aline de Miranda Valverde Terra assevera:

Nada impede, todavia, que, no exercício legítimo da autonomia


privada, as partes tenham gerido referido risco contratualmente,
alocando-o a uma delas. Nesse caso, como já se observou em
outra sede, “atribui-se ao contratante a responsabilidade pelas
consequências deflagradas pelo implemento de determinado fato su-
perveniente previsível, cuja ocorrência, no momento da contratação,
era incerta (rectius, risco). A verificação do risco repercutirá, assim,
na esfera jurídica dos contratantes, desencadeando as responsabi-
lidades definidas no contrato, com impacto na relação contratual e
na economia das partes”. Significa dizer que, caso o contrato tenha,
expressa e especificamente, imputado ao locatário, por exemplo, os
riscos decorrentes de pandemia seguida de suspensão das ativida-
des por fato do príncipe, nada lhe restará senão assumir as conse-
quências econômicas negativas do evento e continuar a adimplir sua
prestação consoante contratualmente ajustado, vale dizer, pagar o
aluguel nos termos pactuados. Na hipótese, todavia, de as partes
não haverem procedido à alocação positiva do risco, seguem-se as
regras supletivas previstas pelo legislador, cuja aplicação pressupõe
a qualificação do efeito produzido pelo evento necessário e irresistí-
vel no contrato.7

Em qualquer das duas hipóteses, as técnicas de hermenêutica contratual


passam a ocupar posição fundamental, sobretudo diante da nova redação do art.
113 do Código Civil, introduzida pela já citada Lei nº 13.874/19. Merece destaque
o teor do inciso V do referido dispositivo, a preconizar que a interpretação deve
corresponder “a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discu-
tida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das
partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”.
O cenário da pandemia do COVID-19 será um importante referencial para
compreender como os tribunais brasileiros aplicarão a Lei de Liberdade Econômica
num cenário em que a denominada “racionalidade econômica das partes” será
ponderada com a necessidade de sobrevivência ou não do próprio figurante no
mundo negocial, expondo significativas assimetrias entre pequenos e grandes
empresários.8
Para o julgador que deverá decidir pela intervenção ou não na avença
negocial, será importante levar em consideração se a pandemia do COVID-19 foi

7
Vide artigo “Covid-19 e os contratos de locação em shopping center”. Disponível em: https://www.
migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center. Acesso em:
20 mar. 2020.
8
Sugestão de leitura sobre temas correlatos ao acima apresentado: “O coronavírus, a quebra antecipada
não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível”, artigo de autoria de
Carlos E. Elias de Oliveira. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/assets/uploads/artigosc/360ec-
carloselias_coronavirusquebra.docx.

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a causa exclusiva do inadimplemento contratual e, para tanto, poderá investigar


se outros contratos congêneres também deixaram de ser cumpridos no mesmo
período. Assume relevância, no momento de surgimento da pandemia, a análise do
comportamento posterior de ambos os contratantes, para se perquirir se medidas
necessárias e indispensáveis à mitigação dos danos ao objeto contratual foram
adotadas.
Merece destaque o dever de informar, dada a exigência de transparência
e cooperação, que encontra fundamento no dever geral de boa-fé objetiva. Será
que foi adotado pelo contratante algum plano de contingência? Seria efetiva e/ou
economicamente possível a adoção de alguma medida de tal natureza? A outra
parte foi ao menos notificada das dificuldades e das medidas adotadas? Tais
medidas foram adotadas em tempo hábil? Qual o impacto da intervenção do Poder
Público na liberdade de agir dos figurantes do negócio?9
Se considerarmos, por exemplo, o que ocorre no âmbito dos contratos
imobiliários em nosso país, não é raro que a alegação de “evento de força maior”
seja mencionada pela primeira vez numa contestação de uma ação que busca
a resolução contratual e indenização por perdas e danos. Quem procede dessa
forma costuma atribuir uma extensão e intensidade à alegação de evento de força
maior como se funcionasse como um verdadeiro cheque em branco, vale dizer,
uma licença plena e irrestrita, para justificar qualquer forma de inadimplemento. É
preciso que o Judiciário esteja vigilante para reprimir tal tipo de abuso, pois meras
dificuldades e inconvenientes integram o risco da atividade e não são suficientes
para gerar tal tipo de eficácia.
Compete a quem alega a excludente demonstrar: (a) que estava em dia com
suas obrigações no momento da ocorrência da situação excepcional; (b) explicar
como ocorreu o impacto no contrato; (c) qual o período de atraso provocado;
(d) quanto tempo será necessário para retomar o cronograma; (e) os custos
necessários à concretização das medidas de mitigação, desde que, como medida
inicial e indispensável, tenha comunicado ao outro contratante a mudança das
circunstâncias assim que possível.10

9
Utilizando como exemplo os contratos de locação de shopping centers, Aline Miranda considera que a
pandemia do COVID-19 pode configurar impossibilidade superveniente e temporária do objeto contratual,
porque verificada após a celebração do contrato, sendo tal impossibilidade apenas parcial. Sua intensidade
depende do tipo de atividade exercida no imóvel, pois, “no caso dos cinemas e dos teatros, por exemplo,
a faculdade foi severamente reduzida, embora não de todo esgotada, já que o locatário ainda conserva
a posse do bem e nele mantém seus equipamentos”. Restaurantes e lanchonetes estão impedidos de
receber clientes em seus endereços, mas podem permanecer comercializando mediante serviços de
delivery (vide artigo “Covid-19 e os contratos de locação em shopping center”).
10
Ainda sobre o tema, Nelson Rosenvald afirma que “No tocante ao descumprimento por questões econômicas,
as cortes não associam a FM [força maior] ao fato de haver um encarecimento no custo do contrato,
sobretudo quando se verifique que outros fornecedores ainda viabilizam suas obrigações. Na maioria dos
casos, isso prejudicará a confiança em uma cláusula geral de FM, mas pode haver situações em que o
relevante não será apenas o vírus, mas a sua concreta eficácia no desempenho das partes contratantes,
sobremaneira quanto às consequências indiretas do evento (escassez de mão de obra, matérias-primas
ou um ato do governo como uma paralisação imposta pelo Estado). Ou seja, deve-se indagar em cada
caso se a base para o incumprimento se deve ao componente que ocorre naturalmente (o próprio vírus) ou

12 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 7-16, jan./abr. 2020
EDITORIAL

Nos parágrafos anteriores, o raciocínio apresentado é adequado para as


situações em que um dos contratantes não consegue adimplir com suas obrigações,
que continuam sendo do interesse do credor. Mas é possível vislumbrar situações
em que se verificará a frustração do objeto negocial.
Para tanto, a premissa seria que a impossibilidade do objeto ocorreu por fato
que não pode ser imputado a nenhum dos contratantes. Uma vez demonstrada a
“perda superveniente do objeto” ou, ainda, a “impossibilidade jurídica” deste, v.g.,
por proibição legal (vide atos governamentais que proibiram o funcionamento de
casas de show e teatros para evitar aglomerações e prevenir contágio), resolver-se-ia
a avença, retornando as partes ao status quo ante, conforme prescrevem os arts.
24811 e 25012 do Código Civil.
Há ainda situações em que a impossibilidade do objeto será apenas parcial
ou temporária, devendo-se ter em consideração se se está diante de hipótese de
contratos de longa duração, para verificação da adequação da pretensão de quem
procurou o Judiciário por não conseguir uma solução negocial para a questão.
Voltando os olhos para o contexto das relações de consumo, não se pode deixar
de considerar que muitos fornecedores de produtos e serviços estão impossibilitados
de cumprir com suas obrigações contratuais, ao tempo que consumidores deixam
de ter interesse no objeto do negócio contratado ou experimentam dificuldades
para efetuar pagamento de obrigações contraídas antes do início da pandemia.13
A disciplina legal do Código de Defesa do Consumidor parece insuficiente para
lidar com todas as possibilidades de questões atinentes à pandemia do COVID-19,
sendo importante não confundir as hipóteses de recusa ao cumprimento da oferta,
descritas no art. 35,14 com a impossibilidade superveniente do objeto, desde que
adequadamente demonstrada no caso concreto.
Uma alternativa possível seria dialogar com as soluções previstas no Código
Civil, aqui já referidas, atentando para as peculiaridades de uma relação em que a
vulnerabilidade de uma das partes costuma ser fundamento para a integral imposição
do risco da atividade aos fornecedores. Sobre o tema, Daniel Dias, em recente
artigo, sustenta que “a solução para esse problema é a aplicação do regramento
sobre impossibilidade de cumprimento das obrigações presente no CC, naquilo

a um componente de ação governamental (v.g., quarentenas, limitações no transporte)?” (“Os impactos


do coronavírus na responsabilidade contratual e aquiliana”).
11
“Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação;
se por culpa dele, responderá por perdas e danos.”
12
“Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível
abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.”
13
Sobre este tema, ver “Encargos moratórios, coronavírus e a boa-fé objetiva”, artigo de Marcelo Matos
Amaro da Silveira. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/823561131/encargos-
moratorios-coronavirus-e-a-boa-fe-objetiva. Acesso em: 23 mar. 2020.
14
“Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou
publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado
da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de
serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada,
monetariamente atualizada, e a perdas e danos.”

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 7-16, jan./abr. 2020 13
EDITORIAL

que for compatível com o sistema do CDC. Essa solução encontra respaldo na
teoria do diálogo das fontes, ou na interpretação sistemática das referidas leis”.15
Por ser um campo de intensa regulação do Estado, diante da repercussão
social e da importância estratégica, vale citar a discussão sobre o alcance e
efeito da Medida Provisória nº 925/20, que dispõe sobre medidas emergenciais
para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da COVID-19, que interfere
diretamente nos efeitos dos contratos de consumo de transporte aéreo.
O art. 3º da referida MP estabelece um prazo para reembolso do valor
relativo à compra de passagens aéreas (12 meses), caso o consumidor não aceite
créditos para utilização posterior, além de assegurar às fornecedoras do serviço
a possibilidade de aplicar as regras do serviço contratado, vale dizer, a imposição
de penalidades se a opção do consumidor for a do reembolso.16
Há quem sustente, como Carlos Elias de Oliveira, a “possível inconstitucio-
nalidade” da Medida Provisória,17 afirmando que a MP nº 925/20

(...) não pode atingir contratos celebrados anteriormente a ela, nem


mesmo se a desistência motivada do consumidor ocorrer após esse
diploma urgente, tudo por força da vedação, diante de ato jurídico
perfeito, à retroatividade (sequer mínima) de norma que não seja
constitucional originária. O STJ já decidiu de forma similar para o
caso da famosa “Lei do Distrato” (STJ, Questão de Ordem no REsp
1.498.484/DF, 2ª Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe
25/6/2019). Portanto, para contratos anteriores à MP, a devolução
do dinheiro antecipado pelo consumidor tem de ser imediata, sob
pena de a companhia se sujeitar aos encargos moratórios.

Não percamos de vista que até decisão do Parlamento, o texto da referida


MP está em plena vigência, sendo possível, em sentido contrário ao apresentado
acima, concluir que a questão que é objeto da MP (reembolso dos valores) é relativa
à eficácia do negócio, o que permitiria a aplicação da citada norma a contratos
anteriores à sua edição, pois o pedido de reembolso seria posterior à sua entrada
em vigor. Após a análise do Poder Legislativo, que pode alterar o texto ou até
mesmo rejeitá-lo, caberá ao Judiciário decidir sobre a questão, sendo importante
destacar uma pertinente observação do já citado Carlos Elias de Oliveira:

15
Vide artigo denominado “Coronavírus e o CDC: o vírus que revela a vulnerabilidade da lei hospedeira”.
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-e-o-cdc-o-virus-que-revela-a-
vulnerabilidade-da-lei-hospedeira-18032020. Acesso em: 20 mar. 2020.
16
“Art. 3º O prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses,
observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação
vigente. §1º Os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de
crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado. §2º O disposto neste
artigo aplica-se aos contratos de transporte aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020.”
17
Vide artigo de Carlos Eduardo Elias de Oliveira, denominado “A medida provisória 925/2020: aplicabilidade
apenas para contratos anteriores e sua possível inconstitucionalidade”. Disponível em: https://flaviotartuce.
jusbrasil.com.br/artigos/823511400/a-medida-provisoria-925-2020-aplicabilidade-apenas-para-contratos-
anteriores-e-sua-possivel-inconstitucionalidade. Acesso em: 22 mar. 2020.

14 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 7-16, jan./abr. 2020
EDITORIAL

(...) por que a MP não previu esse diferimento em 12 meses para


outras várias dívidas existentes no Brasil, inclusive para dívidas que
consumidores têm perante instituições financeiras ou até perante
companhias aéreas? De fato, há consumidores que parcelaram a
compra da passagem aérea e que paradoxalmente terão de con-
tinuar pagando as parcelas sem qualquer direito de prorrogar em
12 meses as parcelas. Ora, não só as companhias aéreas, mas
também inúmeros consumidores estão sem recursos para honrar
seus compromissos financeiros em razão da brutal crise financeira
causada pela pandemia. Por que só as companhias aéreas terão o
privilégio legal de diferir suas obrigações em 12 meses?

Para além do campo obrigacional, resta concluir estas primeiras reflexões


com alguns comentários sobre questões relativas ao direito de família, mais
precisamente, sobre a convivência entre pais e filhos. Em tempos de isolamento
e/ou distanciamento social, a pandemia não pode servir de subterfúgio para a
adoção de medidas de alienação parental, prejudicando os superiores interesses de
crianças e adolescentes, sob o pretexto de preocupação com a saúde e segurança,
sem demonstração concreta e objetiva da impossibilidade de acesso de um dos
genitores aos seus filhos, ainda que a distância e por meios eletrônicos.
Os interesses que devem prevalecer são aqueles dos próprios menores, que
têm direito de conviver com ambos os genitores, sempre que isso for possível, sem
colocar a sua própria vida em risco ou a de pessoas ao seu redor, em especial
idosos e grupos de vulneráveis, por apresentarem alguma doença crônica. Em
tempos de pandemia, não podemos esquecer a diretriz do art. 694 do Código
de Processo Civil, que dispõe que nas ações de família, todos os esforços serão
empreendidos para a solução consensual da controvérsia. É preciso exercitar os
verbos “dialogar”, “compreender”, “refletir” e “proteger”, colocando interesses
e conveniências estritamente pessoais em segundo plano, porquanto se trata de
um problema da entidade familiar, e não do indivíduo.
A palavra de ordem deve ser bom senso. Dias de visita que não forem
concretizados podem ser compensados num futuro próximo; comunicação por
redes sociais e informes periódicos da situação dos menores podem ser adotados,
quando o exercício de guarda compartilhada ou outros arranjos, como dias de
visita, não puderem ocorrer sem prejuízo à saúde e à segurança dos envolvidos.
Há de se considerar que numa situação de excepcionalidade, as regras
sobre convivência, guarda e visitas estabelecidas por acordo ou em juízo podem
necessitar de uma adaptação temporária, a ser estabelecida de comum acordo,
sempre que possível. A diversidade de situações e os objetivos deste texto não
permitem maiores digressões sobre o tema, mas não se pode deixar de considerar a
importância de tais reflexões num cenário no qual muitos trabalhadores autônomos
não conseguirão honrar as obrigações alimentares, total ou parcialmente. A
mudança das circunstâncias econômicas e de dinâmica de interação social, em
tempos de teletrabalho e de novas rotinas em todos os lares brasileiros, deve ser

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 7-16, jan./abr. 2020 15
EDITORIAL

sopesada no caso concreto, não sendo possível a aplicação de soluções abstratas


definidas a priori.
O ano começou de um modo diferente do que todos pensavam. Teremos
de construir respostas para os novos desafios que se tornaram parte do nosso
cotidiano, tendo como ponto de partida uma ética de alteridade e respeito aos valores
constitucionais que colocam a pessoa humana no centro de nossas preocupações.
Que possamos superar essas dificuldades reafirmando nossa resiliência para
enfrentar os problemas através do diálogo que leva ao convencimento do próximo,
e não à sua submissão através da força.

Marcos Ehrhardt Jr.


Advogado. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de
Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito
Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Associado do Instituto
Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC) e Membro
Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). E-mail:
contato@marcosehrhardt.com.br

16 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 7-16, jan./abr. 2020
DOUTRINA E ATUALIDADES
O direito de laje é uma forma de
garantir o efetivo cumprimento do
direito à moradia com base na análise
da função social da cidade?

Rebecca de Moura Caldas


Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará. Atualmente, é monitora
das disciplinas de Direito Civil com enfoque em Direito das Coisas, Direito de Família
e Direito das Sucessões, Direito financeiro e Direito tributário. Foi monitora de Direito
Constitucional I e II no ano de 2017.

Adna Almeida de Albuquerque


Engenheira Agrônoma (UFScar-SP). Mestre em Zoologia (UFPA). Atualmente, docente pela
Universidade do Estado do Pará no Curso de Licenciatura Indígena.

Resumo: O presente artigo explana de que forma o direito de laje, instituído pela Lei 13.465/2017,
sendo um dos instrumentos da regularização fundiária urbana, podendo ser vislumbrado nos famosos
“puxadinhos”, exemplificado por um tipo de construção corriqueira nas periferias dos núcleos urbanos
de baixa renda, pode ser uma nova forma de concretização do direito fundamental à moradia, previsto
na Constituição Federal de 1988. Assim, estabelecendo, em conexão, uma análise sobre a função
social da cidade, em relação ao exercício pleno da moradia, como forma de efetivação da dignidade
e da felicidade do ser humano, sendo isto, contextualizado pela teoria do geógrafo David Harvey, que
delimita o “direito à cidade”.
Palavras-chave: Função social da cidade. Direito à cidade. Direito de laje. Direito à moradia.
Concretização dos direitos fundamentais.
Sumário: 1 Introdução – 2 A função social da cidade – 3 O direito de laje como um direito autônomo
– 4 O direito de laje como um instrumento na regularização fundiária urbana como garantia do direito
à moradia – 5 O direito de laje como um direito real autônomo relacionado ao aspecto da moradia – 6
Conclusão – Referências.

1 Introdução
Quando a cidade é pensada na situação do Brasil, é fácil apontar as
divergências existentes nesse espaço urbano. Devido ao fenômeno da urbanização
ocorrido no Brasil, que aconteceu de forma extremamente acelerada na Era Vargas,
determinadas consequências foram geradas, como a diferença de desenvolvimento
dos centros urbanos em relação às zonas periféricas, sendo estas denominadas

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020 19
Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque

favelas, ou também “aglomerados subnormais”, sendo isso, conforme o Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, constituído pelo censo demográfico
de 2010 (FARIAS; DIAS; DEBS, 2019, p. 26).
Ressalta-se, conforme Farias, Dias e Debs (2019), que o termo “favela” tem
sua origem na ciência da botânica brasileira, sendo designado por uma planta
da caatinga como o mesmo nome, a “fava, faveleiro ou mandioca-brava”. Como
se não bastasse sua origem pela biologia, ainda, conforme Farias, Dias e Debs
(2019), a planta apareceu obra Os Sertões, de Euclydes da Cunha, publicada em
1902 – havia um morro, cenário da Guerra de Canudos, em que o beato Antônio
Conselheiro reunia o seu fiéis seguidores, cujo nome era “favela”, sendo este
derivado de uma planta da região.
Ademais, exposto esse contexto histórico, em relação ao aspecto social, é
muito comum pensar em qualquer cidade do país, a devida cena que os referidos
filhos constroem sobre a casa dos pais uma elevação, constituindo, como con-
sequência, a sua moradia. Ressalta-se que a construção feita pode ser dada dos
ascendentes aos descendentes por meio de uma doação, sendo esta consumada
em simples documento particular. Todavia, em certos casos, a configuração da
moradia nem sempre atende às formalidades que o próprio direito exige, pois nem
sempre haverá uma comprovação de que quem constituiu a habitação continue
lá morando.
Entretanto, esse fator social não era considerado como uma forma de adquirir
uma propriedade, pois nem a concepção de direito sobre esta elevação firmada
na construção-base da casa dos pais existia, resultando uma espécie de lacuna
no ordenamento jurídico civilista quanto à possibilidade de se configurar como um
direito real aos moldes da concepção de propriedade fulminada pela Constituição
de 1988.
Desta forma, um novo direito real surgiu designado como direito de laje, em
resposta a um fato social que carecia de positivação, devido ao acontecimento de
sua configuração nas mais corriqueiras construções nas determinadas periferias.
Sendo isso considerado uma forma de sobrevivência diante da necessidade de se
garantir uma moradia que tenha condições mínimas de dignidade para as pessoas
que a constroem na edificação designada como “laje”.
Porém, percebe-se que a laje, como uma forma de moradia, não pode ser
afastada da concepção da função social da cidade, isto é, indaga-se se este
“instituto novo” corresponde aos anseios da cidade. Então, sendo a laje uma forma
de efetivação da moradia, poderia ela atender aos parâmetros de concepção de
cidade designada pelo geógrafo David Harvey? Sendo a participação social, política
e cultural correspondente a uma forma de fazer com que o cidadão possa se sentir

20 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020
O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

pertencido no ambiente urbano em que vive? Neste viés, o principal questionamento


deste trabalho é como a laje pode cumprir a função social da cidade.
Diante do exposto, o objetivo deste artigo é expor de que modo a laje é
uma forma de concretizar o direito à moradia, estabelecendo como relevância as
suas especificações e contexto histórico de sua origem e perpetuação ao longo
da história da urbanização brasileira. A metodologia utilizada para se abordar
determinados apontamentos quanto ao objeto de pesquisa foi uma pesquisa
descritiva, em que se teve a proposta de estudar, registrar, analisar e interpretar
esse questionamento, sendo feita a utilização de fatos e fenômenos para enfatizar
a argumentação sobre o referido assunto.
Ademais, quanto ao procedimento, foi utilizada uma pesquisa bibliográfica
em que se fazem determinados levantamentos de referências teóricas publicadas
recentemente, por meio impresso ou digital, como livros, artigos científicos e
páginas de websites. Sendo configurada a pesquisa de ideologias compatíveis
com a referida temática e a problemática realçada pelo trabalho em seu título.

2 A função social da cidade


Quando a cidade é retratada no que tange ao seu aspecto social, deve-se
salientar que para dirimir este ponto, é necessário abordar sua devida função na
sociedade, ou seja, é preciso relacionar a cidade como uma forma de satisfação
do direito de moradia para os seus habitantes, estabelecendo a devida conexão
com outros direitos fundamentais. Logo, quando falamos em cidade como um
viés do direito à moradia, sendo um direito social constitucional previsto no art.
6º, caput, da carta magna de 1988,1 estamos ressaltando a moradia como um
direito fundamental impositivo tanto no aspecto interno de jurisdição, quanto no
aspecto externo, que seria o âmbito internacional, visto a tutela desse direito está
na Constituição e também na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos
da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, integrando os intitulados
direitos econômicos, sociais e culturais. De acordo com essa Declaração:

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si


e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,
e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência
fora de seu controle. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração
Universal dos Direitos Humanos, 1948, artigo XXV).

1
“Art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição”.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020 21
Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque

É importante salientar que com base nos princípios da ordem jurídica, sendo
também os princípios constitucionais, estabelecendo como o seu principal a
dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Lei Maior,2 o direito à
moradia é reafirmado como uma parte da concretização da dignidade humana, visto
que a efetivação desse princípio é com base em todos os direitos que possam
exprimir necessidades inerentes à vida, isto é, com base em garantias que possam
garantir ao ser humano que seja respeitado pela sua cidadania, sendo exercida pelo
seu direito de ter sua própria moradia na cidade em que vive, e não pelo simples
fato ter a sua existência humana perante as localidades urbanas.
Assim sendo, estamos afirmando que este direito está relacionado a inúmeros
outros, pois nenhum direito fundamental deve ser analisado em uma situação de
forma isolada, pois é preciso salientar que a forma sistêmica de análise de um
direito fundamental é que deve ser privilegiada, denota-se que esta concepção é
designada. De acordo com CAROLINO; JÚNIOR, (2014):

(…) Assim, a visão holística do direito não pode, de forma alguma,


ser interpretada como algo meramente didático, pois tal visão é ao
mesmo tempo superficial, genérica e especializada, ou seja, tanto
é útil e serve para o todo como auxilia e proporciona o melhor en-
tendimento das partes. Aqui, o todo não é, mas importante que as
somas das partes, e nem o contrário, pois temos uma necessidade
de relação entre ambos (…).

Desta forma, sendo o direito à moradia considerado como um direito social,


conforme a teoria de Robert Alexy, em que estes direitos são subjetivos prima
facie, depende de condições fáticas e jurídicas relacionadas ao devido direito no
caso concreto. Evidencia-se que a sua devida efetivação deve estar em conexão
com os outros direitos, inclusive com a função social da cidade, como um direito
fundamental à cidade.
Para o entendimento da importância da função social da cidade, é importante
ressaltar o entendimento do que seria a cidade em uma concepção holística, com
base nos estudos do geógrafo David Harvey em seu livro Cidades rebeldes: do
direito à cidade a revolução urbana, afirmando a sua teoria sobre a cidade ser um
direito humano, sendo este direito relacionado ao direito à felicidade, que, por sua
vez, tem uma função não apenas social perante a sociedade, mas de suma forma
estrutural na vida de cada ser humano, que convive na cidade, exercendo os seus
atos mais comuns e corriqueiros, como acordar, trabalhar, estudar, transitar e ter
o seu lazer nos espaços urbanos.

2
Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade
da pessoa humana.

22 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020
O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

Assim posto, para Harvey (2014), a sociedade humana vivencia uma época
em que os direitos humanos entraram em plano de principal importância, tanto na
política quanto na ética, pois há uma dedicação muito importante na construção de
um mundo melhor em que se tenha cada vez mais o reconhecimento de direitos
humanos para a coletividade, e os que são existentes tenham uma maior eficácia
no plano coletivo e individual da sociedade.
O que Harvey (2014) explora é uma espécie de direito coletivo, que é o
direito à cidade, ressaltando o seu caráter principiológico, relacionado ao direito à
felicidade, sendo também denominado como uma concepção de que este mesmo
direito seria um direito humano no contexto atual de urbanização que vivemos na
modernidade.
Frisa-se, em relação ao contexto colocado por Harvey (2014), que o mesmo
remonta às ideias de Lefebvre (2008), que, em seu livro Direito à Cidade, reafirma
que este direito é o de viver uma vida urbana, sendo a cada tempo renovado, com
novos valores e com novas visões sobre o espaço urbano, sendo possível englobar
inúmeros outros direitos relacionados ao assunto, como o direito à saúde, moradia,
lazer, transporte e educação.
Sendo assim, o autor considera que o direito à cidade deve ser exercido como
uma nova forma de cidadania, visto que não pode ser exercida apenas pelo voto.
Deve ser exercida pelos cidadãos ao participar das decisões da cidade e também
ao ir atrás do que está acontecendo na cidade, visto que isso é uma forma de
conseguir exercer uma influência nas decisões que são tomadas no espaço urbano
pela (res) administração pública, como participantes da própria política urbana feita
pelo estado. Assim, o direito à cidade é equiparado a um direito humano universal
de cada ser humano, sendo de suma importância para entender como a cidade
cumpre uma função social na vida da coletividade.
Para entender como a cidade cumpre a sua função social, precisamos ressaltar
o que é a cidade em conexão com o que seria o direito à cidade, sendo conceitos
propriamente isolados. Dessa forma, é importante destacar o que é a cidade,
segundo as palavras do sociológico urbano Park (1967), citadas por Harvey (2014):

(…) a tentativa mais coerente e, em termos gerais, mais bem-su-


cedida de refazer o mundo em que vive, e de fazê-lo de acordo com
seus mais profundos desejos. Porém, se a cidade é o mundo criado
pelo homem, segue-se que também é o mundo em que ele está con-
denado a viver. Assim, indiretamente e sem nenhuma consciência
bem definida da natureza de sua tarefa, ao criar a cidade o homem
recriou a si mesmo (…) (PARK, 1967 apud HARVEY, 2014, p. 28).

De acordo com Park (1967) apud Harvey (2014), abordando-se o que é


uma cidade, pode-se partir deste conceito e destacar que o direito à cidade pode

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020 23
Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque

ser considerado com uma abrangência bem maior do que um direito de acesso
individual ou grupal de recursos que a própria cidade incorpora, ou seja, este direito
é designado como um direito de reinventar a cidade, associado os desejos mais
profundos e subjetivos de cada habitante.
Além disso, esse é um direito mais coletivo que individual, visto que reinventar
a cidade depende inevitavelmente do exercício do poder coletivo sobre o processo de
urbanização. Isto é, está relacionado à liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e
às nossas cidades, caracterizando-se como um dos direitos humanos mais valiosos
que o indivíduo e a coletividade detêm. Porém, é um dos mais menosprezados
perante o exercício das políticas públicas pelo estado administrativo.
Ademais, retomando o conceito de cidade de Robert Park, já exposto, o tipo
de cidade que deva cumprir a sua função social não está deslocado dos conceitos
referentes ao tipo de pessoas que queremos ser, que tipos de relações sociais
que buscamos ao longo de nossa existência na cidade, que tipo de relações com a
natureza satisfazem a vida como ser humano, qual é o nosso estilo de vida, quais
são os nossos valores estéticos e subjetivos que adotamos como forma de vida.
Ressalta-se, em relação a esses conceitos destacados, a relação intrínseca com
a realidade cotidiana de cada ser humano vivenciada na cidade.
A função social da cidade está extremamente ligada ao convívio da coletividade
em seus aspectos personalíssimos, como forma de ver a cidade como uma extensão
do direito à felicidade, concretizado, principalmente pelo direito à moradia, sendo
destacado como parte da função que a cidade exerce perante cada indivíduo.
Ademais, frisa-se o direito à cidade sendo mais um direito coletivo do que
individual, pois reinventar a cidade depende da soma de poderes individuais que
resultam em um poder coletivo sobre o processo de urbanização; ou seja, a liberdade
para refazer e fazer as nossas cidades é um dos nossos direitos humanos mais
preciosos, pois é parte da conduta cidadã de cada habitante para fiscalizar o poder
público diante dos seus afazeres na política pública urbana. Esse poder coletivo
também deve ser usado para participar de audiências públicas, no que compete
à mudança das leis municipais sobre o aspecto organizacional de cada cidade.
Todavia, é importante realizar um questionamento diante do exposto: O direito a
cidade está sendo exercido plenamente? Será possível dizer que a sociedade e
o estado realmente estão cumprindo a função social da cidade? Ou apenas está
se criando direitos sem aplicabilidade, sendo apenas uma utopia em uma norma
jurídica?
Como afirma Park (apud HARVEY, 2014), temos uma carência sobre a
consciência bem definida da nossa tarefa sobre refletir sobre para o que fomos
feitos e refeitos ao longo da história. Porém, ainda é questionável como a dramática
urbanização terá contribuído para o bem-estar humano, ou seja, é questionável se

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

a urbanização transformou as nossas vidas para melhor ou se deixou as pessoas


em mundo de alienação, raiva e frustração.
Hoje não é difícil enumerar todos os tipos de descontentamentos e ansiedades
urbanas que temos. A urbanização se estabelece numa velocidade difícil de
acompanhar, mas falta coragem à sociedade para uma crítica sistemática do
modelo de urbanização, revitalizando a concretização do aspecto social da cidade
em uma determinada lei especifica para cada cidade.
Reivindicar o direito à cidade é no sentindo de equivaler à reivindicação
de um poder configurador sobre o processo de urbanização e também sobre o
modo como as nossas vidas são afetadas de maneira radical por esse direito. Ou
seja, ressaltar que a cidade cumpre uma função para além de ser mero território
habitável para seres humanos realizarem as suas práxis cotidianas; é relacionar,
principalmente, este conceito ao direito fundamental de moradia, como também
outros direitos atingidos de forma oblíqua.
É importante frisar que, conforme a história, a cidade sempre foi acompanhada
de um surgimento de concentração geográfica e social de um excedente de produção.
A urbanização sempre foi um fenômeno de classe em que são extraídos de algum
lugar ou de alguém os excedentes de produção, enquanto o controle do uso
desse lucro acumulado costuma permanecer nas mãos de poucos. O capitalismo
se fundamenta na busca pelo lucro (mais-valia), mas, para produzir a mais-valia,
tem-se de produzir excedente de produção, isto quer dizer que o mesmo está em
constante movimentação, produzindo os excedentes de produção exigidos pela
urbanização. O capitalismo precisa da urbanização para absorver o excedente
de produção que nunca deixou de produzir e, assim, surge uma relação entre
urbanização e capitalismo.
É nesse viés que a função social da cidade é ressaltada como uma forma
de harmonizar o direito à moradia como um direito constitucional para cada ser
humano, com base no princípio na dignidade humana, mas também com o aspecto
de que a cidade tem uma função estrutural básica na vida de cada ser humano.
Afinal, a cidade é onde realizamos nossas perspectivas de vida, ou seja, é onde
realizamos nossas condutas de início, meio e fim de nossos objetivos como seres
humanos. Dessa forma, conclui-se que a cidade não deveria ser percebida como
um lugar de trocas, onde o que impera é o valor do mercado, ou seja, a cidade
não pode ser vista como uma ferramenta do sistema capitalista, pois assim a sua
função fica totalmente apática no que tange aos aspectos sociais.
Diante disso, é nesse contexto que da moradia, sendo um fator relevante
de como entender o que é a função social da cidade, surge um direito real
recente, designado como direito de laje, que veio diante de um cen´rio inserido
no que concerne chamar os famosos “puxadinhos”, previamente visto em regiões

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Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque

consideradas como “favelas”, principalmente no Rio de Janeiro. Ou seja, é um tipo


de construção corriqueira nas periferias dos núcleos urbanos de baixa renda, em
que há a possibilidade de coexistir unidades imobiliárias autônomas de titularidades
distintas situadas em uma mesma área.
Sendo assim, o direito de laje veio como uma forma de regularizar a situação
informal que os núcleos de baixa renda vivenciam, visto que não eram considerados
como uma unidade autônoma de moradia, por exemplo, a elevação de um andar
sobre uma determinada construção-base. Com a devida regularização legal,
concentrando suas atenções na situação irregular da população de baixa renda,
concedendo determinados incentivos gratuitos para a efetivação de registro do
imóvel para essa parte da população, o direito de laje se instaura como necessário
para o contexto mencionado. Questiona-se, então: o direito de laje é uma forma de
concretizar o direito à moradia para as pessoas que necessitam de uma igualdade
substancial estabelecida pela carta constitucional de 1988, conforme a função
social da cidade?

3 O direito de laje como um direito autônomo


Com relação ao contexto citado, é perceptível que o direito não consegue
acompanhar de maneira imediata as mudanças sociais, ou seja, existe um
descompasso entre a realidade social e o que o direito positiva. Isso provoca um
debate sobre o que é ilegal ou legal, e também sobre o que é certo ou errado na
sociedade. Desta forma, em relação ao direito de laje, a tutela do espaço físico
como forma de moradia foi marcada durante um longo tempo, por incertezas e
informalidades de quem era proprietário desse espaço urbano, visto que uma
série de consequências jurídicas eram geradas por falta de legislação própria
sobre o referido tema e também sobre o principal aspecto de qual seria a natureza
deste novo direito real. Logo, surgiu a medida provisória nº 759 em 2016, que
foi convertida na Lei nº 13.465, de 2017, que dispõe sobre a laje no aspecto da
regularização fundiária urbana e rural.
O direito de laje, previsto no art. 1510-A do Código Civil,3 designa que
aquele que detém a propriedade de uma edificação, sendo esta considerada
a construção-base, detém uma unidade distinta daquela que originalmente foi
construída sobre o solo, podendo o dono dessa edificação ceder, de maneira
gratuita ou onerosa, a superfície superior e inferior da construção. Assim, a laje

3
“Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de
sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída
sobre o solo”.

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

pode ser designada como um direito autônomo em relação à propriedade em que


é construída.
É importante destacar que no direito de laje existe a figura do proprietário, sendo
o titular do direito de propriedade sobre a construção original (construção-base).
Existe também a figura do lajeário, que titulariza o direito de laje, podendo ser
derivada de uma propriedade ou de uma laje; e existe a sobrelaje, que é a laje
construída a partir de outra laje, sendo que esta surge quando o lajeário, autorizado
pelo proprietário e os demais lajeários, cede um novo direito de laje. Denota-se
que, referente ao direito de laje, é possível aplicar o princípio da gravitação jurídica
e o princípio da aquisição da propriedade por acessão, concluindo-se que, caso
haja um lajeário, ou seja, caso exista uma nova construção a ser realizada na
parte de cima ou sob a construção-base, não será de titularidade do dono da
construção-base, mas sim de quem detém a propriedade da laje. Este direito real
também pode ser constituído sobre terrenos públicos e privados conforme o art.
1510-A, §1º, do Código Civil.4
Denota-se que, apesar de o Código Civil de 2002 adotar esse direito como um
direito real sobre coisa alheia, a doutrina entende que a extensão das faculdades
desse direito são bem maiores do que os demais direitos reais sobre coisa alheia.
Ademais, neste novo direito existe uma exceção à unidade matricial, visto que, ao
contrário dos demais direitos reais que são inscritos ou registrados na matrícula
da propriedade principal, para registrar o direito real de laje, abre-se uma nova
matrícula para o registro, conforme o art. 1510-A, §3º, do Código Civil.5 Nesse
direito, existe a possibilidade, também, de se estabelecer o direito de preferência, em
caso de alienação da laje ou da construção-base, que pode ser exercido tanto pelo
lajeário, como pelo dono da construção-base, sendo isso concedido em igualdade
de condições perante terceiros, conforme o art. 1510-D, §2º, do Código Civil.6
Dessa forma, conforme o princípio da aquisição da propriedade por acessão,
tudo que for construído na laje será e se verificará dentro do exercício do direito de
laje; será de quem detém a laje, e não do proprietário da construção-base. Assim
posto, como foi afirmado anteriormente, existe, ainda, a possibilidade de instituições
de lajes sobre lajes; trata-se de direitos sucessivos de lajes, desde que sejam
respeitadas as posturas urbanísticas e edilícias. Ou seja, conforme o regramento
administrativo quanto à altura e outros aspectos urbanísticos, as instituições de

4
“Art.1510, §1º: O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou
privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais
áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base”.
5
“Art.1510, §3º: Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria, poderão
dela usar, gozar e dispor”.
6
“Art.1510, §2º: O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre
a sua unidade”.

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direitos de laje sucessivos são permitidas com a expressa autorização não apenas
do titular da propriedade-base, como também dos titulares do direito de laje, caso
houver, conforme o art. 1510-A, §6º, do Código Civil.7
Outro fator de interesse neste direito real é a constituição do mesmo, podendo
se dar por ato entre vivos através de contrato em que as partes têm a liberalidade
de contratar para dispor a respeito de uma série de preceitos sobre este direito,
por exemplo, renunciar ao direito de preferência; todavia, pode haver a estipulação
do direito de laje por disposição de última vontade por meio de testamento.
Desse modo, as despesas necessárias à conservação da propriedade que
constitui o direito de laje – como encargos e tributos incidentes sobre o benefício
comum ao titular da construção-base e ao titular da laje – serão distribuídas
de maneira igualitária. A forma de distribuição dessas despesas também pode
ser estabelecida por meio de contrato, tendo assim as partes liberalidade para
contratarem sobre esses fatores. A distribuição igualitária é a fim de evitar o
enriquecimento sem causa de uma das partes, pois existe um proveito comum por
ambas; logo, é preciso que se estabeleça um rateio, que é semelhante ao previsto
para o condomínio edilício. Todavia, o direito de laje não é a mesma coisa que o
condomínio, visto que a concessão do direito de laje não implica a atribuição de
fração ideal do terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já
edificadas, o que é previsto no art. 1510-A, §4º8 e art. 1510-C, do Código Civil.9
A extinção do direito de laje, outro fator importante, é estabelecida quando
é extinta a ruína da construção-base, ou seja, se a mesma se extinguir, também
se extinguirá a laje construída sobre a construção-base. O conceito de ruína é
também um conceito jurídico e não apenas somente econômico, visto que é
necessário analisar se o aproveitamento econômico também se perdeu com a ruína
da construção-base. Todavia, existe uma exceção em que a extinção não ocorre
apenas quando no caso de ruína da construção-base, que é quando o direito real
de laje foi feito por subedificação, ou seja, se a construção se deu no subsolo, a
ruína da construção-base não irá afetar o direito real de laje. Para finalizar sobre
a extinção, a ruína gera extinção se no prazo de 5 (cinco) anos a construção-base
não for reconstruída.

7
“Art.1510, §6º: O titular da laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de um
sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da construção-base e
das demais lajes, respeitadas as posturas edilícias e urbanísticas vigentes”.
8
“Art.1510, §4º: A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao
titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas”.
9
“Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios edilícios, para fins
do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo
o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum serão partilhadas entre o proprietário da
construção-base e o titular da laje, na proporção que venha a ser estipulada em contrato”.

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

É importante destacar que o direito de laje não se confunde com o direito de


superfície e o condomínio, pois esses institutos em relação ao direito de laje têm
características próprias que os fazem ser totalmente peculiares no que se refere
aos outros direitos reais. Logo, diante do direito de superfície, existem diferenças
cruciais, que são: o direito de superfície é temporário, já o direito de laje é perene,
ou seja, não há prazo para o exercício do direito real de laje, o mesmo não se
submete a um termo ou condição, visto que isso desnaturaria a sua essência. Já
o direito de superfície é permissível o advento do termo ou condição, que. uma vez
consolidado, extingue o direito de superfície, retornando, mediante indenização ou
não, para o proprietário por acessão da própria propriedade.
Outra distinção crucial é em relação à matrícula. No caso do direito de
superfície, existe o registro feito na própria matrícula do imóvel relativo à propriedade
do solo em que está se concedendo a propriedade; já no direito real de laje existe
uma exceção em relação à unidade matricial pela autonomia desse direito real,
assemelhando-se às unidades autônomas de condomínio edilício, que possuem
matrícula própria no registro geral de imóveis.
Apesar de o direito de laje ter semelhanças ao condomínio edilício no que
diz respeito às regras que podem ser aplicadas em ambos os institutos, não se
trata de fenômenos iguais, visto que não se espera que o direito de laje gere um
condomínio, ou seja, uma copropriedade das áreas comuns que já estão edificadas
sob a construção-base; dessa forma, o direito de laje foi criado para atender a uma
necessidade social e econômica, verificável em núcleos urbanos informais, onde
não há domínios comuns relativos ao uso de um mesmo terreno.

4 O direito de laje como um instrumento na regularização


fundiária urbana como garantia do direito à moradia
A partir do contexto explicitado sobre o direito de laje, é importante ressaltar
que a Lei nº 13.465/2017 instituiu o direito de laje como um direito real, e também
criou normas gerais aplicáveis à regularização fundiária urbana, conhecida pela sigla
“REURB”, que teve sua origem na medida provisória nº 759/2016 (posteriormente
convertida na referida lei). O objeto da “REURB” é a ocupação do solo de maneira
eficiente, seguindo os princípios da sustentabilidade econômica, social e ambiental
de ordenação do território; todavia, conforme a própria lei designa, existe uma
limitação no que tange ao aspecto temporal, que está definido no art. 9º, §2º da
Lei nº 13.465/2017:

Art. 9º Ficam instituídas no território nacional normas gerais e pro-


cedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a
qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais

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destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordena-


mento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.
§1: Os poderes públicos formularão e desenvolverão no espaço ur-
bano as políticas de suas competências de acordo com os princípios
de sustentabilidade econômica, social e ambiental e ordenação terri-
torial, buscando a ocupação do solo de maneira eficiente, combinan-
do seu uso de forma funcional.
§2: A Reurb promovida mediante legitimação fundiária somente po-
derá ser aplicada para os núcleos urbanos informais comprovada-
mente existentes, na forma desta Lei, até 22 de dezembro de 2016.

É importante observar que, com essa lei, 6 (seis) conceitos importantes foram
trazidos, influenciando no processo de regularização urbana. O primeiro, designado
como núcleo urbano, é o assentamento humano com o uso e características urbanas,
constituído por unidades imobiliárias de área inferior à fração mínima de parcela,
previsto na Lei nº 5.868/1972. O segundo trata-se do núcleo urbano informal,
sendo aquele núcleo irregular, no qual não se possa realizar por qualquer modo
a titulação dos ocupantes, ainda que atendida a situação legislativa vigente. O
terceiro conceito diz respeito ao núcleo urbano informal consolidado, sendo aquele
de difícil reverso, considerado o tempo da ocupação, a natureza das edificações e
das localizações das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos.
O quarto conceito designa a demarcação urbanística, sendo este o procedimento
destinado a identificar os imóveis públicos e privados abrangidos pelo núcleo urbano
informal. Em seguida, o quinto conceito é a certidão de regularização fundiária,
documento expedido ao final do procedimento da REURB, sendo instituído com a
legitimação de posse, que é o ato do poder público destinado a conferir o título
por meio do procedimento pelo qual o imóvel passa a ser objeto do REURB. Para
finalizar tem-se o sexto conceito, a legitimação fundiária, que é o mecanismo de
reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade imobiliária
pelo ocupante, sendo esse aquele que mantém a fração ideal de terras públicas
ou privadas em núcleos urbanos informais.
Antes de se passar aos tipos principais de regularização urbana, destaca-se que
existem dois procedimentos a serem cumpridos para que seja aprovado o REURB
a nível municipal, quais sejam: a aprovação urbanística do projeto de regularização
fundiária e a aprovação ambiental, no caso em questão, o município deve ter um
órgão capacitado para tanto, conforme previsto no art. 12 da própria lei.10
Percebe-se que a Lei nº 13.465/2017, que institui o direito de laje, dispõe
forma ampla sobre a regularização fundiária rural e urbana. Nesse contexto, a

10
“Art. 12. A aprovação municipal da Reurb de que trata o art. 10 corresponde à aprovação urbanística do
projeto de regularização fundiária, bem como à aprovação ambiental, se o Município tiver órgão ambiental
capacitado”.

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

regularização fundiária pode ser social, chamada de “Reurb-S”: essa regularização


é aplicável aos núcleos informais, ocupados predominantemente por população
baixa renda, sendo a constituição de “baixa renda” instituída por decreto do poder
executivo municipal; no caso desse tipo de regularização, estabeleceu-se a isenção
de custas e emolumentos para os atos registrais, relativamente à primeira averbação
de construção residencial, desde que se respeite o limite de até 70 m2, como
também para o primeiro registro do direito real de laje; todavia, para o registro ser
gratuito, é necessário que para o registro do direito real de laje a construção-base
esteja registrada no cartório competente, como prevê a referida lei.
Ademais, também existe a regularização fundiária de interesse específico,
chamada de “Reurb-E”, sendo essa regularização aplicável aos núcleos urbanos
informais ocupados por população não qualificada como baixa renda; ou seja, está
relacionada à regularização em núcleo urbano ocupado com população com rendas
médias e altas. Já nessa hipótese, as famílias beneficiárias assumem os custos
do projeto do Reurb, que é o pagamento de custas cartorárias e emolumentos.
É importante destacar que o objetivo dos núcleos urbanos é criar unidades
imobiliárias compatíveis com o ordenamento territorial urbano e construir sobre eles
direitos reais a favor dos ocupantes, ampliando o acesso à moradia e urbanização
da população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência constante dos
ocupantes nos núcleos urbanos com informações regularizadas, o que previsto
no art. 10, III, da Lei nº 13.456/2017.11
Diante desse contexto, um grande marco na lei de regularização fundiária
é o direito de laje, que foi incluído no rol do art. 1225, do Código Civil,12 o que
possibilitou a regularização da propriedade com os seus efeitos civis para os
moradores de favelas. Sabe-se que grande parte das moradias nas favelas são
construídas de forma sobreposta, estabelecendo a existência de dois imóveis, um
sobre o outro em uma mesma área plana. Isso deriva de um fator histórico que
envolve não apenas a constituição das favelas mais famosas, como as do Rio de
Janeiro, mas que engloba as favelas brasileiras como um todo.
Em Belém do Pará, em específico, esse fenômeno também pode ser recordado.
O IBGE destacou, em 2010, a presença de aglomerados urbanos subnormais no
município de Belém, apontando uma grande área central de 65.797 domicílios e
268.085 habitantes. Essa área, corresponde às baixadas junto ao Rio Guamá,
é caracterizada por ocupações de origem antiga e consolidadas em terrenos
originalmente chamadas de “baixadas” em Belém, que são áreas ocupadas de

11
“Art. 10. Constituem objetivos da Reurb, a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e
Municípios: III - ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar
a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados”.
12
“Art. 1.225. São direitos reais: XIII - a laje”.

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maneira informal pela população de baixa renda, situadas em áreas de baixo


relevo, sujeitas a alagamentos (IBGE, 2011).
A realidade da expansão das cidades brasileiras cria o cenário de cidades
legais e ilegais – as legais concentrando o poderio de investimento e infraestrutura
urbana; as ilegais se caracterizando pela falta de investimento do poder público,
pela carência de recursos referentes à moradia no que concerne ao cenário
estabelecido por famílias de baixa renda, as quais se apossam de terras sem
comprar o devido terreno e também sem deter os títulos de posse, destinando-se
a elas somente um subsídio precário. Sendo assim, a conduta omissa do estado
produz moradias precárias para as pessoas que não têm condições de ter a sua
própria moradia como um direito fundamental garantido.
Sabe-se que esse cenário é o reflexo do crescimento do espaço urbano pautado
na excessiva valorização de áreas centrais da cidade, onde mora a população que
tem condições de pagar. Visto que a cidade é um capital de recursos, quem tem
condições que pague pelo melhor; mas, para quem não tem condições, a única
opção é habitar a cidade informal, caracterizada pela precariedade, sendo a sua
condição designada como ocupação ilegal. O termo “ilegal” deriva da situação
de que os possuidores não têm título de propriedade ou posse do imóvel, ou
seja, viola-se a lei, visto que a priori não é permitido ocupar um lugar que não
lhe pertence, sem vínculo jurídico para regularizar a situação. Todavia, é nessas
situações ilegais que encontramos moradores, sem instrução, que não conhecem
os seus direitos, mas que precisam de um lugar para morar.
Sendo assim, a regularização urbana instituída pela Lei nº 13.465/2017 pode
ser uma forma de intervenção que possibilite uma maior atuação nas questões
irregulares e ilegais que ocorrem nas favelas, e isso por meio de um de seus
instrumentos principais, o direito de laje. Depois de analisar detalhadamente a
importância da criação do instituto do direito real de laje e os seus efeitos na
regularização urbana e fundiária, é possível afirmar que esse direito é capaz de
concretizar o direito social à moradia previsto no art. 6º da Constituição Federal
de 1988?

5 O direito de laje como um direito real autônomo


relacionado ao aspecto da moradia
O advento das grandes mudanças urbanas ocasionadas pelo intenso
crescimento populacional gera notória desigualdade do crescimento das cidades
no Brasil. Em uma região metropolitana, por exemplo, há uma notável concentração
de renda em zonas centrais, isto é, existe uma concentração de infraestrutura
urbana nesse espaço urbano. Já nas zonas periféricas, favelas e periferias nascem
o tempo todo, formando as “moradias irregulares” nas metrópoles brasileiras.

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

É importante lembrar que esse fenômeno é percebido no país desde a época


da revolução industrial na Era Vargas, em que houve o denominado “êxodo rural”,
caracterizado por muitas pessoas querendo melhorar a sua qualidade de vida,
saindo das regiões rurais para os centros urbanos, buscando reinserir-se na política
industrial da cidade. Com a urbanização, gerou-se uma aglutinação da população
de baixa renda nas famosas favelas brasileiras, consideradas periferias.
Pela falta de oportunidades que deveriam ser geradas pelo poder público,
não foi possível inserir boa parte dessa população no contexto de moradia legal,
pois a propriedade era uma forma de concentração de riqueza. Observa-se que até
hoje a propriedade ainda é vista dessa maneira, como algo lucrativo e não como
um espaço territorial com uma função social para a sociedade. É curioso que a
segregação urbana seja perceptível até os dias de hoje no sistema urbanístico
e imobiliário dos grandes centros urbanos. Devido à necessidade de parte da
sociedade de ter onde morar e como morar, surge uma possibilidade de se ter
essa moradia, porém, não com o estabelecimento de um direito à propriedade
propriamente dito. Nesse contexto, o surgimento de favelas, foi extremamente
corriqueiro e configurador para essa parte da sociedade, como afirma Rodrigues
(2003, p. 40):

(…) A favela surge da necessidade do onde e como morar. Se não é


possível comprar uma casa pronta, nem terreno onde autoconstruir,
tem-se que buscar uma solução. Para alguns, essa solução é a fave-
la. A favela é a conjugação de vários processos: da expropriação dos
pequenos proprietários rurais e da superexploração da força de tra-
balho no campo, que conduz a sucessivas migrações rural-urbana e
também urbana-urbana, principalmente de pequenas e médias para
as grandes cidades. É também produto do processo de empobreci-
mento da classe trabalhadora em seu conjunto (…).

Dessa forma, o desenvolvimento desordenado dos centros urbanos, em


que se tem um déficit da investidura por parte do estado em política pública
urbana para o acesso à moradia para as classes menos favorecidas, resultou em
direitos sociais que foram suprimidos para parte de uma população, sendo isso,
um resultado que ocasiona um crescimento de favelas, diante de um aumento
populacional com a estagnação do crescimento das cidades. A consequência é a
verticalização das moradias nesses lugares, em que surgem as famosas figuras já
mencionadas, denominadas como “puxadinhos”, em que se configura uma cessão
da parte superior do imóvel, denominado laje, para que um terceiro edifique outro
imóvel acima.
Destaca-se que a maioria dos moradores da laje se utilizam da alienação da laje
para poder terminar a edificação de sua casa, em razão de carecerem de recursos
para tanto e para pagar as próprias despesas de sua moradia. É perceptível que

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as ações econômicas, envolvendo o direito de laje, são relacionadas à realidade


econômica dos habitantes da favela, ou seja, as pessoas de baixa renda, pois,
com isso, estes que vivem em situação de supressão dos direitos sociais – que
deveriam ser oferecidos pelo estado – têm uma melhoria social.
Dessa forma, a iniciativa legislativa do direito de laje no regramento formal
do Código Civil, diante da informalidade na qual esse direito se encontrava, fez
com que a laje ganhasse proporções que lhe conferem um regramento justo,
estabelecendo um resultado em ser designada como um instituto legal de direito
autônomo, sendo até mesma qualificado no rol de direitos reais, o que é previsto
no art. 1225 do Código Civilista de 2002.13
Quando se pensa em laje, quase que de forma automática vem à mente
construções de feições economicamente desfavoráveis, sem a devida conotação
estética delicada. É comum se pensar em “comunidades”, onde estão inseridas
as favelas, em que este ambiente é uma verdadeira cidade para a população que
a habita. Isto é explicável, visto que no contexto brasileiro a laje é considerada
um meio de sobrevivência típica da população socialmente e economicamente
desfavorecida, isto é, a população que não tem condições financeiras de promover
construções regulares na zonas centrais da cidade, sendo obrigada a se estabelecer
em um espaço urbano propício para a construção de sua moradia, geralmente
localizado distante dos centros urbanos.
É notório, que no contexto histórico, a população é dividida em questões
referentes ao poder aquisitivo, sendo essa divisão designada em classe sociais.
O reconhecimento da realidade social, frequentemente de extrema precariedade, é
consolidado por grande parte da população de baixa renda, sendo algo intrínseco
da cultura nacional. Ou seja, é um fenômeno que dita o modo como se estabelece
a moradia para esta parte da população, logo, quando relacionamos esse fator
social ao direito, estamos buscando, através da constatação da positivação no
direito, o desenvolvimento e a aceitação desse fato social, visto que o direito é
a ciência a favor da sociedade. Sendo assim, ele deve se atentar e ser favorável
aos regramentos de pacificação social do solo urbano, independentemente da
renda da população.
Afirmar que esses instrumentos têm como objetivo positivar uma realidade
social de uma determinada sociedade, no caso do direito de laje, significa a
positivação de uma realidade de moradia que era informal, sendo auferida por
muitas pessoas, mas que adquiriu conotações próprias, sendo, atualmente, parte
de uma nova cultura na forma como o solo urbano é organizado, encontrando-se em

13
“Art. 1.225. São direitos reais: XIII - a laje”.

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

plena expansão quanto ao seu uso, que não é delimitado apenas às comunidades
originadas em favelas, que são as consideradas socialmente excluídas.
A criação legislativa desse novo direito real é uma forma de efetivar o direito
fundamental à moradia, visto que está relacionado ao aspecto da dignidade
humana de cada um, isto é, sem moradia, não há dignidade; logo, esse direito
deve ser, obrigatoriamente, titularizado por todos. Dessa forma, reconhecer um
padrão cultural que era vigente em núcleos urbanos informais é ressaltar o direito
a favor da sociedade, visto que a positivação do direito de laje concretiza um
aspecto cultural da população. Apesar de esse tipo de moradia ser informal, ele o
espelho da forma de moradia de uma população, que precisava ter o seu direito
fundamental reconhecido pela ciência do direito. Logo, a laje, apesar de uma
nova forma de aquisição da propriedade, também é uma forma de regularização
fundiária e urbana do solo, destacando o aspecto da influência da moradia na laje
como uma forma de efetivação do direito social à moradia, previsto na Constituição
e implicitamente interpretado na legislação civilista de 2002, através da função
social da propriedade.

6 Conclusão
Diante disso, podem-se extrair as seguintes conclusões:
Segundo Jose Afonso da Silva (2008, p. 96), a propriedade atenderá a sua
função social conforme o art. 5º, XXIII, da CF14 para a propriedade em geral. Tal
dispositivo por si só já seria necessário para que toda forma de propriedade fosse,
de fato, intrínseca, pelo princípio constitucional. No entanto, a Constituição Federal
de 1988, não se limitou e garantiu o direito de propriedade em geral, estabelecendo
outras formas ou modalidades de propriedade no corpo de seu texto e deixando
antever a importância com a qual distingue a matéria, à medida que dá tratamento
diferenciado a cada uma delas. Prova disso, é o art. 170, II e III,15 que institui a
propriedade privada e sua função social como princípios da ordem econômica, ou
seja, relativizando o significado.
A Constituição consagra a tese, que tem bases principalmente na doutrina
italiana, de uma noção pluralista do instituto, de forma que a propriedade não
constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em corres-
pondência com os diversos tipos de bens e seus titulares. Assim, o direito de

14
“Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.
15
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: II - propriedade privada; III - função social da propriedade”.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020 35
Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque

propriedade, além de ser garantido de forma geral, como ocorre no art. 5º, ocorre
de forma específica nas referências a vários estatutos proprietários, como ocorre
com a propriedade urbana (art. 182, §2º16) e a propriedade rural (art. 5º, XXVI 17e
arts. 184,18 185,19 18620), de forma que se pode falar não em “propriedade”,
mas em “propriedades”. Não é difícil compreender tal situação se levarmos em
consideração que a propriedade deixou de ser uma instituição do Direito Civil, dado
que há muito se entende que seus efeitos extrapolam as relações meramente
intersubjetivas e que a determinação do conteúdo da propriedade dependerá de
centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da
relação jurídica de propriedade.
Desta forma, Harvey (2014) expõe que a função social da cidade está
extremamente ligada ao convívio da coletividade em seus aspectos personalíssimos,
ou seja, a forma de ver a cidade deve ser uma extensão do direito à felicidade, que
deve ser concretizado, principalmente, pelo direito à moradia, sendo destacado
como parte da função que a cidade exerce perante cada indivíduo.
Levando em conta que a cidade seria uma forma de extensão do direito à
felicidade e que se concretiza, juntamente, a partir do direito à moradia, pode-se
inferir que o indivíduo que esteja em uma situação informal, isto é, aquele cidadão
que está à margem da sociedade, estabelecendo a sua vivência em favelas, que
são espécies de moradias constituídas de condições precárias e sub-humanas, não
possuem de fato um acesso digno à moradia, logo, o acesso ao direito à felicidade.
Portanto, o direito de laje, instituído pela Lei nº 13.465/2017, vem para
formalizar essa condição de moradia, já que faz parte de um dos instrumentos
da regularização fundiária urbana. Esse direito, através de sua efetividade, está

16
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. §2º A propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
17
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde
que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua
atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.
18
“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural
que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida
agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do
segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”.
19
“Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média
propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade
produtiva. Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas
para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social”.
20
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional
e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

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O direito de laje é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base...

minimizando materialmente uma desigualdade histórica, que até hoje é visível


em nosso país. Porém, sua expansão foi durante o período de industrialização
na Era Vargas, quando, por consequência, a urbanização também foi acelerada
de maneira desigual para a coletividade. Com a diminuição dessa desigualdade,
tornando o indivíduo pertencente a cidade e a coletividade, designa uma forma de
efetivar a concepção constitucionalista que qualquer indivíduo que possui direitos,
não somente no âmbito formal, mas também no âmbito material.
Sendo assim, é nesse viés que a função social da cidade é ressaltada, como
uma forma de harmonizar o direito à moradia como um direito constitucional para
cada ser humano, com base no princípio na dignidade humana. Ademais, com
o aspecto de que a cidade tem uma função estrutural básica na vida de cada
ser humano, pode-se inferir que a cidade é o lugar onde construímos nossas
perspectivas de vida, ou seja, é onde realizamos nossas condutas de início, meio
e fim de nossos objetivos como seres humanos.
Assim, conclui-se que não se pode transparecer que a cidade deva ser um
lugar de trocas, onde impera o valor do mercado, ou seja, a cidade não pode ser
vista como uma ferramenta do sistema capitalista, pois, caso seja vista dessa
forma, sua função fica totalmente apática no que tange aos aspectos sociais. E
não se poderá dizer que a própria cumprirá uma função social na vida de cada
habitante, cujo objetivo principal é a busca pela felicidade, pois a noção de “troca”
do capitalismo jamais poderá significar a ideia de satisfação de moradia digna,
com base no direito à dignidade humana.

Is the laje law a way to guarantee the effective compliance with the dwelling right based on the
analysis of the city’s social function?
Abstract: This article explains how the slab right, instituted by law 13.465/2017, is one of the
instruments of urban land regularization, and can be seen in the famous “pullers”, exemplified by a type
of construction in the outskirts of urban centers of low income, can be a new form of concretization of
the fundamental right to the dwelling, foreseen in the federal constitution. Establishing, in connection,
an analysis of the social function of the city, in relation to the full exercise of housing, as a form of
human dignity and happiness, being contextualized by the theory of the geographer David Harvey, which
delimits the “right to the city”.
Keywords: Social function of the city. Right to the city. Slab right. Right to housing. Implementation of
fundamental rights.

Referências
CAROLINO, Hugo; JÚNIOR, Cícero. Direito holístico e a possibilidade de um novo paradigma para
a nova ordem mundial: uma nova visão para a vida humana. Nov. 2014. Disponível em: https://

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020 37
Rebecca de Moura Caldas, Adna Almeida de Albuquerque

jus.com.br/artigos/33627/direito-holistico-e-a-possibilidade-de-um-novo-paradigma-para-a-nova-
ordem-mundial-uma-nova-visao-para-a-vida-humana. Acesso em: 27 abr. 2019.
FARIAS, Cristiano Chaves de; DIAS, Wagner Inácio; DEBS, Martha El. Direito de laje: do puxadinho
à digna moradia. Salvador: Juspodivm, 2019.
FEITOSA, Gustavo Henrique. A positivação do direito real de laje e suas implicações jurídico-sociais
na realidade brasileira. Orientador: Ricardo Tavares de Albuquerque. 2017. 67 f. Monografia
(Bacharelado em Direito) – Escola Superior de Ciências Sociais, Curso de Direito, Universidade
do Estado do Amazonas, Manaus, 2017.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Aglomerados subnormais, primeiros
resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Frias. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008.
MEDEIROS, Claudia R. de; SILVA, Laura R. E. da. O direito real de laje: Lei 13.465/2017. São
Paulo: Revista dos Tribunais; Thomsom Reuters, 2018.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
SILVA, Américo Luís Martins. Do Regime de concessão do Direito de Superfície. Revista da AGU,
Brasília, v. VIII, n. 20, p. 43-78abr./jun. 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 41. ed. São Paulo: Malheiros,
2018. 936 p.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

Recebido em: 07.01.2020


Aprovado em: 09.03.2020

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CALDAS, Rebecca de Moura; ALBUQUERQUE, Adna Almeida de. O direito de laje


é uma forma de garantir o efetivo cumprimento do direito à moradia com base
na análise da função social da cidade? Revista Fórum de Direito Civil – RFDC,
Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020.

38 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 19-38, jan./abr. 2020
A usucapião familiar e a questão da
rediscussão da culpa no ordenamento
jurídico brasileiro

Rênio Líbero Leite Lima


Professor de Direito da Faculdade Vale do Pajeú. Doutorando em Direito. Rua Dom José
Pereira Alves, 17, 1º andar, Centro, São José do Egito-PE, CEP.: 56.700-000.

Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves


Advogado.

Resumo: A usucapião familiar é um instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro. Tendo sido
acrescentado em 2011, o instituto originalmente chamado de usucapião especial urbana por abandono
de lar, findou por resultar em inúmeras discussões doutrinárias acerca de sua legalidade, pois, segundo
alguns doutrinadores, traz de volta a análise da culpa, há tempos abolida do direito pátrio. Diante de
tal discussão, sérios problemas foram levantados pelos estudiosos do direito, de modo que gerou
inúmeras dúvidas sobre a aplicabilidade desse instituto. A presente pesquisa busca apontar quais são os
argumentos das referidas correntes, objetivando dirimir se, de fato, o instituto reacende ou não a análise
da culpa nas lides que envolvem o direito de família. Para a presente pesquisa, foi utilizado, quanto à
abordagem, o método dedutivo. Quanto aos métodos processuais, utilizou-se o método histórico, analítico
e interpretativo. No tocante ao tipo de pesquisa, a mesma se instrumentalizou de forma exploratória.
Quanto à técnica, a pesquisa se deu por revisão bibliográfica. Nesse sentido, valendo-se de todos os
argumentos históricos e técnicos, encontra-se que a usucapião familiar não volta a analisar a culpa.

Palavras-Chave: Usucapião familiar. Abandono de lar. Discussão da culpa.

Sumário: Introdução – 1 Da Usucapião Familiar: uma novidade de contornos paradoxais – 2 A


Usucapião Familiar e a Rediscussão da Culpa no Ordenamento Jurídico Brasileiro – 2.1 Primeira posição
doutrinária: corrente contrária à aplicação da usucapião familiar – 2.2 Segunda posição doutrinária:
corrente favorável ao instituto da usucapião familiar sem discussão da culpa – 2.3 Posicionamento da
Jurisprudência Pátria – 3 Conclusão – Referências.

Introdução
Com a criação da Lei Federal nº 12.416/11, que dispõe sobre o programa
Minha Casa, Minha Vida, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro mais
uma modalidade de usucapião de propriedades imóveis. Trata-se da usucapião
familiar ou também conhecida como usucapião por abandono de lar, prevista no
artigo 1.240-A do Código Civil.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 39-59, jan./abr. 2020 39
Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

O tema se reveste de grande importância visto que trata de uma prescrição


aquisitiva – usucapião – de modalidade diferente das demais e um tanto quanto
particular, sobretudo quanto aos requisitos que adentram na esfera do direito de
família. É, portanto um instituto que passeia pelo direito das coisas e pelo direito de
família, de modo que para que se analise, é necessário mergulhar em suas fontes.
Com a sua inserção no ordenamento jurídico, justamente por essa razão
de tratar de questões, também, envoltas ao direito de família, várias discussões
surgiram na doutrina e que serviram para a delimitação do objeto da presente
pesquisa, onde duas correntes se destacam ao dizer, por várias razões, que o
referido instituto volta a analisar a culpa do cônjuge causador do fim da relação
conjugal, que era vigente quando do código de 1916, e foi abolida pela Emenda
Constitucional nº 66/2010, ou que não discute a culpa e deve ser aplicada quando
presentes os requisitos.
Não se tem ainda um posicionamento claro nem na doutrina nem na juris-
prudência sobre a aplicação prática da usucapião motivada pelo abandono de lar,
mas as divergências continuam aflorando no Direito, de modo que a importância
que se dá, é justamente a busca de uma explicação clara para tal instituto com o
intuito de se resguardar a segurança jurídica.
Dessa forma, a pesquisa tem como ponto de partida a seguinte problemática:
a usucapião especial urbana por abandono de lar (ou usucapião familiar) volta a
analisar a culpa no âmbito do direito pátrio?
A título de hipótese se admitiu, em primeiro lugar, que o ordenamento
jurídico brasileiro não comporta mais em seu corpo, depois da edição da Emenda
Constitucional nº 66/2010, que a culpa seja objeto de análise em ações que
envolvam o direito de família, tampouco, que sanções patrimoniais sejam impostas
ao cônjuge que colocou fim a união conjugal. Em discutindo a norma questões
relativas à culpa, a mesma é inconstitucional, haja vista que a própria constituição
estabelece a liberdade do divórcio. Outra hipótese, é a de que pode se tratar tão
somente de uma análise sistemática dos institutos envolvidos e do direito pátrio,
com base nos princípios do direito de família e no direito das coisas, de modo que
a norma é plenamente aplicável e não retornaria à discussão da culpa.
O objetivo geral desta pesquisa é constatar se a referida usucapião torna a
discutir a culpa no direito brasileiro, e como objetivos específicos tem a recuperação
histórica da figura da culpa no direito de família brasileiro, desde onde se originou
até os dias atuais; avaliar o possível ressurgimento da culpa no direito brasileiro
com a introdução da usucapião familiar, bem como a sua constitucionalidade;
discorrer acerca das principais modalidades de usucapião existentes na legislação
pátria, para que possa ser feito um contraponto do instituto como um todo e das
particularidades de cada espécie, com a usucapião especial urbana por abandono

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

de lar, objeto da presente pesquisa; procurar demonstrar como a norma vem se


aplicando ao caso concreto, discutindo a culpa ou simplesmente aplicando os
requisitos tragos pelo novo dispositivo de legal.
Para que se conseguisse chegar a esse objetivo, foram utilizados quanto à
abordagem, o método dedutivo. Quanto aos métodos procedimentais, utilizou-se
o método histórico, analítico e interpretativo. No tocante ao tipo de pesquisa, a
mesma se instrumentalizou de forma exploratória. Quanto a técnica, a pesquisa
se deu por revisão bibliográfica

1 Da Usucapião Familiar: uma novidade de contornos


paradoxais
A usucapião é uma forma de prescrição aquisitiva pelo uso prolongado no
tempo. Sendo assim, o possuidor que detiver a posse ad usucapionem, isto é,
que preencher devidamente os requisitos prelecionados pela lei, tem reconhecido
o direito à propriedade do referido imóvel sobre o qual exerce a posse, em
desfavor do antigo proprietário, que não demonstrou qualquer oposição à posse
do possuidor. Ressalte-se que essa não oposição não se confunde com atos de
mera tolerância. Aqui deve haver um composto da posse com animus domini,
com a não oposição do proprietário, ou coproprietário, a essa posse, pois caso
as circunstâncias demonstrem somente a tolerância a tal situação, a posse ad
usucapionem resta prejudicada.
Embora existam pressupostos comuns a todas as espécies de usucapião (coisa
passível de usucapir; posse ad usucapionem; tempo determinado), a depender
da espécie de usucapião devem ser observadas algumas especificidades, como
por exemplo, a diminuição do interstício de tempo requerido para o exercício da
posse ad usucapionem na usucapião rural, ou a possibilidade de se conceder o
instituto a mesma pessoa mais de uma vez.
Dentro dessas espécies de usucapião, no ano de 2011 fora introduzido no
Código Civil de 2002 pela Lei Federal nº 12.416/11 a chamada usucapião familiar,
que ao tratar do programa “Minha Casa, Minha Vida”, acrescentou ao Código Civil
brasileiro o artigo 1.240-A. Diz o referido artigo:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente


e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urba-
no de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja pro-
priedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou
o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á
o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel
urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011).

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 39-59, jan./abr. 2020 41
Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

§1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo pos-


suidor mais de uma vez.
§2º (VETADO).

O artigo 1.240-A do Código Civil traz a chamada usucapião especial urbana


por abandono de lar, ou, como a doutrina tem chamado, usucapião familiar.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2015, p. 465) pontuam que, de
acordo com a Lei 12.416/11, tem-se uma nova forma de extinguir a copropriedade
diversa daquelas que são costumeiramente praticadas no ordenamento jurídico
vigente, em que a metragem máxima do imóvel a ser usucapido não deve ultrapassar
os 250 m2 e que, com o abandono do lar e após o transcurso do biênio, o ex-cônjuge
ou ex-companheiro que continuou no imóvel, poderá pleitear a usucapião da parte
do imóvel daquele que abandonou.
O dispositivo legal menciona que o sujeito que exercer de forma ininterrupta
posse direta sem nenhuma oposição e tendo uma espécie de exclusividade sobre
imóvel de até 250 m2 em zona urbana, pelo interstício de tempo de dois anos,
adquire-lhe a propriedade. O imóvel deve ser de propriedade dos cônjuges.
José Fernando Simão (2011) enfatiza que a posse comum não enseja a
aplicação do dispositivo, haja vista que não se admite usucapião de imóvel que
não seja de propriedade dos cônjuges ou companheiros e continua:

O imóvel pode pertencer ao casal em condomínio ou comunhão. Se


o casal for casado pelo regime da separação total de bens e ambos
adquiriram o bem, não há comunhão, mas sim condomínio e o bem
poderá ser usucapido. Também, se o marido ou a mulher, compa-
nheiro ou companheira, cujo regime seja o da comunhão parcial de
bens compra um imóvel após o casamento ou início da união, este
bem será comum (comunhão do aquesto) e poderá ser usucapido
por um deles. Ainda, se casados pelo regime da comunhão universal
de bens, os bens anteriores e posteriores ao casamento, adquiridos
a qualquer título, são considerados comuns e portanto, podem ser
usucapidos nesta nova modalidade. Em suma: havendo comunhão
ou simples condomínio entre cônjuges e companheiros a usucapião
familiar pode ocorrer.

Nesse primeiro momento, se faz mister observar as suas semelhanças com


as demais espécies de usucapião que até aqui foram apresentadas, para que a
compreensão não reste prejudicada. A posse que deve ser exercida (possessio)
por um período de tempo de dois anos (tempus) ininterruptamente e sem oposição,
sobre imóvel cuja propriedade era dividida com o ex-cônjuge (passível de usucapir).
Como requisitos específicos devem-se destacar a área do imóvel que é justamente
igual a da usucapião especial urbana, qual seja, 250 m2, e o abandono de lar do
cônjuge com o qual o mesmo dividia a propriedade do imóvel.

42 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 39-59, jan./abr. 2020
A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

Quando se observa o instituto da usucapião como um todo, percebe-se que


se trata de uma forma de prescrição aquisitiva, que é gerada por uma posse
dentro de um determinado período de tempo. Nesse sentido há como requisitos
comuns ao instituto da usucapião a posse por determinado tempo, a ausência de
oposição do proprietário e a intenção do possuidor de ser o proprietário do imóvel.
Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 196) entende que:

Em todas as espécies de usucapião, há três elementos comuns à


posse: continuidade, inexistência de oposição e a intenção de dono
do possuidor. São os elementos que, aliados aos requisitos pró-
prios de cada espécie (subitem 3.1.2), caracterizam a posse que dá
ensejo à aquisição do imóvel por usucapião; a chamada posse ad
usucapionem.

Interessante observar que a usucapião detém como requisito o animus domini


que nada mais é senão a vontade de possuir aquele bem como seu.
Além de tal figura (animus domini), há o requisito da não oposição do
proprietário à posse daquele que a detém. A não oposição do proprietário aqui, não
deve ser entendida como a mera tolerância de permanência. É que nem sempre
a tolerância do proprietário de um imóvel à permanência de outra pessoa naquilo
que lhe pertence, configura a não oposição.
Tais requisitos devem ser cautelosamente dirimidos na aplicação de tal
espécie de usucapião, uma vez que por se tratar de vínculos conjugais, e ainda,
de um imóvel de pertença aos dois cônjuges, é muito comum a mera tolerância.
Além de tais requisitos, deve ser observado, também, o requisito do abandono
do lar do cônjuge. Repita-se que o abandono aqui tratado é aquele em que o
cônjuge/companheiro sai do imóvel voluntariamente, interrompendo a vida conjunta
e a assistência financeira e moral, que compõem o núcleo familiar, desprezando
a responsabilidade para com a família (FACHIN, 2011).
Portanto, os requisitos de tal espécie de usucapião devem ser enumerados
tendo em vista todas as cautelas que devem ser tomadas para garantir o maior
acerto possível, haja vista que nas questões que envolvem laços afetivos, o campo
fica mais frágil e necessita de mais atenção.
Como primeiro requisito se tem o bem urbano. O possuidor que não detenha
outro imóvel urbano ou rural, deve permanecer no imóvel urbano de até 250m2
que era de pertença dos cônjuges, onde um destes abandonou o lar. Esse imóvel,
logicamente, consoante fora apresentado nos quesitos anteriores, deverá ser
passível de usucapião. Em outras palavras, o primeiro requisito é a permanência
do possuidor no imóvel de domínio dos dois cônjuges, onde um desses abandonou
o lar.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 39-59, jan./abr. 2020 43
Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

O segundo requisito é a posse. Aqui vale lembrar que os atos de mera


tolerância não induzem a posse que gera a usucapião. A posse, por sua vez, deverá
ser contínua, sem oposição. Quanto ao animus domini, compreende-se que deve
ser exercido em relação a parte do cônjuge que abandonou o lar. Em suma, se
tratar-se de atos de mera tolerância, não se pode falar em posse ad usucapionem,
portanto, não se autorizando a usucapião.
O terceiro requisito é o tempo de dois anos. Acerca do tempo, assevera Flávio
Tartuce (2018, p. 2): “A principal novidade é a redução do prazo para exíguos dois
anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com menor prazo previsto,
entre todas as modalidades de usucapião, inclusive de bens móveis (o prazo
menor era de três anos)”.
Como já dito, o abandono deve ser voluntário e tem que ser pelo prazo de
dois anos ininterruptos. Assim, “não pode ocorrer neste período tentativas de
reconciliação do casal, e noites furtivas de amor, onde ficasse constatado a
presença do cônjuge retirante” (BARBOSA, 2015, p. 165).
O fato de ser o menor prazo previsto para a usucapião, tem sido tema muito
debatido, consoante se pretende demonstrar a seguir, uma vez que é um período
muito menor em relação a todas as outras espécies de usucapião como já ficou
exaustivamente demonstrado.
Como quarto requisito, é a instauração do imóvel como o seu lar e/ou de sua
família. Também nesta espécie de usucapião, não é permitido que a mesma pessoa
receba a propriedade pelo mesmo instituto mais de uma vez, sendo colocado de
igual forma na usucapião especial urbana.
Tal usucapião tem gerado uma série de conflitos na jurisprudência e na
doutrina, pelos seus termos e pela sua obscuridade acerca de alguns temas. Há,
portanto duas correntes: uma que trata da constitucionalidade da referida espécie
de usucapião e outra que trada de sua inconstitucionalidade. Dentro desse debate,
munidos das compreensões históricas acerca do direito de família bem como
do direito das coisas, é necessário adentrar na zona de conflito doutrinária para
melhor dirimir acerca do tema, o que se pretende fazer a seguir.

2 A Usucapião Familiar e a Rediscussão da Culpa no


Ordenamento Jurídico Brasileiro
Cediço que o direito de família sofreu forte influência do Direito Canônico com
base nas pregações Católicas a partir dos princípios judaico-cristãos. Mesmo o
direito de família tendo sofrido essa forte influência, após a república e a laicidade
do estado, o conceito de família foi mudando, chegando a diferir em sua essência
geral daquilo que a pregação Católica ensina, passando a ter um sentido um pouco
diferente, qual seja, o afeto e tão somente este.

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

Atualmente, o fundamento do matrimônio, isto é, o fundamento da união civil


entre pessoas é o afeto e não mais os princípios cristãos e canônicos defendidos
pela Igreja Católica.
Com base nessas mudanças da realidade social, tendo a laicidade do estado
como ponto de partida para fundamentar sua visão, os estudiosos do direito de
família começaram a criticar os óbices que existiam no ordenamento jurídico e
que dificultavam, ou, em outras palavras, alongavam e burocratizavam o divórcio.
Isso tinha por base a indissolubilidade do matrimônio levantada pela Igreja e que
havia sido incorporado pela Lei Civil para desestimular a separação dos casais.
Justamente nesse ponto, os pensadores do direito de família começaram a
sustentar que não era mais cabível esse entendimento no atual sistema jurídico,
e que devia se prezar pela liberdade das uniões matrimoniais, onde o afeto seria
o principal fundamento.
Com base nesse argumento, ascendeu ao ordenamento jurídico brasileiro a
Emenda Constitucional nº 66/2010 que viria a colocar fim as discussões acerca
de tal tema.
Um dos aparatos fortemente combatidos pelos aplicadores do direito de
família para, nos seus pensamentos, dificultar o divórcio, era justamente a figura
da culpa que avaliava quem foi o responsável por colocar termo a união conjugal,
causando uma série de reprimendas, inclusive de cunho patrimonial, ao cônjuge
causador do fim da vida marital.
Sobre tal tema assevera Luciana Santos Silva (2011, p. 3):

Não em boa hora, mas tarde, o Brasil extirpou do Ordenamento Ju-


rídico os debates judiciais sobre culpa no desenlace do casamento
por meio da Emenda Constitucional 66 de 2010, prestigiando a 39
finalidade eudemonista na constituição da família e a preservação
da intimidade dos cônjuges. Embora o art. 1.566 do CC traga em seu
inciso III que é dever dos cônjuges a vida em comum no domicílio
conjugal, o abandono voluntário do lar conjugal (art. 1.573) não pode
mais ser discutido pelo Poder Judiciário. O fim do casamento ocorre
pelo fim do amor sem que o Estado exija qualquer lapso temporal ou
debate de culpa para regulamentar a situação.

Após a ascensão da Emenda Constitucional nº 66/2010, não mais se deve


discutir a culpa, com um de seus principais aparatos, qual seja, o abandono de
lar. Com base justamente nessa mudança dos fundamentos da família que agora
passa a ser o afeto como afirmado anteriormente, o IBDFAM desde muito tempo,
já defendia o fim das discussões acerca da culpa no direito de família, o que ficara
por demais conquistado depois da Emenda Constitucional supracitada.
Além disto, muito claro se torna que depois da ascensão da referida Emenda,
não se pode mais ser objeto de discussão no judiciário o abandono do lar voluntário

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Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

por um dos cônjuges, uma vez que a liberdade do divórcio deverá ser entendida
e aplicada.
A questão reside justamente no presente ponto. Ora, a usucapião familiar
traz como um de seus requisitos o abandono do lar por parte de um dos cônjuges
de imóvel que pertença a ambos, e a necessária permanência do outro sem a
oposição daquele que abandonou pelo período de dois anos.
Como no direito de família brasileiro não se cabe mais a discussão da culpa, e
a liberdade do divórcio bem como do casamento devem ser garantidas e oferecidas
pelo estado brasileiro, vários doutrinadores têm se posicionado contrários a tal
instituto sob o argumento de que a referida usucapião fere aquilo prescrito pela
Constituição Federal chegando a ser, portanto, inconstitucional. Outros, dizem
que a discussão deve permear a própria interpretação conforme a intenção do
legislador, e a análise sistemática do ordenamento jurídico, para que se interprete
de forma escorreita e não contraditória o referido instituto.

2.1 Primeira posição doutrinária: corrente contrária à


aplicação da usucapião familiar
A primeira corrente sustentada por Luciana Santos Silva, Cristiano Chaves
de Farias e Nelson Rosenvald, Maria Berenice Dias, entre outros, defende que a
usucapião familiar discute a culpa.
Tal corrente compreende que o abandono de lar previsto pelo novel dispositivo
legal, reacende a discussão da culpa dentro do âmbito do poder judiciário o que
teria sido extinto por forma de norma constitucional, e para além, resulta, em
muito pouco tempo, em uma perda patrimonial para o cônjuge que possivelmente
tenha abandonado o lar, causando assim, uma espécie de sanção patrimonial, que
constitui um óbice a liberdade do divórcio. Acerca de tal tema, assevera Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 396):

Ao ressuscitar o ilícito de efeitos caducificantes, qual seja, a perda


da titularidade sobre a fração ideal do bem comum, o legislador ope-
rou sério desvio em relação às normas do direito de família alusivas
à divisão dos bens dos conviventes. Cria-se uma norma despropor-
cional, pois sob o manto da tutela patrimonial de um dos membros
do ex-casal o ordenamento pratica intromissão na esfera privada da
família impondo gravíssima sanção de perdimento de bens, quiçá
subtraindo daquele que se retirou do lar o seu patrimônio mínimo.

Em um primeiro momento, nota-se que o referido dispositivo legal, faz


alusão ao tempo. Ora, o instituto da usucapião nada mais faz do que, em suma,

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

regularizar uma situação de fato que já se prolonga no tempo (eis o sentido do


nome prescrição aquisitiva).
O tempo trazido pela Lei, no referido dispositivo é, em relação as outras
modalidades de usucapião, por demais pequeno. Há uma crítica das correntes
doutrinárias que entendem que não se pode delegar tão pouco tempo para uma
espécie de usucapião que se gera de uma situação de fato que envolve laços
afetivos, e que, justamente neste tempo, ainda não se tem a certeza da continuidade
do vínculo conjugal ou do término deste de uma vez por todas.
Em outras palavras, correntes da doutrina compreendem que por se tratar
de um direito cujo nascedouro se dá com base em um vínculo afetivo, o curto
período de tempo pode atrapalhar o acerto nas decisões e comprometer, com isto,
a segurança jurídica, escopo de todo o ordenamento.
Segundo tais pensadores, os relacionamentos humanos, sobretudo na questão
de afetividade, são por demais complexos, onde não raramente, no período de dois
anos após uma separação, há a reatação dos laços conjugais, o que findaria por
comprometer a segurança objetiva da lei, por conta de uma questão meramente
subjetiva, como preleciona Ricardo Henriques Pereira Amorim (2011, p. 4):

Há de se criticar também o prazo exíguo de dois anos para a forma-


ção da usucapião. Até pouquíssimo tempo atrás era este mesmo
tempo o necessário para a realização do divórcio. Embora a lei não
exija mais tal lapso de separação fática, ele continua sendo, na prá-
tica, mais ou menos respeitado pelos casais, por constituir um prazo
de reflexão bastante razoável. O prazo tão curto acaba por apressar
os casais a formalizarem sua separação, forçando a redução do pra-
zo de reflexão e reestruturação de sentimentos e projetos familiares.
Tal circunstância atenta contra a dignidade e liberdade dos envolvi-
dos que poderiam, quiçá deveriam deixar fluir mais tempo antes de
decidirem-se por enveredar por procedimento de partilha de bens.

Sustenta-se que tal modalidade de usucapião traz em seu bojo, um curto


prazo de tempo onde por uma via constitui um empecilho a liberdade do divórcio,
uma vez que o cônjuge que quer colocar termo a união conjugal não o fará por
medo de perder a sua meação do imóvel; ou por outra via, obriga os cônjuges a
praticarem o divórcio para que não incorra em perca patrimonial, ainda que essa
saída de um dos cônjuges do lar, seja de forma provisória e necessária à reflexão
de ambos para dirimir se foi a decisão mais acertada ou se ainda permanecerão
convivendo maritalmente.
Conforme tal corrente, seria uma espécie de cerceamento da liberdade de
decisão, uma vez que tais questões necessitariam de mais tempo para estarem
devidamente sanadas, dada a complexidade das relações humanas, como preleciona
Tula Wesendonck (2012, p. 7):

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É preciso examinar esse exíguo prazo de afastamento do lar como


causa de perda da propriedade em conjunto com a disposição consti-
tucional do art. 5º, LIV, segundo o qual ninguém será privado de seus
bens sem o devido processo legal, pois a complexidade das relações
familiares não permite efeitos tão fortes pelo simples decurso do
tempo. Veja-se, por exemplo, que esse período de dois anos pode
ser o prazo no qual as partes estão definindo se devem dar mais
uma chance ao relacionamento ou devem por fim ao mesmo.

Nesse sentido, há uma crítica ao período de 2 (dois) anos, onde em tão


pouco tempo, pode ocorrer uma perca patrimonial de grandes proporções para
o cônjuge que deixar o lar. Além do mais, em tão curto período de tempo, por
se tratar de vínculos conjugais e, ainda, familiares, o tão pequeno prazo poderia
facilmente impedir o devido andamento processual, podendo influenciar no seu
desenvolvimento saudável.
Sobre o tema Maria Berenice Dias (2011) assinala que a Lei nº 12.424/11,
a despeito de regular o programa Minha Casa, Minha Vida tem um caráter
nitidamente protetivo e que provocou um enorme retrocesso, cuja prática deve ser
desestimulada, uma vez que pode ensejar a perda da propriedade em um curto
período de tempo, não a favor da prole que o genitor quis beneficiar, mas em favor
do ex-cônjuge ou ex-companheiro. Segundo ela, a criação da nova modalidade de
usucapião entre cônjuges/companheiros representa um entrave para a solução
dos conflitos familiares. A autora explica que as questões decorrentes com o
fim dos vínculos afetivos, especialmente, havendo contenda acerca do imóvel
residencial, normalmente, a solução é um dos cônjuges/companheiros se afastar
do lar e, permanecendo o outro, em regra, é este que fica com os filhos em sua
companhia e, seguindo o que determina a lei, aquele que ocupar, pelo curto prazo
de dois anos, bem comum sem oposição do que abandonou o lar, pode se tornar
seu titular exclusivo.
Outro requisito trago e já demonstrado, é o requisito da não oposição, tema
também debatido entre os doutrinadores, sobretudo pelos casos demasiados de
mera tolerância. Há, aqui, por força do artigo 1.208 do Código Civil de 2002, a
diferenciação entre a não oposição e a mera permissão. A mera permissão consiste
em uma espécie de tolerância que é dada a alguém que detém, por ora, a posse
daquele imóvel, porém, sem nenhuma intenção de abandono. Nesse mesmo
sentido leciona Carlos Roberto Gonçalves (2014b, p. 47):

Assim, a primeira parte do art. 1.208 proclama que “não induzem


posse os atos de mera permissão ou tolerância”. A permissão se dis-
tingue da tolerância: a) pela existência, na primeira, do consentimen-
to expresso do possuidor. Na tolerância, há uma atitude espontânea
de inação, de passividade, de não intervenção; b) por representar
uma manifestação de vontade, embora sem natureza negocial, con-

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

figurando um ato jurídico em sentido estrito, enquanto na hipótese


de tolerância não se leva em conta a vontade do que tolera, sendo
considerada simples comportamento a que o ordenamento atribui
consequências jurídicas, ou seja, um ato-fato jurídico; c) por dizer
respeito a atividade que ainda deve ser realizada, enquanto a tole-
rância concerne a atividade que se desenvolveu ou que já se exauriu.

Percebe-se claramente, que a posse ad usucapionem deve ser observada a


partir de atos que não constituam mera permissão ou tolerância do proprietário
do imóvel, contra o possuidor.
De forma diversa não poderá ser no caso da usucapião familiar. É por demais
comum que para a resolução de conflitos íntimos entre os cônjuges, o homem
deixe o lar para que os confrontos não tomem maiores proporções, e geralmente
a mulher fica no imóvel com os filhos, que necessitam de ter onde morar. Não
diferentemente, a mulher vítima de abusos domésticos, também empreende saída
do lar conjugal, como uma espécie de defesa e proteção de sua própria vida,
uma vez que a continuidade no lar, pode gerar uma série de desconfortos e mais
sofrimentos e abusos por parte do cônjuge.
No presente caso, há nada mais que uma mera permissão, quando expressa,
ou a tolerância do proprietário em que o ex-cônjuge, continue a usufruir do bem. Não
há que se falar em abandono nesses casos e além do mais, ainda que transcorra o
período de dois anos de convivência no imóvel, não se pode conceder a prescrição
aquisitiva pois não há a posse ad usucapionem uma vez que o possuidor foi
somente permitido ou tolerado no uso do imóvel.
Justamente nesse abandono de lar, se gera a maior parte das discussões,
uma vez que a objetividade da lei ao estabelecer que em dois anos o cônjuge que
permanecer no imóvel adquire-lhe a propriedade por meio da usucapião, ou é um
ato de injustiça (para os casos que não se deve constituir a usucapião) ou invade o
campo das discussões subjetivas observando quem concorreu com culpa pelo fim
da união conjugal. O termo abandono de lar, gera em suma, uma série de incertezas
já por demais debatidas, porém, até o presente momento sem consonância. Na
toante de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 395):

Via de consequência, ao inserir dentre os requisitos da usucapião


o abandono voluntário e injustificado do lar por parte de um dos
cônjuges ou companheiros, a Lei no 12.424/11 resgata a discussão
da infração aos deveres do casamento ou união estável. Vale dizer,
em detrimento da liberdade e da constatação do fim da afetividade,
avalia-se a culpa e a causa da separação, temáticas que haviam
sido abolidas pela referida EC, cuja eficácia é imediata e direta, não
reclamando a edição de qualquer norma infraconstitucional. Se as
normas anteriores à EC no 66/10 não mais são recepcionadas pelo
ordenamento, certamente as posteriores – como a que ora se dis-

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cute – podem ser reputadas como ineficazes perante a ordem cons-


titucional.

O Instituto Brasileiro do Direito de Família há bastante tempo tomava


posicionamentos críticos acerca da figura da culpa no divórcio, sustentando que
não mais deveria existir, uma vez que a Constituição Federal de 1988 deixou o
divórcio como um ato de plena liberdade dos cônjuges.
A culpa àquela época trazia uma série de penalidades àquele que tinha
incorrido para o fim do vínculo matrimonial. A discussão entre os juristas se
dá justamente no entendimento de que essa modalidade de usucapião traz as
penalidades patrimoniais e volta a discutir a culpa, indo contrário com aquilo que
preconiza a Constituição Federal de 1988. Esse entendimento fica claro nos dizeres
de Luciana Santos Silva (2011, p. 3):

Embora o Senado Federal nos debates de aprovação da Lei


12.424/2011 tenha chamado este novo instituto de Usucapião Pró-
Família, ele tem nítida natureza patrimonialista e de controle moral.
Controle moral no que diz respeito ao retorno do debate de culpa
sobre o fim de relações íntimas no seio do Poder Judiciário e patri-
monialista quando traz como sanção a perda do patrimônio.

Se está se falando de uma espécie de usucapião que traz, direta ou


indiretamente, alguma penalidade a quem tiver dado termo a relação conjugal,
voltasse, claramente, a discutir a culpa no âmbito do direito de família, o que havia
sido extinto pela Emenda Constitucional nº 66/2010, é portanto o que defende,
em suma, essa corrente.
Sendo assim, tal modalidade de usucapião, atinge, portanto, o princípio do
não retrocesso, onde estaria confrontando diretamente essas conquistas tragas
pelo Direito de família ao longo dos anos, conforme se vislumbra com grande
clareza no que é sustentado por Tula Wesendonck (2012, p. 9):

A disposição estabelece novamente a discussão a respeito da figura


da culpa como requisito para determinados reflexos patrimoniais,
matéria que foi praticamente sepultada com as inovações legisla-
tivas pelas quais passou o Direito de Família. De fato, considerar
abandono do lar como fato juridicamente relevante pode conduzir
à retomada de um significado que fora esvaziado ao não mais se
colocar a culpa em papel central.

Ainda no campo técnico, com base em tudo isso que fora levantado, essa
corrente tende a concluir que a nova modalidade de usucapião, além de trazer
uma acirrada discussão acerca do retorno da culpa como figura nas discussões

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

patrimoniais do direito de família, levanta dúvidas sobre a constitucionalidade de


tal norma.
Tal entendimento encontra respaldo na Carta Magna de 1988, em seu art.
226, transcrito ipsis litteris:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do


Estado.
(…)
§6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação
dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)

Este dispositivo traz uma espécie de liberdade dos cônjuges em sede de


dissolução dos vínculos conjugais. Neste ponto não se observa mais quem
incorreu em culpa para o fim da relação conjugal. Do divórcio se têm os reflexos
da partilha de bens entre os cônjuges, como pedido acessório. Logicamente, se
há uma liberdade no divórcio, consoante tal tese, a figura da culpa não deve mais,
consequentemente, ser levantada também para proceder-se com a partilha de bens.
Essa partilha, nos moldes da jurisdição atual, deverá ocorrer observando o regime
de bens vigente para os cônjuges, seja aquele escolhido quando da celebração
do casamento perante a autoridade civil, ou seja aquele presumido como ocorre
nos casos de união estável.
A Lei, nesse sentido, trata somente da vontade das partes em permanecerem
ou não, para a Lei Civil, casados. Tal modalidade de usucapião estaria impedindo
essa livre vontade, ou seja, a objetividade do divórcio, no tocante as vontades
dos cônjuges, e estaria começando a gerar uma discussão patrimonial e uma
penalidade, uma vez que volta a discutir uma ação que um dos cônjuges teve de
fazer, e não somente as vontades dos mesmos em permanecerem casados ou não.
Acerca de tal tema, trata Carlos Roberto Gonçalves (2014a, p. 145): “A nova
redação da norma constitucional determinou não apenas o fim da separação de
direito, como também a extinção das causas subjetivas (culpa) e objetivas (lapso
temporal)”.
Fica claro que para a norma, no direito de família, não mais se deverá discutir
sob o cunho de questões subjetivas. Outrossim, tratar da usucapião familiar, 46
por meio de questões de direito meramente patrimoniais, sem englobar também o
direito de família, seria por demais errado, uma vez que a posse ad usucapionem
nessa modalidade de usucapião é gerada no seio de uma convivência conjugal. Fato
é que um dos requisitos é que o imóvel seja de pertença de ambos os cônjuges,
para que o cônjuge possuidor possa se valer do instituto.
Trata-se, portanto, de um estudo que navega sob o campo do direito das
coisas e do direito de família, onde se percebe que a discussão cada vez mais se
aprofunda, com vistas a uma explicação lógica.

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Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

Pelo entendimento desse ramo doutrinário, interpretando o direito de família


em consonância com a usucapião familiar aqui levantada, a vontade dos cônjuges
de permanecerem casados ou não, deverá ser preservada de qualquer meio que
possa dificultar o exercício dessa liberdade e isso é pacífico.
Sendo assim, para tais pensadores, porém, a usucapião familiar volta a
discutir a culpa quando observa quem, através da ação de sair de casa, pode
perder após o interstício de dois anos, a sua meação do imóvel.
Com efeito, nesse quesito, trata-se, ainda, de uma discussão não pacificada,
e que gera uma série de questionamentos. Nesse sentido ora levantado, apelar
para a subjetividade das relações conjugais é ressuscitar a discussão da culpa
no direito de família, ora, como já mencionado, não se trata somente de uma
discussão meramente patrimonial, mas de algo que envolve outras questões que
estão ligadas intrinsecamente ao direito de família no tocante as uniões conjugais.
Por fim, como em síntese, se destaca a ideia de que pelo fato de haver uma
penalidade de cunho patrimonial, ligada a análise do cônjuge que abandonou o lar,
haveria aí, uma discussão da culpa, ora, aquele que tenha agido pelo fim da vida
marital, perderá de forma considerável, o seu patrimônio, qual seja a meação do
lar de posse do casal, em um curto período onde, em suma, questões familiares
ainda não estão pacificadas.

2.2 Segunda posição doutrinária: corrente favorável ao


instituto da usucapião familiar sem discussão da culpa
A corrente doutrinária que defende de forma diversa, sustentada por Edson
Fachin, Flávio Tartuce, entre outros, como assevera o próprio Flávio Tartuce
(2011, p. 4), prega com bastante ênfase, que a norma deve ser analisada com
vistas ao ordenamento jurídico, e observar a questão somente do tempo e do
abandono voluntário cumulado com a falta de assistência à família, sem adentrar
em discussões subjetivas, para que se possa observar, tão somente a prescrição
aquisitiva, por parte do cônjuge possuidor. Tal corrente doutrinária, ainda conforme
o mencionado autor, entoa que, deve-se analisar a intenção do legislador, sendo
que a missão de interpretar fica a cabo dos juristas, devendo estes aceitar essa
missão de bom grado.
Luiz Edson Fachin (2011, p. 14), no que tange à constitucionalidade do instituto
acentua que, dentre os princípios, que são protegidos pela nova modalidade de
usucapião, destaca-se a dignidade da pessoa humana e a moradia daquele que
ficou no imóvel, visando garantir o mínimo existencial daquele que materialmente,
pouco ou nada mais possui, em detrimento daquele que abandonou o lar. Visa,
assim, a usucapião familiar assegurar o direito à moradia do sujeito desamparado
financeira e moralmente e, assim, proteger a moradia concreta de uma família e o

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

direito existencial daqueles que nela se correlacionam, sendo possível e adequado


o acolhimento da sistemática do artigo 1.240-A, do Código Civil.
Quanto ao prazo previsto na lei, Flávio Tartuce (201? p. 2), levanta a seguinte
voz: “deve ficar claro que a tendência pós-moderna é justamente a de redução dos
prazos legais, eis que o mundo contemporâneo exige e possibilita a tomada de
decisões com maior rapidez”. Em outras palavras, tal tese contesta o entendimento
de que o curto prazo de 2 (dois) anos fere o desenvolvimento saudável do processo
pela inflamação das discussões familiares que ainda não estão pacificadas, e
traz a ideia de que a tendência da pós-modernidade, é dar celeridade processual,
uma vez que a celeridade das relações e das decisões se constitui como base e
fundamento para tal redução.
Esta corrente prega ainda uma separação entre os dois entendimentos no
sentido em que a culpa do direito de família, tendo sido revogada, incorre no mesmo
resultado da expressão “abandono de lar” do direito das coisas (o que abarca a
usucapião em questão). Enquanto aquela tende a uma reprimenda moral, essa é
avaliada do ponto de vista da função social da propriedade, consoante preleciona a
constituição federal de 1988. Tese esta sustentada por Ricardo Henriques Pereira
Amorim (2011, p. 3):

Colimando a pretensão social ao expurgo da culpa do direito de fa-


mília e a mens legis voltada à Justiça Social, temos que o abandono
de lar deve ser analisado sobre a vertente da função social da pos-
se e não quanto a moralidade da culpa pela dissolução do vínculo
conjugal.

Conforme essa teoria, essa separação do entendimento da expressão


“abandono de lar” da culpa do direito de família, possibilita observar que, enquanto
uma visava, impedir que os casais se divorciassem com base na catequese
católica da indissolubilidade do casamento, a mesma expressão “abandono de
lar”, agora no direito das coisas, recai sob o campo de justiça social, não tendo
que se falar mais em reprimendas morais, uma vez que tal espécie foi concebida
na seara do programa “minha casa minha vida” que trata da população mais
pobre, e a permanência no lar marital, é requisito suficiente para a comprovação
dessa necessidade e subsídio por demais forte para a concessão de usucapião
nesse sentido.
A discussão aqui, toma um rumo completamente diferente daquilo que prega
a corrente doutrinária que levanta a não aplicação da usucapião familiar: enquanto
ela levanta que a culpa será objeto de avaliação para a perca da meação do imóvel
em nome do cônjuge que permaneceu, esta corrente trata que é justamente a
análise da permanência de um dos cônjuges que irá definir o direito a usucapião.

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Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

Nessa toante, ainda dita Ricardo Henriques Pereira Amorim (2011, p. 4):

Adotar tese diversa, embora o resultado mais “justo”, necessariamente


fará ressurgir a questão culpa no direito de família e a imputação moral
pela separação, inclusive com efeito patrimonial. Como a tradição
já fez provar, a culpa alonga os litígios e os torna mais complexos,
roubando-se a paz dos litigantes ao invés de restabelecê-la.

Como se percebe, tal tese traz a permanência de um dos cônjuges como sendo
o principal requisito que deva ser avaliado para se verificar a real concessão da
usucapião familiar. Aqui há, ainda, uma disparidade do conceito da medida mais
justa, com a medida cabível: embora em alguns casos seja mais justo observar as
questões de mera tolerância, por exemplo, estaria se adentrando necessariamente,
no campo da discussão da culpa, ou seja, estaria se avaliando a culpa daquele que
deixou o lar, devendo ser a permanência de um dos cônjuges, o fator chave – assim
se diga – para observar a configuração ou não da referida usucapião.
Outros pensadores, porém, além disto, levantam a tese de que a interpretação
deve ser feita com base na intenção do legislador. Tal entendimento encontra
aparato nos dizeres de Maria Conceição Amgarten (2016, p. 7):

Com todo o respeito aos que partilham desse entendimento, enten-


demos que não há que se perquirir culpa na interpretação do art.
1.240-A do Código Civil, conforme demonstraremos oportunamente
e, portanto, não há qualquer ofensa ao princípio da vedação do re-
trocesso.
Ademais, não se pode perder de vista que a intenção do legislador
foi proporcionar moradia às pessoas que não a tenham imóvel urba-
no ou rural, de onde se conclui que a aferição de sua constituciona-
lidade à luz do art. 6º da Constituição Federal, que elenca a moradia
dentre os direitos sociais. Assim, deve incidir à espécie, não o prin-
cípio da vedação ao retrocesso, mas sim o princípio da proteção da
moradia como fator do patrimônio mínimo.

Conforme tal pensamento, a interpretação deveria se dar de forma a confirmar


o caráter intencional da norma, ou seja, deveria se adentrar a fonte originária da
norma.
Em outras palavras, consoante esta corrente da doutrina, para que se observe
a usucapião especial urbana por abandono de lar como constitucional e em
conformidade com todo o ordenamento jurídico brasileiro para que não adentre em
contradição – e inclusive, não incorra em inconstitucionalidade – deve-se atentar
para o fato gerador da norma, observando a intenção legislativa àquela altura.
No dispositivo citado, consoante a autora, fica clara que a intenção do legislador
era proteger a justiça social, instalada na ordem constitucional brasileira, devendo
ser o parâmetro da qual os intérpretes dessa norma devem partir.

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

Dessa forma, como dizem os autores que defendem a constitucionalidade


e legalidade da usucapião familiar, o que se observa não é o próprio abandono
de lar, repise-se, mas sim a permanência de um dos cônjuges no bem imóvel de
pertença de ambos.
Nesse diapasão, o cônjuge que tiver permanecido no bem imóvel do casal,
ostenta o direito da usucapião pró-família, uma vez que, o cônjuge que permaneceu
estaria dando função social ao bem, ao mesmo tempo em que a justiça social estaria
sendo garantida, pela garantia à moradia desse cônjuge que permaneceu no lar.
Em suma, as duas correntes claramente, defendem posições completamente
distintas: a primeira corrente alega que de forma alguma deve-se admitir tal instituto
por se tratar do retorno da culpa ao direito de família. Seu embasamento, a
princípio, se vale de uma hermenêutica jurídica técnica e empírica, que ao observar
a historicidade e os fatos no mundo real, creem não haver qualquer possibilidade de
admissão da usucapião familiar no ordenamento jurídico brasileiro; por outro lado, a
corrente que se posiciona favoravelmente a tal instituto, tem como embasamento,
a hermenêutica de que tudo vai depender da aplicação ao caso concreto, onde
a interpretação deve ser feita de forma sistemática e ligada ao patrimônio e ao
cumprimento dos requisitos.

2.3 Posicionamento da Jurisprudência Pátria


Mister se faz percorrer o que o judiciário vem entendendo para que se possa
observar a aplicação de tal instituto no caso concreto.
Quanto a imprescindibilidade da configuração do abandono cita-se o enten-
dimento da Sétima Turma do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a saber:

APELAÇÃO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E


DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA. USUCAPIÃO FAMILIAR.
Inaplicabilidade do usucapião familiar, ausentes os requisitos previs-
tos no art. 1.204-A do Código Civil, inexistente prova do abandono
do lar, o qual não deve ser compreendido, apenas, como uma sepa-
ração de lares pela impossibilidade de convívio conjugal, mas, sim,
ir embora sem prestar satisfação, de forma voluntária e injustificada.
Assim, devem ser partilhadas apenas as mensalidades pagas duran-
te o período que perdurou a união estável. RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO. (Apelação Cível Nº 70076821685, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro,
Julgado em 28.03.2018).

A jurisprudência tem trazido o entendimento de que o abandono do lar deve


ser interpretado com a voluntariedade do cônjuge que abandona e que tal abandono
seja injustificado. Segundo a teoria que levanta o entendimento de que a 51 norma

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Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

volta a discutir a culpa, o fato da voluntariedade e a falta de justificativa de deixar


o lar é adentrar na discussão da culpa.
Porém, como contraponto, para que melhor se compreenda a corrente que
defende que a usucapião familiar não discute a culpa, a primeira turma do tribunal
de justiça do distrito federal entoa o seguinte:

DIREITO CIVIL. AÇÃO DE DIVÓRCIO C/C PARTILHA DE BENS. PEDIDO


DE RECONHECIMENTO DE USUCAPIÃO ESPECIAL FAMILIAR FORMU-
LADO PELA PARTE RÉ. ABANDONO VOLUNTÁRIO DO LAR E ABAN-
DONO MATERIAL E AFETIVO NÃO CONFIGURADOS. PROPRIEDADE
EXCLUSIVA DO BEM NÃO CARACTERIZADA. 1.De acordo com o ar-
tigo 1.240-A do Código Civil, “Aquele que exercer, por 2 (dois) anos
ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade,
sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-compa-
nheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de
sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja
proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. 2. Durante a VII Jor-
nada de Direito Civil, foi aprovado o enunciado 499, segundo o qual
“O requisito do ‘abandono do lar’ deve ser interpretado na ótica do
instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse
do imóvel, somado à ausência da tutela da família, não importando
em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável”.
3. Evidenciado que a autora deixou o lar conjugal em virtude de de-
sentendimentos e de agressões físicas sofridas, e que permaneceu
visitando o filho comum do casal, prestando-lhe auxílio material e
afetivo, não há como ser reconhecida a perda da propriedade em
razão da usucapião especial familiar. 4. Recurso de Apelação Cível
conhecido e não provido. (Processo nº 20140910137562 - Segre-
do de Justiça 0013531-72.2014.8.07.0009, primeira turma cível,
Tribunal de Justiça do DF, Relator: Nídia Corrêa Lima, Julgado em
07.02.2018).

Aqui se percebe que a jurisprudência vem se posicionando no sentido de


que a norma por si só, não tem o condão de discutir a culpa, traçando um meio
pelo qual devem ser avaliados os requisitos da usucapião especial urbana por
abandono de lar. Conforme tal tese, conforme já fora demonstrado, tão somente
a voluntariedade e a falta de assistência material à família.
No campo jurisprudencial, após o enunciado nº 499, começou a se traçar uma
meta para a interpretação do referido instituto, porém, até o presente momento,
a discussão doutrinária continua nos mesmos termos, de modo que a crítica se
funda justamente na perca patrimonial devido a saída do lar marital.
Nesse liame, é necessário ao intérprete munido de todos esses entendimentos
históricos e jurídicos, dirimir de forma que venha a contemplar todos os argumentos.
Qualquer análise que não venha a dar uma explicação com base na segurança

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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

jurídica, não está a contribuir com o mundo do direito, de modo que a insegurança
jurídica já afeta por demais o Brasil.

3 Conclusão
A culpa fora um artifício apresentado pelo antigo sistema jurídico brasileiro
razão pela qual, com a mudança do conceito de família, não mais se encontrou
cabível por trazer uma série de discussões que invadem, inclusive, a intimidade
das partes litigantes.
Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe
a liberdade do divórcio com a ascensão da Emenda Constitucional nº 66/2010.
Portanto, qualquer meio que venha a mitigar essa liberdade, está indo de encontro
ao que dita a Carta Política em vigor.
Quanto à Usucapião Familiar, amplamente discutida, percebe-se que se trata de
um instituto completamente duvidoso, que difere, em vários aspectos, das demais
espécies de usucapião. Ora, o pouco decurso de tempo para a sua concessão,
bem como o termo abandono de lar, servem para demonstrar a particularidade do
referido instituto, além de servirem de sustentáculo para as discussões doutrinárias,
exaustivamente contempladas.
Quanto às correntes, afirmar a inconstitucionalidade ou defender a não
aplicação do instituto seria errôneo, uma vez que não se percebe, no texto do artigo
1240 – A do Código Civil, qualquer afronta Constituição Federal, até mesmo porque
o criticado termo “abandono de lar” não tem, por si só, o condão de reacender a
discussão da culpa, não sendo razoável alegar o retorno de tal instituto por uma
simples expressão.
De se observar, também, qual era o intuito da culpa, qual seja, zelar pela
indissolubilidade do matrimônio, estipulando uma série de reprimendas a quem
desse causa ao fim da relação. Na usucapião familiar o objeto não é o fim da
relação conjugal nem quem deu causa, mas sim a manutenção da família que
ficou desassistida. Enquanto na antiga culpa, se observa quem dá causa ao fim
da relação, na usucapião familiar se observa quem abandonou o lar sem qualquer
justificativa ou meio que pudesse servir para a subsistência da família.
Além do mais, relatar uma possível inconstitucionalidade com base somente
em uma espécie de reprimenda moral, não seria plausível, pois embora o tempo
requerido pelo instituto seja de simplesmente dois anos, o fato do curto período
de tempo não serve para demonstrar qualquer ilegalidade da lei e nem enseja na
análise da culpa em lides que envolvam a usucapião familiar.
Desta feita, diante da problemática apresentada, percebe-se que o instituto
não volta a analisar a culpa, sendo a corrente mais acertada a que defende
a aplicação do mesmo, e a devida interpretação deve perpassar pelo crivo da

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Rênio Líbero Leite Lima, Felipe Emanoel dos Anjos Gonçalves

segurança jurídica, conforme tem se posicionado a jurisprudência, uma vez que


avaliar a voluntariedade e a falta de assistência para com a família do cônjuge que
abandonou o lar não é, em suma, analisar a culpa de quem deixou o lar marital,
mas sim, tem o escopo de garantir o direito à moradia àquele vítima do abandono
e, consequentemente, assegurar sua dignidade como pessoa.

Family usucapion and the issue of rediscussion of guilt in the Brazilian legal order
Abstract: Family adverse possession is a new institute in the Brazilian legal system. Having been
added in 2011, the institute originally called Special Urban Usucapion for Home Abandonment, ended
up resulting in countless doctrinal discussions about its legality, as according to some indoctrinators,
it brings back the analysis of guilt, long abolished from the law of the country. In the face of such a
discussion, serious problems were raised by law scholars, so that it generated numerous doubts about
the applicability of this institute. The present research seeks to point out what are the arguments of
the referred currents, aiming to determine if, in fact, the institute rekindles the analysis of guilt in
lawsuits involving family law or not. For the present research, the deductive method was used as to the
approach. As for the procedural methods, the historical, analytical and interpretative method was used.
Regarding the type of research, it was instrumentalized in an exploratory way. As for the technique,
the research took place through a bibliographic review. In this sense, making use of all the historical
and technical arguments, it is found that family adverse possession does not return to analyzing guilt.
Keywords: Family Usucapion. Abandonment of Home. Discussion of Guilt.

Referências
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www.cidp.pt/revistas/rjlb/2016/1/2016_01_0389_0415.pdf. Acesso em: 02 nov. 2019.
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Familiar e suas Implicações no Direito de Família. IBDFAM, 2011. Disponível em: http://www.
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A usucapião familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro

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Recebido em: 01.03.2020


Aprovado em: 09.03.2020

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

LIMA, Rênio Líbero Leite; GONÇALVES, Felipe Emanoel dos Anjos. A usucapião
familiar e a questão da rediscussão da culpa no ordenamento jurídico brasileiro.
Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 39-59,
jan./abr. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 39-59, jan./abr. 2020 59
DIÁLOGOS
Práticas abusivas e publicidades
enganosas na Black Friday no
contexto do direito do consumidor
brasileiro

Thayanny Teixeira Santos


Pós-graduanda na PUC-RS em Direito e Processo do Trabalho. Pós-graduada no curso de
Direitos Humanos na faculdade UNIBF. Bacharel em Direito pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. Advogada.

Resumo: O presente artigo faz uma análise da Black Friday, a fim de esclarecer e identificar as práticas
abusivas e as publicidades enganosas, que, apesar de serem prejudiciais, são praticadas pelos
fornecedores para com os consumidores brasileiros nessa época do ano. Diante da importância do
tema, busca-se retratar algumas dessas condutas, com o objetivo de alertar e orientar quais atitudes
devem ser tomadas para que o consumidor possa evitar sofrer lesões ao seu direito consumerista com
descaracterização da Black Friday, que para alguns passou a ser conhecida como “black fraude”, por
descrever promoções um tanto quanto suspeitas, que infelizmente ainda são praticadas no brasileiro.
Para tanto, utiliza-se abordagem doutrinária e de artigos. Como resultados obtidos, destaca-se que,
embora ocorram atitudes ilícitas por parte do fornecedor, é notória a evolução da Black Friday, dos Órgãos
e dos Sistemas de Proteção e Defesa do Consumidor, responsáveis por fiscalizar e até aplicar sanções
de cunho administrativo, patrimonial e penal, visando a coibir que essas práticas sejam reiteradas.
Palavras-chave: Black Friday. Práticas Abusivas. Publicidades Enganosas. Black Fraude.
Sumário: 1 Introdução – 2 Práticas abusivas e publicidades enganosas comumente realizadas na Black
Friday – 3 Cuidados que os consumidores devem ter antes da aquisição de produto ou contratação de
serviço na Black Friday – 4 Proteção prevista pelo Código de Defesa do Consumidor – 5 Proteção pelo
Procon, pelas associações de defesa do consumidor e pelo Reclame AQUI – 5.1 Secretaria Nacional do
Consumidor; Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor; Sistema Nacional de Informações
de Defesa do Consumidor e Cadastro de Reclamações Fundamentadas – 5.2 Ministério Público –
5.3 Defensoria Pública – 5.4 Delegacia de Polícia do Consumidor – 5.5 Juizados Especiais Cíveis,
conhecidos também como Juizados de Pequenas Causas, órgãos dos tribunais de justiça estaduais
(ou do Distrito Federal) – 5.6 Reclame AQUI – 6 Conclusão – Referências.

1 Introdução
Com o advento do capitalismo, o mercado do consumo torna-se cada vez
maior, surgindo vários mecanismos para atrair o consumidor e aumentar a quan-
tidade de vendas. No Brasil, não foi diferente e, ano após ano, uma considerável
ferramenta promocional passou a ganhar relevância em nosso país, ferramenta
está conhecida como Black Friday ou, em português, “sexta-feira negra”, cuja

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Thayanny Teixeira Santos

origem é norte-americana e significa uma ação promocional de vendas anual, que


ocorre na 4ª sexta-feira do mês de novembro, na qual as lojas físicas e on-line
disponibilizam promoções de diversos produtos durante 24 horas, mostrando-se
um relevante dia de vendas no varejo brasileiro, que chegou em 2010 pelo site
Busca Descontos e, desde então, cresce exponencialmente, batendo recorde de
vendas ano a ano.
Contudo, é imprescindível salientar que no cenário brasileiro a Black Friday
(BF) é motivo de grandes debates, pois alguns consumidores afirmam que ela deixa
apenas os preços pela “metade do dobro”; outros, por outro lado, defendem a BF
afirmando que já conseguiram descontos realmente consideráveis em produtos
(CONSTANTINO, 2013).
Diante desse contexto, o grande objetivo do artigo em tela é discutir as
práticas abusivas e publicidades enganosas que ocorrem na BF no cenário nacional
visando a orientar e proteger os cidadãos das diversas condutas ilícitas praticadas
pelos vendedores de produtos e serviços, que, por meio de muitas ilegalidades,
lesam o direito do consumidor, aproveitando-se da ingenuidade dos mesmos, os
convencendo a consumir produtos falsamente mais baratos ou que não atendem
às finalidades para as quais foram propagados, ferindo, assim, o Código do
Consumidor e a Constituição Federal do Brasil. Desse modo, o trabalho visa
também a orientar os consumidores com relação aos cuidados que eles devem ter
antes das aquisições de produtos ou contratações de serviços. Além de informar
as empresas que lideram de forma negativa e a proteção que o CDC, o Procon, os
Órgãos e Associações de Defesa do Consumidor, o site ReclameAqui.com (www.
reclameaqui.com.br), o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Delegacia de
Polícia do Consumidor e os Juizados Especiais Cíveis oferecem para o cidadão
que tiver seus direitos violados na Black Friday.

2 Práticas abusivas e publicidades enganosas comumente


realizadas na Black Friday
Com base nos dados do Reclame AQUI (www.reclameaqui.com.br), canal oficial
do consumidor brasileiro que atua como um canal independente de comunicação
entre consumidores e empresas, a BF do ano de 2018, no dia 23 de novembro,
data oficial do evento, teve 5.607 reclamações, número esse maior que no ano
de 2017, que teve 3,5 mil reclamações.
Entre o período do dia 21 de novembro de 2018 até o dia 31 de janeiro
de 2019, os números de problemas aumentaram e foram computadas 97.281
reclamações, e, como previsto, o atraso na entrega liderou o ranking de principais
motivos de queixas após o evento. Isso porque os consumidores permaneceram
fazendo reclamações até mesmo depois da data da BF, já que o cliente, ao fazer

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

uma queixa no Reclame AQUI, tinha a opção de marcar se aquele problema tinha
ou não relação com uma compra feita na Black Friday.
Além desse canal, existe a Fundação PROCON (Programa de Proteção e
Defesa do Consumidor), que similarmente verificou as irregularidades apresentadas
na BF, e as principais queixas foram sobre produtos ofertados não disponíveis,
mudanças de preço logo após a finalização da compra, pedidos cancelados após
o fim da venda, páginas bloqueadas devido ao congestionamento nos sites,
lentidão do servidor, desrespeito aos prazos de entrega dos produtos, preços
abusivos, sites de fachadas e maquiagem de descontos – inclusive essa foi a
reclamação mais feita no PROCON no ano de 2015, com cerca de 28,3% de
queixas, que oportunamente fizeram com que esse evento fosse caracterizado
como “black fraude”, muito conhecido como “metade do dobro”, pois o vendedor
anuncia 50% de desconto em um produto que já foi superfaturado 100% em época
anterior, motivando a realização das compras pelos mesmos preços e não com
descontos, aproveitando-se do momento de euforia da época para aplicar golpes
aos consumidores mais desavisados e desatentos.
Entre as técnicas publicitárias utilizadas neste período, temos a teaser, que
só é considerada enganosa se levar o consumidor a erro, criando uma expectativa
no mesmo com relação às ofertas que serão apresentadas no dia marcado para
o evento, sem trazer qualquer promoção efetiva.
De acordo, com o Reclame AQUI, o balanço final do monitoramento desde às
11h da quarta-feira, dia 21 de novembro até as 23h59 da sexta 23 de novembro,
se comparado com os mesmo períodos das outras edições, teve um aumento de
cerca de 20%, com 4.208 reclamações, contra 3,5 mil em 2017 e 2,9 mil em
2016, sendo os principais motivos de queixa: as propagandas enganosas 14,2%,
seguido de divergência de valores 7,6%, problemas na finalização da compra 7,6%,
atraso na entrega 3,9 % e estorno do valor pago 3% (RECLAME AQUI, 2019).
Com efeito, essas reclamações decorrentes da Black Friday não ficaram
restritas ao dia do evento promocional, mas também depois do dia oficial do evento,
como pôde ser observado pelo monitoramento do Reclame AQUI, que registrou,
de sábado dia 24 de novembro a domingo 25, 3.510 reclamações sobre BF – um
aumento de 22% com relação aos mesmos dias de 2017, quando foram feitas 2.874
queixas, perfazendo assim desde de às 11h do dia 21 de novembro até 12h do dia
26 de novembro, segunda-feira pós-evento, um total de 9.866 reclamações, sendo
os pontos mais reclamados os mesmos da data oficial, propagandas enganosas
12%, problemas na finalização da compra 8,9%, divergências de valores 6,7% e
atraso na entrega 3,6% (RECLAME AQUI, 2019).
Com relação ao ranking das empresas mais reclamadas das 11h do dia 21
de novembro de 2018 às 23:59h da data oficial do evento, constatou-se, pelo

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 65
Thayanny Teixeira Santos

monitoramento do Reclame AQUI, que a Americanas.com (loja on-line) liderou


o ranking com 306 queixas, seguida das Casas Bahia (loja on-line), com 247
reclamações, e Netshoes, com 160 na terceira colocação (RECLAME AQUI, 2019).
Nesse diapasão, demonstraremos algumas das práticas abusivas motivadoras
dessas reclamações na Black Friday, a começar pela chamada “maquiagem nos
preços”, que ocorre quando o fornecedor aumenta absurdamente o preço das suas
mercadorias mais vendidas na semana da BF, com posterior redução, objetivando
ludibriar o consumidor, praticando conduta abusiva, violando o Código de Defesa
do Consumidor (CDC), vez que a época em questão é mais propícia para vendas,
e a expectativa de descontos é maior para conseguir certa aquisição.
Trata-se de uma forma enganosa de publicidade, que se utiliza da técnica
denominada de “chamariz” para atrair o consumidor de forma enganosa, apre-
sentando falsos descontos. Segundo Rizzatto Nunes (2012, p. 551) “há lojistas,
em véspera de liquidação, que aumentam o preço para depois, com o desconto,
voltar ao preço anterior”.
Dentre as práticas abusivas previstas no CDC, destacam-se duas, muito
utilizadas na Black Friday brasileira, como dispõe o art. 39: “É vedado ao fornecedor
de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: V - Exigir do consumidor
vantagem manifestamente excessiva; X - Elevar sem justa causa o preço de
produtos ou serviços”.
Devido a essa prática tornar-se costumeira nos primeiros anos de realização
do evento no país, a BF acabou sendo apelidada de “Black Fraude”: tudo pela
metade do dobro (Revista Forbes ironiza Black Friday brasileira e diz que é “o dia
da fraude”).
Por sua vez, outra prática também presente neste período do ano, conforme
o Reclame AQUI, trata-se dos descontos absurdos e impressionantes que certas
lojas ofereceram, sem proporcionalidade nenhuma, como o site da Magazine Luiza,
que anunciou um fone Bluetooth sem fio na “superpromoção” de R$ 900 por R$
79,95. Sendo que normalmente o produto já custa em torno de R$ 80, mas por
parecer uma promoção enorme, acaba motivando a compra de tal mercadoria
(RECLAME AQUI, 2018).
Muitas reclamações dos consumidores também dizem respeito a uma técnica
enganosa de publicidade que se utiliza da “informação distorcida”, vez que atraem
o consumidor com um prazo de entrega fictício, quando o próprio estabelecimento
já sabe de antemão que não será capaz de cumprir com o prazo.
Além da maquiagem no preço, o valor excessivo do frete de maneira a ser bem
maior que o valor do próprio produto, e a demora mais que o normal na entrega das
mercadorias, também são motivos de muitas denúncias feitas no Reclame AQUI
referente à “sexta-feira negra”. E um exemplo elucidativo disso ocorreu na loja

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

on-line da KaBum!, que estava oferecendo uma Smart TV LG 32’’ de R$ 1.117,53


por R$ 949,90, sem o valor do frete que, depois de calculado, aumentou o valor
do produto em R$ 10.000,00 por conta da entrega. Mesma coisa que aconteceu
no site da loja Shoptime, com frete abusivo, em que um jogo para churrasco com
12 peças Tramontina é vendido por R$ 94,00 e entregue pelo marketplace Via
Inox Tramontina por R$ 1.611,00, com prazo de entrega entre 23 e 32 dias úteis
(RECLAME AQUI, 2018).
Acrescenta-se, ainda, o site oficial das Lojas Americanas, na venda do
micro-ondas Electrolux, quando os marketplaces Mega Korai e Lojas Bemol
ofereceram fretes extremamente abusivos aos clientes e mais demorado que o
normal, de 20 a 30 dias úteis (RECLAME AQUI, 2018).
Saliente-se, ainda, que uma prática muito comum no dia do evento da Black
Friday é o anúncio de vários produtos com grandes descontos, mas, quando o
consumidor vai comprar, não consegue, devido à obstaculização encontrada nos
sites, seja devido ao congestionamento ou por erro no carregamento, como ocorreu
no site da Fast Shop, que caiu pouco depois da meia-noite da sexta-feira, dia 24 de
novembro de 2017, e pediu calma aos usuários afirmando que havia muita gente
no site, mas não era necessário que o consumidor atualizasse a página, pois já
estavam na fila para aproveitarem as ofertas (RECLAME AQUI, 2018).
Como se não bastasse, essas práticas abusivas não são encontradas apenas
no mundo virtual, mas também em lojas físicas de diversos estabelecimentos,
entre eles os visitados pelo Procon (www.procon.com.br) do Rio de Janeiro em
sua operação Black Friday, tendo detectado diversas irregularidades, que serão
demonstradas a seguir: primeiramente, podemos citar a Loja Ricardo Eletro (Rua
Uruguaiana, 118), que colocou um cartaz com o preço de um sofá indicando a
promoção de R$ 999,00 por R$ 799,00. No entanto, havia outro cartaz atrás da
oferta, datado de 16.11.2017, em que produto já constava com o valor de R$
799,00, deixando nítida a maquiagem do preço, não muito diferente da Ricardo
Eletro do Norte Shopping, com cartaz de preço de cama box informando valor
de Black Friday com o mesmo valor ofertado no cartaz com data de 14.11.2017
(PROCON, 2018).
Por outro lado, a forma de pagamento também deixou a desejar, tendo em
vista que a fonte da parcela a prazo era maior do que o preço à vista, em muitas
situações. Além da ausência de preços em produtos expostos à venda, como na
Ortobom do Shopping Nova América, e em algumas lojas, onde havia bancas com
mantas sem preço ou código de barras que permitisse a consulta pelo consumidor
(PROCON, 2018).
Outrossim, na Leader, foi verificado que havia uma bancada com camisas
cujo cartaz promocional informava os valores por um preço a partir de R$ 25,99.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 67
Thayanny Teixeira Santos

Porém, a camisa mais barata que havia custava R$ 29,99, numa nítida publicidade
enganosa, na qual se utiliza a técnica denominada “chamariz”, atraindo o consumidor
para dentro da loja, sem que tenha a oferta conforme anunciada. Em seguida,
numa outra bancada, observou-se também várias almofadas sendo anunciadas por
um cartaz promocional informando o preço a partir de R$ 19,99. Entretanto, todas
as almofadas estavam sem preço e, quando era consultado o código de barras,
o valor informado era de R$ 24,99. Apenas uma almofada, num universo de 60
almofadas, custava R$ 19,99, induzindo o consumidor ao erro, com propagandas
enganosas e abusivas, como cartazes com políticas de vedação indiscriminada de
trocas de roupas íntimas, tablets e celulares, ainda que os mesmos estivessem
com defeito (PROCON, 2018).
O Procon-RJ, através do monitoramento de preços, abriu uma autuação contra
a B2W por contratempos encontrados no site da Lojas Americanas, dentre eles,
dois produtos, um fogão e um aparelho de ar-condicionado, que estavam sendo
vendidos com preços aparentemente promocionais; no entanto, dias antes da
BF, eram ofertados por valores iguais ou até menores do que os anunciados na
“sexta-feira negra” (PROCON, 2018).
Esse monitoramento também observou que as Casas Bahia vendiam produtos
com prazos de entrega que superavam 90 dias sem qualquer justificativa para
demora. Razão que motivou a abertura de uma investigação preliminar contra a
empresa responsável pelo site.
Por fim, na loja Wöllner, havia cartazes promocionais de Black Friday informando
descontos de até 50%, mas a única blusa feminina que constava como se tivesse
o desconto de 50% tinha, na verdade, 41% de desconto (de R$ 109,00 por R$
64,00). E, mais uma vez, o consumidor estava sendo enganado, tal como aconteceu
na Ricardo Eletro do Via Parque, com cartazes informando descontos de até 80%,
que não existiam (PROCON, 2018).
Outra forma enganosa de publicidade utilizada na BF diz respeito ao anúncio
que traz ambiguidade. Nas palavras de Rizzatto Nunes1 (2012, p. 553) “se ao ler
o texto, assistir à imagem, ouvir a mensagem falada, restar possível mais de uma
interpretação e uma delas levar à enganosidade, o anúncio já será enganoso”.
Muitas empresas também acabam enviando produtos que divergem do
anunciado, em desrespeito à exigência de cumprimento da oferta conforme
anunciado, previsto pelo CDC nos arts. 30 e 312.

1
Segundo Rizzatto Nunes (2012, p. 551) “o ‘chamariz’ é, portanto, uma maneira enganosa de atrair o
consumidor, para que ele, uma vez estando no estabelecimento (ou telefonando), acabe comprando algo.
Muitas vezes, bem constrangido
2
Art. 30, CDC. “Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou
meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor
que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

Como se pode ver, são inúmeras as práticas abusivas, motivadoras de


reclamação do consumidor, especialmente nessa época do ano. Apesar de terem
sido demonstradas apenas algumas, é notório que qualquer pessoa pode ser
enganada nesse período, e, para que isso não ocorra, é imprescindível tomar
devidas precauções, principalmente no que tange à verificação da veracidade dos
descontos.

3 Cuidados que os consumidores devem ter antes da


aquisição de produto ou contratação de serviço na Black
Friday
No atual panorama, a Black Friday está em constante crescimento no país e,
com isso, são praticadas cada vez mais enganosidades para com os consumidores.
Para evitar que estes não caiam mais nessas fraudes, é importantíssimo que certas
atitudes sejam tomadas, como: prestar muita atenção e analisar bem o site, o
produto, o valor do frete e o tempo de entrega, ficando atento aos detalhes, já
que os mesmos podem passar despercebidos, devido a expectativa do momento,
fazendo com que uma compra que seria tão desejada se torne uma frustração.
Intentando coibir essa linha de conduta pautada por práticas abusivas e
publicidades enganosas, os preços de diversos itens de várias lojas on-line foram
monitorados por um período de tempo, a fim de identificar as empresas que
aderiram ao Código de Ética sendo consideradas aptas a ganharem o “Selo Black
Friday Legal” pela Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (www.câmara-e.net.
com.br), justamente por terem se comprometido a participar do programa, visando
a vendas justas e lícitas, proporcionando a criação de um ambiente de confiança
no comércio eletrônico durante o período promocional. Para receber o “Selo Black
Friday Legal”, a loja virtual precisa ser associada à camara-e.net ou ao Movimento
e-MPE, no caso das micro e pequenas empresas (CÂMARA-E. NET, 2017).
Daí ser indispensável, antes de fazer uma compra em uma loja virtual que
anuncie praticar descontos de BF, verificar se a mesma aderiu ao programa da
câmara-e.net ou se pode ser encontrada na listagem de “evite esses sites”,
mantida e atualizada constantemente pelo Procon-SP.
De toda sorte, tendo em vista que não existe selo análogo para os estabele-
cimentos comerciais físicos, incumbe ao próprio consumidor exercer a função de
fiscalizador da autenticidade das informações promocionais divulgadas no âmbito

Art. 31, CDC. “A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas,
claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade,
composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos
que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 69
Thayanny Teixeira Santos

da Black Friday, devendo acautelar-se antes de optar pela aquisição de produtos


durante o evento.
Seja qual for o meio pelo qual se pretende comprar um produto, é imprescindível
pesquisar os preços na concorrência, e verificar se a oferta está clara ou não,
caso em que se deve questionar o fornecedor, e, se for o caso, denunciá-lo. Além
disso, o ideal é procurar pela reputação do estabelecimento, fazer uma pesquisa
prévia sobre eventuais reclamações da empresa no Reclame AQUI, e buscar na
própria internet depoimentos de outros consumidores e amigos nas redes sociais
sobre a loja em que deseja comprar. Um bom site para verificar a procedência das
informações é o Proteste (www.proteste.com.br), que busca promover os direitos
do consumidor. Acrescenta-se ainda que, antes de finalizar qualquer compra, é
necessário verificar a confiabilidade e os Termos e Condições Gerais e a Política
de Privacidade das lojas.
Nas compras virtuais, além das medidas mencionadas acima, é importante se
atentar ao marketplace presente nos principais sites do e-commerce informando por
quem o produto será “vendido e entregue” na hora da compra, para o consumidor
saber se está comprando do site principal ou da loja parceira, bem como observar
o tempo em que a entrega será feita e analisar bem a procedência do site – se ele
tem informações para contato, canal de atendimento e responsável.
Outra forma de potencializar a realização de boas compras durante esse
período é pesquisar os valores cobrados pelos produtos regulares antes do evento
e os comparar com os preços no período da promoção. Além de fazer a comparação
entre os preços oferecidos pelas empresas participantes e não participantes da
Black Friday, para que o consumidor possa ter um parâmetro de quais produtos
realmente estão com descontos verídicos. Tal medida é importante como uma
forma de não adquirir produto inferior, imaginando estar adquirindo vantagem
econômica, sendo que, na verdade, a diferença no preço se deve ao fato de se
tratar de produto mais simplório ou de desempenho ou qualidade inferior.
Outro aspecto importante ocorre em torno do marketing da BF, extremamente
atraente, para que o consumidor sucumba desmedidamente ao apelo dos lojistas.
Por isso, é importante agir com cautela, para não acabar adquirindo produtos sem
necessidade ou em relação aos quais não apresenta disponibilidade financeira
naquele momento para adquirir, acarretando faturas de cartão de crédito não
adimplidas, acompanhadas, até mesmo, de inscrição devida nos cadastros de
devedores do SPC e Serasa.
Além disso, o Reclame AQUI (www.reclameaqui.com.br), o Procon (www.
procon.com.br) e o Proteste (www.proteste.com.br) dão muitas dicas importantes
que devem ser seguidas pelo consumidor que não deseja passar por situações
fraudulentas, e se dar bem nessa época do ano. Primeiramente, cabe ao consumidor
desconfiar se os produtos estão realmente em oferta, uma vez que preços muito
baixos e com descontos absurdos são bem suspeitos, bem como evitar ofertas

70 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020
PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

que chegam por e-mail, pois criminosos se aproveitam dessa ferramenta confiável
de algumas lojas para aplicar golpes, e sempre procurar no site a identificação da
loja (razão social, CNPJ, endereço e canais de contato).
Em 2017, surgiram várias plataformas como sites e apps que permitem que
os consumidores consultem e acompanhem em tempo real os preços em diversas
lojas e a oscilação dos valores de vários produtos na “sexta-feira negra”. Entre eles,
podemos citar: Terra Shopping, Zoom, JáCotei.com.br, Buscapé Company, Busca
Descontos, Baixou Agora, Reclame AQUI, Bizoo e o Reduza (www.reduza.com.br).
Por último e não menos importante, a Serasa Experian, para auxiliar o
consumidor, liberou gratuitamente a consulta do CNPJ das empresas nos dias
22 (quinta-feira) e 23 de novembro de 2018, para que fosse possível acessar o
site da Serasa e consultar a razão social, ocorrência de protestos, cheques sem
fundo, ações judiciais, endereço, falências e a existência legal da empresa com
a qual pretende fechar negócio.
Além disso, o Procon-SP, com o objetivo de alertar as pessoas para não
caírem em golpes cada vez mais especializados, começou a divulgar uma lista
com os sites que deveriam ser evitados por consumidores na hora das compras
(PROCON, 2019).
Em 2018, essa lista foi atualizada no dia de 17 novembro, com um total de
419 endereços eletrônicos, virtuais, on-line e off-line, com um histórico negativo
no Procon, seguidos do nome de suas respectivas empresas responsáveis. Nessa
lista, elaborada de acordo com denúncias feitas pelos próprios consumidores, o que
mais chamou atenção foi o fato de todas as empresas citadas serem reincidentes
no ranking das reclamações e, embora notificadas sobre os problemas, não
ofereceram soluções aos casos ou não foram encontradas. Entre as principais
reclamações de consumidores, estão os fretes caros, atrasos nas entregas, e até
produtos danificados ou que divergem do anunciado.
Muitos desses sites foram retirados do ar, outros, no entanto, continuaram
on-line. Essa lista de sites reprovados pelo Procon já é feita desde 2011 e é
chamada de “Evite esses sites”, e levam em consideração os que, além de não
entregarem os produtos, também não possuem canal de contato com o consumidor,
nem por telefone, e-mail ou endereço.
A referida lista, além do endereço do site e a data de inclusão no mesmo, traz
também informações como CPF/CNPJ e o nome do responsável da loja citada, além
do status “No ar” e “Fora do ar”, mas é preciso ficar atento aos nomes da lista,
uma vez que as marcas nacionais conhecidas não estão presentes na listagem e
muitas empresas simulam nomes de grandes lojas, como é o caso das páginas
“gabimagazine.com.br”, “magazinefernando.com” e “magazinericardo.com.br”
supostamente referentes à Magazine Luiza.
Com isso, conclui-se que seja qual for o problema que o consumidor tenha
com as empresas, é essencial acionar a unidade do Procon mais próxima e também

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 71
Thayanny Teixeira Santos

acessar o site http://sistemas.procon.sp.gov.br/evitesite/list/evitesites.php, cuja


listagem vem sendo atualizada periodicamente para melhor orientar o consumidor.
Outra medida necessária para respaldar o consumidor é copiar e salvar em
arquivos de imagem com capturas da tela toda e não somente do site, bem como
das etapas e os documentos de confirmação da compra, armazenar os e-mails,
guardar nota fiscal, as informações repassadas pelo e-commerce, bem como anotar
o protocolo de atendimento. Caso ocorra algum problema e precisar confrontar a
loja, terão provas suficientes que impeçam a empresa de discordar.
Sob esse aspecto, finalizamos dizendo que, na hora da entrega do produto,
o comprador só deve assinar o documento de recebimento depois de examiná-lo.
As irregularidades na mercadoria devem ser relacionadas como justificativas para
o não recebimento. Dessa forma, o risco de ser enganado na Black Friday fica
bastante reduzido e permite excelentes compras, conscientes e seguras.

4 Proteção prevista pelo Código de Defesa do Consumidor


A importância do Código de Defesa do Consumidor é inegável em todas as
situações do cotidiano, inclusive no período da Black Friday. Desse modo, é essencial
que o consumidor tenha em mente que o fato de estar comprando em liquidação
não pode suprimir ou abolir seus direitos, já que são muitas as ferramentas que
podem ser utilizadas como forma de proteção à parte mais vulnerável dessa
relação, sendo o CDC incidente nesses casos.
Nesse contexto, a Lei 8.078/90 traz alguns meios de proteção ao consumidor.
O primeiro deles é o art. 26 do referido código, que defende que, ao serem
constatados vícios aparentes ou de fácil constatação no produto, o consumidor
terá um prazo de 30 dias para reclamar caso sejam produtos não duráveis, e de
90 dias para itens duráveis, contados a partir da entrega efetiva do produto ou do
término da execução dos serviços.
Com relação a vício oculto, ou seja, aquele não verificável facilmente, o
prazo passa a contar a partir do momento em que este ficar evidenciado (art. 26,
§3º, CDC). Sendo assim, o fornecedor terá 30 dias para solucionar o problema
do produto e, caso ultrapassado esse prazo, deverá alternativamente e à escolha
do consumidor: substituir o produto por outro da mesma espécie, em perfeitas
condições de uso; ou substituir imediatamente a quantia paga, monetariamente
atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; ou, ainda, efetuar o
abatimento proporcional do preço (art. 18 do CDC).
Por oportuno, é cabível esclarecer que a troca do produto sem a ocorrência de
vício é uma mera liberalidade do fornecedor. Portanto, a loja não está obrigada a
realizá-la, como também ocorre nos períodos normais de vendas, não dependendo
se tratar de Black Friday ou de qualquer outra ação promocional.

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

Outra situação respaldada pelo CDC é o caso de veiculação da empresa de


anúncios com preços promocionais. Quando promete desconto, a mesma deverá
cumprir, até mesmo nos casos de produtos importados adquiridos no Brasil em
estabelecimentos legalizados, pois devem seguir as mesmas regras dos nacionais.
Nessa conjuntura, o consumidor poderá valer-se do seu direito à informação,
previsto no inciso III, art. 6º, do CDC, sendo obrigatório o fornecedor prestar
informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com
especificação correta de qualidade, quantidade, características, composição,
qualidade, preços e riscos que apresentem (art. 31, CDC). E, nos casos em que
o fornecedor se recusar a cumprir a oferta vinculada, o consumidor pode exigir o
cumprimento forçado da obrigação, conforme foi anunciado, no art. 35 do CDC:

Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimen-


to à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, al-
ternativamente e à sua livre escolha: I -exigir o cumprimento forçado
da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II
-aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - res-
cindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente
antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos

Além disso, o prazo de desistência, ou melhor, de arrependimento, para


compras feitas por telefone, em domicílio, telemarketing, catálogos ou internet,
ou seja, fora do estabelecimento comercial, é de 7 dias, valendo a partir de sua
assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, independentemente
da existência de defeito ou justificativa, conforme expressamente previsto no art.
49 do Código de Defesa do Consumidor que alega, ainda, que o valor deverá ser
integralmente restituído.
Com isso, é válido frisar que caso o consumidor se sinta lesado por qualquer
prática abusiva que seja, deve enviar a sua denúncia para o site do Procon (www.
procon.com.br), do Reclame AQUI (www.reclameaqui.com.br), do Proteste (www.
proteste.com.br) ou procurar a delegacia de polícia mais próxima, levando consigo
todas as provas arquivadas.

5 Proteção pelo Procon, pelas Associações de Defesa do


Consumidor e pelo Reclame AQUI
É notório que existem várias práticas maliciosas na Black Friday, entre elas, a
maquiagem de preços e ofertas enganosas que violam direitos do consumidor. Com
o intuito de coibi-las, hoje em dia, existem várias organizações que se mobilizaram
e adotaram diversos aparatos para que o consumidor lesado possa se defender,
conforme veremos adiante.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 73
Thayanny Teixeira Santos

5.1 Secretaria Nacional do Consumidor; Departamento de


Proteção e Defesa do Consumidor; Sistema Nacional
de Informações de Defesa do Consumidor e Cadastro
de Reclamações Fundamentadas
Primeiramente, uma boa forma de defesa é acionar a Secretaria Nacional
do Consumidor (Senacon), que atua no planejamento, elaboração, coordenação e
execução da Política Nacional das Relações de Consumo. Tendo sido criada pelo
Decreto nº 7.738, de 28 de maio de 2012, é integrante do Ministério da Justiça,
cujas atribuições encontram-se no art. 106 do Código de Defesa do Consumidor,
bem como no art. 3º do Decreto nº 2.181/97 e no art. 18 do Decreto nº 8.668,
de 11 de fevereiro de 2016.
Na 7ª edição da Black Friday no Brasil, houve uma intensificação da fiscalização
com o surgimento da parceria entre a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon)
e os Procons e a plataforma digital privada Reclame AQUI (www.reclameaqui.com.br).
De acordo com Arthur Rollo, secretário da Senacon, a participação e envolvimento
dessa entidade civil privada (Reclame AQUI) é inédita e se fundamenta na remessa
à Senacon das ilegalidades identificadas mediante monitoramento digital das
ofertas realizadas pelo comércio eletrônico (RECLAME AQUI, 2018).
Outro órgão que também auxilia a Senacon na execução da Política Nacional
das Relações de Consumo é o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor
(DPCD), que fiscaliza as práticas comerciais, aplicando sanções administrativas nos
termos do CDC. Por isso, quando é apurada irregularidade que infringe à legislação
penal, o DPDC encaminha o fato para autoridade policial, objetivando a apuração
por inquérito (ou termo circunstanciado) e até mesmo o exercício de representação
em face do Ministério Público, para que sejam adotadas as medidas processuais
penais e/ou cíveis plausíveis para a proteção dos consumidores.
Conforme Ana Carolina Caram, diretora do (DPDC), é necessário que o
consumidor fique atendo e suspeite de ofertas com preços muito inferiores ao
preço de mercado pois: “Sites fraudulentos costumam adotar essa estratégia, mas
quando as investigações têm início, já foram retirados do ar e os responsáveis não
são encontrados para indenizar a vítima e responderem criminalmente”. Logo, nem
toda denúncia resulta na abertura de investigação (PUBLICIDADE ENGANOSA, 2017).
O DPDC, intentando exercer suas atividades da melhor maneira possível,
age em parceria com outros órgãos e entidades federais e estaduais, integrando
os Procons e centralizando as informações referentes ao Sistema Nacional de
Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), sistema informatizado que integra
processos e procedimentos referentes ao atendimento de consumidores nos
Procons, buscando proporcionar um instrumento de gestão adequado e dinâmico

74 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020
PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

dos seus setores de atendimento “Tanto os Procons como o Reclame AQUI já


estão monitorando as ofertas na internet. Qualquer ilegalidade notada será objeto
de investigação e de responsabilização na esfera administrativa”, informou o
Secretário Arthur Rollo (SECRETARIA NACIONAL DO CONSUMIDOR..., 2017, [n.p.]).
Diante desta situação, a Senacon, vinculada ao Ministério da Justiça, por
meio do DPDC, instaurou a primeira investigação preliminar sobre a Black Friday
após uma reportagem publicada no dia 19 de novembro de 2017 pela Folha de
S.Paulo, relacionada ao monitoramento de preços no período anterior ao dia das
compras, para verificar se as lojas aumentavam ou não, injustificadamente os
preços no período do evento.
Por conseguinte, o DPDC teve acesso aos preços de diversos produtos, e
buscou observá-los antes e durante as promoções da Black Friday, analisando
as informações colhidas e os dados levantados pelo jornal de monitoramento de
6.875 itens à venda no varejo, de modo a individualizar e apurar a conduta das
empresas envolvidas, visando a verificar a ocorrência de indícios de irregularidade,
que podem até se transformar em processo administrativo sancionatório que
culminam em multa de até R$ 9,5 milhões.
Nesse pressuposto, outro órgão muito importante que garante a proteção e
defesa dos direitos e interesses dos consumidores é o Procon, que faz parte do
poder executivo municipal, estadual ou distrital, sendo responsável por manter o
contato direto com os cidadãos e suas demandas, objetivando elaborar, coordenar
e executar a política estadual ou municipal de defesa do consumidor, bem como
de realizar o atendimento aos consumidores e fiscalizar as relações de consumo
no âmbito de sua competência e da legislação complementar, de maneira a regular
o procedimento administrativo que, no Procon, é um conjunto de atos ordenados
e instituídos em lei com o intuito de subsidiar uma decisão motivada que acate
ou não o acolhimento da reclamação fundamentada pelo consumidor.
Para o consumidor, esse processo administrativo decorre do direito consti-
tucional de proteção, ou seja, direito de exigir formalmente dos órgãos públicos
competentes providências contra ilegalidade ou abuso de poder que tenha sofrido
(artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, CF).
É cabível ressaltar que o Procon tem poderes conferidos por lei para convocar
o fornecedor a comparecer em audiência, com hora e data agendadas, tanto para
fazer um acordo ou, se for o caso, prosseguir com o processo administrativo.
Por outro lado, se o consumidor não quiser reclamar perante ao Procon e, ao
mesmo tempo (ou posteriormente), procurar o Poder Judiciário para ingressar como
uma ação judicial, não haverá interrupção ou extinção automática do procedimento
administrativo (reclamação), uma vez que Poder Judiciário e Poder Executivo são

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 75
Thayanny Teixeira Santos

esferas independentes e podem ter entendimentos diversos, especialmente se


decidido pela aplicação de sanção administrativa.
Acrescenta-se, ainda, o Sistema Nacional de Informações de Defesa do
Consumidor (Sindec), resultado de um trabalho integrado entre União, Estados e
Municípios, que constituiu um importante instrumento para aumentar a voz dos
consumidores, sendo executado pelo Ministério da Justiça por meio da Senacon,
cuja responsabilidade é reunir informações elaboradas, tratadas e enviadas pelos
Procons estaduais e municipais, estabelecendo um considerável instrumento de
compreensão e análise do que ocorre no mercado de consumo, acompanhamento,
inclusive, as demandas, para a geração de relatórios gerenciais que decorre da
base tecnológica necessária para elaboração do Cadastro Nacional de Reclamações
Fundamentadas, previsto no Código de Defesa do Consumidor.
Tais informações possibilitam o monitoramento do impacto das ações imple-
mentadas pelos órgãos de Estado ou entes de mercado, permitindo a elaboração
de estudos e pesquisas sobre os principais problemas e fornecedores reclamados
pelos consumidores. Os dados e informações do Sindec podem ser consultados
no endereço: http://portal.mj.gov.br/SindecNacional/.
Referidos dados passam a fazer parte do Cadastro de Reclamações Fundamen-
tadas, que é formado pelas reclamações (processos administrativos) finalizadas
pelos Procons num período de 12 meses e publicado nos termos do artigo 44 do
CDC, que dispõe o seguinte: “Os órgãos públicos de defesa do consumidor manterão
cadastros atualizados de reclamações fundamentadas contra fornecedores de
produtos e serviços, devendo divulgá-lo pública e anualmente. A divulgação indicará
se a reclamação foi atendida ou não pelo fornecedor”.
Em vista disso, todos os órgãos públicos de defesa do consumidor mais
especialmente os Procons estaduais e municipais, possuem o dever de organizar e
divulgar a relação de fornecedores que não respeitam os direitos dos consumidores,
sendo regra que a divulgação do cadastro ocorra pelo menos num prazo anual.
Contudo, nada impede que a periodicidade seja semestral ou até em período
menor. Além disso, o documento deve ficar sempre à disposição do consumidor,
conforme determinado no §1º do art. 44: “É facultado o acesso às informações
lá constantes para orientação e consulta por qualquer interessado”.
É necessário, também, estabelecer os critérios para manutenção e divulgação
do cadastro, até mesmo para melhor orientar os consumidores que irão consultar
a lista, que tem como objetivo legal a ampla divulgação e, por isso, não pode se
limitar apenas a ser fixada no órgão, devendo também ser publicada em outros
lugares como o Diário Oficial local.

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

5.2 Ministério Público


O Ministério Público é instituição com independência funcional responsável
por zelar e aplicar o respeito das leis, a manutenção da Ordem Pública e a defesa
de direitos e interesses da coletividade podendo, inclusive, firmar termos de
ajustamento de conduta (Lei nº 7.347/85) e instaurar inquérito civil para apuração
de infrações à legislação de consumo, requisitando informações e contribuição de
outros órgãos integrantes do SNDC (Sistema Nacional de Defesa do Consumidor)
para o alcance de seus objetivos.
Em sua estrutura interna, o Ministério Público deve se organizar de modo
a contar com promotoria especializada na defesa dos consumidores (art. 5º, II,
CDC). Possui legitimidade exclusiva para promover ação penal pública, inclusive
quando dizem respeito às infrações penais de consumo (art. 80, CDC) que, se não
forem feitas no prazo legal, implicará na autorização da oferta das ações penais
subsidiárias por parte de órgãos públicos de defesa do consumidor como, por
exemplo, das associações civis legalmente constituídas.
Em decorrência disso, quando houver lesão a direitos coletivos dos consu-
midores, o Ministério Público deverá ajuizar Ação Civil Pública (ações coletivas),
para análise do Poder Judiciário, que buscará decidir judicialmente a proteção
dos consumidores, implicando até em reparação de danos materiais ou morais.
Contudo, faz-se necessário explicar que o Ministério Público só possui atribuição
para representar, perante o Poder Judiciário, casos coletivos, diferentemente da
Defensoria Pública.
Um exemplo elucidativo da atuação do MP na Black Friday foi contra a empresa
Centauro, que, antes do evento, anunciou uma chuteira Nike por R$349,99
em seu site, sendo que, por ocasião da BF, o mesmo site passou a anunciar o
produto com desconto de 70%, mas com preço original de R$ 1.199,00. Através
de pesquisas feitas pelo Reclame AQUI, constatou-se a existência de diversas
reclamações narrando situações semelhantes (MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO
GRANDE DO SUL, 2018).
Por esse motivo, a Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor ajuizou
ação civil pública (processo nº 001/1.1610066776-8) contra a SBF Comércio de
Produtos Esportivos Ltda. – CENTAURO, tendo por objeto a veiculação de propaganda
enganosa na Black Friday ocorrida em 27 de novembro de 2015, que acarretou
na condenação da empresa ao pagamento da quantia de R$50.000,00 a título de
dano moral coletivo a ser recolhido ao Fundo de Restituição dos Bens Lesados,
e na restituição aos consumidores que adquiriram a chuteira Nike 70% sobre o
valor pago originalmente, acrescidos de juros de mora e correção monetária. E,
como meio de conferir publicidade à decisão, a Centauro também foi condenada
a publicar a sentença em jornais de grande circulação do Estado.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 77
Thayanny Teixeira Santos

5.3 Defensoria Pública


É imprescindível que o Poder Público mantenha as defensorias públicas
para oportunizar o direito que os cidadãos necessitados têm de serem assistidos
judicialmente e gratuitamente de maneira adequada (art. 5º, LXXIV, CF). Para tanto,
a Defensoria ocupa um papel de destaque nas mais variadas relações sociais,
especialmente nas que envolvem matéria de Direito do Consumidor, já que uma
boa parte da população brasileira não tem possibilidade de arcar com advogados.
Este órgão atua defendendo os direitos dos consumidores economicamente menos
favorecidos, tanto individualmente ou coletivamente, por meio da inovadora Lei
Federal nº 11.448/07, que autoriza expressamente que as defensorias públicas
possam ajuizar ações coletivas (isto é, medidas judiciais que representam direitos
e interesses de grupos de consumidores).

5.4 Delegacia de Polícia do Consumidor


O art. 5º, III, do CDC faz parte dos instrumentos que o Poder Público tem para
executar a Política Nacional das Relações de Consumo permitindo, expressamente,
a criação de delegacias de polícias especializadas no atendimento de demandas
de consumidores (vinculadas com infrações penais de consumo). No entanto, o
fato de não existir uma delegacia especializada para o consumidor, não impede que
a delegacia de competência geral do Estado, Município ou Distrito Federal tenha
como obrigação, conhecer e aplicar a lei de consumo, dando pronto atendimento
aos cidadãos.
Portanto, é direito do consumidor registrar Boletim de Ocorrência documentando
fatos, os quais deverão ser apurados (investigados) pela autoridade policial
através de um inquérito policial, onde serão tomados depoimentos das partes
envolvidas e, se apurada a existência de provas ou indícios de conduta criminosa,
a delegacia deverá acionar a Justiça e o Ministério Público, para oferecimento de
denúncia e formação de uma ação penal (processo judicial onde será apurada a
responsabilidade penal do fornecedor).
Nos casos em que um agente do Procon em ato de fiscalização ou a partir de
informações recebidas pelos consumidores tomar ciência de um fato ou denúncia
que configura crime contra o consumidor (de acordo com o CDC), deve noticiá-lo
à delegacia para que possa ser aberto inquérito ao Ministério Público, para que
seja ofertada denúncia contra o fornecedor.

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

5.5 Juizados Especiais Cíveis, conhecidos também como


Juizados de Pequenas Causas, órgãos dos tribunais de
justiça estaduais (ou do Distrito Federal)
Os Juizados Especiais Cíveis (JEC) têm suas regras pautadas na Lei Federal
nº 9.099/95, que os diferenciam do procedimento comum, por utilizarem de
critérios como a celeridade, informalidade, simplicidade e oralidade, nos processos
judiciais que, sempre que possível, priorizam a realização de acordos. Por isso,
o consumidor, quando se sentir lesado, poderá recorrer a essa ferramenta para
buscar uma solução rápida e plausível, uma vez que o JEC atua para causas de
até 40 salários mínimos, com a vantagem das causas de até 20 salários mínimos
não precisarem de contratar advogado.
Em decorrência disso, quando o consumidor lesado desejar reclamar também
sobre perdas e danos decorrentes do problema de consumo ou outros prejuízos
decorrentes da falha do fornecedor, poderá recorrer diretamente ao Juizado
Especial Cível ou na justiça comum, pois ambos buscam a tutela do Estado Juiz
para solucionar a lide.
A utilização de processo judicial no âmbito dos juizados especiais não depende
pagamento de custas, taxas ou despesas. E, trata-se da exposição circunstanciada
dos fatos ocorridos com o consumidor, bem como a formulação do pedido pretendido
à luz da legislação pertinente. Depois de protocolada a ação, o Juiz designa data de
audiência para buscar uma conciliação (acordo) entre as partes, que se caso não
ocorrer, fará com que outra audiência seja agendada para que sejam apreciadas
as provas e, se possível, na mesma audiência, prolação de sentença.
A partir do momento que a sentença for proferida, pode a parte inconformada
usufruir de recurso para as Turmas Recursais (colégio de juízes que pode revisar a
decisão do juiz que prolatou a sentença). Todavia, nas causas cujo valor envolvido
seja superior a 20 salários mínimos (no caso de interposição de recurso para
as Turmas Recursais), será necessário que o consumidor seja assistido por um
advogado, sendo devidas custas e taxas judiciárias, inclusive se o recorrente
for o consumidor, com exceção dos casos que envolvem gratuidade de justiça
reconhecida e determinada.
É importante ressaltar que os julgamentos proferidos pelos Juizados Espe-
ciais, assim como pelas Turmas Recursais, podem ser também considerados
jurisprudência e servir de fonte para pesquisas que orientem e fundamentem a
atuação e as decisões tomadas no âmbito dos Procons.
Nos Municípios ou comarcas que não contar vara especializada para demandas
de consumidores ou juizado especiais cíveis (de pequenas causas), as varas de
competência geral apreciarão as demandas de consumo.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020 79
Thayanny Teixeira Santos

5.6 Reclame AQUI


O Reclame AQUI (www.reclameaqui.com.br), site especializado em reclamações
dos consumidores, vem ganhando cada vez mais força durante a Black Friday.
Além de verificar a reputação das empresas e disponibilizar quais lideram o
ranking das denúncias, com suas práticas anticonsumeristas, também serve como
ferramenta para permitir que o consumidor possa ver a reputação dos produtos
que deseja comprar, novidade que surgiu no último semestre do ano de 2017,
após o monitoramento de mais de oito mil itens dentre 100 lojas virtuais ou mais
com reputação Boa, Ótima ou RA 1000 (RECLAME AQUI, 2018).
Para ajudar o usuário do site, as avaliações são feitas pelos próprios
consumidores que comprovarem que adquiriram aquele item, seja por nota fiscal
da compra ou foto do produto, por exemplo, de modo que essa avaliação fica
disponível como objeto de consulta, para quem desejar, até mesmo após a BF.
Entretanto, para que o consumidor possa ter uma noção da realidade do
desconto, é preciso ter uma noção do preço médio, anteriormente ao dia do evento,
e para isso existem muitos sites, entre eles o ReclameAqui.com que cumpre essa
função com êxito, de comparar os preços na última semana, no último mês ou
nos últimos seis meses.
Outra grande novidade da edição 2017 da Black Friday foi a parceria inédita do
Reclame AQUI, representado pelo seu presidente Maurício Vargas, com o Secretário
Nacional do Consumidor, Arthur Rollo, por meio da qual firmaram um acordo de
colaboração para autuar contra empresas que desrespeitarem o Código de Defesa
do Consumidor. Desse modo, o Reclame AQUI se comprometeu a repassar para a
Senacon todos os casos de maquiagens de preços durante o monitoramento das
24 horas desse período de superdescontos e, por meio desses dados, a Senacon
administrativamente autua as empresas junto ao DPDC (RECLAME AQUI, 2018).
De acordo com o secretário Arthur Rollo: “Os dados do Reclame AQUI ajudarão
a Secretaria na execução das suas políticas públicas de defesa do consumidor”,
“Se comprovadas as infrações ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
além da aplicação das penalidades nele previstas, o resultado do trabalho será
encaminhado ao Ministério Público do Estado para a apuração dos crimes previstos
nos artigos 66 (oferta enganosa) e 67 (publicidade enganosa) do Código”, afirmou
a entidade em nota.
Entretanto, o Reclame AQUI, desde o mês de agosto de 2016, vem evoluindo
a ponto de o Ministério da Transparência reconhecer o trabalho realizado pelo
Reclame AQUI Serviços Públicos, que passou servir de ferramenta para as mais
de 300 ouvidorias em todo o país na resolução de conflitos de cidadãos com o
poder público. Enquanto em outubro do referido ano o Reclame AQUI também havia
firmado outra parceria, passando a ser oficialmente reconhecido como Empresa

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PRÁTICAS ABUSIVAS E PUBLICIDADES ENGANOSAS NA BLACK FRIDAY NO CONTEXTO DO DIREITO DO CONSUMIDOR...

Amiga da Justiça, com o selo concedido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o
maior TJ do Brasil (RECLAME AQUI, 2018).
Além disso, importa destacar as parcerias que o Reclame AQUI possui com
os Ministérios Públicos de Goiás, Bahia e Minas Gerais. “Para nós, isso significa
uma grande vitória. É o reconhecimento da importância de uma ferramenta criada
pela iniciativa privada, para defender os direitos do cidadão e do consumidor”,
afirmou Maurício Vargas, o então presidente do site (RECLAME AQUI, 2018).

6 Conclusão
Diante do exposto, o trabalho em tela também retratou os pontos negativos
da Black Friday, constatando por meio de sites de defesa do consumidor (entre
eles o Procon e o ReclameAqui.com), que houve um aumento nas reclamações
decorrentes de práticas abusivas (maquiagem de preços, propaganda enganosa,
fretes abusivos e mais demorados que o normal sem motivo justificável, etc.). Fato
que chamou a atenção é o de que muitos estabelecimentos que lideram de forma
negativa, com índices altíssimos de denúncias, já eram reincidentes.
Ressalte-se que o fornecedor se utiliza de diversas práticas abusivas e
publicidades enganosas na época da Black Friday brasileira, práticas que são
vedadas pelo Código de Defesa do Consumidor. Entre as mais comuns, destacamos
o emprego de informações distorcidas, de “chamariz”, e da utilização de falsos
descontos.
Diante disso, foram citadas diversas orientações para que o consumidor
possa evitar cair nessas fraudes, orientando-o que faça uma análise preventiva e
criteriosa, devendo analisar o site, o produto, o valor do frete e o tempo de entrega,
ficando atento aos detalhes, já que podem passar despercebidos devido à alta
expectativa do momento, fazendo com que uma compra que seria tão desejada
se torne uma frustração.
Por fim, para reverter a situação de fraude e falsos descontos, o presente
artigo destacou os meios existentes para coibir as práticas abusivas que podem
ocorrer nesse período, por meio de sites e órgãos públicos, entre eles: o Procon,
os Órgãos e Associações de Defesa do Consumidor, o site ReclameAqui.com, o
Ministério Público, a Defensoria Pública, a Delegacia de Polícia do Consumidor
e os Juizados Especiais Cíveis, bem como o CDC, que podem aplicar, inclusive,
medidas administrativas, cíveis e penais, como uma forma de garantir que a Black
Friday seja cada vez mais aceita pelo público, podendo ser mais real e confiável
para o consumidor, que aos poucos está se sentindo mais seguro e consciente
das compras e dos seus direitos consumeristas.

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Thayanny Teixeira Santos

Abusive practices and misleading advertising on Black Friday in the context of Brazilian consumer law
Abstract: This article analyzes Black Friday as a way to clarify and identify abusive practices and
misleading advertising, that despite being harmful, they are practiced by suppliers to Brazilian consumers
at this time of year. Given the importance of the theme, it seeks to portray some of these conducts,
with the objective of alerting and guiding what attitudes should be taken so that the consumer can avoid
suffering from injury to his consumer is entitled due the mischaracterization of Black Friday which for
some comes to be known as “black fraud” for describing promotions somewhat suspiciously, which
unfortunately are still part of Brazilian trade. Therefore, a doctrinal approach and articles approach is
used. As results obtained, it is noteworthy that although illicit attitudes occur on the part of the supplier,
is notorious the evolution of Black Friday, the Consumer Protection Organs and Systems, responsible
for supervising and even imposing administrative, patrimonial and criminal sanctions, in order to curb
that these practices are reiterated
Keywords: Black Friday. Abusive Practices. Misleading Advertising.

Referências
AGORA você pode ver a reputação dos produtos no Reclame AQUI: Oito mil itens de mais de
100 lojas virtuais foram monitorados no último semestre. ReclameAQUI Notícias, 23 nov. 2017.
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RECLAMAÇÕES passam de 9,8 mil na segunda pós-Black Friday: Sábado e domingo registraram
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84 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020
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UMA SEMANA após a Black Friday, atraso na entrega vira líder de reclamações: Finalização na
compra e propaganda enganosa também são citadas pelos consumidores. ReclameAQUI Notícias,
01 dez. 2017. Disponível em: https://noticias.reclameaqui.com.br/noticias/uma-semana-apos-
a-black-friday-atraso-na-entrega-vira-lider_3066/. Acesso em: 07 jun. 2019.
ZUBKO, Suzanna Borges de Macedo. “Black Friday” e os descontos enganosos, cuidado! Jusbrasil,
2016. Disponível em: https://suzannamacedo.jusbrasil.com.br/artigos/408557949/black-friday-
e-os-descontos-enganosos-cuidado. Acesso em: 19 jun. 2019.

Recebido em: 01.03.2020


Aprovado em: 09.03.2020

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SANTOS, Thayanny Teixeira. Práticas abusivas e publicidades enganosas na


Black Friday no contexto do direito do consumidor brasileiro. Revista Fórum de
Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 63-85, jan./abr. 2020.

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VOZ UNIVERSITÁRIA
Mediação como método adequado
de resolução de disputas aplicado
à solução de conflitos familiares e
seus reflexos no âmbito do judiciário
brasileiro

Juliana Melo Navarro


Graduada em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail:
julianamelonavarro@gmail.com.

Orientador: Leandro Rigueira Rennó Lima. Mediador, advogado, consultor, professor da PUC Minas,
coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito de Empresa e de Mediação de Conflitos
do IEC/PUC Minas, doutor pela Université de Versailles (França). E-mail: leandro.renno@pucminas.br.
Resumo: Trata-se de estudo referente à mediação, enquanto método adequado de resolução de
disputas, aplicado à solução de conflitos familiares e seus reflexos no âmbito do judiciário brasileiro. No
presente artigo, objetiva-se discutir por que a mediação seria o melhor método aplicável aos conflitos
de natureza familiar, expondo as peculiaridades desse tipo de conflito, bem como as características e
as vantagens da mediação. Tal empreendimento teorético-metodológico visa, ainda, a refletir acerca
da situação de sobrecarga do Poder Judiciário, em grande medida como decorrência da judicialização
dos conflitos familiares, e sobre os reflexos da aplicação da mediação aos referidos conflitos na esfera
judicial brasileira. Para tanto, propõe-se a revisitar a literatura jurídico-científica afeta às temáticas que
recortam o problema. Toma-se como ponto de partida o fato de que mediação, como política pública
disseminadora da cultura da pacificação no âmbito do judiciário, obteve avanços significativos em
território nacional, em virtude da Resolução nº 125 e das legislações, a saber, o Código de Processo
Civil e a Lei de Mediação, mas, ainda, está em evolução, sendo a mediação privada uma alternativa
para as famílias em situação de conflito. Assim, o estudo em tela tem o escopo de permitir a ampliação
do entendimento sobre o objeto.
Palavras-chave: Mediação. Resolução de disputas. Conflitos familiares. Poder Judiciário.
Sumário: Introdução – 1 Mediação: Aspectos gerais, técnicas e especificidades do método
que contribuem para a melhor solução dos conflitos familiares – 2 Conflitos familiares: natureza,
peculiaridades, posições interesses e necessidades – 3 Do judiciário brasileiro: legislação brasileira
de mediação e sua aplicabilidade – 4 Mediação como método adequado aplicado à resolução dos
conflitos familiares – 5 Conclusão – Referências.

Introdução
O presente trabalho consiste em um estudo que se debruça sobre a mediação,
método adequado de resolução de disputas, aplicado aos conflitos de natureza
familiar e os seus reflexos no âmbito do Poder Judiciário Brasileiro. A pesquisa é

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Juliana Melo Navarro

decorrente do aprendizado obtido no Curso de Extensão Introdução aos Estudos


da Mediação de Conflitos, bem como dos conteúdos apreendidos na disciplina
virtual Temas de Direito Processual: Mediação e Arbitragem, ambos ofertados pela
PUC Minas e lecionados pelo Prof. Leandro Rennó. O estudo, também, é fruto da
vivência no Grupo de pesquisa e estudos em Direito das Famílias e Sucessões, no
qual os debates e discussões apontavam para as peculiaridades envolvidas nos
conflitos familiares, dentre elas a intensa manifestação de afetos presentes nas
relações de família, o fato de que uma simples sentença judicial advinda de um
julgamento de terceiro não seria capaz de satisfazer as pretensões dos familiares.
Assim, parte-se da hipótese, nesse escrito, de que a mediação seria o método
adequado, facilitador do diálogo, permitindo o entendimento mútuo e o possível
acordo, originário das próprias partes envolvidas, satisfazendo suas prevenções
e, principalmente, preservando os vínculos.
A partir disso, a investigação em tela visou refletir acerca dos motivos pelos
quais a mediação é o melhor método para tratar e solucionar conflitos entre
familiares, com destaque para as características e vantagens do método e para
as peculiaridades dos conflitos familiares, que exigem tratamento diferenciado.
Expondo, ainda, os reflexos da mediação familiar no âmbito do Poder Judiciário,
com o auxílio da Resolução n. 125 de 2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
Código de Processo Civil (CPC) e a Lei de Mediação, que proporcionaram a adoção
da mediação como política pública de pacificação dos conflitos, incorporando-a
ao judiciário brasileiro e expandindo nacionalmente a sua prática. Nessa toada,
tanto a mediação privada quanto a mediação judicial são aplicáveis aos conflitos
familiares e proporcionam reflexos visíveis no Poder Judiciário, tais como a redução
de processos judiciais, desoneração do Estado, satisfação das partes e prevenção
de conflitos futuros. Assim, o presente artigo se justifica pela sua relevância em
abordar um tema contemporâneo de tamanha relevância.
Por fim, o artigo foi construído a partir da metodologia de revisitação da
literatura jurídico-cientifica afeta às temáticas que recortam o problema e da análise
de dados, sendo relevante pensar que o presente estudo proporciona reflexão
lançando luz à temática e trazendo à tona uma discussão contemporânea, servindo
de inspiração a futuros trabalhos.

1 Mediação: Aspectos gerais, técnicas e especificidades


do método que contribuem para a melhor solução dos
conflitos familiares
A Resolução Adequada de Disputas (RAD), também conhecida na língua inglesa
como Alternative Dispute Resolution (ADR), corresponde a um conjunto composto

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pelos mais diversos métodos1 de resolução de conflitos, os quais possuem


características específicas que se aplicam de acordo com a situação fática e o
contexto da disputa. A mediação é um dos métodos da Resolução Adequada de
Disputas (RAD), que, por suas especificidades, constitui o método mais adequado
a tratar, dentre outros conflitos, aqueles de natureza familiar.
O Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)
elucida de modo objetivo o conceito da mediação de conflitos, conforme dispõe
a seguir, in verbis:

A Mediação é um processo no qual um terceiro interveniente, o me-


diador, assiste as partes a chegarem a um acordo sobre a disputa. É
um processo informal e flexível com grande envolvimento das partes
na procura de uma solução para a disputa. (ICFML, [s.d], [n.p.])

Pelo exposto, fica clara a proposta da mediação enquanto um método


autocompositivo de resolução de disputas, no qual as partes em conflito contam
com o auxílio de um mediador, terceiro neutro e imparcial estranho às partes
e ao conflito, que irá atuar como um facilitador do diálogo, abrindo canais de
comunicação entre elas, de modo que os envolvidos no litígio tenham capacidade
de se comunicar e se compreender mutuamente, oportunizando-lhes o alcance de
soluções criativas para a disputa.
Logo, pela definição de mediação é possível verificar os seus vários elementos
constitutivos, que possibilitam às partes de um conflito familiar sanar de forma
conjunta e amigável as suas divergências, por meio da comunicação e do diálogo,
gerando uma melhora da relação entre os familiares em disputa. A ideia de a
mediação ser autocompositiva está intimamente ligada a esse protagonismo das
partes, que ao longo de todo o método possuem autonomia para propor soluções,
aceita-las, recusá-las ou simplesmente interromper o procedimento de mediação.
Ademais, a mediação é o método indicado aos casos em que há relação anterior
ao conflito e interesse na manutenção do vínculo entre as partes, como ocorre
em situações de conflitos de família. A mediação, também, é um procedimento
que respeita a autonomia da vontade das partes e preza pela confidencialidade,
oralidade, informalidade e celeridade, atributos esses que são indispensáveis ao
tratamento adequado das disputas no âmbito familiar.
O mediador de conflitos é, também, elemento de suma importância para
tratar os conflitos de natureza familiar, vez que se constitui enquanto um terceiro,

1
São métodos que compõem a Resolução Adequada de Disputas (RAD), a negociação, mediação, conciliação,
arbitragem, Práticas autocompositivas inominadas, além da Med‑Arb e outras hibridações de processos.
Mais informações sobre o tema vide: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6.
ed. Brasília, DF: CNJ, 2016. p. 17-26).

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escolhido pelas partes, que irá conduzir todo o procedimento de mediação, sem ter
relação direta com o conflito ou com os familiares em disputa, atuando de forma
neutra, imparcial e isenta, sendo um facilitador do diálogo das partes, abrindo os
canais de comunicação entre elas e auxiliando-as na compreensão recíproca e na
busca por soluções criativas e satisfatórias.
O Código de Ética de Mediadores do Conselho Nacional das Instituições de
Mediação e Arbitragem (CONIMA) define o mediador de conflitos da seguinte forma

O MEDIADOR é um terceiro imparcial que, por meio de uma série de


procedimentos próprios, auxilia as partes a identificar os seus confli-
tos e interesses, e a construir, em conjunto, alternativas de solução
visando o consenso e a realização do acordo. (CONIMA, [s.d.], [n.p.])

Vale destacar que para exercer a função de mediador conforme disposto


acima é necessária capacitação técnica e qualidades que todo bom mediador deve
possuir, como por exemplo, saber escutar ativamente, compreendendo não apenas
que é dito pelas partes mediadas, como também os seus gestos e expressões,
além de ser flexível, sincero, coerente paciente, deixando que a mediação flua
de acordo com a necessidade dos mediados, bem como demonstre empatia, o
que significa se colocar no lugar do outro, compreendendo-o, mas permanecendo
imparcial e independente.
O mediador, como profissional capacitado para o exercício da sua função,
dotado de todos esses atributos acima proporciona segurança e credibilidade
àqueles que optam por realizar este tipo de procedimento na busca de solucionar
seus conflitos. Assim, no âmbito das disputas familiares, em que as relações
encontram-se muitas vezes desgastadas e o diálogo é inviável, a atuação do
mediador é de extrema relevância, não apenas na busca de resolver o conflito,
como também para restaurar vínculos familiares perdidos ou comprometidos.
Durante todo o procedimento de mediação, o mediador faz uso de técnicas de
negociação, que serão escolhidas e aplicadas de acordo com o as necessidades
do conflito e de seus envolvidos, visando o êxito do procedimento. O rapport, a
escuta ativa, a recontextualização, a validação de sentimentos, o afago, a sessão
privada e a inversão de papéis, são algumas das técnicas utilizadas ao longo do
procedimento de mediação familiar na busca de solucionar os conflitos dessa
natureza, proporcionando a melhora da comunicação e consequentemente da
relação entre os mediados.
A técnica do rapport deriva do ramo da psicologia e é muito usada para
estabelecer uma ligação de sintonia, segurança, confiança e empatia entre os
mediados e o mediador. Nesse contexto, a aplicação do rapport significa fazer
com que as partes sintam-se respeitadas e tenham seus valores e pontos de

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vista compreendidos pelo mediador. O rapport não implica na obrigatoriedade de


o mediador aceitar tudo o que é exposto pelos litigantes ao longo da mediação,
mas sim em ouvi-las atentamente transmitindo confiabilidade e responsabilidade
em relação ao mediador e ao procedimento.
A escuta ativa exercida pelo mediador ao longo do procedimento é outra técnica
de destaque muito preciosa para mediar conflitos familiares, vez que, através dela,
as partes têm o conteúdo emocional do seu litígio compreendido e validado, recebem
a máxima atenção do mediador, não sofrem com pré-julgamentos e interrupções
de fala, possuem um ambiente propício para se expressar e serem ouvidos. O
uso de tal técnica ainda permite que os familiares mediados sintam-se à vontade
para expressar não apenas seus interesses como também seus sentimentos.
Além disso, a técnica da escuta ativa possibilita ao mediador fazer questio-
namentos às partes de maneira informal, esclarecer suas dúvidas, nomear seus
sentimentos, repetir o que foi dito por elas para verificar o seu entendimento,
bem como utilizar a linguagem corporal adequada, promover reflexão através do
silêncio e gerar empatia. Por outro lado, criada a conexão entre as partes e o
mediador por meio da escuta ativa não há espaço dentro da mediação para que o
mediador minimize emoções, aja como um psicólogo, aconselhe, julgue as partes
e imponha soluções.
A recontextualização, também conhecida como paráfrase, corresponde a uma
técnica em que o mediador realiza o esforço de estimular as partes litigantes a
observarem e compreenderem o conflito vivenciado no plano fático por uma ótica
mais reflexiva e positiva. O mediador em seu trabalho de provocar os mediados
a enxergarem, seja os interesses em discussão, seja um fato ou comportamento
sob outra perspectiva, proporciona um novo olhar sob a disputa, permitindo aos
familiares em conflito resignificar a situação vivenciada e encontrar soluções para
o litígio.
O mediador por meio da técnica de validação de sentimentos consegue
identificar e nomear os sentimentos que estão sendo expostos pelas partes
conflitantes, demonstrando o seu entendimento e empatia de forma neutra, assim
como validando a legitimidade daquele sentimento diante do contexto conflituoso
em que a parte se encontra inserida. No âmbito da mediação familiar, o presente
método possui notória expressão, pois sua natureza é de um conflito que envolve
muitos afetos e a consequente necessidade de expressá-los, na busca de soluções.
O afago é outra técnica de importante aplicação nas mediações familiares,
haja vista que por meio dela o mediador tem a oportunidade de incentivar as partes
mediadas a continuarem progredindo no diálogo, no espirito cooperativo adotado
ao longo do procedimento, na busca por ouvir e compreender o outro e em todas

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as outras posturas de cunho positivo que as partes optarem por adotar, visando
o sucesso da mediação.
O afago permite que qualquer atitude positiva, no sentido de colaborar com o
procedimento de mediação e buscar de soluções para os conflitos, que os familiares
litigantes tenham, seja validada e estimulada pelo mediador. No âmbito familiar, há
necessidade dos familiares em disputa terem este retorno afirmativo do mediador
para que eles percebam que estão seguindo em direção a resolução das suas
divergências e do fortalecimento dos seus vínculos familiares. A técnica ainda
evita que os familiares regridam na mediação, invocando mágoas e sentimentos
que obstem o diálogo saudável.
A sessão privada consiste em uma técnica em que apenas o mediador e uma
das partes do conflito permanecem na sala de mediação, na qual o mediador,
de modo imparcial, conversará com a parte, permitindo-a expressar emoções,
sentimentos, interesses, percepções, que não estaria à vontade para demonstrar
diante da parte contrária. É ideal que o mediador realize sessões privadas com
cada um dos conflitantes e com duração aproximada, quando necessário. A técnica
é importante para que o mediador conheça o interesse e as necessidades das
partes que podem ser ocultadas por elas ao longo do procedimento.
Por último, a técnica da inversão de papéis é comumente aplicada em
mediações familiares e prioritariamente durante as sessões privadas, nas quais
apenas uma das partes permanece na sala de mediação com o mediador. Nessa
ocasião, o mediador poderá, de forma neutra, provocar o familiar litigante a exercer
alteridade em relação a outra parte da disputa, o que significa que o profissional
convida o familiar a se colocar no lugar do outro e ver o conflito aos olhos dele,
com o escopo de se alcançar o entendimento.
Pelo exposto, as referidas técnicas são essenciais para que a mediação de
conflitos, em especial a mediação familiar, obtenha êxito. Todavia, cabe destacar
que o sucesso da mediação não está diretamente relacionado com a celebração de
um acordo entre os mediados, no sentido de que uma mediação será considerada
bem sucedida somente se houver acordo. Deve estar claro, ao se adotar o
procedimento de mediação, o entendimento de que o objetivo do método não é
necessariamente o acordo.
A mediação visa ampliar e melhorar os canais de comunicação entre as
partes, sendo o mediador um facilitador desse diálogo, para que as relações
anteriores ao conflito sejam preservadas e fortalecidas com o método, propiciando
melhor entendimento entre as partes e, por conseguinte, um acordo como meio
de formalizar a solução do conflito encontrada pelas próprias partes. Portanto,
fica nítido que o acordo não é objetivo da mediação e sim a sua consequência.

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

Portanto, cabe inferir que o acordo entre as partes é algo desejável que
se realize na mediação, de modo a colocar fim ao conflito, o que não significa o
sucesso do procedimento, uma vez que uma mediação bem sucedida passa pela
satisfação das partes, com a melhora do seu diálogo e relacionamento. Restaurada
a comunicação, as partes conversam a fim de solucionar a disputa, mas pode
ocorrer de não haver aceitação ou mesmo viabilidade das soluções propostas e
discutidas por elas, o que faz o acordo não surgir, mas ainda sim a mediação
será bem sucedida.

2 Conflitos familiares: natureza, peculiaridades, posições


interesses e necessidades
Os conflitos entre familiares possuem peculiaridades que os distinguem de
todos os demais conflitos existentes no âmbito social, em virtude da sua alta
complexidade, expressa na quantidade e intensidade de emoções e sentimentos
envolvidos, provenientes de vínculos anteriores a ele. O conflito familiar é de
natureza subjetiva, próprio da individualidade humana e intrínseco aos indivíduos
que compõem o seu núcleo.
A família, em seus mais variados modelos, é entidade em que seus membros
estão unidos por vínculos afetivos, que necessitam ser preservados diante da
ocorrência de um conflito. Casos de separações ou divórcios, dissolução de união
estável, bem como partilha de bens, guarda de filhos, estipulação de alimentos,
estabelecimento de horários de visitas, além de conflitos no exercício do poder
familiar e relativos à tutela e à curatela, e conflitos sucessórios entre herdeiros,
são exemplos de conflitos familiares.
Assim, considerando que os referidos conflitos carregam consigo uma forte
carga de sentimentos e emoções que não estão contidos em nenhum outro tipo
de disputa da mesma forma e com a mesma intensidade, eles podem ser fonte de
dor e sofrimento aos familiares envolvidos. Todavia, o conflito, de modo geral, não
possui conotação necessariamente negativa, não devendo ser aprioristicamente
associado à briga, perda, disputa ou litígio.
Nesse sentido, importa destacar que o cerne do conflito é de natureza
neutra, sendo a atribuição de caráter positivo ou negativo resultado da experiência
daqueles que vivenciaram o conflito. Assim, considerando que, em muitos casos,
o conflito é inevitável, há necessidade de que a sua abordagem seja amigável,
visando o seu tratamento e solução da melhor maneira possível. Por isso, deve-se
acostumar a associar o conflito com ideias tais como paz, consenso, acordo e,
principalmente, oportunidade.
Contudo, para além da discussão em torno da natureza do conflito, é
primordial o resgate do seu conceito. Sampaio e Braga Neto (2007) conceituam

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o conflito como “um conjunto de propósitos, métodos ou condutas divergentes,


que acabam por acarretar um choque de posições antagônicas, em um momento
de divergências entre as pessoas”.
O conflito expresso no choque de posições antagônicas como descrito no
conceito supra é, muitas vezes, resultado de relações que se desgastaram ao
longo do tempo em virtude de mudanças no comportamento, comunicação falha,
expectativas frustradas, valores divergentes, emoções e sentimentos manifestados
de maneira desmedida, assim como a expressão de interesses e percepções
incompatíveis.
Assim, visto que a raiz do conflito reside no desgaste das relações, espe-
cialmente quando se pensa em conflitos familiares, há necessidade de se evitar
a sua ampliação. Nesse sentido, existem etapas, pelas quais um conflito poderá
passar à medida que se amplia, a primeira delas é a prática de um fato ou ato,
a segunda são os desentendimentos, a terceira implica em agressões verbais e
a última se refere a agressões físicas, ponto extremo ao qual não se pode deixar
que o conflito atinja.
Os conflitos familiares comumente passam pelas referidas quatro etapas
do conflito se não forem tratados o quanto antes e o que exemplifica isso são
os crescentes casos de violência doméstica, envolvendo agressões verbais e
físicas. Logo, surge a necessidade de tratar e aprender a gerenciar os conflitos,
interpretando-os como uma oportunidade de se reavaliar a relação e enxergar o
que pode e deve ser melhorado.
As famílias possuem uma espécie de conflito muito peculiar em que os
sentimentos e emoções são intensos e devem ser considerados e tratados, por
meio de técnicas e do diálogo na busca de solucionar os empasses. Por essa razão,
a mediação surge como melhor alternativa, vez que atuará de modo a facilitar a
comunicação entre os familiares, tratando a lide social do conflito e auxiliando as
partes a compor, por meio do trabalho do mediador.
O mediador, durante a sessão de mediação, terá o trabalho de lidar com
o conflito familiar na busca de auxiliar as partes na autocomposição, por meio
de técnicas que facilitem o diálogo e a compreensão mútua. A identificação de
posições, interesses e necessidades dos familiares conflitantes pelo mediador é
essencial para o tratamento do conflito e sua consequente resolução.
Bastos define posição como “manifestações temporárias dos interesses em
forma de pedidos, propostas ou soluções”, bem como, conceitua interesses como
“manifestações temporárias das necessidades humanas. Podem mudar de acordo
com a necessidade prioritária do momento”, e ainda indica necessidade como
“perenes e estão presentes ao longo de toda existência dos indivíduos. Satisfeita
uma determinada necessidade, outras se tornam mais evidentes”.

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

De acordo com os conceitos supra, é perceptível que em uma mediação as


posições são as manifestações visíveis e superficiais com as quais o mediador
não deve lidar. O mediador, portanto, deve conduzir o procedimento para além
das posições estabelecidas pelas partes, de modo que os interesses sejam
manifestados e as necessidades das partes sejam reveladas e claras. A medição
precisa buscar alcançar as manifestações mais profundas das partes expressas
nas necessidades de cada uma delas.
Entretanto, a natureza complexa e dinâmica das relações familiares e
consequentemente de seus conflitos, que envolvem afetos provenientes de relações
anteriores e muitas vezes o desejo de mantê-las, impede que as necessidades
das partes venham à tona, fazendo com que elas tenham dificuldade de saírem
de suas posições.
Desse modo, é nítido que, em uma disputa familiar submetida ao contencioso
judicial, o juiz, ao analisar e julgar a causa, estará lidando com posições expressas
nos pedidos da petição inicial. Isso significa que o conflito familiar não será
considerado em toda sua complexidade e dinamicidade, sendo analisado apenas
de forma superficial pela ótica das posições.
Muito diferente é optar por buscar a solução do conflito familiar pela via
adequada de resolução de disputas através da mediação, que conforme já foi
exaustivamente trabalhado, contará com o auxílio do mediador como um facilitador
da comunicação entre as partes permitindo que se explore o conflito, para além
das posições apresentadas pelos familiares conflitantes, permitido a identificação
de suas necessidades.
Saber identificar as necessidades dos familiares em conflito é importantíssimo,
pois trabalhar a resolução do conflito baseado nas reais necessidades dos
familiares em desacordo, identificadas ao longo do procedimento de mediação,
trata o conflito em toda a sua complexidade, apresentando uma nova perspectiva
às partes e permitindo a composição. Desse modo, as chances de satisfação
das partes aumentam, tanto em relação ao possível acordo como também com
a mediação em si.
Assim, infere-se que as relações no âmbito familiar tendem a se desgastar
por inúmeros motivos ao longo dos anos, o que implica no surgimento de conflitos
de natureza subjetiva por envolverem múltiplos afetos que mascaram as reais
necessidades das partes deixando visível, apenas posições. A mediação surge
nesse contexto, como método que considera toda a amplitude do conflito familiar,
tratando e considerando todos os sentimentos e especificidades envolvidas,
identificando as necessidades das partes e proporcionando a composição e
satisfação dos envolvidos.

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3 Do judiciário brasileiro: legislação brasileira de mediação


e sua aplicabilidade
A legislação brasileira de mediação é composta pela Resolução nº 125 de
2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), bem como pela Lei nº 13.140/15,
conhecida como Lei de Mediação, e pelo Código de Processo Civil Lei nº 13.105/15.
Porém, vale ressaltar que, apesar do marco inicial de regulamentação da mediação
ter ocorrido no ano de 2010 com o advento da Resolução 125/2010, a mediação
já era praticada no Brasil como método de resolução de conflitos desde a década
de 90.
No que tange à Resolução nº 125 de 2010, produzida pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), importa abordar a sua extrema relevância para que houvesse o
desenvolvimento da mediação, bem como da conciliação no Brasil. Ela permitiu
que ocorresse um movimento mais intenso e efetivo de adoção tanto da mediação
quanto da conciliação no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, por meio dos
tribunais estaduais.
Com a Resolução nº 125/2010 do CNJ os métodos consensuais de resolução
de disputas tiveram o seu valor reconhecido pelo Estado, por meio da sua integração
ao Poder Judiciário. Assim, o Estado que, tradicionalmente possuía o monopólio
da resolução de disputas, através do processo judicial, passa a abrir espaço para
que os particulares possam compor por meio da mediação e conciliação.
Logo, é possível identificar o esforço em busca da superação do paradigma
da cultura da judicialização, cuja lógica é resolver os conflitos pela via do processo
judicial. Por outro lado, é nítida a procura pela consolidação do paradigma de
pacificação, no qual o próprio Estado reconhece que o Poder Judiciário deve ser
composto tanto pela via do processo judicial, quanto pela via consensual, em
que os métodos consensuais de resolução de conflitos, como a mediação e a
conciliação, permitem a autocomposição das partes.
Essa mudança de paradigma é extremamente relevante principalmente
quando se pensa em resolução de conflitos familiares, pois por sua natureza
envolvem relações dinâmicas e sentimentos de amor, ódio, raiva, ciúmes, entre
tantos outros que escondem as reais necessidades dos envolvidos e fazem com
que eles busquem a via do processo judicial para solucionar as suas controvérsias
sem necessidade ou até mesmo como forma de vingança privada.
Nesse sentido, o fortalecimento da cultura de pacificação oportuniza aos
familiares enxergarem novas e mais adequadas formas de resolução de disputas,
promovendo dessa forma, o acesso à Justiça. Assim, a Política Pública de Tratamento
Adequado de Conflitos determinada pela Resolução nº 125 de 2010, do CNJ visa
garantir não apenas o direito ao acesso à Justiça, conforme previsto no artigo 5º,
inciso XXXV, da CRFB/88, como também, acesso à ordem jurídica justa.

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

A Resolução nº 125 de 2010, do CNJ inaugurou esse novo cenário de


pacificação em busca da prevenção e solução de conflitos em escala nacional
quando dispõe que caberá ao Poder Judiciário o incentivo e o aperfeiçoamento
dos métodos consensuais de resolução de conflitos, por meio da implantação dos
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCS) nas comarcas,
bem como a capacitação e atualização dos profissionais destinados a atuarem
como mediadores e conciliadores.
Aliados à Resolução nº 125 de 2010, do CNJ, compõem a legislação Brasileira
de mediação, o Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/15 e a Lei de Mediação, Lei
nº 13.140/15, ambas publicadas no ano de 2015, portanto, legislações recentes.
O Código de Processo Civil (CPC/2015) aborda a mediação judicial, enquanto a
Lei de Mediação trata tanto da mediação judicial como da mediação extrajudicial.
As referidas legislações contemplam princípios aplicados à mediação, seja
ela judicial ou extrajudicial, tais como a imparcialidade do mediador, oralidade,
informalidade, autonomia da vontade e confidencialidade. A Lei nº 13.105/15
contempla ainda o princípio da independência e da decisão informada, ambos
aplicáveis a mediação judicial. Por outro lado, a Lei nº 13.140/15 aborda também
os princípios da isonomia entre as partes, a busca do consenso e a boa-fé aplicáveis
à mediação judicial e extrajudicial.
Vale destacar que antes mesmo dos princípios supracitados estarem
expressos na legislação eles já eram princípios aplicados à mediação. Os princípios
mencionados são essenciais para garantia da seriedade e confiabilidade do
método, permitindo que aqueles que o conheçam sintam-se seguros em adotá-lo
como forma de resolução de disputas. Por essa razão, a mediação é um método
alternativo ao processo judicial, permitindo tratar de modo mais atento a lide social
dos conflitos familiares.
Sobre a mediação, vale ressaltar ainda que, segundo a Lei de Mediação, se
trata de um método aplicável não apenas a casos que envolvam direitos disponíveis,
como também aos casos que envolvam direitos indisponíveis, desde que sejam
transacionáveis. A discussão sobre alimentos e guarda do filho menor são alguns
exemplos de direitos indisponíveis no âmbito dos conflitos familiares, dos quais não
há como dispor, mas somente transacioná-los. Não obstante, caso haja acordo na
mediação que envolva direitos indisponíveis, será obrigatória a sua homologação
em juízo, dada a oportunidade ao membro do Ministério Público para se pronunciar.
O Código de Processo Civil (CPC/2015) consagra a solução consensual de
controvérsias como regra para a solução de disputas quando impõe como um dos
requisitos da petição inicial a manifestação do autor da demanda pela realização
ou não de audiência de mediação ou conciliação, conforme consta no artigo 319,
inciso VII, do CPC/2015. Na contestação, o demandado, também, é chamado a

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Juliana Melo Navarro

manifestar seu interesse pela audiência de mediação ou conciliação, nos termos


do artigo 335, incisos I e II do CPC/2015.
Nesse contexto, ainda que apenas uma das partes do conflito manifeste ter
interesse pela realização da audiência de mediação ou conciliação, a primeira
sessão irá ocorrer, pois nela a parte que compareceu será esclarecida sobre o
procedimento e as propostas do método escolhido. Cabe inferir, que caso uma das
partes tenha optado pela mediação e ela não tenha se concretizado pela ausência
de aderência da parte adversa, nessa primeira sessão haverá a oportunidade
daquele que escolheu a mediação conhecer mais sobre o método e aplica-lo em
outra oportunidade.
O Código de Processo Civil (CPC/2015) em seu Capítulo X, Das Ações de
Família, dispõe que nessas ações todos os esforços serão empreendidos para
a solução consensual da controvérsia familiar, conforme disposto no artigo 694
do CPC/2015. Ao magistrado caberá ordenar a citação do réu para comparecer à
audiência de mediação e conciliação, nos termos do artigo 695 do CPC/2015, bem
como determinar a suspensão do processo enquanto os litigantes se submetem
a mediação extrajudicial, na forma do parágrafo único do artigo 694.
Os referidos artigos do Código de Processo Civil (CPC/2015) elucidam a
adoção de métodos consensuais de resolução de controvérsias como regra e
a via do processo judicial como exceção, ou seja, em regra deve-se buscar o
acordo, isto é, o consenso entre as partes em fase pré-processual e, apenas
caso as tentativas pela via consensual sejam frustradas, deve-se recorrer à via do
processo judicial, o que não impede que, ao longo do processo, sejam tentadas
novas possibilidades de acordo pelas próprias partes, seus advogados, pelo juiz
e membro do ministério Público, se houver.
Cabe dizer ainda, que ao longo de toda a redação do Código de Processo Civil
(CPC/2015) e, principalmente na parte referente às ações de família, há referências
às audiências de conciliação e mediação. Contudo, a expressão “audiência de
conciliação e mediação” é utilizada na legislação como se ambos os métodos
fossem ser necessariamente realizados e sem estabelecer diferenciação entre
eles, o que não é correto, vez que cada método adequado possui particularidades,
aplicáveis a tipos específicos de conflito.
A conciliação, por exemplo, é o método ideal aplicável aos casos em as partes
conflitantes não tenham uma relação anterior e desejo de manter vínculos. Muito
diferente da mediação, a qual é aplicada àqueles conflitos em que há relação
anterior entre as partes, bem como interesse e necessidade de manutenção dos
vínculos entre elas, como é o caso das disputas familiares. Nesse sentido, o Poder
Judiciário faz uma triagem dos casos que são submetidos a ele e encaminha para
a realização do método mais indicado para cada caso.

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

Mas o fato é que, seja por falha nesse sistema de triagem, seja pela busca
por maior agilidade na solução dos casos que batem às portas do judiciário, a
conciliação tem sido o método mais adotado, inclusive para casos em que o
procedimento adotado deveria ser a mediação, como é a situação dos conflitos
de família. O relatório A Justiça em Números de 2019 e produzido anualmente
pelo CNJ, comprova isso quando relata que,

(…) conciliação é uma política adotada pelo CNJ desde 2006, com
a implantação do Movimento pela Conciliação em agosto daquele
ano. Anualmente, o Conselho promove as Semanas Nacionais pela
Conciliação, quando os tribunais são incentivados a juntar as partes
e promover acordos nas fases pré-processual e processual. Por inter-
médio da Resolução CNJ 125/2010, foram criados os Centros Judi-
ciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) e os Núcleos
Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NU-
PEMEC), que visam fortalecer e estruturar unidades destinadas ao
atendimento dos casos de conciliação. (CNJ, 2019, p. 142)

O trecho extraído do relatório A Justiça em Números de 2019 traça o cenário


de um Poder Judiciário mais inclinado à promoção e realização de audiências de
conciliação. O referido relatório expõe os dados do judiciário brasileiro anualmente
e, no referido ano, trouxe um capítulo específico referente ao índice de conciliação,
conferindo, portanto, destaque ao método sem fazer o mesmo com a mediação.
Logo, o que se verifica é a aplicação do método de conciliação em inúmeros
casos, incluindo casos como os de natureza familiar, em que o ideal seria o seu
tratamento por meio da mediação. A justificativa desse fenômeno, como exposto
anteriormente, consiste em possíveis equívocos na triagem e na busca por agilidade
na solução das demandas judiciais, de modo a diminuir a sobrecarga de processos
no Poder Judiciário.
A agilidade no intuito de finalizar a demanda por meio da conciliação tem
base em seu objetivo exclusivo de realizar acordo, que é obtido com o auxílio
do conciliador, que é terceiro sem formação especifica para o desempenho da
função e que pode sugerir soluções ao longo no procedimento. Em que pese tais
características confiram maior celeridade, o acordo resultante desse procedimento
não é garantia de real solução da controvérsia.
A mediação, por sua vez, também, é procedimento célere, mas não tem o
objetivo de realizar acordo, que é visto apenas como uma possível consequência de
um procedimento que visa a facilitação do diálogo entre as partes conflitantes, para
tratamento adequado do conflito. Sendo o mediador um terceiro com capacitação
específica para atuação na área, que não intervirá sugestionando em nenhum
momento, atuando apenas na abertura dos canais de comunicação entre as partes,
cabe as próprias partes comporem o conflito.

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Juliana Melo Navarro

Nessa toada, como a conciliação objetiva o acordo e o conciliador pode


ser qualquer pessoa, inclusive estagiários, que passam por um simples curso
capacitante, esse método acaba sendo utilizado pelos Tribunais de Justiça por
meio dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) a fim
de finalizar as demandas com mais agilidade. Todavia, isso não significa resolver
o conflito, vez que, quando utilizada em conflitos incompatíveis com o método,
como é o caso dos conflitos familiares, nuances dessa disputa deixam de ser
observadas e a sua efetiva solução não é adequadamente alcançada.

4 Mediação como método adequado aplicado à resolução


dos conflitos familiares
Na contemporaneidade, a entidade familiar é reconhecida em sentido amplo,
isto é, os seus múltiplos arranjos passaram a contar com a proteção do Direito
de Família, fazendo surgir a nomenclatura Direito das Famílias, que adquiriu força
doutrinária e jurisprudencial. Dessa forma, as mais diversas configurações de
famílias, que agora gozam de tutela estatal, estão unidas por características em
comum, tais como, a igualdade, a democracia e a liberdade entre seus membros,
sendo funcionalizadas, ou seja, proporcionando o livre desenvolvimento da
personalidade de cada um dos seus integrantes, sendo ainda, eudemonista e plural.
No contexto das famílias atuais, detentoras das referidas características, a
afetividade emerge como elemento de conexão entre os seus membros, estabe-
lecendo fortes vínculos entre eles. Vínculos esses, que envolvem sentimentos e
emoções intensas, o que não significa que as famílias estão imunes de situações
conflituosas em seu âmbito. O desgaste das relações, provocados por inúmeros
motivos, mas principalmente por mudanças e pela falha na comunicação é fonte de
conflitos que, em alguns momentos, podem ser prevenidos e evitados, enquanto,
em outros casos, são inevitáveis.
Nesse sentido, os conflitos familiares podem evoluir de meros desentendi-
mentos, ultrapassando a esfera familiar doméstica, para chegar ao Poder Judiciário.
Bons exemplos disso são os casos de divórcio, separação e dissolução de união
estável, que envolvem o rompimento do vínculo de companheirismo entre um casal,
além de discussão sobre o cabimento e valor dos alimentos ao filho, ex-cônjuge
ou companheiro, questões afetas ao tipo de guarda que será estabelecida, dias
e horários de visitação, divisão patrimonial, podendo existir, também, conflitos
relativos a tutela e curatela, bem como conflitos em torno do direito sucessório
entre herdeiros.
Logo, verifica-se que o conflito familiar vem acompanhado tanto de questões
objetivas relativas a aspectos patrimoniais representadas pela necessidade de
divisão de bens e definição de valores quantitativos, quanto de questões de cunho

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

subjetivo relativas aos afetos intrínsecos às relações familiares e consequentemente


aos conflitos que as envolve. Por óbvio, o conflito dessa natureza será mais
complexo, pois não estão em pauta apenas questões objetivas e sim questões
afetas ao ser, sua individualidade e intimidade, que são extremamente subjetivas.
O subjetivismo trazido pelos afetos na esfera das relações familiares
frequentemente se manifesta na forma de sentimentos e emoções, muitas vezes
intensos, que escondem os reais interesses e necessidades do familiar, dificultando,
ainda, a possível solução de aspectos práticos objetivos de direito. Verifica-se que
os afetos em um conflito dessa natureza contribuem para que a disputa adquira
maior complexidade e para que sua eventual judicialização seja uma forma de
satisfação pessoal daquele que venha a figurar como autor em face da parte ré,
promovendo uma espécie de vingança privada, alimentando a cultura do litígio.
Isto posto, o Poder Judiciário Brasileiro sofre com os reflexos da judicialização
dos conflitos familiares. Dado exemplificativo é a porcentagem de 63% (sessenta e
três por cento) das varas exclusivas da área de Direito de Família congestionadas,
segundo informação do relatório Justiça em Números de 2019, produzido pelo
CNJ anualmente. Desse modo, além, da sobrecarga de processos no âmbito do
Poder Judiciário, o que implica em aumento da despesa estatal e em demora
considerável na entrega da prestação jurisdicional, cabe lembrar que nem sempre,
esta sentença será satisfatória às partes.
A satisfação das partes com o a decisão proferida em juízo nem sempre ocorre,
pelo fato de ser fruto de um julgamento de terceiro, que embora seja imparcial
e isento, julga nos limites dos pedidos formulados petição inicial, na qual está
presente a expressão das posições dos familiares conflitantes e não a profundidade
de seus interesses e, principalmente, suas reais necessidades. Ademais, o
magistrado no processo judicial não trabalha com os afetos característicos dos
conflitos entre familiares, não lhes oferecendo validação, se restringindo a julgar
conforme o Direito.
Sendo assim, a insatisfação com a sentença proferida interfere, inclusive, em
uma possível dificuldade da parte sucumbente em cumprir com o que foi determinado
pelo julgador. Nesse contexto, em que o processo judicial dificilmente soluciona
os conflitos familiares de forma satisfatória aos envolvidos, percebe-se que a ele
cabe a solução de questões de direito, não oferecendo a melhor resposta aquelas
disputas que possuem, também, cunho afetivo entre as partes. Destarte, existem
outros métodos de resolução de disputas que são formas alternativas ao Poder
Judiciário, que se aplicam melhor a cada tipo de conflito.
Dessa forma, o método mais adequado ao tratamento e solução dos conflitos
familiares é a mediação. O método teve sua origem em culturas como a indígena,

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020 103
Juliana Melo Navarro

islâmica, budista, cristã, hinduísta, judaica e confucionista, em tempos longínquos.2


Não obstante, desde 1949, a China aplica a mediação aos conflitos familiares,
enquanto nos Estados Unidos, os primeiros registros da mediação familiar se deram
no ano de 1974.3 O professor de Harvard, Frank Sander, em 1976, pregava pela
“Variedade de Processos de Resolução de Disputas”, revolucionando esse cenário
e impulsionando a mediação familiar, que, em alguns estados norte-americanos,
se tornou obrigatória.4
A mediação familiar se estendeu a outros países, como França, Japão, Israel,
Austrália, chegando a América do Sul em países como Colômbia, Bolívia e Argentina
e posteriormente ao Brasil.5 Destaca-se que, em 1989, o Brasil recebe a mediação
pela vertente do modelo francês, em São Paulo, e o Sul do país recebe a mediação
através da Argentina, pela vertente estadunidense, no início da década de 90.6
Desde então, a mediação familiar vem se desenvolvendo e ganhando espaço e
força no cenário nacional.
A experiência da mediação familiar e sua expansão por diversos países
demonstram o seu êxito, fruto das inúmeras vantagens proporcionadas pelo método
àqueles que optam por ele. Isto posto, a mediação é notadamente o método
adequado melhor aplicável para o tratamento e resolução dos conflitos familiares,
pois através dela os familiares em disputa, sejam eles cônjuges, irmãos, pais ou
pessoas em qualquer outra escala de parentesco, possuem a oportunidade tanto
de resolver o seu conflito, quanto de prevenir conflitos futuros.
Ademais, o procedimento de mediação oferece aos familiares litigantes um
ambiente amigável, permitindo a sua reaproximação. Nesse espaço, o mediador
atuará estimulando o espírito cooperativo entre as partes, abrindo os canais de
comunicação entre elas, possibilitando o diálogo saudável, que em muitos casos
fora perdido ao longo da disputa. Durante as sessões de mediação, é ideal que
os familiares se expressem de forma ampla, expondo seus afetos, que devem ser
validados pelo mediador, e deixando claras as suas reais necessidades.
Tais aspectos da mediação são de extrema relevância quando se pensa, por
exemplo, em um casal com filhos incapazes que esteja se divorciando, pois nesse

2
FALECK, Diego; TARTUCE, Fernanda. Introdução histórica e modelos de mediação. In: TOLEDO, Armando
Sérgio Prado de; TOSTA, Jorge; ALVES, José Carlos Ferreira. Estudos Avançados de Mediação e Arbitragem.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 171-189.
3
GONÇALVES, Hebe Signorini; BRANDÃO, Eduardo Ponte (Org.). Psicologia jurídica no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nau, 2004.
4
FALECK, Diego; TARTUCE, Fernanda. Introdução histórica e modelos de mediação. In: TOLEDO, Armando
Sérgio Prado de; TOSTA, Jorge; ALVES, José Carlos Ferreira. Estudos Avançados de Mediação e Arbitragem.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
5
GONÇALVES, Hebe Signorini; BRANDÃO, Eduardo Ponte (Org.). Psicologia jurídica no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nau, 2004.
6
FALECK, Diego; TARTUCE, Fernanda. Introdução histórica e modelos de mediação. In: TOLEDO, Armando
Sérgio Prado de; TOSTA, Jorge; ALVES, José Carlos Ferreira. Estudos Avançados de Mediação e Arbitragem.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

conflito estão presentes questões de cunho patrimonial, relativas à partilha de bens


do casal de acordo com seu regime de casamento e valores quantitativos referentes
aos alimentos, assim como questões subjetivas expressas em sentimentos e
emoções tais como mágoa, raiva, desejo de vingança, amor, ódio, entre outros,
que caso não sejam tratados prejudicam não apenas os filhos que passarão a viver
em um ambiente de discórdia e disputa, como também, questões patrimoniais,
que podem ser usadas como forma de punir o outro, na busca de deixá-lo com
menos do que ele teria direito.
Tendo em vista o referido exemplo, clara está ideia de que a mediação propicia
às partes, familiares em conflito, o resgate do diálogo saudável, no qual pontos de
vista são expostos, os afetos são trabalhados, assim como as posições expressas,
os interesses identificados e as reais necessidades descobertas. A reaproximação
dos familiares auxilia na reconstrução do vínculo entre eles, o que é relevante, vez
que ainda que cônjuges passem a ser ex-cônjuges, continuarão sendo pais dos
filhos que têm em comum, permanecendo unidos no exercício do poder familiar.
Nesse cenário, a busca pelo melhor interesse do filho incapaz é algo fortemente
trabalhado pelas partes em questões relativas ao tipo de guarda a ser adotada,
aos horários de visita que serão escolhidos de acordo com a disponibilidade
dos pais e valores dos alimentos combinados de acordo com a necessidade e a
possibilidade de cada um deles. Dessa forma, a mediação, através da facilitação do
diálogo das partes e da aplicação de diversas técnicas mediativas pelo profissional
competente, consegue tratar o conflito familiar em todas as suas nuances, sejam
elas subjetivas, expressas em afetos, sejam elas patrimoniais.
Vale lembrar que a mediação objetiva facilitar o diálogo e restaurar vínculos
comprometidos, o que já representa um grande ganho para familiares em conflito,
vez que a reaproximação das partes é o primeiro passo para solucionar as disputas,
além de representar êxito no tratamento dos afetos. Por outro lado, caso ainda
haja acordo, significa que as próprias partes chegaram a um consenso, o que gera
maior possibilidade de cumprimento da decisão, pois é uma decisão construída
fruto do diálogo, da colaboração e do entendimento entre as partes, o que, também,
gera uma maior satisfação aos envolvidos.
Infere-se, portanto, que a mediação além de proporcionar um menor desgaste
emocional aos familiares conflitantes, se comparada ao processo judicial, vez
que nela os afetos são validados e tratados, a mediação agrega, ainda, outras
vantagens aos seus adeptos. Trata-se do fato de ser um método menos oneroso,
mais participativo, no qual as partes possuem total protagonismo na busca e criação
de soluções para os seus conflitos, sendo o mediador condutor e facilitador desse
procedimento. Além disso, é um método praticado em sessões (quantas forem
necessárias), obtendo mais rapidez do que o processo judicial.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020 105
Juliana Melo Navarro

A mediação conta, ainda, com a vantagem de ser um método sigiloso, não


provocando a exposição dos familiares e seus conflitos, entre si e ao mundo
exterior, salvo autorização das partes envolvidas. Outra vantagem refere-se ao
fato da mediação ser um procedimento voluntário, em que prevalece a autonomia
da vontade das partes, isto é, caso os familiares optem por fazê-la, possuem a
prerrogativa de desistir da realização das sessões de mediação a qualquer tempo.
Porém, caso decidam por continuar a mediação iniciada, as partes possuem
autonomia para discutir, propor soluções, aceitá-las ou rejeitá-las de acordo com
seu juízo de conveniência e oportunidade.
Atento ao êxito da prática da mediação como forma de resolução de conflitos,
em especial de conflitos de natureza familiar, o Poder Judiciário incorporou a
mediação como seu método parceiro na resolução de disputas judiciais. Tal
fenômeno foi possível devido a criação da Resolução nº 125 de 2010 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), que visou cumprir com os objetivos estratégicos do
Poder Judiciário na busca por gerar maior agilidade e eficiência na solução das
demandas. A mediação judicial revelou, portanto, uma aderência do Estado à
demanda atual por tratamento adequado dos conflitos de acordo com a sua
natureza e peculiaridades, permitindo inclusive a ampliação do acesso à justiça
e a ordem jurídica justa.
Consequência desse movimento do judiciário nacional consistiu na criação dos
Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) pelos Tribunais
de Justiça dos estados brasileiros, os quais são responsáveis pela triagem e
realização de audiências de mediação, conciliação e orientação do cidadão. A
Lei de Mediação e, principalmente o Código de Processo Civil (CPC/2015), são
legislações posteriores à Resolução nº 125 de 2010 do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), que também contribuíram para a adoção e realização da mediação
judicial em conflitos familiares, tanto em fase pré-processual nos Centros Judiciais
de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), como ainda no curso do processo
judicial.
Com base nisso, fica nítida a busca do Poder Judiciário por eliminar a
cultura do litígio e disseminar o paradigma da cultura da pacificação, por meio da
incorporação de métodos consensuais de resolução de conflitos e sua prática no
âmbito dos Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) em
todo o país. Todavia, a realidade da prática dos Centros Judiciais de Solução de
Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) demonstra que ainda são necessários avanços,
pois o relatório Justiça em Números 2019, produzido pelo CNJ oferece destaque à
prática da conciliação no âmbito do judiciário, enquanto a mediação não é cotada
com relevância no relatório, vez que os seus dados não são sequer informados.

106 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020
Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

Ora, há conflitos que pela natureza e peculiaridades necessitam da aplicação


da mediação como método consensual de resolução de disputas, como é o caso do
conflito entre familiares. Ocorre que tais conflitos submetidos aos Centros Judiciais
de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) têm passado por audiências de
conciliação e não por audiências de mediação como seria o ideal. O problema decorre
de falha na triagem, bem como do próprio texto do artigo 649 do CPC/2015 que
abre espaço para realização de audiências de mediação e conciliação em ações
de família, além da busca do judiciário brasileiro por agilidade na resolução das
disputas, em razão da elevada demanda familiar, aplicando a conciliação a esses
conflitos para garantir maior celeridade.
Diante do cenário apresentado, cabe validar os esforços do Poder Judiciário em
promover a mediação judicial como sua parceira, porém destacando a necessidade
de profundos avanços e aperfeiçoamento do trabalho até então realizado. Isto
posto, a mediação privada ou extrajudicial realizadas pelas câmaras privadas de
mediação, é excelente alternativa para aqueles familiares em conflito que dispõe
de informações sobre o método e recursos financeiros para realizá-lo.
A mediação privada destaca-se exatamente pela vantagem de não ser
necessário levar o conflito ao Poder Judiciário, exceto nas hipóteses de conflitos
que tratem de direitos indisponíveis tais como alimento ao filho, guarda e visitação,
necessária a homologação judicial. A mediação extrajudicial ocorrerá de acordo com
a disponibilidade dos seus interessados e poderá durar quantas sessões forem
necessárias, obtendo tratamento e consequentemente as soluções mais rápidas
para o conflito, o que interessa muito aos familiares conflitantes que querem o
menor desgaste emocional possível.
A mediação privada conta, ainda, com custos previsíveis, fáceis de serem
controlados e até mesmo inferiores aos custos do judiciário, quando se fala em
processo contencioso, que inclusive pode se estender por anos. O fato de privilegiar
a privacidade, a autonomia da vontade das partes, ofertando-as a oportunidade de
ter controle sobre o procedimento e a sua decisão, bem como poder ser realizada
a qualquer momento e independentemente de processo judicial em curso, faz
da mediação privada excelente alternativa às famílias, além de todas as outras
vantagens comuns à mediação.
Os reflexos desse fenômeno ao Poder Judiciário são vários. O primeiro deles
se refere a diminuição do número de processos judiciais, reduzindo a sobrecarga
de processos na esfera judicial, especialmente nas Varas de Família, gerando
maior agilidade e eficiência na prestação jurisdicional dos casos que realmente
precisam ser judicializados. Cabendo inferir que até mesmo a criação dos Centros
Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) corresponde a uma forma
de transferir as demandas judicializadas a centros em que serão aplicados métodos

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020 107
Juliana Melo Navarro

consensuais de resolução de disputas, a partir da vontade das partes, o que não


tira efetivamente do judiciário a sua sobrecarga.
Ademais, a satisfação das partes familiares com os resultados obtidos em
uma mediação, em especial em uma mediação privada é muito maior, em virtude
do controle que elas possuem sobre o procedimento, desde a escolha da câmara
e do mediador até a decisão sobre o possível acordo entre elas. A mediação
privada, ainda, desonera o Estado, que não terá gastos que teria com processos
relativos a conflitos de particulares familiares que tem condições de arcarem
financeiramente com a solução da sua disputa. Assim, o Estado deve deixar a
cargo dos particulares a resolução de seus conflitos, se ocupando apenas de
conflitos em que há necessária intervenção judicial, bem como aqueles em que
há particulares hipossuficientes.
Destarte, para que a mediação seja adotada em maior escala para tratamento
e solução de conflitos familiares e tal procedimento gere efeitos positivos, inclusive
na esfera judicial, como exposto acima, é essencial que sejam disseminadas
informações referentes à proposta, características e vantagens do método. Nesse
sentido, o advogado exerce papel relevante ao orientar os seus clientes expondo-lhes
alternativas consensuais de resolução de disputa.
O bom advogado possui função de destaque ao sugerir ao familiar em conflito
a mediação como alternativa, propagando a cultura da pacificação, proporcionando
satisfação ao cliente e auxiliando na redução de conflitos familiares judicializados. O
familiar bem informado, assim, tende a busca a mediação como forma de resolução
de seus conflitos para garantir o menor desgaste emocional possível e a maior
satisfação, refletindo em benefícios práticos ao Poder Judiciário.

5 Conclusão
Do estudo realizado, depreende-se que a mediação consiste no método
adequado de resolução de disputas melhor aplicável ao tratamento e solução dos
conflitos de natureza familiar, haja vista tratar todas as nuances da divergência
familiar, atuando na facilitação do diálogo entre as partes, reaproximando-as e
fortalecendo o vínculo entre elas, considerando os seus afetos, validando-os e
propiciando o acordo.
Verificou-se que, dada sua relevância, a mediação foi incorporada pelo Poder
Judiciário com o status de método parceiro e instrumento efetivo de pacificação
social, garantindo acesso à justiça e à ordem jurídica justa. Para tanto, foram criados
os Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), os quais se
propõem a realizar audiências de mediação e conciliação, de acordo com o conflito,
mas que, na realidade, praticam conciliações de forma indistinta, inclusive em
casos de disputas familiares em que a mediação seria o método mais adequado.

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Mediação como método adequado de resolução de disputas aplicado à solução de conflitos familiares...

Constatou-se, portanto, essa falha na atuação dos CEJUSCs, oriunda da


possível falha na triagem, da redação do Código de Processo Civil e da busca por
uma resolução de disputas em tempo ainda mais reduzido e de forma simples.
O presente cenário em que se insere a mediação judicial inspira a adoção da
mediação privada ou extrajudicial, a qual conta com vantagens ainda maiores tanto
para os familiares quanto para o judiciário brasileiro.
Nesse sentido, os reflexos da mediação no âmbito do Poder Judiciário
brasileiro são muitos, promovendo a redução do número de conflitos familiares
judicializados, diminuído por consequência o volume de processos presentes nas
Varas de Família, além de gerar menos gastos ao Estado e oportunizar maior
satisfação dos familiares, que, além de fortalecer os seus vínculos, podem obter
um acordo fruto do diálogo e da cooperação entre as partes, aumentando, inclusive,
as chances de cumprimento do acordo firmado.
Assim, o presente estudo não tem a pretensão de fazer conclusões cabais,
mas, sim, fazer considerações, análises e críticas, de modo a estimular o debate
e servir como ponto de partida para futuros trabalhos a serem desenvolvidos
acerca desta temática.

Mediation as an appropriate method of dispute resolution applied to the solution of family conflicts
and their reflections within the Brazilian judiciary
Abstract: This is a study on mediation, as an appropriate method of dispute resolution, applied to the
resolution of family conflicts and its consequences in the Brazilian judiciary. This paper aims to discuss
why mediation would be the best method applicable to family conflicts, exposing the peculiarities of
this type of conflict, as well as the characteristics and advantages of mediation. This theoretical and
methodological undertaking also aims to reflect on the situation of overload of the judiciary, largely as
a result of the judicialization of family conflicts, and the reflexes of the application of mediation to such
conflicts in the Brazilian judicial sphere. To this end, it proposes to revisit the legal-scientific literature
affects the themes that cut the problem. The starting point is the fact that mediation, as a public policy
that disseminates the culture of pacification within the judiciary, has made significant progress in
the national territory, by virtue of Resolution nº 125 and the laws, namely the Code of Civil Procedure
and the Mediation Law, but it is still evolving, with private mediation being an alternative for families
in conflict. Thus, the study on screen has the scope of allowing the broadening of the understanding
about the object.
Keywords: Mediation. Dispute resolution. Family conflicts. Judicial Power.

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R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020 111
Juliana Melo Navarro

Recebido em: 09.02.2020


Aprovado em: 09.03.2020

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NAVARRO, Juliana Melo. Mediação como método adequado de resolução de


disputas aplicado à solução de conflitos familiares e seus reflexos no âmbito
do judiciário brasileiro. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte,
ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020.

112 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 89-112, jan./abr. 2020
EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
Los registros públicos de beneficiarios
finales en Argentina: avances y
retroceso de un proceso inconcluso1

Maria Eugenia Marano


Universidad de Belgrano, Buenos Aires, Argentina.
https://orcid.org/0000-0003-0458-0738.

Resumen: El objetivo del presente trabajo es analizar la importancia y necesidad de contar con información
precisa y actualizada de los reales beneficiarios finales de las personas y estructuras jurídicas. Su llegada
a la legislación nacional y al derecho societario. Evolución del concepto. Relación con la criminalidad
económica. Sujetos obligados a recabar información, modo en que lo hacen. Organismo de control y
registro. El beneficiario final en la práctica. El beneficiario final en las sociedades extranjeras. Que ocurre
con los llamados “testaferros”. El Registro nacional de sociedades. Conclusiones, avances y retrocesos.
Palabras-clave: Beneficiario final. Legislación. Umbral.
Sumário: 1 Introducción – 2 La Unidad de Información Financiera – 3 La identificación del beneficiario
final en la práctica – 3.1 El Banco Central y las entidades financieras – 3.2 Organismos de fiscalización
de personas jurídicas y registros públicos de comercio – 3.3 Inspección General de Justicia (IGJ) –
3.4 Dirección de Personas Jurídicas de la Provincia de Buenos Aires – 3.5 Inspección General de
Justicia de Tierra del Fuego – 3.6 Registro Público de Estructuras Jurídicas: Contratos de Fideicomisos
– 3.7 Comisión Nacional de Valores – 3.8 Superintendencia de Seguros de la Nación (SSN) – 3.9 Las
sociedades extrajeras – 3.10 El Registro Nacional de Sociedades – 3.11 Los beneficiarios finales y
los testaferros – 4 Conclusiones.

1 Introducción
Ocultar la identidad de los verdaderos dueños de las empresas es una maniobra
recurrente entre quienes buscan evadir impuestos, esconderse de los organismos
de control, eludir a la justicia y dificultar investigaciones. Las acciones diseñadas
para mantener fuera del alcance de las autoridades regulatorias la identidad de las
personas humanas que, en última instancia, controlan las compañías, facilita, en
muchos casos, el lavado de dinero obtenido de actos ilícitos como la corrupción,
el narcotráfico, la trata de personas y diversas violaciones de los derechos
humanos. Las recientes megafiltraciones de información financiera dejaron al

1
“Elaborado y publicado originalmente por el Programa de Integración Regional y Financiamiento para el
Desarrollo de Fundación SES – Preparado en el marco de la 5ta Conferencia Internacional sobre Registros
públicos de beneficiarios finales de personas jurídicas y su vinculación con la corrupción, el lavado de
activos y la evasión fiscal”.

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Maria Eugenia Marano

descubierto el extendido (ab)uso de complejas estructuras societarias. Panama


Papers, Swiss Leaks, Paradise Papers, Bahamas Leaks o Luxleaks pusieron en
evidencia la existencia de una industria dedicada a montar diversas estructuras
societarias conformadas mediante entramados multijurisdiccionales que incluyen
sociedades en guaridas fiscales2 y jurisdicciones opacas con el objetivo de ocultar
la identidad de los verdaderos dueños de las empresas y explotar zonas grises en
las legislaciones. Establecer leyes, regulaciones, normativas y mecanismos para
recoger e intercambiar información sobre los “beneficiarios finales” de las empresas
es condición necesaria para combatir los flujos financieros ilícitos.
El concepto del “beneficiario final” refiere al individuo o los individuos que,
en última, instancia controlan o se benefician económicamente de una estructura
jurídica. Los beneficiarios finales siempre serán personas humanas. A partir de las
recomendaciones elaboradas por los organismos internacionales como el Grupo
de Acción Financiera Internacional (GAFI) cada país establece su propia definición
sobre quiénes son los “beneficiarios finales” así como los mecanismos sobre qué
información recolecta, cómo se realiza el proceso y dónde almacena la información
referida a los verdaderos dueños de las sociedades. El GAFI define al beneficiario
final como aquella(s) persona(s) natural(es) que finalmente posee o controla a un
cliente y /o a la persona física en cuyo nombre se realiza una transacción. Incluye
también a las personas que ejercen el control efectivo final sobre una persona
jurídica y otra estructura jurídica.
Los organismos como el GAFI ofrecen desde comienzos de los años noventa
un conjunto de pautas y guías para que los países establezcan los procedimientos
necesarios para garantizar su cumplimiento de la manera más certera posible.
A pesar de las sucesivas modificaciones y actualizaciones introducidas a lo
largo de las últimas tres décadas, las recomendaciones del organismo sostienen
que “los países deben tomar medidas para impedir el uso indebido de las personas
jurídicas para el lavado de activos o el financiamiento del terrorismo. Los países
deben asegurar que exista información adecuada, precisa y oportuna sobre
el beneficiario final y el control de las personas jurídicas, que las autoridades
competentes puedan obtener o a la que puedan tener acceso oportunamente (…)”.
Kenia, Uruguay, Sudáfrica, Costa Rica, Alemania, Ucrania, Dinamarca,
Lituania y el Reino Unido son algunos de los países que cuentan con registros de

2
Los guaridas fiscales, conocidas erróneamente como “paraísos fiscales”, son territorios que permiten a
personas humanas y jurídicas eludir normas, leyes y regulaciones. Entre las características que exhiben
esas jurisdicciones se destaca la baja o nula tributación que, mediante normas específicas internas,
garantizan la opacidad de las transacciones, con la ausencia absoluta de registros, formalidades y controles.
El elevado grado de opacidad impide estimar las fortunas que se administran a través de la red global de
guaridas fiscales. Otra característica particular es la extraterritorialidad, refiere a que el objeto no puede
cumplirse dentro de la jurisdicción de origen.

116 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020
Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

beneficiarios finales de las empresas. Los listados no siempre están disponibles


para ser consultados por el público y tampoco está garantizada la verificación de
la información, pero las iniciativas facilitan que las autoridades fiscales y judiciales
identifiquen a los verdaderos dueños detrás de las complejas y opacas estructuras
montadas a través de distintas guaridas fiscales por las compañías que operan
en sus territorios. El relevamiento realizado para esta investigación revela que
Argentina no cuenta con ningún registro centralizado y la información existente se
encuentra fragmentada y desactualizada en las distintas provincias y organismos
de control que, en contadas ocasiones, requieren la información relativa a los
beneficiarios finales de las empresas.
La figura del “beneficiario final” se introdujo en la legislación argentina en
2011 con la reforma de la Ley de Encubrimiento y Lavado de Activos de origen
delictivo.3 La medida tuvo lugar después de una evaluación realizada por el Grupo
de Acción Financiera Internacional (GAFI) donde el organismo estableció que el país
se encontraba en una suerte de “lista de gris”. La evaluación del GAFI señalaba
un conjunto de incumplimientos normativos en materia de delitos económicos de
acuerdo con sus estándares que las autoridades argentinas buscaron subsanar
mediante la incorporación de instrumentos que ampliaron los conceptos referidos
a la prevención del lavado de activos y financiamiento del terrorismo.
En otras palabras, hasta 2011 la legislación y normativa argentinas no
contemplaban la figura de los “beneficiarios finales”. No se trataba solamente de
la ausencia de la definición legal sobre quiénes son los verdaderos dueños de las
empresas y otras estructuras societarias, sino que el marco regulatorio argentino,
como muchos otros alrededor del mundo, carecía de mecanismos para recabar
esa información fundamental para el control de los flujos financieros ilícitos. La
figura del beneficiario final fue definida de una manera laxa lo que la tornaba de
imposible cumplimiento en la práctica. Sólo debía identificarse al beneficiario final
cuando existían interrogantes respecto de la actuación del cliente y, en especial,
cuando estos lo hacían en nombre de terceras personas. Por ello con el objetivo
de evitar que personas físicas utilicen a las personas jurídicas como empresas
pantalla para realizar operaciones, se impuso que los sujetos obligados4 debían
prestar especial atención ante ese tipo de situaciones y se les exigió verificar la

3
La ley 25.246, sancionada el 13 de abril del año 2000, fue reformada por la ley 26.683 sancionada el
21.06.2011.
4
Son las Personas Físicas y Jurídicas y Organismos del Estado, señaladas en el artículo 20 de la Ley
25.246 y modificatorias. Los sectores determinados en dicho artículo son aquellos que los legisladores
consideraron vulnerables para el Lavado de Activos y la Financiación del Terrorismo o bien que puedan
recabar información de aquellos sujetos obligados considerados vulnerables. Ejemplo de ellos son: Los
organismos de control y registro de personas jurídicas, la Comisión Nacional de Valores, las entidades
financieras, los escribanos públicos, los contadores, el Registro de la propiedad inmueble, el registro de
la propiedad automotor, entre otros.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020 117
Maria Eugenia Marano

conformación de las estructuras societarias a fines de determinar el origen de los


fondos e identificar a los reales propietarios, beneficiarios y/o quienes ejercían el
verdadero control sobre la persona y/o estructura jurídica.5
La incorporación normativa utilizó como referencia las recomendaciones
realizadas por el GAFI a sus miembros. Con el correr de los años, los organismos
de control de Argentina fueron armonizando sus normas internas en línea con las
recomendaciones, de tal modo se delineó la versión local del concepto. Desde
entonces, se entiende al beneficiario final como la o las personas humanas que
tengan como mínimo el 20% del capital o de los derechos de voto de una persona
jurídica. Y, cuando ninguna de esas opciones fuera posible de identificar, la legislación
indica que es necesario determinar a quiénes, por otros medios, ejercen el control
final, directo o indirecto sobre una persona jurídica.
Los distintos organismos de control registraron ampliaciones, adaptaciones
o modificaciones sobre la figura los beneficiarios finales que apuntaron a mejorar
su identificación en algunos sectores. A partir de 2017 la Unidad de Información
Financiera (UIF)6 amplió el concepto para las entidades financieras. La medida
pretende abordar la complejidad advertida en la identificación del beneficiario final
por el porcentaje de tenencias o por el ejercicio del control, agregando que en caso
de no poder determinarse debe identificarse a la máxima autoridad del órgano de
administración de la persona y/o estructura jurídica.
En la misma dirección, la modificación a la Ley 25.246 a través del decreto
presidencial 27/2018 de enero de 20187 y la Ley 27.444, incorpora el concepto
de beneficiario final en la legislación de fondo. Se reformuló y amplió el concepto
que existía en Argentina del beneficiario final hasta la fecha. La nueva legislación
incorpora la obligación de identificar a quienes ejerzan la administración y/o sean
la máxima autoridad de la empresa en aquellos casos en los que no logre ser
identificado por otros medios e introduce también el concepto de “patrimonio de
afectación”, aunque patrimonio está subsumido dentro de las estructuras jurídicas
ya previstas.
Actualmente la legislación y normativa argentina identifica a los verdaderos
dueños utilizando una prueba en cascada, (no como opciones alternativas) y en
el siguiente orden:

5
Véase Art. 21 ap. c) Ley 25.246.
6
Resolución UIF 30-E-/2017, incorpora la posibilidad de identificar a las máximas autoridades de la persona
jurídica como beneficiario final.
7
Decreto del PEN 27/2018 denominado de “Desburocratización y Simplificación”, fue un decreto ómnibus
dictado el 11.01.2018 mediante el cual se reformaron muchas leyes del cuerpo normativo de nuestro
país.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

Los verdaderos dueños son las personas humanas que:


(1) son propietarias y/o beneficiarios finales, titulares del capital;
(2) o que, ejerzan el control de la persona, estructura jurídica o patrimonio
de afectación, aun cuando éste fuera indirecto;
(3) a quienes posean facultades de administración y/o disposición, máxima
autoridad de la persona y/o estructura jurídica.
La legislación establece que los beneficiarios finales siempre deben ser
personas humanas, una persona jurídica no podría cumplir ese rol. La persona
humana puede no coincidir con la persona del socio o accionista y/o parte de la
persona y/o estructura jurídica, esto explica el ejercicio del control indirecto.
Asimismo y a los fines de definir quién es el propietario o titular de capital, las
naciones establecen un umbral, es decir, un parámetro mínimo para determinar a
partir de qué cantidad de tenencia podemos considerar a una propietario beneficiario
final. En el caso de la Argentina, el umbral establecido por la Unidad de Información
Financiera es del 20% y utiliza para su identificación la prueba en cascada.
¿Cómo funciona una prueba en cascada? Cuando ninguna persona alcanza
a ostentar el 20% del capital se pasa a la segunda opción y se debe buscar quién
tiene el control por otros medios -derechos de voto o a través de un familiar, o
ejerce algún tipo de influencia-. Si de ese modo tampoco puede identificarse,
entonces se informarán los datos de la persona humana que ocupa el máximo
cargo en la administración.
Vale señalar que esa información es recabada por los mismos integrantes
de la empresa, el personal de la compañía o bien profesionales contratados por
la misma a los fines de conocer a su cliente o bien presentar la información de
los beneficiarios finales ante los Organismos que correspondan.
La nueva definición representa un avance y permite ahondar en la búsqueda
de los reales beneficiarios finales. Sin embargo, presenta una serie de problemas
que aún no se han resuelto y deberán ser abordados en las normas reglamentarias,
las que deberán definir los límites y modalidades al concepto citado. El principal
inconveniente es el umbral del 20%, es muy elevado y por ende resulta fácil de eludir.
Poder identificar al beneficiario final con un umbral más bajo facilita la identificación
de los verdaderos dueños, ello por cuanto, fijar un piso elevado les permitirá dividir
sus tenencias de manera más sencilla para evitar ser individualizados. Otra forma
extendida para ocultar al beneficiario final es la del testaferro, ha sido un avance
la reciente reforma a la Ley general de Sociedades que prohibió el uso de las
figuras “socio del socio” y “socio oculto”, conocidos también como prestanombres
o testaferros en las sociedades comerciales.
Pero incluso si se resuelven los desafíos referidos a la definición del concepto
en la legislación, la identificación de los beneficiarios finales de las empresas en

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020 119
Maria Eugenia Marano

Argentina está condicionada por la fragmentación, desactualización y ausencia de


verificación de los registros provinciales, así como aquellos que llevan los distintos
organismos de control.
Este trabajo se propone analizar los avances y limitaciones que exhiben
los principales registros encargados de establecer los lineamientos y recabar
la información referida los beneficiarios finales. Este trabajo está dividido en
seis partes. La primera analiza el desempeño de la Unidad de Información
Financiera (UIF) en la definición del concepto de los beneficiarios finales como
órgano rector y autoridad de aplicación en materia de prevención del lavado de
activos y financiamiento del terrorismo. En el segundo apartado se analiza cómo
los distintos sujetos obligados ponen en práctica las pautas establecidas por la
UIF referidas a la identificación de los beneficiarios finales de las empresas. El
apartado analiza los casos del Banco Central, la Inspección General de Justicia, la
Superintendencia de Seguros de la Nación, la Comisión Nacional de Valores y las
entidades financieras. El trabajo aborda además la recolección de información a
cargo los organismos de fiscalización de personas jurídicas y los registros públicos
de comercio provinciales con especial énfasis en los casos de la Inspección General
de Justicia, Dirección de Personas Jurídicas de la Provincia de Buenos Aires e
Inspección General de Justicia de Tierra del Fuego. El tercer apartado se enfoca en
el Registro Nacional de Sociedades que todavía se encuentra en su etapa inicial.
El cuarto apartado analiza los (ab)usos vinculados a las sociedades extranjeras,
en particular aquellas emplazadas en guaridas fiscales y financieras, que son
unos de los principales vehículos corporativos utilizados para ocultar la identidad
de los verdaderos beneficiarios finales. El anteúltimo apartado está dedicado a
la figura de los testaferros que también ha sido históricamente utilizada para
ocultar a los reales dueños de las corporaciones. El trabajo finaliza con una serie
de conclusiones que apuntan a señalar las dificultades que existen en Argentina
a la hora de recabar la información necesaria y ofrece algunos lineamientos para
comenzar a superar esas restricciones.

2 La Unidad de Información Financiera


La UIF es el organismo encargado del análisis, el tratamiento y la transmisión
de información a los efectos de prevenir e impedir el delito de lavado de activos y
financiamiento del terrorismo.8 Tiene la obligación de dictar normas y procedimientos
de alcance a los sujetos obligados. Es decir, la UIF está encargada de regular a

8
La UIF fue creada en el año 2000 y funciona con autonomía y autarquía financiera. Hasta el 26 de mayo
de 2016 bajo jurisdicción del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación. En el año 2016
pasó a estar bajo la órbita del Ministerio de Finanzas, actual Ministerio de Hacienda.

120 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020
Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

todos los organismos, personas humanas y personas jurídicas obligadas a reportar


la detección de cualquier operación sospechosa de estar lavando activos y/o
financiando el terrorismo. Entre quienes están alcanzados por la normativa de
la UIF figuran, por ejemplo, los escribanos, los contadores, las sociedades que
cotizan en la bolsa, las entidades financieras, las empresas que se dedican a la
compra venta de joyas, así como los organismos de la Administración Pública que
ejerzan funciones de control y fiscalización de personas jurídicas, entre otros.9
Las normas de la UIF ofrecen las herramientas conceptuales para que cada
uno de los sujetos obligados dicte las normas internas en caso de considerarlo
necesario y, cuando no fuera así, establece que sus acciones deberán regirse
por la normativa del organismo. Una parte importante de sus funciones reside en
reglamentar (o bien fijar) pautas objetivas, para cada uno de los sujetos obligados
o todos en general respecto de aquello que la ley de fondo les impone. Tal es el
caso de la resolución UIF 29/2011 para los Registros Públicos, la resolución UIF
nº 21/2018 para los sujetos obligados del mercado de capitales, la resolución
30-E/2017 para las entidades financieras, entre otras. Cada una de dichas normas
tiene en cuenta la operatoria específica de cada sujeto y en virtud de ello elabora
una guía de procedimiento para la prevención del lavado de activos, la identificación
de operaciones sospechosas, la identificación del beneficiario final, etc.
Las primeras normas que incorporan dentro de sus definiciones la figura del
Beneficiario Final datan de 2011. Antes de esa legislación no fue posible hallar
norma alguna que refiera expresamente a los beneficiarios finales. A partir de 2011,
las pocas normas que mencionaban al beneficiario final lo hacían en su glosario
de definiciones y de manera repetida consideraban al Propietario/Beneficiario:
como aquella persona física que tenga como mínimo el 20% del capital o de los
derechos de voto de una persona jurídica o que por otros medios ejerza el control
final, directo o indirecto sobre una persona jurídica.10
A partir del año 2017, la UIF amplió el concepto de beneficiario final y dispuso
opciones para su determinación, es decir frente a la imposibilidad de encontrar
al beneficiario final incorpora una serie de posibilidades que permiten identificar
como beneficiario final a otros sujetos, por ejemplo, a las máximas autoridades
societarias, dedicándole artículos específicos y una especial atención.
Tal es el caso de la Resolución 30-E de la UIF dictada para las entidades
financieras, sin embargo y desconociendo los motivos muchas de las resoluciones
de UIF dictadas para otros sujetos no fueron modificadas en tal sentido, es decir,

9
El listado de sujetos obligados está formulado en el Artículo 20 de la Ley 25.246.
10
Por ejemplo: Resolución UIF 30/2011(Personas Jurídicas que reciben donaciones) Art. 2 inc g. Resolución
229/2011 (Mercado de Capitales) art. 2 inc g. Resolución UIF 140/2012(Fideicomisos). Art. 2 inc i.,
Resolución 22/2011 (CNV) art 2 inc f., entre otros.

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que aún mantienen el concepto de beneficiario final de 2011. Tarea pendiente


para la Unidad de Información Financiera.
No obstante, siendo que la ley especial 25.246 amplio el concepto,11 todos
aquellos sujetos que en su normativa interna definen al beneficiario final podrán
adoptar la definición allí dispuesta o bien la utilizada por la UIF para otros sujetos
tal como lo hizo la Dirección de Personas Jurídicas de la Provincia de Buenos Aires
adoptando la definición prevista en la Resolución 30-E de 2017.
La UIF no lleva ningún Registro de Beneficiarios Finales, sólo se limita a
solicitar información a los organismos públicos encargados de recabar información
de los beneficiarios finales de aquellos sujetos que se encuentren bajo su órbita
de competencia por ejemplo en el marco de una investigación nacida de un
Reporte de Operación Sospechosa (ROS). Por ejemplo, el Registro de la Propiedad
Inmueble envía un ROS a la UIF cuyo objeto es la solicitud de inscripción de un
inmueble adquirido por una sociedad extranjera registrada en la Inspección General
de Justicia por una suma muy elevada de dinero, frente a ello y con el inicio de
un sumario administrativo, la UIF podrá solicitar información a dicho organismo
sobre el funcionamiento de dicha entidad, la composición de su capital social y
sus beneficiarios finales y/o cualquier dato que le organismo de registro le pueda
brindar. La información que suministren los organismos dependerá del tipo y
calidad de los registros que mantenga cada uno sobre los beneficiarios finales
de las empresas.

3 La identificación del beneficiario final en la práctica


El siguiente apartado ofrece un análisis de la situación en la que se encontraban
a mediados de 2019 los principales organismos en materia de personas y estructuras
jurídicas, respecto de la recolección de información de los beneficiarios finales. Los
organismos analizados a continuación no fueron seleccionados al azar, sino que se
tuvieron en cuenta tres criterios. En primer lugar, su doble rol ante la UIF. Por un
lado, integran el listado de sujetos obligados y, por lo tanto, deben contar con un
oficial de cumplimiento a los fines de reportar aquellas operaciones sospechosas
y/o pasibles de estar encubriendo maniobras para el lavado de activos y/o el
financiamiento del terrorismo.
Y, por el otro, son sujetos colaboradores del organismo de manera que deben
contar un oficial de enlace encargado de remitir toda la información que la UIF le
solicite. Para cumplir con dicha función los organismos debe llevar registros certeros
y actualizados de las personas físicas y/o jurídicas que se encuentran bajo su
órbita de competencia. Como así también desarrollar procesos y mecanismos que
permitan prevenir maniobras de lavado de activos y financiamiento del terrorismo,
entre los que se encuentran la identificación y registro de los beneficiarios finales.

11
Art. 21 bis Ley 25.246 modificada por Ley 27.446 del 18.06.2018.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

El segundo criterio contemplado, al momento de definir cuáles organismos


serían abordados, fue el caudal de personas y estructuras jurídicas que se registran
y sobre las cuales se lleva o debería llevarse control y registro de beneficiarios
finales. En tercer lugar, se tuvo en cuenta la existencia de una normativa en materia
de identificación del beneficiario final.

3.1 El Banco Central y las entidades financieras


Las primeras normas dictadas por UIF, en el año 2000 estuvieron vinculadas
al funcionamiento del sistema financiero y, por lo tanto, alcanzan al Banco Central
y las entidades financieras. La Carta Orgánica del BCRA establece que la finalidad
principal del organismo es la de promover la estabilidad del sistema financiero, del
empleo y el desarrollo económico de la Nación. Para ello, dentro de sus funciones
y facultades se encuentran las de regular el sistema financiero nacional, de aplicar
la Ley de Entidades Financieras,12 contribuir al buen funcionamiento del mercado
de capitales y a la protección de los derechos de usuarios de servicios financieras.
Para garantizar el cumplimiento de tales obligaciones, el BCRA cuenta con la
Superintendencia de Entidades Financieras. Asimismo, la autoridad monetaria es
el organismo encargado de autorizar y otorgar las condiciones de funcionamiento a
las entidades públicas y privadas, nacionales y extranjeras dedicadas a la actividad
financiera en la Argentina.
Los operadores del sistema financiero son quienes toman el primer contacto
con las transacciones sospechosas o bien con la mayor cantidad de ellas y todos
sus involucrados. Por lo tanto, resulta imprescindible que tales agentes cuenten
con procedimientos efectivos para conocer a los beneficiarios finales, el BCRA
respecto de las entidades financieras, y estas últimas respecto de sus clientes.
En tal sentido la UIF, como órgano encargado de dictar normas, siempre
ha puesto especial atención y ha priorizado las relacionadas con las entidades
financieras. Un claro ejemplo de ello fue el dictado de la Resolución 30-E/2017,
dedicada exclusivamente a las entidades financieras, la que amplió el concepto de
beneficiario final, incorporando la posibilidad de identificar a la máxima autoridad de
la persona jurídica. La norma define distintas formas de acreditar la identificación
del beneficiario final por parte de los clientes personas jurídicas, sin embargo, la
definición no es contundente.
La redacción de la normativa resulta un tanto laxa ya que pareciera indistinto
que, al momento de identificar a los beneficiarios finales, los bancos requieran
una declaración jurada, una copia de los registros de accionistas y cualquier
documentación o información pública que identifique la estructura de control. Aunque

12
Véase Ley de Entidades Financieras n 21.526.

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avanza en la identificación de los verdaderos dueños, la normativa comete un error


al igualar a los accionistas con los beneficiarios finales que no necesariamente
podrán ser la misma persona.
Pedir información de manera tan amplia, sin un orden de prelación corre el
riesgo de no ser certera. Además de ello, la norma establece que las sociedades
que cotizan en bolsa quedarán exceptuadas de los requisitos de identificación. Esa
excepción no resulta acertada atento a que no existen herramientas que permitan
cruzar los datos entre los distintos organismos de control. Sería oportuno que
tanto el Banco Central, respecto de las entidades financieras, como las entidades
financieras respecto de sus clientes – ya sea que coticen o no en la bolsa – lleven
un registro de beneficiarios finales.
Una revisión exhaustiva de la regulación vigente no permitió hallar normas,
circulares o resoluciones internas del BCRA que reglamenten el modo y forma
exigidas para la presentación de la información de los beneficiarios finales de las
entidades financieras que pretendan operar en nuestro país, se rigen solo por la
normativa de la UIF. El BCRA no cuenta con un Registro de Beneficiarios Finales
de las entidades financieras bajo su órbita de competencias (casas de cambio,
bancos, cajas cooperativas de crédito), como así tampoco las entidades financieras
respecto de sus clientes (empresas de todo tipo).
Consultas realizadas ante distintas entidades financieras revelaron que solicitan
a sus clientes personas jurídicas completar una planilla con información respecto de
sus beneficiarios finales al inicio de la relación comercial, aunque, salvo contadas
excepciones, la información no se actualiza (ver Figura 1). Los datos sólo quedan
registrados en el legajo del cliente y no son cruzados con información del resto de
los clientes. Todo ello impide oportunidades de detectar operaciones sospechosas
y maniobras delictivas que pretenden ocultar a los reales beneficiarios finales.
Con un registro unificado de beneficiarios finales se podría identificar de
cuantas entidades financieras es beneficiaria final una misma persona y en qué
porcentaje, lo mismo respecto de los clientes de las entidades financieras ello de
acuerdo a las inusualidades tipificadas por la UIF permitiría advertir operaciones
sospechosas de lavado de activos.

3.2 Organismos de fiscalización de personas jurídicas y


registros públicos de comercio
La Constitución Nacional argentina establece en su Artículo 121 que las
provincias conservan todo el poder no delegado al Gobierno federal. En otras
palabras, las jurisdicciones subnacionales mantienen todos los derechos de
organizar y dictar sus normas de procedimientos en todos los ámbitos que no
fueron delegados a la Nación. Entre ellas se encuentran los registros de personas
jurídicas y los organismos de control y fiscalización. Cada una de las 24 provincias

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

argentinas se encuentra entonces organizada de manera diferente y con normas


de procedimiento distintas.
Algunas jurisdicciones cuentan con ambos organismos unificados, es decir,
cumplen el doble rol de fiscalización y registro. En ese grupo figuran, por ejemplo, la
Inspección General de Justicia cuyo ámbito de competencia es la Ciudad Autónoma
de Buenos Aires,13 la Dirección de Personas Jurídicas para la Provincia de Buenos
Aires, la Inspección General de Justicia de Tierra del Fuego y la Dirección de
Inspección de Personas Jurídicas de Córdoba. En cambio, en otras provincias las
funciones de fiscalización y registro se encuentran desdobladas. Salta, Chubut,
San Juan y Misiones, son algunas de las provincias que cuentan con un registro
público de comercio y una inspección general de personas jurídicas a cargo de la
fiscalización.
De las veinticuatro provincias argentinas, catorce tienen sus competencias
unificadas en un organismo y diez las tienen desdobladas. Conforme ello, el país
cuenta así con un total de 36 organismos de registro y control de personas jurídicas.
Ello implica una dispersión normativa y de criterios muy amplia que impide armonizar
la información que podría reunirse en un sólo registro. A la dispersión se suma
la falta de digitalización de los datos obtenidos impidiendo el entrecruzamiento,
publicidad, acceso y verificación de la información referida a los beneficiarios
finales de las empresas.
De los 34 organismos de registro y control de personas jurídicas, sólo tres
3 cuentan con una definición sobre beneficiarios finales y mantienen un registro
en soporte papel. En ese escenario se vuelve imposible avanzar hacia la creación
de un registro nacional de beneficiarios finales o bien que dicha información sea
remitida al flamante Registro Nacional de Sociedades y de ese modo contar con
información precisa, actualizada y completa sobre los beneficiarios finales de las
entidades inscriptas en todo el país.
A la falta de sistematización normativa y de la información se suma el hecho
que el alcance en el control de legalidad y la consecuente solicitud de información
que pueden efectuar los registros públicos y los organismos de fiscalización
dependerá del tipo societario. Por ejemplo, las sociedades anónimas (SA) están
sujetas a un control estricto por parte de los organismos de control de personas
jurídicas y deben cumplir con ciertas obligaciones ante los registros públicos
como la presentación anual de estados contables, inscripción de la renovación
de autoridades. Vale señalar que toda esa información es presentada por las
empresas cada tres años (como máximo). Ello no ocurre con las sociedades de
responsabilidad limitada (SRL) o las sociedades extranjeras. Tales precisiones y
alcance surgen de la Ley General de Sociedades.
Lo mismo ocurre con las sociedades por acciones simplificadas (SAS) cuyas
obligaciones y actos que se deben registrar en el organismo de fiscalización y

13
Con excepción de las sociedades de capitalización y ahorro en cuyo caso el alcance es nacional.

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control surgen de la Ley de Apoyo al Capital Emprendedor. La oportunidad para


recabar información sobre el beneficiario final se encuentra íntimamente ligada a
las obligaciones que deben cumplir los diferentes tipos societarios (S.A., S.R.L.,
Sociedades Extranjeras, U.T.E, S.A.S, etc.) de acuerdo a su legislación de fondo.

Tabla 1 - Caracteristicas de los tipos societarios


Oportunidad de Control sobre la
Tipo presentación de presentación de
Partes Registro
societario la declaración la declaración
de BF de BF
Sociedad Acciones Privada, cada Constitución Sin control
Anónimas nominativas sociedad lleva En cada trámite de legalidad
no el registro de de inscripción y/o veracidad
endosables sus acciones y Original en por parte del
transferencias la primera organismo
presentación
anual
Copia en los
trámites restantes
Sociedad de Cuotas Público, el Constitución Sin control de
Responsabili- partes Registro En cada trámite legalidad
dad Limitada Público lleva un de inscripción
registro de las Original en
cuotas y sus la primera
transferencias. presentación
anual
Copia en los
trámites restantes
Sociedad De acuerdo a Privado En cada trámite Sin control de
Extranjera la legislación de inscripción legalidad
del país Original en
constitución la primera
presentación
anual
Copia en los
trámites restantes
Sociedad Acciones Privada, cada En cada trámite Sin control de
Por acciones nominativas sociedad lleva de inscripción legalidad
Simplificada no el registro de Original en
endosables sus acciones y la primera
transferencias presentación
anual
Copia en los
trámites restantes

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

3.3 Inspección General de Justicia (IGJ)


La IGJ recaba información de los beneficiarios finales de las personas jurídicas
en el ámbito de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires desde el año 201514 cuando
incorporó por primera vez a su normativa un capítulo dedicado a la prevención del
lavado y financiamiento del terrorismo. Desde entonces utiliza la definición de
beneficiario final suministrada por la UIF: “Personas Humanas que tengan como
mínimo el 20% (umbral variable) del capital o de los derechos de voto de una
persona jurídica o que por otros medios ejerzan el control final, directo o indirecto
sobre una persona jurídica u otra estructura jurídica”.
Esa información deben brindarla las sociedades nacionales, binacionales,
sociedades constituidas en el extranjero y/o de registración o modificación de
contratos asociativos o contratos de fideicomiso.15 En el caso de los contratos de
fideicomiso, cuyo objeto sean cuotas sociales o acciones, se deberá individualizar
al/los beneficiario/s final/es del fiduciante, fiduciario y, si estuvieren determinados,
del beneficiario y fideicomisario. En el supuesto de los contratos asociativos –
uniones transitorias de empresas o acuerdo de colaboración empresaria –, se
deberá individualizar al/los beneficiario/s final/es de las entidades que integran
el contrato.
La declaración jurada debe presentarse una vez por año calendario en la
primera oportunidad en que se solicite la inscripción de alguno de los trámites
registrales previstos en la normativa del organismo, siendo suficiente en los
trámites posteriores que se efectúen dentro del mismo año calendario acreditar
su cumplimiento anterior mediante copia simple de la misma. En caso de no
efectuarse ninguna presentación durante todo un año calendario, deberá cumplirse
con las declaraciones juradas adeudadas en la primera oportunidad en que se
solicite la inscripción de alguno de los trámites registrales referidos en el primer
párrafo del presente artículo.
La presentación de la declaración jurada de Beneficiario Final comienza online
mediante un aplicativo web que, una vez completado, genera un archivo con formato
PDF de la declaración. Ese archivo debe imprimirse, suscribirse y presentarse junto
con el trámite del cual se pretende su inscripción.
La hoja contiene en la parte inferior un código de barras único que opera como
comprobante del envío de la información vía web. Dicho código de barras, tras un
lustro de su inclusión, todavía no impacta en ningún registro digital de beneficiarios
finales. Y, a pesar de contar con la posibilidad de avanzar en la digitalización, el
único registro que mantiene la IGJ es en soporte papel.

14
A partir de la Resolución General IGJ 7/2015.
15
Artículo 518 del Anexo “A” de la Resolución General I.G.J. 07/2015.

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La declaración jurada debe presentarse con firma del propio Beneficiario Final
o de Representante Legal y certificado por Escribano o Dictaminante, y deberán
indicarse datos personales completos del beneficiario final (nombre y apellido,
número de DNI, número de CUIT, domicilio real, nacionalidad, fecha de nacimiento,
profesión y porcentaje de participación que directa o indirectamente posea en en
la entidad) y datos completos de la persona jurídica (denominación, número de
registro en la IGJ, tipo societario y número de CUIT).
Lo mismo ocurre con la normativa de las Sociedades por acciones simplificadas,
incorporadas al ordenamiento jurídico argentino en el año 2017 y reglamentada
por la IGJ mediante la Resolución IGJ 6/2017.
Es dable destacar que la presentación de dicha información es requisito para
la inscripción de los trámites, por lo que si bien no existen sanciones expresas
ante el incumplimiento, de no presentarse la sociedad no podrá contar con su acto
inscripto y por ello su operatoria comercial se podrá ver restringida.
Sin embargo, ante la declaración jurada que indica que la persona jurídica no
cuenta con beneficiario final, no existe un real control sobre dicha información. En
el caso de la IGJ existe la declaración Jurada de “no posee Beneficiario Final”, lo
que muchas veces no resulta ser tal. Siendo que este Organismo aún no adoptó
la nueva definición de beneficiario Final, no resulta posible la identificación de la
máxima autoridad del órgano de administración a los fines de cumplimentarlo.
Respecto de las sociedades extranjeras, previo al dictado de la Resolución
6/2018, las sociedades extranjeras también debían presentar la declaración
jurada de beneficiario final en oportunidad del cumplimiento obligatorio del régimen
informativo anual, mediante tal acto informaban también la composición accionaria
del capital. Al dictarse la mencionada resolución dicha obligación fue suprimida.
Asimismo cabe agregar que la IGJ lleva un registro de sociedades inactivas. Las
mismas fueron detectadas como tales luego de un proceso de reempadronamiento.
Si bien ello permitió conocer el estado de muchas empresas también dejó al
descubierto la cantidad de empresas que se constituyen y luego no presentan
movimientos. Detrás de tales sociedades también se esconden reales beneficiarios
y no contamos con información sobre ello.

3.4 Dirección de Personas Jurídicas de la Provincia de


Buenos Aires
La Dirección de Personas Jurídicas de la Provincia de Buenos Aires (DPJ), es
el organismo encargado de la fiscalización y registro de las personas y estructuras
jurídicas que tiene su domicilio en esa jurisdicción. La DPJ incorporó a su normativa
la figura del beneficiario final en 2017.16 Entonces, la dirección bonaerense receptó

16
Disposición General 130 /2017 del 22.12.2017.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

un concepto más amplio de beneficiario final, siendo el primer organismo de


registro de personas jurídicas del país en incorporar la posibilidad de identificar y/o
denunciar a la máxima autoridad societaria en caso de que no se pueda identificar
al beneficiario real.
La DPJ entiende al Beneficiario Final como “(…) toda persona humana
que controla o puede controlar, directa o indirectamente, una persona jurídica o
estructura legal sin personería jurídica, y/o que posee, al menos, el 20% del capital
social o del derecho de voto, o que por otros medios ejerce su control final, de
forma directa o indirecta. Cuando no sea posible identificar a una persona humana
deberá identificarse y verificarse la identidad del presidente, representante legal o
la máxima autoridad que correspondiere. En el caso de los contratos de fideicomiso,
se deberá individualizar al/los beneficiario/s final/es del fiduciante, fiduciario y,
si estuvieren determinados, del beneficiario y fideicomisario. En el supuesto de
los contratos asociativos, se deberá individualizar al/los beneficiario/s final/es
de las entidades que integran el contrato”.
En cuanto a la oportunidad coincide con la prescripta por la IGJ, deberá
realizarse a través de una declaración jurada en todos los trámites registrales
efectuados por sociedades nacionales, binacionales, sociedades constituidas en el
extranjero y/o de registración o modificación de contratos asociativos o contratos
de fideicomiso. La forma de presentar esa información es bajo la modalidad de
declaración jurada, indicando datos personales completos de la persona que revista
el carácter de beneficiario/s final/es. En tal declaración deberá informar: Nombre
y apellido, DNI, domicilio real, estado civil, nacionalidad, profesión y porcentaje de
control), y ofrece las siguientes alternativas de presentación:
(a) Declaración Jurada de Beneficiario Final con firma certificada del propio
beneficiario final declarante o Declaración Jurada de Beneficiario Final
con firma certificada del representante legal en el caso de sociedades o
contratos asociativos o firma certificada del Fiduciario en el Contrato de
Fideicomiso.
(b) Cuando se trate de la constitución de una sociedad comercial por escritura
pública, mediante la manifestación expresa, en la escritura pública de
constitución, del escribano público autorizante de que, por ante él, el/los
beneficiarios finales o el representante legal manifestaron con carácter
de declaración jurada que revisten la calidad de tales o bien informan
quien o quienes resulten ser el/los beneficiario/s finales de la entidad.
(c) En el caso de constitución de Sociedades por Acciones Simplificadas
registradas a través de los módulos de Trámite a Distancia (TAD) y de
Gestión de Documentos Electrónicos de la Provincia de Buenos Aires
(GDEBA), la declaración jurada se presentará mediante respectivo formulario
a través de TAD.

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Otra característica particular de la norma bonaerense es que expresamente


indica que el cumplimiento de la presentación de la mencionada declaración
jurada es requisito indispensable para la aprobación de los actos sujetos al control
de legalidad y registración de la Dirección Provincial de Personas Jurídicas. La
Dirección de Personas Jurídicas no lleva un registro digital de los Beneficiarios
finales, sólo recaba la información por tipo societario en soporte papel. Salvo en
el caso de las Sociedades por Acciones Simplificadas cuyo registro integral se da
de manera digital pero aún no se ha materializado una base de datos unificada
de Beneficiarios Finales.

3.5 Inspección General de Justicia de Tierra del Fuego


La provincia de Tierra del Fuego incorporó la figura del beneficiario final en
noviembre de 2018 de la mano de las normas de inscripción de las sociedades
por acciones simplificadas. Siendo que el trámite de registro del mencionado tipo
societario es netamente digital, uno de los campos a completar es del beneficiario
final y dentro de la reglamentación los define como toda persona humana que
tenga como mínimo el 20% del capital o de los derechos de voto de una persona
jurídica o que por otros medios ejerzan el control final, directo o indirecto sobre
una persona jurídica u otra estructura jurídica.
La declaración jurada deberá ser completada y suscripta por el representante
legal, escaneada y subida a la plataforma digital de las sociedades por acciones
simplificada como requisito para la constitución del trámite.
Recientemente fue incorporada la obligación de identificar a los beneficiarios
finales para los restantes tipos societarios. La misma se en cada trámite de
constitución, no así en los restantes trámites de la sociedad, y puede surgir del
propio instrumento de constitución o bien mediante nota certificada por separado
firmada por el propio beneficiario final. No se lleva un registro de beneficiarios
finales, sino que queda en el legajo de la propia sociedad. Tampoco, cuento con
una norma específica al respecto.

3.6 Registro Público de Estructuras Jurídicas: Contratos de


Fideicomisos
Las “estructuras jurídicas” refieren a aquellos contratos como el fideicomiso
mediante el cual una parte, el fiduciante, transmite o se compromete a transmitir
la propiedad de bienes a otra persona, denominada fiduciario, quien se obliga a
ejercer el derecho de propiedad en beneficios de otra llamada beneficiario, que se
designa en el contrato, para transmitirlo en última instancia ante el cumplimiento de

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

determinado plazo a otra persona, denominada fideicomisario.17 En otras palabras,


una persona humana o jurídica afecta parte de su patrimonio a un negocio que
será explotado por otra persona y cuyo beneficio lo obtendrá otra u otras personas
humanas o jurídicas. Todas ellas identificadas en el contrato. Siendo que quien
invierte el dinero puede ser o no el beneficiario del producido de dicho contrato,
resulta necesario conocer a quienes son los verdaderos beneficiarios del negocio.
En la Argentina existen diversas clases de fideicomisos que, de acuerdo el
objeto que posean, podrán ser de administración, de garantía, testamentarios,
inmobiliarios, entre otros y se encuentran regulados en el Código Civil y Comercial
de la Nación.
Esta figura ha sido y es muy utilizada para lavar dinero o bien para ocultar a
los reales dueños o beneficiarios de negocios ilícitos, siendo que las partes pueden
ser personas humanas o jurídicas. Por tal motivo resulta imprescindible obtener
información de los beneficiarios finales de cada una de las partes integrantes del
contrato.
En efecto, la ley de Encubrimiento y Lavado de Activos de origen delictivo
le otorga calidad de sujetos obligados a las personas humanas o jurídicas que
actúen como fiduciarios, en cualquier tipo de fideicomiso y las personas humanas
o jurídicas titulares de o vinculadas, directa o indirectamente, con cuentas de
fideicomisos, fiduciantes y fiduciarios.18 La UIF también dedica una resolución
particular expresa a los fideicomisos en la que incluye que deben identificar a los
beneficiarios finales.19
Asimismo a partir de la reforma del Código Civil y Comercial de la Nación se
dispuso que debían llevarse registro públicos de fideicomisos a excepción de aquellos
cuyo objeto sean acciones o cuotas sociales los que continuarán registrándose
en los registros públicos de comercio, actualmente llamados Registros públicos.
Puntualmente y respecto de los Registros públicos de fideicomisos o estructuras
jurídicas, también cada provincia organiza su propio registro y dicta sus normas
reglamentarias respecto de todos aquellos fideicomisos cuyo objeto no sean cuotas
o acciones, en tales casos se registran en los registros públicos de comercio antes
mencionados. En idéntico sentido que las personas jurídicas, estas estructuras
deben estar reglamentadas y su normativa debe prever la identificación de los
beneficiarios finales. Actualmente sólo existe información de los beneficiarios
finales de los fideicomisos cuyo objeto son cuotas o acciones inscriptos en los
tres registros públicos que cuentan con una definición y un procedimiento para
la presentación de dicha información. Respecto de los restantes fideicomisos no
es posible acceder a la información de los beneficiarios finales. Ello significa un

17
Véase art. 1666 Código Civil y Comercial de la Nación.
18
Véase art. 20 inc.22 Ley 25.246.
19
Vease Resolución UIF 140/2011.

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retroceso importante y falta de todos aquellos Fideicomisos cuyo objeto no sean


acciones o cuotas, los que deberán inscribirse en el Registro Público de Fideicomisos
de la jurisdicción de que se trate.
Actualmente sólo se encuentra en funcionamiento el correspondiente a la
Jurisdicción de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires,20 y dentro de los requisitos
de registro no se encuentra nada respecto de la declaración del beneficiario final.
(Resolución 227/2017 del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires).
El GAFI también ha puesto especial atención en este tipo de contratos,
refiriéndose a ellos en la recomendación 25.21 Que unos pocos registros cuenten
con información sobre los beneficiarios finales de los fideicomisos significa un
pequeño acercamiento al cumplimiento de la mencionada recomendación que
exige a los países llevar información certera y actualizada de los beneficiarios
finales de las partes que integran los fideicomisos, pero no cumple con el requisito
esencial de solicitud de información del beneficiario final cuando podría hacerlo
sin inconveniente. Se advierte falta de preocupación, capacitación y conciencia
sobre el tema.
No existe un registro central, tal como ocurre con las personas jurídicas, cada
jurisdicción deberá organizar su registro y por el momento sólo lo tiene la Ciudad de
Buenos Aires para el caso de fideicomisos cuyo objeto no sean acciones o cuotas
sociales. Pero sin perjuicio de ello, no recaban información sobre el beneficiario
final. Si bien esto implica un retraso, un incumplimiento a las recomendaciones
el GAFI, fundamentalmente las autoridades de regulación y control en Argentina
se pierden la oportunidad de conocer quienes realmente se encuentran detrás del
negocio jurídico cuando se utiliza esta figura para lavar y ocultar dinero y/o para
ocultar a los reales beneficiarios.

3.7 Comisión Nacional de Valores


La Comisión Nacional de Valores (CNV) es el organismo encargado de la
promoción, supervisión y control del Mercado de Capitales. Es una entidad autárquica
que se encuentra bajo la órbita del Ministerio de Hacienda de la Nación Argentina.
El mercado de capitales es el ámbito donde se ofrecen públicamente valores

20
Por Decreto 300/2015 el Poder Ejecutivo del Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires estableció
el Registro Público de Contratos de Fideicomiso.
21
Recomendación 25 del GAFI “Los países deben tomar medidas para prevenir el uso indebido de otras
estructuras jurídicas para el lavado de activos o el financiamiento del terrorismo. En particular, los países
deben asegurar que exista información adecuada, precisa y oportuna sobre los fideicomisos expresos,
incluyendo información sobre el fideicomitente, fiduciario y los beneficiarios, que las autoridades competentes
puedan obtener o a la que puedan tener acceso oportunamente. Los países deben considerar medidas para
facilitar el acceso a la información sobre el beneficiario final y el control por las instituciones financieras
y las APNFD que ejecutan los requisitos establecidos en las Recomendaciones 10 y 22. https://www.
fatf-gafi.org/media/fatf/documents/recommendations/pdfs/FATF-40-Rec-2012-Spanish.pdf.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

negociables u otros instrumentos previamente autorizados para que, a través de


la negociación por agentes habilitados, el público realice actos jurídicos, todo ello
bajo la supervisión de la CNV. En este ámbito actúan diferentes entidades, las
principales tienen la obligación de informar a los beneficiarios finales: estas son
las emisoras y los agentes.
Las emisoras son aquellas entidades que colocan acciones (parte alícuota
del capital social) con el fin de obtener recursos del público inversionista y pueden
ser sociedades anónimas, el gobierno federal, instituciones de crédito o entidades
públicas descentralizadas. Los agentes, por su parte, son personas humanas
y/o jurídicas autorizadas por la CNV para su inscripción dentro de los registros
correspondientes, para abarcar las actividades de negociación, colocación,
distribución, corretaje, liquidación y compensación, custodia y depósito colectivo
de valores negociables, las de administración y custodia de productos de inversión
colectiva, las de calificación de riesgos, y todas aquellas que, a criterio de la CNV,
corresponda registrar para el desarrollo del mercado de capitales. La mayoría de
los agentes reviste el carácter de persona jurídica por lo que están obligados a
informar sobre sus reales dueños.
La CNV cuenta con un importante plexo normativo dentro del cual se advierte
la ausencia de un criterio unificado para identificar a los beneficiarios finales de las
entidades y agentes. Por un lado, adopta las resoluciones dictadas por la UIF para
aquellos sujetos obligados que se encuentran dentro de su órbita de competencia,
y tal como lo identifica para otros Organismos los define como “toda persona
humana que controla o puede controlar, directa o indirectamente, una persona
jurídica o estructura legal sin personería jurídica, y/o que posee, al menos, el 20%
del capital o de los derechos de voto, o que por otros medios ejerce su control
final, de forma directa o indirecta. Cuando no sea posible identificar a una persona
humana deberá identificarse y verificarse la identidad del Presidente o la máxima
autoridad que correspondiere”.22
Sin perjuicio de ello la CNV, ha dictado una serie de normas que obligan
a los agentes del mercado de capitales a brindar información, en especial para
aquellas constituidas en el extranjero23 fijando un umbral más bajo. Dicha norma
impone la obligación de informar nombre y domicilio de los accionistas o socios
que posean más del 5% del capital social, detallando si correspondiere, el tipo
societario, equivalente funcional y la nacionalidad. Asimismo, se debe presentar:
(a) la documentación societaria correspondiente a las personas jurídicas que

22
La última Resolución de la UIF para la CNV fue la 21/2018 del 1.03.2018, su antecedente es la Resolución
UIF 229/2011 del 13.12.2012 la que definía al “Propietario / Beneficiario: a las personas físicas que
tengan como mínimo el VEINTE (20%) por ciento del capital o de los derechos de voto de una persona
jurídica o que por otros medios ejerzan el control final, directo o indirecto sobre una persona jurídica”.
23
Resolución CNV 604/2012 del 12.04.2012.

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sean accionistas (contrato constitutivo, estatutos sociales y modificaciones), (b)


acompañar nómina de los miembros de órganos de administración y fiscalización,
(c) composición del capital social y/o patrimonio indicando la titularidad accionaria
final, (d) declaración jurada de no encontrarse sujeta a restricción legal alguna, de
poseer capacidad legal para promover acciones judiciales y concluir actos jurídicos
y de poseer activos fijos en el lugar de constitución al igual que poseer activos
no corrientes en otras sociedades, y (e) los estados contables aprobados de los
tres últimos ejercicios.
En relación a dichos requisitos debe especificar: (a) la composición del
capital social indicando titularidad accionaria tomando los recaudos suficientes
para poder identificar al beneficiario final de las tenencias, extendiendo el deber
de información respecto de patrimonios administrados por terceros. En todos los
casos la información debe ser suficiente para poder identificar a todas las partes
que integran ese negocio jurídico, y (b) informar el lugar de constitución de la
sociedad tenedora de las acciones, especificando que no se encuentra sujeta a
restricción o prohibición legal en el país de constitución para realizar actividades
comerciales, debiéndose transcribir la normativa societaria y relativa al mercado
de capitales que le sea aplicable.
Es decir que para las sociedades extranjeras pareciera ser que establece un
umbral para la identificación de beneficiarios final del 5% en lugar del 20% al que
refiere la UIF. Sin embargo, en el año 2017 se dictó una nueva resolución24 que
modificó algunos criterios de las normas de la CNV estableciendo la obligación a los
accionistas personas jurídicas y otras estructuras jurídicas de informar en detalle
sus “Beneficiarios Finales” en las asambleas en las que participe. Está norma
no establece umbral y tampoco aclara si se dejan sin efecto normas anteriores.
A lo largo del texto de las Normas de la CNV, reglamentarias de la Ley de
Mercado de Capitales, se puede advertir una constante confusión entre accionistas,
control directo e indirecto y beneficiario final. Se requiere mucha información sobre
los accionistas a partir de un umbral y sobre ese accionista en caso de tratarse
de una persona jurídica solicita la identificación de quien ejerza el control.
Del mismo modo se van modificando los umbrales, del 20%, el 5%, el 2% o
ninguno. Por ejemplo, dentro del Capítulo XI dedicado a la Prevención del Lavado
de Activos, en el apartado sobre requisitos de idoneidad, integridad y solvencia

24
“BENEFICIARIO FINAL. DEBER DE INFORMAR. ARTÍCULO 24.- Los accionistas, sean estos, personas jurídicas
u otras estructuras jurídicas, deberán informar a la sociedad sus beneficiarios finales. Las sociedades
deberán remitir vía AUTOPISTA DE LA INFORMACIÓN FINANCIERA, como “información restringida a la CNV”
bajo el título “Beneficiarios Finales”, la información sobre el/los beneficiario/s final/es. A tal fin, deberá
constar el nombre y apellido, nacionalidad, domicilio real, fecha de nacimiento, documento nacional de
identidad o pasaporte, CUIT, CUIL u otra forma de identificación tributaria y profesión. La información del
beneficiario final se deberá remitir en la forma dispuesta dentro de los CINCO (5) días hábiles de celebrada
la asamblea”. Resolución CNV 687/2017.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

hace mención a los supuestos de que se trate de personas jurídicas u otros entes
asimilables, “(…) la evaluación se hará respecto de cada una de las personas
físicas que se desempeñen como administradores, directores, gerentes y todos
aquellos que desempeñen funciones directivas dentro de la entidad, como así
también respecto de sus beneficiarios finales y de las personas humanas o
jurídicas que tengan como mínimo el 20% del capital o de los derechos de voto
de la entidad, o que por otros medios ejerzan el control final, directo o indirecto
sobre la misma (…)”.
Y continúa diciendo que “(…) cualquier designación de administradores,
directores, gerentes o personas con funciones directivas, que la entidad efectúe
con posterioridad a la autorización, deberá ser notificada a la Comisión para que
lleve a cabo la referida evaluación. De igual forma deberá notificarse respecto de
los beneficiarios finales y las personas físicas o jurídicas que adquieran como
mínimo el 20% del capital o de los derechos de voto de la entidad, o que por
otros medios pasen a ejercer el control final, directo o indirecto sobre la misma”.
En esta última parte el beneficiario final y personas que posea el 20% del
capital o derecho de voto, parecieran ser personas diferentes.
Lo mismo ocurre cuando indica que la Comisión no autorizará la oferta pública
de valores en los supuestos en que una entidad emisora, sus beneficiarios finales,
y las personas físicas o jurídicas que tengan como mínimo el 20% de su capital o
de los derechos a voto, o que por otros medios ejerzan el control final, directo o
indirecto sobre la misma, registren condenas por delitos de lavado de activos y/o
financiamiento del terrorismo y/o figuren en las listas de terroristas y organizaciones
terroristas emitidas por el Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas.
Otro ejemplo de la poca claridad se advierte frente al deber informativo de
participaciones accionarias. Las personas físicas o jurídicas que, en forma directa,
por intermedio de otras personas físicas o jurídicas, o cualquier grupo de personas
actuando en forma concertada, que por cualquier medio y con una determinada
intención: (a) adquieran o enajenen acciones y/o valores representativos de deuda
convertibles en acciones de una emisora, o adquieran opciones de compra o de
venta sobre aquellos, (b) alteren la configuración o integración de su participación
directa o indirecta en el capital de una emisora, (c) conviertan obligaciones
negociables en acciones, (d) ejerzan las opciones de compra o de venta de los
valores negociables referidos en el inciso (a) o (e) cambien la intención respecto
de su participación accionaria en la emisora, al tiempo de verificarse alguno de
los supuestos indicados en los incisos anteriores.
En todos los casos, siempre que las adquisiciones involucradas y/o los hechos
referidos precedentemente otorgasen 5% o más de los votos que puedan emitirse
a los fines de la formación de la voluntad social en las asambleas de accionistas,

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inmediatamente de haberse concertado la adquisición, la enajenación, la alteración


de la configuración o integración de su participación, la conversión en acciones,
y/o el ejercicio de las opciones o de producido el cambio de intención, deberán
informar esa circunstancia a la CNV.
Similar información deberá ser suministrada en cada oportunidad en que se
produzcan cambios sobre la tenencia informada, hasta el momento en que, por
alcanzar la condición de accionista controlante, quede sujeto al régimen previsto para
éstos. La información respectiva deberá remitirse en los formularios disponibles en
la autopista de la información financiera a través de la página web del organismo
Esta información deberá contener los siguientes datos: “(1) datos de las personas
físicas o jurídicas que directa o indirectamente integran la participación accionaria
mencionada (…) (5) fecha de alteración de la configuración o integración de su
participación directa o indirecta e, (6) intención – según corresponda original o
nueva – de las personas físicas o jurídicas que directa o indirectamente integran la
participación accionaria mencionada, respecto de la misma (por ejemplo: adquirir
una participación mayor, alcanzar el control de la voluntad social de la emisora,
enajenar parcial o totalmente la tenencia y/o todo otro propósito).
Las personas físicas o jurídicas que directa o indirectamente integran la
participación accionaria mencionada deberán, asimismo, remitir la información
exigida por el presente artículo a los Mercados en los que se encuentren listados
los valores negociables (…)”.25
Se advierte que de la articulación de las normas citadas no resultan claros
los conceptos y requerimientos sobre la solicitud de información del beneficiario
final. Cabe agregar que el registro que lleva la CNV es de carácter confidencial por
lo que resulta muy complejo acceder a la información que lleva en sus registros.

3.8 Superintendencia de Seguros de la Nación (SSN)


La SSN es un organismo público descentralizado en la órbita del Ministerio
de Hacienda, cuya función es la de supervisar de manera integral la actividad
aseguradora, reaseguradora y de intermediación en todo el país, y que tiene como
principal objetivo promover una plaza solvente, estable y eficiente en beneficio de
los asegurados, asegurables, beneficiarios y damnificados. Fundamentalmente
protege los derechos de los asegurados mediante la supervisión y regulación
del mercado asegurador para un desarrollo sólido con esquemas de controles
transparentes y eficaces. Por lo que siendo que los productos y las transacciones
de las aseguradoras ofrecen la oportunidad de blanquear capitales o financiar

25
Art. 12 y ss. del Título XII de las Normas de la CNV Res. 622 T.O. 2013.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

el terrorismo se han adoptado diversas medidas a los fines de su prevención.


Entre las ellas, en el año 2018, el organismo puso en marcha el primer sistema
informático denominado “beneficiario final” que tiene como objetivo identificar a: (i)
los accionistas personas físicas y personas jurídicas – incluyendo sus accionistas
– de las entidades aseguradoras o reaseguradoras locales, (ii) los componentes
de los grupos o conglomerados económicos, y (iii) los beneficiarios finales.
La Resolución 816/2018 de la SSN provee definiciones y pautas interpretativas
de los conceptos de “beneficiario final” y “grupo o conglomerado económico”.
Refiere al Beneficiario final tal como lo dispone la reformada Ley 25.246, como
“(…) toda persona humana que controla o puede controlar, directa o indirectamente,
una persona jurídica o estructura legal sin personería jurídica, y/o que posee, al
menos, 20% del capital o de los derechos de voto, o que por otros medios ejerce
su control final, de forma directa o indirecta. Cuando no sea posible identificar a
una persona humana deberá identificarse y verificarse la identidad del presidente
o la máxima autoridad que correspondiere”.
Asimismo incorporó una pequeña norma para interpretar el concepto. Se trata
de un agregado positivo para facilitar la real identificación, es novedoso ya que
no lo han hecho los restantes organismos en sus normativas internas. Clarifica y
efectiviza la correcta identificación. La conceptualización de beneficiario final alcanza
a la/s Persona/s que ejerza/n una influencia dominante como consecuencia de la
tenencia de acciones, o cuota-partes, poseídas a título personal o por interpósita
persona (con la salvedad de que se trate de socio aparente o presta nombre, y
socio oculto), o por especiales vínculos existentes entre las personas humanas
o jurídicas involucradas o ejerza/n una influencia dominante generada por una
subordinación técnica, económica o administrativa.
Las empresas aseguradoras deben remitir toda la información relacionada al
beneficiario final a través de un sitio web, lo que garantiza que el registro se lleve
de manera completamente digital. Los datos deben enviarse una vez al año en las
fechas estipuladas por la SSN y la información suministrada revestirá carácter de
Declaración Jurada. Sin perjuicio de lo anterior, dentro de los cinco días de efectuada
la carga de datos, las entidades deben remitir la Declaración Jurada a través de
la plataforma informática de Trámites a Distancia (TAD). La puesta en marcha de
este nuevo sistema informático no exime a las entidades del cumplimiento de los
procedimientos o trámites que exigen la presentación en soporte físico o digital
de la misma información.
Cabe destacar que la inobservancia de las pautas previstas en relación a la
presentación de la información del beneficiario final importará un ejercicio anormal

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de la actividad aseguradora, por lo que será pasible de recibir sanciones, tales


como apercibimiento, multas y hasta la suspensión de la actividad.26

3.9 Las sociedades extranjeras


Las sociedades extranjeras constituyen uno de los principales vehículos
jurídicos utilizados para ocultar a los verdaderos dueños de los negocios. Antes
de avanzar es necesario realizar una distinción entre las sociedades extranjeras
y las sociedades offshore. Las primeras son aquellas que están constituidas en
el extranjero, se rigen en cuanto a su existencia y forma por las leyes del lugar
de origen y es posible distinguir cuatro supuestos para actuar en Argentina: (a)
sociedades extranjeras que realicen actos aislados como puede ser la compra de
un inmueble, (b) empresas que ejecuten actos comprendidos en su objeto social,
por ejemplo, el establecimiento de una sucursal o representación permanente, (c)
sociedades extranjeras que participan en otras sociedades mediante la compra de
un paquete accionario o la participación en su calidad de accionista desde su origen
en una sociedad local y (d) sociedades extranjeras que tengan su sede principal
y cumplan su objeto social en la Argentina, para lo que deberá adecuarse a la
normativa nacional. La información de ellas se encuentra en sus registros públicos
de origen y en el registro público de la jurisdicción nacional de que se trate. En
tanto, las sociedades offshore, son aquellas constituidas en jurisdicciones cuyo
principal atractivo son los beneficios que otorgan a quienes desean constituir allí
una sociedad: bajos o nulos impuestos, confidencialidad de la información, trabas
al momento de tener que intercambiar información, regulaciones laxas para la
constitución de la sociedad, estabilidad política, desregulación financiera y cambiaria,
extraterritorialidad para el cumplimiento del objeto social. Estas jurisdicciones
suelen contar con una desarrollada industria de servicios financieros que, como
evidencian las megafiltraciones como Panama Papers o Paradise Papers, facilitan
la evasión, el lavado y otras actividades ilícitas.
Estas últimas estructuras son las más utilizadas para delinquir, para introducir
el dinero habido de negocios espurios al circuito comercial legal, o bien para ocultar
la identidad de los reales dueños del negocio que intentan a toda costa esconderse
de las autoridades de su país.
Entre 2003 y 2015, Argentina experimentó un incremento en los controles
sobre este tipo de personas jurídicas, específicamente a través de la Inspección
General de justicia que dictó una serie de normas. La normativa desplegada entre
2003 y 2005 obligaba a las sociedades extranjeras que llegaban a nuestro país a

26
Véase art. 58 Ley 20.091.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

presentar una serie de documentos con información precisa sobre la composición


de su patrimonio, datos completos de sus socios, estados contables, designación
de representantes legales, legajos de las casas matrices, entre otras. Parte de
dicha información también debía actualizarse a través de la presentación del
régimen informativo anual previsto solamente para las sociedades extranjeras.
Asimismo, prohibió la inscripción de las sociedades offshore como así también
quedó vedada toda actividad que pretendiera ejercer este tipo de sociedad en la
jurisdicción de la Ciudad de Buenos Aires. Se creó también un registro de actos
aislados donde se inscribían las operaciones que realizaban por única vez y fuera
de su objeto principal las sociedades extranjeras (como, por ejemplo, la compra
de inmuebles en nuestro país).
A pesar de los esfuerzos para contar con información completa de las
sociedades extranjeras, el andamiaje construido comenzó a desmontarse en 2018.
Con el propósito (o excusa) de dar cumplimiento con lo establecido en un decreto
del Poder Ejecutivo Nacional respecto de las “buenas prácticas en materia de
simplificación” de trámites y procesos para la Administración Pública Nacional27
y siguiendo con la misma premisa de la Ley 27.444 que establece como prioridad
dinamizar el funcionamiento, financiamiento y productividad de las sociedades
comerciales, brindando – supuestamente – un mejor acceso a los servicios que
presta el Estado, la Inspección General de Justicia (IGJ) dictó la Resolución General
6/2018. A través de dicha resolución, la IGJ flexibilizó los requisitos de inscripción
y regímenes informativos que las sociedades extranjeras deben cumplir para poder
establecer una sucursal en la Argentina y/o participar como socia de una sociedad
constituida en el país, tirando por tierra la construcción normativa seguida por la
jurisprudencia administrativa y judicial hasta la fecha.28
A continuación, se describen las principales modificaciones.
(1) Respecto de la inscripción inicial: Se eliminó el requerimiento de acredi-
tación de actividad principal fuera del país y de individualización de los
socios cuando se solicita la inscripción inicial de sociedades extranjeras.29
La norma anterior requería que las sociedades extranjeras acrediten (i)
el desarrollo en el exterior de actividad empresarial económicamente
significativa y (ii) que el centro de dirección de dicha actividad también
se localizaba en el exterior.
(2) Información de los socios: Se eliminó la obligación de informar e
individualizar la nómina de socios de la sociedad extranjera, de brindar

27
Decreto P.E.N. 891/2017.
28
La Resolución General 6/2018 sustituye varios artículos de la Resolución General 07/15 de la IGJ, y
deroga muchos otros, todos ellos vinculados a las sociedades extranjeras.
29
Sociedades extranjeras en los términos del artículo 118 y 123 de la Ley General de Sociedades.

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información sobre los mismos, aunque continúa vigente la obligación


de presentar una declaración jurada informando quiénes son sus
beneficiarios finales, en los términos del art. 518 Resolución General
(RG) 07/15. En tal sentido, deberán continuar con la generación anual
de la Declaración Jurada, pero deberán presentarlas en IGJ en la primera
oportunidad en que se solicite la inscripción de algún trámite registral, no
imponiéndose la obligación de la presentación anual. Es sabido que esta
información no es suministrada por las compañías de manera adecuada,
ni se cuenta con un registro efectivo y veraz sus beneficiarios finales.
Ello por cuanto la declaración jurada brinda la posibilidad de indicar que
la sociedad no posee beneficiarios finales, la que suele utilizarse cuando
existe una cadena de titulares personas jurídicas.
(3) Régimen informativo anual: Se eliminó la obligación de efectuar esta
presentación tanto para sociedades extranjeras inscriptas en los
términos del art. 118 (inscripción de una sucursal) como en los del art
123 (inscripción para participar como socia en una sociedad local) de
la Ley General de Sociedad (LGS), manteniéndose para las primeras
únicamente la obligación de presentar anualmente los estados contables
de la sucursal, asiento o representación permanente. Mediante el
régimen informativo anual, las sociedades extranjeras debían anualmente
revalidar su inscripción cumpliendo con la presentación de información
relacionada a sus socios y activos.
(4) Representación: Se eliminó la restricción de la normativa previa que
establecía que las sociedades extranjeras únicamente podían actuar
en los actos sujetos a inscripción exclusivamente por intermedio de
su representante inscripto o apoderado investido por este. Conforme
el nuevo texto, pueden representar a las sociedades extranjeras tanto
el representante inscripto como un apoderado designado por la casa
matriz.
(5) Actos aislados: Se derogó todo el capítulo vinculado con actos aislados,
y todo registro que se llevaba de ellos. Este capítulo permitía a la IGJ
receptar información proveniente de registros de bienes y/o derechos
relacionados a la celebración de actos en los cuales hayan participado
sociedades constituidas en el extranjero y cuyo objeto haya sido la
constitución, adquisición, transmisión o cancelación de derechos reales
y hayan sido calificados unilateral o convencionalmente como realizados
en carácter de actos aislados. Con dicha información se iniciaba un
procedimiento de investigación, que podía culminar con la intimación

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

a la sociedad a su inscripción en los términos del art. 118 o 124 de la


LGS. Dicho registro intentaba evitar el abuso del acto aislado.
(6) Cancelación por inactividad de sucursales: Se eliminó el requisito que
establecía que, para poder cancelar por inactividad, las sucursales debían
tener una vigencia no mayor de cinco años. Es decir que ahora cualquier
sucursal que acredite inactividad y cumpla con los requerimientos de la
norma puede solicitar la cancelación registral por inactividad.
(7) Sociedad con domicilio o principal objeto en la República: Se eliminaron
los elementos de ponderación para establecer si una sociedad extranjera
encuadra en el artículo 124 de la LGS. Mantienen el procedimiento para
llevar adelante la nacionalización.
(8) Respecto de la inscripción de sociedades vehículos: Aquellas sociedades
entendidas como instrumento de inversión de otra sociedad extranjera
que directa o indirectamente ejerza su control por poseer derechos
de voto suficientes para formar la voluntad social de la peticionaria
experimentaron la eliminación de todos los requisitos particulares que
se exigían de este tipo de sociedades. Las mismas deberán cumplir
únicamente con los requisitos generales.
(9) Sociedades offshore: La norma anterior disponía que las sociedades
offshore eran aquellas que, conforme a las leyes del lugar de su
constitución, incorporación o registro, tenían vedado o restringido en
el ámbito de aplicación de dicha legislación, el desarrollo de todas sus
actividades o la principal de ellas. Tales sociedades, tenían prohibida
la inscripción en IGJ como sociedades extranjeras, y para desarrollar
actividades destinadas al cumplimiento de su objeto y/o para constituir
o tomar participación en otras sociedades, debían con carácter previo
adecuarse íntegramente a la legislación argentina, cumpliendo el
procedimiento previsto en la RG 07/15. Dicha prohibición fue eliminada.
(10) Se introdujo la posibilidad de que la IGJ analice la inscripción de
sociedades provenientes de países con regímenes tributarios especiales
o considerados no cooperadores en materia de transparencia fiscal,
mediante el requerimiento de documentación que acredite actividad
económicamente significativa en el exterior. La IGJ se reservó, la
facultad de solicitar documentación de activos, así como también
de individualizar los socios de sociedades provenientes de países,
dominios, jurisdicciones, territorios, estados asociados y regímenes
tributarios especiales considerados no cooperadores a los fines de la
transparencia fiscal o no colaboradores en la lucha contra el lavado de
activos y financiación del terrorismo.

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Esta nueva resolución promovió un vuelco de ciento ochenta grados en


materia de control societario sobre las sociedades extranjeras en el ámbito de la
Ciudad de Buenos Aires. Ahora bien, lejos de considerar que el espíritu principal
de esta nueva norma se encuentra centrado en la desburocratización del Estado,
simplificación de trámites, es evidente que se trata de la apertura de una puerta
para el ingreso de capitales extranjeros sin importar su procedencia. Asimismo,
es evidente que en cada una de las modificaciones introducidas se restringe el
acceso a la información sobre los verdaderos dueños.
En lo referido a las sociedades offshore, como se mencionó anteriormente
dentro de sus principales características se encuentran el anonimato – lo que impide
conocer a su verdaderos dueños o beneficiarios –, el secreto en las transacciones,
la fácil y ágil constitución, los mínimos requisitos a acreditar, la no registración en
libros societarios, etc. Su finalidad es actuar fuera de las fronteras del lugar de
su constitución, teniendo vedado o sumamente limitado el desarrollo de su objeto
social en el país que les otorga el reconocimiento de la personalidad jurídica. Están
destinadas a una actuación exclusivamente extraterritorial. Es decir, resulta casi
imposible recabar información sobre este tipo societario. Uno de los principales
perjuicios los sufrirá la Unidad de Información Financiera ante el casi nulo control
y falta de información que se tendrá sobre este tipo de personas jurídicas.
Será un obstáculo también para las investigaciones que lleva adelante el Poder
Judicial en el marco de aquellas que requieren seguir el camino de dinero habido del
delito, entre otros. La Inspección General de justicia es el principal Registro Público
de personas jurídicas de nuestro país, por lo que el mayor caudal de sociedades
tiene su domicilio y centro principal de administración en la Ciudad de Buenos
Aires. Esta norma abre una puerta por demás problemática. Sin perjuicio de ello,
en las restantes Direcciones de Personas Jurídicas de nuestro país, siempre fue
posible que las sociedades offshore se inscriban.
Sin dudas, se relajaron los controles a las sociedades offshore. No es una
adecuada política regulatoria permitir la actuación de sociedades off shore o
disminuir los controles administrativos sobre ellas, en tanto ello no se reproducirá
en más inversiones extranjeras. Es un grave error pensar que flexibilizar controles
sobre las sociedades extranjeras impactará de manera positiva en el mercado local
por el arribo de inversiones del exterior. Aquellas sociedades extranjeras que nada
tengan que ocultar entonces serán bienvenidas y cumpliran sin inconvenientes con
los requisitos que les exige la ley.
Asimismo, pareciera que terminarían teniendo hasta un trato preferencial frente
a las sociedades propiamente argentinas, a las que se les exige el cumplimiento
de muchos requisitos legales para formalizar su operatoria comercial.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

La vigencia actual de la norma modificada no solamente expone al país a


la vulnerabilidad de ser utilizado para lavar y esconder activos provenientes del
delito, sino que impide brindar cooperación internacional eficaz a otros; es decir
que expone también a otros países. Seguidamente al dictado de esta norma y
en el marco del mismo decreto presidencial orientado a la desburocratización,
modernización y simplificación de trámites e insistiendo en la necesidad de
implementar regulaciones de cumplimiento simple que mitiguen la carga burocrática
para la realización de actividades tanto en el ámbito de la Administración Pública
como en el sector privado es que a través de la Ley de Financiamiento Productivo
(LFP)30 se introdujeron modificaciones a la regulación del Mercado de Capitales.
Más específicamente, la LFP en su Título III, artículo 64 introdujo en la Ley
de Mercado de Capitales 26.831 (LMC), el artículo 62 bis,31 con el objetivo de
habilitar la participación de las personas jurídicas extranjeras en las asambleas
de sociedades por acciones a través de mandatarios debidamente instituidos, sin
otra exigencia registral.
Fundan tal incorporación en los Principios de Gobierno Corporativo de la
Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (O.C.D.E) en especial en
el enfocado en “proteger y facilitar el ejercicio de los derechos de los accionistas y
garantizar el trato equitativo entre ellos, incluidos los minoritarios y extranjeros”. Y
agregan que también recomienda que los inversores extranjeros tengan las mismas
oportunidades que los nacionales para ejercer sus facultades como propietarios.
Siguiendo estos lineamientos y fundamentos, a efectos de reglamentar
esta normativa, la Comisión Nacional de Valores dictó la Resolución 789/2019
mediante la cual sustituyó lo dispuesto en el artículo 25 del Capítulo II del Título
II de las Normas Generales de la CNV (N.T. 2013 y mod.), por el siguiente texto:
“Artículo 25. - En el caso de una persona jurídica constituida en el extranjero, para
poder participar en una asamblea de accionistas, será suficiente la presencia de
mandatario debidamente instituido, sin otra exigencia registral.
En este contexto, cabe destacar que la normativa anterior de la CNV – del
año 2017 – preveía justamente lo contrario. En efecto, exigía un control más
exhaustivo y se fundaba también en los principios de transparencia del Grupo
de Acción Financiera Internacional (G.A.F.I). En particular, establecía que para
que una persona jurídica constituida en el extranjero pueda participar de una
asamblea debía acreditar el instrumento en el que conste su inscripción en
los términos de los artículos 118 o 123 de la LGS, cuya previsión obliga a las

30
Ley 27440. De Financiamiento Productivo del 9.05.2018.
31
Art. 62 bis. LMC ap. “II. Las personas jurídicas constituidas en el extranjero podrán participar de todas las
asambleas de accionistas, incluyendo -aunque sin limitación- las contempladas en el presente artículo,
de sociedades autorizadas a hacer oferta pública de sus acciones a través de mandatarios debidamente
instituidos, sin otra exigencia registral”.

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Maria Eugenia Marano

sociedades extranjeras a inscribirse en el registro público en caso de desarrollar


su objeto principal en el Argentina o bien constituir y/o adquirir participaciones
en una sociedad nacional.
Esta última medida resulta coherente con sus antecedentes, dado que la
Resolución 604/12 de la CNV contemplaba una serie de exigencias a emisoras
constituidas en el extranjero, con fundamento en los principios de “transparencia”,
“información plena”, “protección del público inversor”, “trato igualitario entre
inversores”, etc. siguiendo recomendaciones internacionales en la materia.
En ese mismo sentido se ha desenvuelto la actividad de la CNV en los
últimos años pues ha bregado y fundado sus normas en principios de organismos
internacionales tendientes a transparentar y recabar información en pos de impedir
el uso indebido de las personas jurídicas.
Sin embargo, mientras la CNV dictaba normas tendientes a ejercer un mayor
control a la par de contar con más información cuando se trataba de empresas
y/o capitales provenientes del extranjero – en particular las citadas Resoluciones
de los años 2012 y 2017 –, lo cierto es que en las nuevas decisiones adoptadas
por la Comisión se advierte un giro radical dado que no hacen más que opacar
su personalidad jurídica o casi volverlas invisibles a los ojos de nuestro Estado
Nacional, en abierta contradicción con los antecedentes normativos tendientes a
transparentarlas.
En otras palabras, a las sociedades extranjeras que participen como accionistas
en asambleas de sociedades nacionales no se les exigirá estar inscriptas en el
Registro Público que corresponda. Ello significa que no existirá información de las
mismas y por ende tampoco de sus beneficiarios finales.
En este punto, se observa un retroceso en materia de transparencia. Tales
políticas de manera alguna podrán atraer a capitales extranjeros en tanto atenta
contra el orden internacional que brega por sistemas ágiles – por supuesto – pero
de registro, control y recabamiento de información.
Esta norma se suma a las tantas otras que convierte a la Argentina en un
destino tentador para las organizaciones criminales que buscan países con normas
laxas y de fácil acceso, sin cruce de datos ni controles de algún tipo. Garantizar la
laxitud en materia de participación de sociedades extranjeras y eliminar controles
sobre las mismas en actos asamblearios de empresas nacionales que se encuentren
bajo la órbita de competencia de la Comisión Nacional de Valores, resulta por
demás peligroso para el ingreso de capitales de origen delictivo.

3.10 El Registro Nacional de Sociedades


Un registro nacional de sociedades constituye un instrumento necesario e
imprescindible para favorecer el desenvolvimiento de las personas jurídicas, colabora

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

en la implementación de políticas sobre transparencia en el tráfico mercantil y aporta


al desarrollo de las actividades que estas realizan en las distintas jurisdicciones.
Una herramienta de esas características permite a un país contar con datos e
información básica que sirve para desarrollar políticas públicas sobre las áreas,
temas, actividades y demás datos que resultan de archivos centralizados con
alcance nacional.
Contar con un registro completo, actualizado y público permite también que
terceras partes, entre los que se encuentran fundamentalmente los operadores
de justicia y quienes desean iniciar un negocio jurídico o quienes contraten con
personas jurídicas ya inscriptas, puedan efectuar consultas. Esto abre una nueva
dimensión al derecho de acceso a la información pública, compatibles con las
exigencias de publicidad y transparencia.
En esta sintonía y luego de muchos años de espera, de proyectos inconclusos
y de reclamos por parte de diversos sectores de la sociedad y de organismos
internacionales, en mayo de 2019 se lanzó el nuevo Registro Nacional de Sociedades
bajo la órbita del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos.
La función principal del registro es la de administrar y centralizar en una
única base de datos información de sociedades accionarias y no accionarias
nacionales, de sociedades extranjeras, de asociaciones civiles y de fundaciones,
de todo nuestro país.
A través de una plataforma en línea de acceso público y gratuito se podrá
consultar cierta información de personas jurídicas provista por la Administración
Federal de Ingresos Públicos (AFIP), previa verificación con los datos provistos por
los distintos registros públicos, en su caso.
De dicha base de consulta pública se podrá obtener el domicilio social
registrado por cada persona jurídica, a partir del cual se podrá inferir la jurisdicción
local de registro de la persona jurídica consultada. Se Informará también sobre los
siguientes datos de las personas jurídicas: (1) denominación social, (2) tipo social,
(3) fecha de contrato social, (4) número de registro local (cuando está disponible),
(5) domicilio fiscal, (6) domicilio legal.
Partiendo del dato del domicilio legal, los consultantes podrán obtener la
jurisdicción del registro provincial o de la Ciudad de Buenos Aires y allí dirigirse
para requerir la documentación, información y antecedentes de la persona jurídica
objeto de consulta.
Ahora bien, toda la información que se recabe dependerá de los compromisos
que asuman los Registros Públicos de cada jurisdicción y siempre que cuenten con
la tecnología para lograr remitir la información de la manera digital.
Tal como se analizó en el apartado 3.2, cada provincia tiene sus propias
normas y procedimiento lo que genera que no se soliciten los mismos datos,

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ni del mismo modo en todas las jurisdicciones. Ello entorpece muchas veces la
propia función del Registro nacional. Y específicamente es lo que ocurre en materia
de beneficiario final en tanto sólo 3 de los 36 registros de todo el país recaban
información de los mismos.
Es importante destacar que los datos que requieren los registros nacionales
como información a brindar desde los registros jurisdiccionales locales, son datos
registrales públicos respecto de personas jurídicas y de aquellas que las componen,
sean jurídicas o humanas.
No se trata de datos sensibles, sino que la propia Ley 26047, reglamentaria
de los Registros Nacionales, establece cuáles son los datos necesarios y de interés
que constituyen la información que debe centralizarse a los fines de generar mayor
y mejor publicidad y transparencia. La mencionada norma fue modificada por la
hace poco menos de dos años y expresamente prevé que “las dependencias
administrativas y autoridades judiciales de las distintas jurisdicciones que, conforme
a la legislación local, tengan asignadas las funciones del registro público para la
inscripción de la constitución y modificación de sociedades locales y extranjeras
y las funciones para autorizar la actuación como personas jurídicas de carácter
privado de las asociaciones civiles y fundaciones locales y extranjeras, remitirán por
medios informáticos al Ministerio de Justicia y Derechos Humanos o al organismo
que éste indique al efecto, los datos que correspondan a entidades que inscriban.
modifiquen o autoricen a partir de la fecha que determine la reglamentación”.
Y agrega que “se incluirán entre las modificaciones las que indiquen cambios
en la integración de los órganos de administración, representación y fiscalización
de las personas jurídicas; las transmisiones de participaciones sociales sujetas
a inscripción en el registro público; el acto de presentación de estados contables;
los procedimientos de reorganización, disolución y liquidación de sociedades y
entidades y las declaraciones juradas de beneficiarios finales de las mismas”.32
Ello significa que el registro público de beneficiarios finales se encuentra en
cabeza del Registro Nacional de Sociedades.
Resulta de suma importancia que un registro único pueda conocer a los
verdaderos dueños de las personas jurídicas inscriptas en los Registros Públicos.
Sin perjuicio de ello, a nivel internacional aún se mantienen debates en torno a la
información que debería ser publicada y la que no. La Argentina no ha sido ajena
a dicha discusión y ello también ha sido motivo de retrasos. Temores como la
seguridad física y patrimonial de los sujetos son algunos de los temas que se
cuestionan, considero que los mismos son perfectamente subsanable a través de
otras medidas de protección de la información por lo que no debería ser una excusa

32
Véase art. 26 Ley 27.444, reforma y sustituye el artículo 4 de la Ley 26.047.

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

para seguir dilatando la concreción de un RNS completo y un registro público de


beneficiarios finales.
El nuevo registro todavía no reúne ni brinda información sobre la constitución
y sus modificaciones serán, por ejemplo, cambios en la integración de los órganos
de administración, representación y fiscalización de las personas jurídicas, trans-
misión de participaciones sociales, el acto de presentación de estados contables,
procedimientos de reorganización, disolución y liquidación, etc. En efecto, el Poder
Judicial, el Ministerio Público, los organismos de la Administración Pública Nacional,
como ser la Unidad de Información Financiera o la Oficina Anticorrupción, los
profesionales del derecho, entre otros, hace años reclaman la puesta en marcha
real y eficaz de los Registros Nacionales, como fuente de consulta certera y ágil
en medio de investigaciones que requieren rápidas respuestas para poder avanzar
y culminar.
Un registro completo y ágil permitiría, por ejemplo, en una sola consulta
identificar en cuantas sociedades a los largo y ancho del país participa una persona
humana ya sea como administrador o como beneficiario final.
Habida cuenta que las organizaciones criminales operan a través de personas
jurídicas nacionales y/o preferentemente extranjeras, contar con información de
todas las jurisdicciones, lograr cruzarla y procesarla sería un avance importantísimo
en la materia.
Unificar criterios, procesos de solicitud de información, brindar herramientas
tecnológicas a todas las jurisdicciones tal como lo prevé la ley 26.047, serían los
pasos a seguir.
En tanto no exista información respecto de los integrantes de las personas
jurídicas, sus administradores, capital y mucho menos de los beneficiarios finales,
continuaremos en deuda con nuestro sistema de justicia.
De todas maneras y siendo que se trata de un Registro que viene haciendo un
gran esfuerzo por salir a la luz hace muchos años, su implementación es un avance.
Hoy brinda algunos datos que permiten rastrear donde tiene su asiento
principal una sociedad, lo que facilita – al menos – saber a dónde ir a buscar más
información o bien efectuar controles de homonimia a nivel nacional.
Este nuevo Registro Nacional resulta ser un paso en materia de gobierno y
datos abiertos y acceso a la información. Los sistemas de datos abiertos, cuando
se implementan correctamente, permiten el desarrollo de múltiples herramientas
y sistemas que resultan de mucha utilidad para muchos sectores de la sociedad.
En tanto, tales registros podrían vincularse con otros conjuntos de datos de interés
público.

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3.11 Los beneficiarios finales y los testaferros


Una figura muy utilizada para ocultar a los verdaderos dueños ha sido la
del testaferro (existen diversas formas conocidas como “socio oculto”, “socio
aparente”, “socio del socio”33 dentro de las estructuras jurídicas). Todas estas
formas de ocultamiento se encontraban legitimadas en el ordenamiento jurídico
argentino y han sido históricamente utilizadas como herramientas para la comisión
y/o el ocultamiento de patrimonios de origen lícito o ilícito.
Los más utilizados, también suelen ser las personas jurídicas como testaferros,
para ocultar propiedades con finalidades de evasión familiar, patrimonial o fiscal.
La vigencia de los artículos 34 y 35 de la Ley General de Sociedades (LGS) fue
motivo de observaciones por parte del GAFI y de acuerdo a su, por entonces
Recomendación 33 correspondiente al Beneficiario Final, recomendó modificarlos
en la medida en que no colaboran a la transparencia buscada en la integración
de sociedades comerciales.34
Por ello y de la mano del decreto del Poder Ejecutivo Nacional 27/2018, se
reformó la LGS, en especial las disposiciones relacionadas al uso de la figura del
socio oculto, socio aparente y socio del socio. La reforma prohíbe la actuación
societaria del socio aparente o presta nombre y la del socio oculto y extiende la
responsabilidad en caso de que dicha prohibición sea incumplida.35
Específicamente en materia de personas jurídicas, la problemática del socio
aparente o prestanombre y del socio oculto remite a la cuestión del testaferro,
esto es a la actuación de una persona que, actuando en nombre propio (socio
aparente o testaferro) en rigor ejecuta intereses ajenos (socio oculto o principal),
es decir, del real dueño de la participación.
Se trata de un sistema de interposición personal en la titularidad de bienes,
derechos o funciones, donde el sujeto que aparece como titular no es tal, sino que
lo hace en interés y sometido a la voluntad de otro sujeto (el principal o titular real).

33
Los textos anteriores de la ley 19.550 decían: Art. 34 “SOCIO APARENTE: El que prestare su nombre como
socio no será reputado como tal respecto de los verdaderos socios, tenga o no parte en las ganancias de
la sociedad: pero con relación a terceros, será considerado con las obligaciones y responsabilidades de
un socio, salvo su acción contra los socios para ser indemnizado de lo que pagare”. “SOCIO OCULTO: La
responsabilidad del socio oculto es ilimitada y solidaria en la forma establecida en el art. 125”. Art. 35
“SOCIO DEL SOCIO: Cualquier socio puede dar participación a terceros en lo que le corresponde en ese
carácter. Los partícipes carecerán de la calidad de socio y de toda acción social; y se les aplicarán las
reglas sobre sociedades accidentales y en participación”.
34
Informe de la tercera ronda de evaluación mutua del GAFI en la Argentina, del 16/12/2010.
35
ARTÍCULO 34 – Prohibición. Queda prohibida la actuación societaria del socio aparente o presta nombre
y la del socio oculto” (art. 3º Dec.27/2018). ARTÍCULO 35 – Responsabilidades. La infracción de lo
establecido en el artículo anterior, hará al socio aparente o prestanombre y al socio oculto, responsables
en forma subsidiaria, solidaria e ilimitada de conformidad con lo establecido por el artículo 125 de esta
Ley” (art. 4º Dec.27/2018).

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

Existen diversas formas de utilizar la figura del testaferro, como personas


humanas pueden mencionarse los siguientes:
Testaferros profesionales. Se trata de personas con título profesional o
avezadas en los negocios a las que, en muchos casos, se les promete una
participación en los resultados.
Testaferros empleados. Generalmente son ya empleados de confianza del
principal o de sus profesionales.
Testaferros homeless. Se trata de una persona desocupada o sub-ocupada,
poco instruida, carente de bienes y que se limita a firmar lo que se le solicita a
cambio de una retribución fija o de un pago al momento de cada firma.
Testaferros familiares. Es muy frecuente que se utilice al cónyuge o a un
pariente sanguíneo o político del principal. Generalmente no se firma un “contra-
documento” por la confianza y porque el encargo suele ser gratuito.
En materia de testaferros societarios pueden distinguirse, entre otros, tres
casos:
(1) Sociedades extranjeras. La sociedad está constituida en el exterior (art.
118 LGS), carece de actividades en el país y aparece como titular de un
bien, pero el “principal” no aparece ni como socio ni como administrador
de la misma. Es el caso, entre otras, de las sociedades “off shore”, con
acciones al portador, y el de otras sociedades extranjeras cuando los
socios y administradores son terceras personas jurídicas o humanas.
(2) Sociedades locales “no operativas”. Es similar al anterior en cuanto la
sociedad fue constituída a los fines de la titularidad y no es operativa
pero el verdadero dueño figura como socio y administrador
(3) Sociedades locales “operativas”. La sociedad ejerce su objeto social y
no fue constituída para una titularidad ficta. Sin embargo, hay bienes de
terceros o de socios que figuran en su patrimonio, hipótesis frecuente
en sociedades de familia.
La reforma es un avance en materia de transparencia ya que declara ilícito
el acto de constitución de un testaferro societario y la causa del mandato. En
consecuencia, a partir de ahora, tanto la adquisición o transferencia de la propiedad
de las acciones, cuotas o participaciones sociales por cualquier título (aporte
inicial, compraventa, donación, suscripción de aumento de capital, etc.), como el
mandato a tales fines, deben reputarse nulos al tener un objeto prohibido por la
ley, en la medida en que existan un socio oculto y un socio aparente.
Ello sin duda que tendrá importantes y trascendentes efectos frente a la
sociedad, los otros socios y a los terceros, que podrán desconocer el acto e
impedir la actuación del testaferro en los actos sociales. Es dable mencionar que
la prohibición de testaferro rige sólo para los casos de titularidades societarias.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020 149
Maria Eugenia Marano

4 Conclusiones
La identificación de los beneficiarios finales de las empresas representa
una de las principales herramientas para combatir los flujos financieros ilícitos
relacionados con la evasión fiscal, el lavado de dinero, la corrupción y diversas
violaciones a los derechos humanos. La creación de registros públicos permite
individualizar a los “verdaderos” dueños, personas humanas, que finalmente poseen
o controlan a las estructuras jurídicas que operan cuentas bancarias, administran
propiedades u ofrecen bienes y servicios. Sin políticas sobre transparencia respecto
de los beneficiarios finales, la criminalidad económica puede ocultarse detrás de
vehículos jurídicos de cualquier tipo.
No se trata sólo de pedirle a las empresas que identifiquen e informen quiénes
son los verdaderos dueños, sino que se debe lograr que no mientan al momento de
brindar dicha información. Para evitar que ello suceda es fundamental que exista
una interconexión entre los todos los datos públicos existentes en el sistema a
los fines de garantizar que la información que proporcione sea válida y certera. Por
ejemplo: que los datos brindados sobre una persona humana argentina coincidan
con los registrados en el Registro Nacional de las Personas, conforme su nombre,
apellido y DNI, los mismo para el caso que se encuentre o no fallecida. Que los
domicilios informados sean reales, conforme cruce con google maps, entre otros.
Organizar bases de datos que reúnan la información de los diferentes registros
y entidades financieras a los fines de identificar operaciones sospechosas que
aumenten los niveles de inusualidad respecto de una maniobra de lavado de activos,
como ser un mismo beneficiario de muchas empresas, beneficiarios cuyos ingresos
no guarden relación con las ganancias declaradas, hoy en día ello no es posible.
Es necesario repensar la función y la importancia de los registros públicos de
personas jurídicas y su rol en la economía y en la lucha contra el lavado de flujos
financieros ilícitos. Siendo que son los propios registros públicos quienes de alguna
manera les dan vida al otorgarle la personalidad jurídica, permitiéndole de este modo
adquirir bienes, abrir cuentas, realizar negocios, etc. Su desempeño es vital para
el desarrollo de la economía de un país por ello deben dejar de ser considerados
como meros almacenes o buzones emisores de plantillas de inscripción.
Los registros deben ser considerados como bases de datos dinámicas certeras
que permitan a los sujetos involucrados en la dinámica empresarial – bancos,
escribanos u otros proveedores de servicios – hacer consultas en tiempo real
previo a que se efectivicen las operaciones, por ejemplo: la verificación de que una
empresa se encuentra activa, su autoridades debidamente inscritas y vigentes y
sus beneficiarios reales informados, previo a la compra de un inmueble.

150 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020
Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

Aún restan muchos desafíos a nivel nacional e internacional por cumplir, como
así también revalorizar a las instituciones que lejos de ello cada día resultan más
disminuidas en algunos países, tal es el caso de la Argentina.
En efecto, si bien Argentina cuenta con normativa y legislación relacionada al
Beneficiario Final aún no cuenta con un abanico de herramientas y recursos que le
permitan implementar a nivel nacional y provincial efectivamente sus metodologías
de identificación. Entre ellas se pueden enumerar:
(1) Educativas, para la comprensión completa del tema y la importancia de
tener conocimiento del real beneficiario final de la empresa.
(2) Informáticas, que permitan procesar la información y cruzarla entre los
diferentes organismos del Estado o autoridades gubernamentales a los
fines de contar con registros ágiles y completos que nos permitan obtener
la información de manera rápida y eficaz.
(3) Legislativas, que permitan unificar los criterios de las distintas jurisdicciones.
(4) Operativas que permitan elaborar procesos y criterios uniforme en todo
el país.
La falta de un Registro Unificado que permita reunir la información de todas
las personas y estructuras jurídicas del país. Conforme se desarrolló a lo largo
del presente trabajo son varios los Organismo Nacionales y locales que recaban
información sobre los beneficiarios finales, pero aún no se ha logrado que dicha
información se centralice y resulte de uso efectivo.
Desde un análisis fundado en la criminalidad económica sabemos que las
grandes organizaciones operan a través de múltiples capas de personas jurídicas,
por ello Organismos Internacionales como el Grupo de Acción Financiera Internacional
(G.A.F.I.) y la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (O.C.D.E.),
entre otros han arbitrado diversas medidas y/o recomendaciones a los fines de
disuadir la utilización de sociedades ofishore, estructuras jurídicas como pantallas
para la comisión de delitos, violar la ley y frustrar derechos de terceros.
Para que un Estado pueda trazar un camino de crecimiento y una adecuada
inserción internacional es imprescindible que cuente en su ordenamiento jurídico
con normas claras y coherentes, sistemáticamente armonizadas. Es fundamental
un régimen jurídico preciso, que recepte los estándares internacionales y que
muestre al país ante un Estado confiable y dotado de seguridad jurídica.
Sin embargo, a lo largo del desarrollo y análisis de la normativa y la práctica
existente en nuestro país se advierte un doble juego. Vasta normativa, con defini-
ciones y trámites burocráticos que lejos de armar un claro registro, dejan mucho
que desear.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020 151
Maria Eugenia Marano

Ello por cuanto, mientras por un lado se busca la identificación del real
Beneficiario Final por otro lado se dictan normas a nivel nacional y resoluciones
locales que tienden a evitar su correcta identificación.
Claro ejemplo se advirtió en materia de sociedades extranjeras, principales
vehículos utilizado para la fuga de capitales, la evasión de impuesto y el lavado de
activos, en la Comisión nacional de valores, en la ausencia de normas en 33 de
los 36 registros de control y fiscalización de personas jurídicas de nuestro país.
No contar con datos certeros, ni datos digitalizados imposibilita determinar
dónde nos encontramos parados. Sin una cantidad especificada de empresas
registradas a nivel nacional resulta casi imposible evidenciar los datos que estamos
perdiendo.
Más aún si tenemos en cuenta que sólo tres de las veinticuatro provincias de
la Argentina solicitan la información del BF, que la CNV no tiene normas claras y
una base unificada de todos aquellos sujetos que brindan la información, la tarea
se vuelve por demás compleja.

Tabla 2 - avances y desafíos


Avances Desafíos
Incorporación de un concepto más amplio De las 24 provincias, sólo 3 cuentan con
del BF información de los BF aunque esos datos
Solicitud de información en más registros. no están digitalizados.
Primer registro digital en el ámbito de El Registro Nacional de Sociedades no
la superintendencia de seguros de la recaba información del BF
nación. Se redujo la solicitud el control y solicitud
Lanzamiento del Registro Nacional de de información para las sociedades
sociedades. extranjeras.
Prohibición de acciones al portador. Escasa capacitación en la materia de BF
Prohibición del socio oculto, socio Falta de herramientas tecnológicas que
aparente y socio del socio. permitan digitalizar y procesar datos.
Imposibilidad de elaborar estadísticas.
Falta de información estandarizada
Eliminación del control de legalidad por
parte de los Registro Públicos.

Otro grave problema, es que algunos organismos como la IGJ, dan la posibilidad
de que las empresas informen que no tiene beneficiarios finales. Estas opciones
no colaboran en los procesos de transparencia. Como así tampoco que la poca
información que se reúna de los beneficiarios finales se encuentre en soporte
papel. Lo mismo ocurre con las Sociedades por Acciones Simplificadas donde los
propios constituyentes pueden completar los formularios de solicitud de inscripción

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

desconociendo el verdadero concepto de Beneficiario Final, ello conlleva a que se


informen personas incorrectas, como un hijo, un vecino o un amigo.
A ello se le suma la falta de uniformidad y dispersión normativa, lo que puede
terminar siendo funcional a quienes buscan ocultar a los verdaderos dueños.
El hecho de no contar con información de todo el país impide que se pueda
contar con un sistema de alertas que permita detectar operaciones sospechosas
que puedan estar encubriendo presuntas maniobras ilegales de dinero.
En efecto, tampoco existe una convalidación de los datos que se informan
ya que no se cruzan con ningún dato de otro organismo como ser, por ejemplo:
el registro nacional de las personas. Ello nos permitiría saber, respecto de un
individuo de nacionalidad argentina si se encuentra aún viva o no.
Respecto de los umbrales, existen muchos riesgos. Si el umbral es alto (entre
un 20% o 25%, en adelante) se crea el riesgo de que los intereses o las titularidades
significativas se dispersen en varias personas jurídicas y no deban informarse. Se
crearán las participaciones societarias con umbrales que no excedan tal umbral y
podrán ocultarse del registro de las autoridades de control.
No es posible identificar cual es la real voluntad política a seguir frente a la
detección de los verdaderos dueños de las corporaciones, usando los registros y
a todos los organismos de control del Estado como herramientas para combatir y
disuadir el crimen organizado, la evasión de impuesto, la corrupción, la violación
a los derechos humanos, entre otros.
No contar con información completa, precisa y oportuna de los beneficiarios
finales de todas las personas y/o estructuras jurídicas nacionales y/o extranjeras
que desarrollen sus actividades en suelo argentino, ralentiza muchísimo las
investigaciones administrativas por parte de la UIF u otros organismos del estado,
judiciales por parte del Poder Judicial y el Ministerio Público Fiscales, impide el
cruce de información entre organismos nacionales y/o extranjeros. Es dable
recordar que las organizaciones criminales no respetan fronteras y usualmente
utilizan múltiples capas jurisdiccionales para desarrollar su actividad delictiva. El
intercambio de información internacional es de gran importancia.
Aún queda un largo camino de análisis, parte del desafío será implementar
y fomentar la elaboración de normas completas, con criterios unificados como así
también analizar el uso de la información recolectada sobre los beneficiarios por
parte del Poder Judicial y el Ministerio Público Fiscal.
Resulta imprescindible comprender que conocer quienes verdaderamente se
encuentran detrás de las empresas pequeñas o grandes corporaciones resulta
sustancial para descubrir lavadores de dinero, políticos corruptos, terroristas,
traficantes de armas, traficantes de drogas, evasores de impuestos, entre otros, son
ellos quienes utilizan estos canales societarios para mover su dinero mal habido.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020 153
Maria Eugenia Marano

Y son las estructuras societarias, los bancos y otros profesionales dispuestos a


hacer negocios, los que les permiten ocultar su identidad.
A ello que cabe agregar que el impacto más directo y completamente
negativo que tales delitos y dicho ocultamiento generan en la sociedad civil,
recae principalmente en los sectores más vulnerables. Ello por cuanto, el dinero
fugado es dinero perdido del Estado Nacional, dinero que podría ser utilizado para
la implementación de políticas públicas que los protejan y a la sociedad en su
conjunto, salud, educación y seguridad son los pilares fundamentales que deben
sostenerlo. Asimismo, cuando se trata de operaciones que extraen recursos del
país el impacto es incluso mayor ya que presiona sobre la vulnerabilidad externa
del país.
Los sectores más vulnerables son las principales víctimas de las organizaciones
criminales, y el derecho no puede ser ajeno a ellos. Todo crecimiento en la materia
permitirá avanzar en las investigaciones judiciales, en el dictado de sentencias
con condenas a los efectivos criminales, en el decomiso de los bienes obtenidos
y en su consecuente restitución a la sociedad como parte de un resarcimiento
ante tanto daño causado.
Asimismo, toda información que recaben los organismos de la Administración
Pública obligados a hacerlo a través de un eficiente control de legalidad sobre el
cumplimiento de las normas de transparencia hará que dicha información sea
completa y certera, esto fortalecerá no sólo al Poder Judicial, al Ministerio Público
Fiscal, a la Unidad de Información Financiera sino también al intercambio de
información internacional en la materia. Las grandes estructuras y entramados
societarios que intentan ocultar a los reales beneficiarios finales no respetan
fronteras.
Hoy contamos con un Registro nacional obligado a reunir información de los
beneficiarios finales de las empresas registradas en todo el país. Para ello necesita
de la colaboración de los registros del todo el país, como así también contar con
la posibilidad de que otros organismos de control también puedan remitir dicha
información.
Esta materia debe ordenarse a nivel internacional en pos de armonizar
normativas y lograr que los países cuenten con un registro público de beneficiarios
finales para que el intercambio de información resulte completo, oportuno y global.

Beneficial ownership registries in Argentina: progress and setbacks of an unfinished process


Abstract: The objective of this working paper is to analyze the importance and relevance of accurate
and updated information on the legal entities’ beneficial owners. Its arrival to the national legislation
and company law. Concept evolution. Linkages to economic criminality. Entities bound by the obligation
to report, and how they do it. Control and registry bodies. Beneficial ownership in practice. Beneficial

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Los registros públicos de beneficiarios finales en Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso

ownership in foreign companies. What happens with the so called “front man”. The National Companies
Registry. Conclusions, progress and setbacks.
Keywords: Beneficial Ownership. Legislation. Threshold.

Recebido em: 01.03.2020


Aprovado em: 09.03.2020

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MARANO, Maria Eugenia. Los registros públicos de beneficiarios finales en


Argentina: avances y retroceso de un proceso inconcluso. Revista Fórum de
Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 115-155, jan./abr. 2020 155
ENSAIOS E PARECERES
Perspectivas no campo contratual
para os próximos anos

Marcos Ehrhardt Jr.


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito
Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Editor
da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito
Civil (IBDCIVIL) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Advogado.

O desafio da complexidade e o impacto da tecnologia


Tanto no campo acadêmico quanto no campo profissional, preocupa-me a
crescente dificuldade dos operadores jurídicos (magistrados, advogados, membros
do Ministério Público...) de lidarem com situações cada vez mais complexas. O
modelo contratual clássico, com suporte em papel e vocação puramente patrimonial,
não é mais suficiente para uma realidade negocial plural, transnacional e em
constante mutação, provocada por avanços tecnológicos que mudaram não
apenas o nosso modo de comunicação e interação com o próximo, mas também
a forma como registramos os atos que praticamos e até mesmo os bens objeto
dos negócios jurídicos que celebramos.
Enquanto nosso Código Civil remete à contratação entre ausentes por
correspondência epistolar e detalha formas de contratação envolvendo bens imóveis
com observância de requisitos formais específicos, registrados em um suporte
físico (papel), a maioria dos alunos que iniciam seus passos no mundo do direito
vivem num período em que nunca experimentaram enviar uma carta para um amigo
pelo correio, não atribuindo importância à conservação de documentos físicos,
quando guardam “na nuvem” informações e dados que consideram importantes.
A interação social ocorre em redes sociais, normalmente de forma escrita em
mensagens de poucos caracteres, arquivos de áudio de poucos minutos, sendo
cada vez mais raro encontrar, entre as novas gerações, quem utilize primordialmente
o telefone para a função de ligar e conversar em tempo real com outra pessoa.
Recentemente, ao ligar para um amigo a fim de cumprimentá-lo por seu aniversário,
ouvi do outro lado da linha a pergunta: “está tudo bem?”, pois “se você ligou em
vez de enviar mensagem, deve estar ocorrendo algo bastante sério”. Vivemos
num período em que as noções de tempo e espaço são redefinidas pela forma de
interação tecnológica que adotamos. A tecnologia mudou antigos hábitos, e com
ela surgiu a necessidade de desenvolvermos novas habilidades.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 159-165, jan./abr. 2020 159
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Mas nem todos abraçam a tecnologia e suas funcionalidades com a mesma


rapidez e/ou têm acesso aos mesmos recursos. Se antes havia uma clara
distinção entre os que eram alfabetizados e aqueles que não conseguiam ler, o
avanço tecnológico criou barreiras que podem ser ainda mais difíceis de transpor
do que a alfabetização de um indivíduo. Em tempos de obsolescência programada
e de uma incessante busca por novas funcionalidades e interação, não é nada
fácil manter-se atualizado, conseguindo dominar o último modelo de computador,
smartwatch ou smartphone, nova versão do sistema operacional, definições de
segurança da informação e acesso remoto a dados. Se você consegue garantir
atualização nisso, é preciso perguntar ainda se tem o mesmo nível de informação
e desenvoltura quando o tema da conversa passa por IOT (internet das coisas),
aplicações com uso de inteligência artificial ou registros blockchain. Isso sem
falar em registros biométricos para criptografia e nos demais aspectos relativos
à infraestrutura relacionada aos avanços tecnológicos.
Aqueles que receberam formação jurídica nos últimos 30 anos acostumaram-se
a buscar a solução de todos os problemas exclusivamente no campo jurídico e
raramente realizavam incursões noutros campos do saber. Mas o monopólio das
soluções a partir das normas jurídicas não é possível no cenário atual, considerando
os avanços científicos. Difícil propor soluções para o que não conhecemos em
profundidade ou de que não vivenciamos a utilização. Como entender um match numa
rede social, as consequências de um bloqueio de seguidor ou o compartilhamento
em serviços de streaming sem a experiência de ser usuário de uma aplicação de
semelhante natureza?
Em que ponto da aplicação de tecnologias você, caro leitor, se encontra?
Considerando a lista a seguir, o que faz parte do seu cotidiano: rádio, jornal, TV
aberta, TV por assinatura, streaming, podcast, notificações em tempo real por
aplicativos, realidade ampliada com uso de inteligência artificial e uso de assistentes
pessoais (= e.g.: Siri)? Eu poderia perguntar de outra forma: você paga suas
contas no banco? Em lotérica? Em aplicativo para telefone celular? Com dinheiro
tradicional ou com moedas eletrônicas? Será que todos ao seu redor utilizam a
tecnologia da mesma forma?

Como navegar num oceano de desafios. Hora de


inflar as velas da colaboração e da informação
Num momento de transição entre o universo de usuários e não usuários, dos
iniciados em tecnologia e daqueles que não se importam em entender como ela
funciona, é nos contratos que buscamos ferramentas de tradução da realidade e a
prevenção dos problemas que essa intensa disparidade de conhecimento provoca,

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Perspectivas no campo contratual para os próximos anos

exigindo de quem atua na área a máxima atenção com a boa-fé objetiva e o dever
de informação, que não deve se limitar à redação de cláusulas contratuais.
Lidamos com interesses diversos, acesso a informações de modo assimétrico,
o que se repete no campo financeiro e técnico. Lidar com assimetrias e com
questões que transcendem interesses individuais para o campo dos direitos
transindividuais e difusos faz-se presente na agenda de qualquer profissional. De um
trabalho tradicionalmente individualista, realizado na solidão de nossos escritórios,
passamos a experimentar um espaço aberto de colaboração, no qual múltiplos
saberes e competências são necessários para lidar com intricadas questões,
quer sejam sobre aplicações da engenharia genérica para a saúde, quer sejam
sobre a utilização de informações pessoais por terceiros para fins econômicos,
ou, ainda, sobre o risco do desenvolvimento de novas tecnologias em substituição
por máquinas de atividades exercidas por seres humanos.
Contrato combina com complexidade?
Acredito que a resposta seja afirmativa. O contrato, enquanto expressão
do exercício da liberdade negocial, vale dizer, da autonomia privada, é o espaço
privilegiado para lidar com o campo da inovação e das incertezas. Não é possível
ignorar a realidade e seus avanços. A vida não espera a regulamentação dos novos
campos de atuação pelo poder público. É justamente neste espaço de atuação que
o trabalho dos profissionais que atuam elaborando contratos se torna decisivo.
Além de definir partes e objeto do contrato, há de se analisar os efeitos da
avença para com terceiros, observar sua adequação às normas ambientais e demais
marcos regulatórios, o atendimento adequado às diretrizes de compliance do outro
contratante e por vezes dos seus parceiros, juntamente com o posicionamento
do negócio em relação aos demais stakeholders (funcionários, fornecedores,
acionistas e consumidores).
Em breve, entrará em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados,1 adicionando
novas camadas de requisitos a serem observados em contratações que há muito
tempo não se limitam a aspectos materiais do negócio, passando a regular
também o procedimento da solução de controvérsias, na busca do mecanismo
mais adequado para a resolução de problemas de execução, seja no campo do
Judiciário, seja através de um método alternativo escolhido de acordo com as
peculiaridades do caso específico.
Mais do que definir as condições de preço, forma de pagamento e obrigações
das partes, deve o profissional que elabora contratos agir prospectivamente,
analisando futuros cenários do relacionamento negocial, elegendo ferramentas

1
O art. 65 da Lei nº 13.709/2018, publicada em 15.8.2018, estabelece um vacatio legis de 24 (vinte
e quatro) meses para o início da vigência, com exceção dos artigos indicados no inciso I do referido
dispositivo.

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de superação de intercorrências na direção do melhor adimplemento possível


para contratantes que precisam enxergar no outro polo da avença um colaborador
proativo e não um antagonista.
Se nem sempre é fácil ser bem-sucedido na elaboração e execução de
contratos fechados e por tempo determinado, o que dizer dos contratos cativos de
longa duração, vale dizer, dos contatos relacionais, cuja duração se confunde com
a própria existência dos seus figurantes? Para ilustrar, cabe aqui uma pergunta:
desde quando, caro leitor, você tem plano de saúde e até quando pretende mantê-lo?
No modelo dos contratos relacionais, a alocação dos riscos do negócio vai
sendo alterada durante a sua própria execução, não sendo possível, no momento
de sua celebração, precisar o cenário futuro após décadas de vigência de cláusulas
negociais pensadas noutro contexto de regulação e equilíbrio econômico.
Para lidar com situações como a acima descrita, desenvolvem-se teorias acerca
de contratos propositalmente incompletos, nos quais a mencionada alocação de
riscos não é estabelecida no momento de sua celebração, estabelecendo-se, ao
contrário, mecanismos para a solução das contingências ao tempo em que forem
surgindo.
Em tempos de economia do compartilhamento, em que ter propriedade
plena, para muitos, deixa de ser algo essencial, para ser substituído pelo direito
de uso de certos bens por determinados períodos – considerando-se ainda que a
velocidade da disrrupção dos avanços tecnológicos pode tornar obsoleto determinado
serviço em poucos anos –, fazer uso de formas deliberadamente incompletas de
contratos, permitindo avenças sucessivas entre as partes ou a deliberação dos
problemas por terceiros previamente estabelecidos para a resolução de questões
pontuais, passará a ser uma estratégia negocial cada vez mais frequente, a fim de
enfrentar as mudanças de circunstâncias que interferem no equilíbrio do acordo
entre as partes.

Enfim as perspectivas...
Estamos acostumados a visualizar os contratos como um texto cheio de
itens registrados em papel e temos dificuldade em reconhecer, com o mesmo
grau de importância e necessidade de atenção, formas de contratação verbais e,
especialmente, aquelas realizadas por interação eletrônica. Ainda existem os que
pensam que “se não está registrado em papel no cartório, não é tão importante”.
Aqui não me refiro apenas à contratação em sites de comércio eletrônico, mas a
negócios celebrados em redes sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram) e dentro
de aplicativos de jogos e utilitários. Juntem-se a isso as plataformas on-line de
resolução de conflitos e as transações negociais sobre direitos patrimoniais
disponíveis.

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Perspectivas no campo contratual para os próximos anos

Contratamos quando realizamos o download de um joguinho, por mais


inofensivo que ele pareça, pois concordamos em dar acesso a dados pessoais que
vão remunerar a utilização do aplicativo, em conjunto com a publicidade que deve
ser assistida como um requisito para mudar de fase ou conseguir alguma vantagem
no jogo. Desenvolvedor, provedores de acesso e aplicação, agentes de marketing,
empresas interessadas em divulgar produtos e serviços, são figurantes de uma
cadeia complexa de fornecedores que apresenta diversas coligações contratuais,
sendo difícil enxergar todo o quadro negocial envolvido.
Um dos maiores desafios que os próximos anos nos reservam é a forma
como colocaremos em prática a necessária tradução de uma teoria contratual
analógica para um mundo digital. De nada adianta discutir com um profissional
o que seria um contrato “5.0” quando não se compreendem adequadamente as
categorias fundamentais de um contrato “1.0”. Cite-se, por exemplo, a cada vez
mais frequente referência a smart contracts. Mesmo quando celebrados de modo
automatizado, por vezes com utilização de recursos de inteligência artificial, os
requisitos de existência, validade e eficácia estão presentes na programação que
possibilita sua concretização no mundo jurídico.
Via de regra, experimentamos um período de lacuna legislativa sobre parte
considerável dos avanços tecnológicos citados acima. Enquanto operadores do
direito, não podemos aguardar a elaboração de novas leis para tratar das situações
que já estão a ocorrer. Há de se funcionalizar e ressignificar institutos clássicos
da teoria contratual e fazer uso de uma hermenêutica contratual que garanta
efetividade aos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição.
É preciso discutir o futuro (= novas formas de contratação e a necessidade
de sua regulação), sem esquecer o presente (= tradução e ressignificação dos
institutos). Nesse aspecto, o advento de novas iniciativas legislativas não pode
comprometer uma base teórica sólida que vem sendo lapidada no último século.
Desse modo, causa preocupação o projeto de um novo Código Comercial2
que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais
autônoma,3 ao mesmo tempo que, infelizmente, não aprofunda em seu texto o
debate sobre as inovações tecnológicas aqui debatidas. As referências ao comércio
eletrônico, utilização de documentos eletrônicos e, principalmente, responsabilidade
dos empresários no meio digital carecem de maior discussão e diálogo com outros

2
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 487, de 2013. Reforma o Código Comercial. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115437. Acesso em: 25 mar. 2020.
3
Para aprofundar a questão, remete-se o leitor ao artigo: SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello.
A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código
Comercial. Migalhas Contratuais, 18 nov. 2019. Disponível em: link https://www.migalhas.com.br/Miga
lhasContratuais/136,MI315377,61044-A+desnecessidade+de+uma+teoria+geral+da+obrigacao+empre
sarial+e+os. Acesso em: 25 mar. 2020.

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microssistemas, o que em muito poderia contribuir, especialmente no que se refere


às relações empresariais assimétricas, num país no qual parcela considerável
dos empresários pode ser enquadrada como pequenos e microempreendedores.
Após todo o esforço de unificação da teoria das obrigações negociais efetuado
com a criação do Código Civil em 2002, a simples leitura de alguns dispositivos
do referido projeto permite detectar diversos pontos em que não se observa a
melhor técnica,4 desconsiderando-se o entendimento doutrinário e jurisprudencial
já sedimentado em nosso país. A aprovação do texto do projeto, na sua versão
atual, repristinaria vários debates no Judiciário sobre a natureza jurídica da relação
(v.g., se civil ou comercial), criando um ambiente que parece ser o oposto de quem
sustenta serem necessárias a segurança e a previsibilidade na alocação de riscos
para o desenvolvimento econômico.
Nos dias atuais, há de se compreender os vários matizes do contrato con-
temporâneo. Quando se menciona “contrato”, de qual espécie estamos tratando?
Seria um contrato paritário, com partes em condições de igualdade, em posição
de discutir de modo equidistante e leal seu conteúdo? Seria um contrato entre
particulares, preocupado com o valor de uso do bem e as necessidades pessoais
de sua família? Estamos tratando de um contrato massificado, impessoal, com
predisposição unilateral de suas condições para o oferecimento de produtos
ou serviços em que não há espaço para sua customização de acordo com as
necessidades individuais específicas? Por acaso seria um ajuste coletivo, que
versa sobre interesses de um grupo, com posição jurídica semelhante? Estamos
lidando com um contrato celebrado entre pessoas que gozam de capacidade civil e
têm plenas condições de compreender o sentido e alcance técnico, econômico e/
ou jurídico das cláusulas estabelecidas, ou estamos diante de relações marcadas
por uma vulnerabilidade latente e que necessita de regulação?
Tratando de regulação, estamos elaborando um contrato típico com entendi-
mento jurisprudencial consolidado ou lidando com o desafio da lacuna legislativa,
num ambiente de forte interferência dos avanços tecnológicos que exigem novas
soluções para a garantia da validade e eficácia dos pactos?
A tecnologia não está apenas no conteúdo das avenças, mas na forma de
sua celebração. Já estão entre nós contratos celebrados em vídeo, cláusulas
negociais com explicação em áudio, hiperlink para um glossário ou ainda para um
questionário específico, a fim de tornar inequívoca a manifestação da vontade, bem
como o consentimento negocial utilizando assinatura criptografada e registro do

4
Para outras considerações e críticas ao projeto, ver o artigo: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. A
interpretação do negócio jurídico empresarial no projeto de Código Comercial do Senado Federal nº
487/2013. Migalhas Contratuais, 16 dez. 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/
migalhas-contratuais/317033/a-interpretacao-do-negocio-juridico-empresarial-no-projeto-de-codigo-comercial-
do-senado-federal-n-487-2013. Acesso em: 25 mar. 2020.

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Perspectivas no campo contratual para os próximos anos

negócio exclusivamente em meio digital. Em vez de ir ao cartório assinar a escritura,


utilizamos um token para assinar e obter o código de validação, lançando mão
das mais variadas formas de plataforma de mídia. Porém, conforme mencionado
acima, os contratos ditos “inteligentes” ainda dependem de pessoas responsáveis
por sua programação e aplicação.
A fronteira de até onde avançaremos com a inteligência artificial e a internet
das coisas ainda está longe de ser definida. Mas o receio daqueles que imaginam
que serão substituídos em breve por uma máquina pode reduzir um pouco se nos
prepararmos para um novo período no qual a capacidade de argumentação e a
criatividade ganharão cada vez mais espaço em detrimento da cômoda opção de
realizar tarefas repetitivas.
O contrato do futuro marcará o início de uma caminhada e não necessaria-
mente traçará todos os capítulos do percurso dos contratantes. Os profissionais
que atuarem no setor não se despedirão dos figurantes negociais no dia de sua
celebração, mas acompanharão a jornada e as necessárias correções de rumo na
busca de benefícios mútuos, incorporando avanços científicos, novas oportunidades
e interesses, desde que não percamos de vista que o contrato, como instrumento de
integração social, evolui e acompanha nossa sociedade em todos os seus passos.
Tem-se afirmado com frequência que não podemos ignorar os avanços. Mas
disrrupção e inovação não significam ignorar de onde viemos. Se pretendemos
visualizar para onde estamos seguindo, é preciso compreender como chegamos
até aqui e quais foram os agentes da mudança.
Sem entender nossos erros e como eles ocorreram, estamos fadados a
repeti-los. Se todos parecem concordar que a perspectiva é de mudança, os caminhos
para ela não são unânimes e alguns parecem bem tortuosos. Para lançar um pouco
de luz sobre a direção a seguir, devemos reafirmar nosso compromisso com a
proteção dos sujeitos. A garantia da dignidade não transige com a necessidade
de colocar os contratos a serviço das pessoas, e não o contrário.
Que tenhamos um excelente ano.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 159-165, jan./abr. 2020 165
Efeitos econômicos da pandemia de
COVID-19 nos con­tratos empresariais
brasileiros e a possibilidade de uma
das partes contratantes majorar
economicamente a prestação contratual
em relação a outra parte contratante

Pablo Malheiros da Cunha Frota


Pós-Doutorando em Direito na Universidade de Brasília (2019). Doutor em Direito das
Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2013). Mestre em Função Social do
Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (2008). Especialista em Direito
Civil pela Unisul (2006). Especialista em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (2013). Graduado em Direito na Universidade Católica de Brasília
(2004). Graduando em Filosofia na Universidade Católica de Brasília (2018). Professor
Adjunto em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Professor
Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG. Cofundador da
Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Líder do Grupo de Pesquisa
Realizando o Direito Privado na Universidade Federal de Goiás. Diretor de Publicação
do IBDCONT. Diretor do IBDFAM/DF. Membro do IBDFAM, do BRASILCON, do IBDCIVIL,
da ABDCONST, da ABEDI, da ALDIS, do IAB, do Instituto Luso-Brasileiro de Direito e do
IBERC. Pesquisador do Grupo Virada de Copérnico (UFPR) e do Grupo Constitucionalização
das Relações Privadas (UFPE). Assessor Jurídico na Terracap (DF). Advogado. ORCID:
0000-0001-7155-9459. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0988099328056133.

Wesley Bento
Advogado com experiência em Direito Constitucional e Administrativo. Procurador do
Distrito Federal. Pós-Graduado pela PUC-SP. Conselheiro Titular da Ordem dos Advogados
do Brasil – Seccional do DF. Presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB/DF.
Coautor do livro Licitações, contratos e convênios administrativos: desafios e perspectivas.
Foi Assessor Jurídico no Governo do Distrito Federal, Conselheiro Suplente do Conselho
Superior da Procuradoria-Geral do DF e Vice-Presidente do Sindicato dos Procuradores e
dos Defensores Públicos do DF.

EMENTA:
1 – A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da
doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19) – doença respi-
ratória nova, cuja transmissão ocorre principalmente de pessoa a
pessoa – constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância
Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme
previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
2 – É indiscutível que a pandemia de COVID-19 produz efeitos na
saúde pública, na sociedade, na economia de cada país, o que não
é diferente no Brasil. Por isso, tanto a União como os Estados, os
Municípios e o DF têm adotado um conjunto de medidas para conter
todos os efeitos da citada pandemia.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 167
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

3 – No aspecto econômico, a União, por meio, entre outros, do CADE


e da Senacon, tem combatido o aumento abusivo de preço, como se
infere, por exemplo:
a) da notificação, em 18.03.2020, da Senacon à Associação Brasi-
leira de Redes de Farmácias e Drogarias (ABRAFARMA), à Associa-
ção Brasileira de Supermercados (ABRAS) e aos diversos produtores
de máscaras e álcool em gel no Brasil para que expliquem aumento
abusivo de preços praticados no Estado de Santa Catarina;
b) da instauração, em 18.03.2020, pelo CADE de procedimento pre-
paratório de inquérito administrativo nº 08700.001354/2020-48
para investigar o setor de produtos médicos-farmacêuticos.
4 – No aspecto econômico, o DF também tem combatido o aumento
abusivo e a ocultação de produtos de proteção contra a COVID-19,
como álcool em gel, luvas e máscaras em farmácias do DF, seja
pelos arts. 6º e 7º do Decreto Distrital nº 40.539/20, antigo art.
5º do revogado Decreto Distrital nº 40.520/20, corporificada pela
atuação do Procon-DF, na forma do inciso III do art. 36 da Lei Fe-
deral nº 12.529/11 e do inciso II do art. 2º do Decreto Federal nº
52.025/63.
5 – A pandemia de COVID-19 pode ser considerada caso fortuito ou
de força maior, como foi reconhecido em 2010 pelo TJSP no caso da
H1N1, visto que os dois requisitos estão preenchidos:
(i) inevitabilidade das consequências contra o adimplemento contra-
tual, uma vez que nenhum comportamento das partes contratantes
poderia evitar os deletérios efeitos econômicos advindos de uma
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, caracteri-
zada pela OMS como pandemia em 11.03.2020. Isso porque os “co-
ronavírus são a segunda principal causa do resfriado comum (após
rinovírus) e, até as últimas décadas, raramente causavam doenças
mais graves em humanos do que o resfriado comum”, como aponta-
do pela OMS (grifo nosso). Desse modo, a inevitabilidade de efeitos
era estranha à atividade das partes contratantes, impossibilitando-
as de agir para impedir tal evento, mesmo para quem trabalha na
área de saúde, o que ensejou o Decreto nº 6/2020, que reconheceu
o Estado de Calamidade Pública, na forma do art. 136 da CF/88 e
do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É a primeira vez
desde a entrada em vigor que da LRF que o Brasil entrou em Estado
de Calamidade Pública;
(ii) necessidade, visto que as partes contratantes não contribuíram
para a ocorrência da pandemia de COVID-19, a cumprir com o requi-
sito posto no art. 393, § único, do CC.
6 – A pandemia de COVID-19, mesmo sendo caso fortuito e de força
maior, não produzirá o efeito de excluir a responsabilidade da parte
contratante se ela assumiu a responsabilidade pelo adimplemento
da prestação mesmo se ocorresse caso fortuito ou de força maior,
como se extrai da segunda parte do caput do art. 393 do CC.
7 – A pandemia de COVID-19 permite a revisão da relação contratual
entre as partes, tendo em vista que os efeitos econômicos deletérios
trazidos pela pandemia de COVID-19 nos contratos empresariais entre
as partes são considerados imprevisíveis e extraordinários não só por
terem causado manifesto desequilíbrio superveniente à conclusão do

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

contrato entre as partes, mas também por a consequência deste de-


sequilíbrio ter sido extraordinária, como posto neste parecer.
8 – A mencionada revisão da relação contratual não permite a con-
cretização de novas desproporções contingenciais desmerecedoras
de tutela do ordenamento por violarem os princípios contratuais,
como o da equivalência material, até porque a majoração desmedida
das prestações contratuais afetará a população do DF, a violar os
arts. 6º e 7º do Decreto Distrital nº 40.539/2020, assim como se
enquadrar em abuso do poder econômico, do inciso III do art. 36 da
Lei Federal nº 12.529/11 e do inciso II do art. 2º do Decreto Federal
nº 52.025/63.

1 Consulta
Consulta. A XXXXX honra-nos com a consulta acerca dos efeitos econômicos
da pandemia de COVID-19 nos contratos empresariais brasileiros e a possibilidade
de uma das partes contratantes majorar economicamente a prestação contratual
em relação à outra parte contratante.
Divisão do parecer. Nessa senda, para cumprir a finalidade do parecer,
este foi dividido em quatro tópicos: (1) consulta; (2) aspectos metodológicos; (3)
fundamentos jurídicos do parecer e resposta à consulta; (4) conclusão.

2 Aspectos metodológicos do parecer


Problema. O problema a ser resolvido neste parecer é: No âmbito de um
contrato empresarial, a pandemia de COVID-19 e os efeitos econômicos dela
derivados preenchem os requisitos postos no art. 317 do Código Civil (CC) para fins
de revisão da relação contratual, a autorizar a majoração da prestação contratual
por uma das partes contratantes?
Hipóteses. Duas hipóteses emergem do problema acima: (i) a pandemia
de COVID-19 e os efeitos econômicos dela derivados preenchem os requisitos
postos no art. 317 do Código Civil (CC) para fins de revisão da relação contratual,
a autorizar a majoração da prestação contratual por uma das partes contratantes?
(ii) a pandemia de COVID-19 e os efeitos econômicos dela derivados preenchem os
requisitos postos no art. 317 do Código Civil (CC) para fins de revisão da relação
contratual, a autorizar a majoração da prestação contratual por uma das partes
contratantes, desde que não haja violação à equivalência material contratual?1

1
Paulo Lôbo aduz: “O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de
direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para re-harmonização dos interesses.
Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade
inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando
que as mudanças de circunstâncias possam ser previsíveis. O que interessa não é a exigência cega de
cumprimento do contrato, em sua literalidade, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva
para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras
da experiência ordinária e da razoabilidade. Parafraseando Pietro Barcellona, a equivalência material

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Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

Objetivos. Este parecer objetiva analisar os fundamentos jurídicos para fins


de solução do problema trazido na consulta, de acordo com a literatura jurídica,
com os julgados e com a legislação pertinente ao caso concreto, a possibilitar o
diálogo e tendo como objetivo específico responder duas perguntas que permeiam
a indagação da consulta2:

(i) A pandemia de COVID-19 pode ser enquadrada como caso fortuito ou de


força maior, de acordo com o art. 393, caput primeira parte e parágrafo
único, do CC?
(ii) Se a pandemia de COVID-19 for considerada caso fortuito ou de força
maior e não houver no contrato empresarial a responsabilização da parte
devedora pelo caso fortuito ou de força maior (CC, art. 393, caput segunda
parte), ela pode ser configurada como motivo imprevisível gerador de
desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento
de sua execução, a ensejar a revisão da relação contratual posta no art.
317 do CC?

Ponto de partida teórico-prático para responder à consulta. Parte-se da


premissa de que o Direito é entendido como uma atividade interpretativa,3 4 5

se apresenta como ‘o direito desigual da racionalidade material’ (1998, p. 190) (...) O princípio da
equivalência material rompe a barreira de contenção da igualdade jurídica e formal, que caracterizou a
concepção individualista do contrato. Ao juiz estava vedada a consideração da desigualdade real dos
poderes contratuais ou o desequilíbrio de direitos e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes,
formalmente iguais. O princípio desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O aspecto
subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante de uma das partes e a consequente
vulnerabilidade da outra. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor,
o aderente de contrato de adesão, entre outros. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada
pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres
contratuais, que pode estar presente na conclusão do contrato, ou na eventual mudança do equilíbrio em
virtude de circunstâncias supervenientes que acarretem a onerosidade excessiva para uma das partes.
A equivalência material é objetivamente aferida quando o contrato, seja na sua constituição, seja na sua
execução, realiza a equivalência das prestações, sem vantagens ou onerosidades excessivas originárias
ou supervenientes para uma das partes”. LÔBO, Paulo. Contratos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. Item
3.6 – edição eletrônica.
2
O sentido de diálogo para este texto é aquele advindo da dialógica de Edgar Morin: “Unidade complexa
entre duas lógicas, entidades ou instâncias complementares, concorrentes e antagônicas, que se
alimentam uma da outra, se completam, mas também se opõem e combatem. Distingue-se da dialética
hegeliana. Em Hegel, as contradições encontram uma solução, superam-se e suprimem-se numa unidade
superior. Na dialógica, os antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou dos fenômenos
complexos. É convidar a pensar-se na complexidade. Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa;
é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo –, que crê que o real se pode deixar
fechar na ideia e que acaba por considerar o mapa como o território, e contra a doença degenerativa da
racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de
ideias”. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 14. ed. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio
Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 140.
3
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge, US: Harvard University Press, 2011.
4
Essa ideia parte do pensamento de Ronald Dworkin do Direito como atividade interpretativa e de existências
de uma resposta correta para cada caso, cuja construção advém do “esforço de, diante da divergência,
encontrar a melhor interpretação possível para determinada controvérsia”. Neste processo o que está em
jogo é o valor/sentido da própria prática. Ou seja, sendo o Direito a prática social que garante legitimidade
para o uso da força pelo Estado, a melhor interpretação será aquela que articule coerentemente todos os

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

não dogmatizante, visto não ser possível “uma única resposta, mas há sempre a
possibilidade de encontrar a resposta correta no sistema jurídico, o desafio está
em percorrer os caminhos jurídicos reconhecendo as interfaces entre subjetividade
e objetividade, sem sucumbir demasiadamente em rígidas fortalezas teóricas nem
perder o rigor”.6
Uma resposta correta para a consulta. Nesse passo, somente uma das duas
hipóteses acima pode ser uma resposta correta ao problema posto, concepção
téorico-prática seguida na linha do que defendem, por exemplo, Menelick de Carvalho
Netto, Lênio Streck, Dworkin, Vera Karam de Chueiri, Fachin, entre outros, tendo
em vista ser possível “a existência de respostas corretas no Direito, constituídas
no esforço de, diante da divergência, encontrar a melhor interpretação possível
para determinada controvérsia. Neste processo o que está em jogo é o valor/
sentido da própria prática”.7
Possibilidade de se explicitar uma melhor interpretação. Por isso, a melhor
interpretação “será aquela que articule coerentemente todos os seus elementos
(regras, princípios, precedentes, etc.) a fim de que a decisão particular se ajuste ao
valor que é a sua razão de ser. Dito de outro modo, a divergência é resolvida com
a melhor justificação”.8 Torna-se indispensável, portanto, “a construção de uma

seus elementos (regras, princípios, precedentes, etc.) a fim de que a decisão particular se ajuste ao valor
que é a sua razão de ser. Dito de outro modo, a divergência é resolvida com a melhor justificação. Desse
modo, a resposta correta de Dworkin jamais poderia representar, por exemplo, uma proibição interpretativa,
uma antecipação de respostas aos problemas jurídicos ou, então, a existência de uma fórmula infalível
para certas controvérsias (pretensões que, sob certa perspectiva, aparecem na construção de súmulas
vinculantes brasileiras, por exemplo); ao contrário, a tese da resposta correta dworkiniana está centrada
numa abertura do jurista para o fenômeno interpretativo, o que faz parte da condição humana. E, nesse
aspecto, aparece outro diferencial da tese de Dworkin: a definição do Direito como prática interpretativa
não significa uma espécie de “especialidade” da esfera jurídica (como se da “vagueza e da ambiguidade
dos textos jurídicos” é que se extraísse o dever de interpretar do jurista). Pelo contrário, trata-se do
reconhecimento de que essa dimensão interpretativa é, por assim dizer, cotidiana, constitutiva das
práticas sociais, e o Direito consiste numa prática social (...) Ao mesmo tempo, tudo isso demonstra o
esforço de Dworkin em defender que existe certa objetividade no Direito, o que aparece em suas obras
a partir da defesa de certos elementos, tais como: moralidade política (construção de uma moral não
relativista); responsabilidade política do julgador (para promover a igualdade); interpretação jurídica como
romance em cadeia (vinculação do julgador a casos passados e comprometimento com as especificidades
da controvérsia)”. STRECK, Lenio Luiz. Coerência e integridade. In: STRECK, Lenio Luiz Dicionário de
hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito.
Belo Horizonte: Letramento, 2017. E-book.
5
Destaca Streck: “interpretativo é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões
a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos
regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador
(mesmo que seja o STF). Assim como a realidade, também o direito possui essa dimensão interpretativa.
Essa dimensão implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de
uma comunidade política”. STRECK, Lenio. Hermenêutica e jurisdição. Diálogos com Lenio Streck. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 91.
6
FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 2-3.
7
STRECK, Lenio Luiz. Coerência e integridade. In: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta
temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento,
2017. E-book.
8
STRECK, Lenio Luiz. Coerência e integridade. In: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta
temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento,
2017. E-book.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 171
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

justificativa racional, ou seja, a apresentação de razões que garantam a correção


da posição defendida”.9 10 11
Método.12 Para atingir o desiderato deste parecer, precisamos buscar uma
maneira de explicar o processo de formação do discurso jurídico (fenomenologia
hermenêutica) acerca do fato jurídico ensejador da presente reflexão, por meio do
método13 14 fenomenológico hermenêutico:

9
Sacrini, Marcus. Introdução à análise argumentativa (lógica). São Paulo: Paulus, 2017. Introdução. Edição
Kindle.
10
Sacrini alude sobre o sentido dos argumentos: “Entendo por argumentação uma prática social de defesa
de teses ou posições não evidentes por meio de justificativas racionais. Essa defesa normalmente envolve
uma confrontação lógica entre posições rivais, o que ocorre em diversos tipos de debates. O principal
instrumento para a progressão das argumentações, nesse sentido amplo, são os argumentos, estruturas
discursivas que buscam oferecer razões para teses não imediatamente óbvias”. Sacrini, Marcus. Introdução
à análise argumentativa (lógica). São Paulo: Paulus, 2017, Introdução. Edição Kindle.
11
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA. Conteúdo da Católica Ead para a disciplina de “Iniciação à Pesquisa
Científica”. Unidade 1 – Aula 1: Diversos tipos de conhecimento e o lugar da ciência. Disponível em:
https://minhasalaead.catolica.edu.br/course/view.php?id=1232#section-1. Acesso com login e senha.
Acesso em: 1º mar. 2020.
12
Método pode ser entendido como aporte teórico que orienta o(a) pesquisador(a) ou intérprete na investigação
de um problema para atingir o objetivo esperado, já que pesquisa pode ser compreendida como “um
procedimento sistemático que parte de um problema e que tem um objetivo a ser alcançado”. UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE BRASÍLIA. Conteúdo da Católica Ead para a disciplina de “Iniciação à Pesquisa Científica”.
Unidade 3 – Aula 1: Fundamentos da pesquisa científica. Disponível em: https://minhasalaead.catolica.
edu.br/course/view.php?id=1232#section-1. Acesso com login e senha. Acesso em: 3 mar. 2020.
13
Como se sabe, os métodos de interpretação, normalmente, “são apresentados pela dogmática jurídica
como técnicas rigorosas ou operações interpretativas realizadas em partes para extrair o sentido do texto.
Seriam instrumentos ou mecanismos procedimentais de, passo a passo, acessar o conhecimento científico
do Direito. Toda essa discussão acerca da (in)validade dos métodos ou cânones de interpretação deita
raízes nas várias concepções filosóficas acerca das condições de possibilidades que tem o homem para
apreender as coisas, como nominá-las, como conhecê-las. Portanto, remetem a um quadro mais amplo
da história do pensamento, especialmente quando se tentou estabelecer regras para conhecer. Partiu-se
de uma metodologia de interpretação dos textos religiosos, intensificada pelos movimentos da Reforma,
proliferando-se por várias hermenêuticas especiais. Nisso a disciplina do Direito se destaca, ao lado da
Teologia e da Filosofia. Passam, então, por tentativas de unificação numa teoria geral da interpretação,
sobretudo pela busca de um rigor próprio das Ciências Humanas, embora ainda espelhando a exatidão
das ciências da natureza. Este paradigma achará fortes críticas em Heidegger, com quem a filosofia se
descobre hermenêutica. Chega-se, com o giro ontológico-linguistico, à desleitura do método moderno e
reabre a possibilidade de um ‘método autêntico’, guiado pela ‘coisa mesma’ na fenomenologia. Gadamer
faz o caminho de volta da filosofia à autocompreensão metodológica das Ciências Humanas: a própria
hermenêutica é filosófica. Demonstra, a partir dos exemplos privilegiados da arte, da história e da linguagem
que o acontecer da verdade não está condicionado a um método pré-estabelecido de conhecimento”.
STRECK, Lenio Luiz. Métodos de interpretação. In: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica:
quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte:
Letramento, 2017. E-book. Desse modo, o método utilizado neste texto é condizente com a hermenêutica
filosófica.
14
Lenio Streck trata do método hermenêutico: “O método, no Direito, tem sido colocado como condição
de possibilidade. Assumiu características incompatíveis com aquilo que o conhecimento jurídico precisa
transmitir. Daí, perigosamente, o uso indiscriminado de diversos ‘métodos’, inclusive ‘ensinados’ em livros
sobre metodologia científica utilizados na área jurídica. De forma equivocada, tem sido recomendado o
uso do método dedutivo, que partiria do universal (categoria) para o particular, do geral para o individual.
Isso se mostra equivocado, porque as premissas (categoria ou uma tese geral) não são autoevidentes e
tampouco são enunciados sintéticos a priori. Isso transforma o ‘método dedutivo’ nas ciências sociais em
uma ilusão, falseando os resultados, que são produtos de categorias gerais construídas pelo intérprete ou
por ele escolhidas. Por outro lado, o método indutivo sofre de um problema similar. Como é possível partir
de uma coisa individual? Quais as condições de possibilidade para se dizer que ‘da análise do individual
se chegará ao geral’? Ou do empírico para o hipotético? Outro método que não apresenta qualquer clareza

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

(...) o método fenomenológico, pelo qual se reconstrói o problema


jurídico a partir de sua história institucional, para, ao final, permitir
que ele apareça na sua verdadeira face. O Direito é um fenômeno
que se mostra na sua concretude, mas sua compreensão somente
se dá linguisticamente. Por isso, compreender o fenômeno jurídico
significa compreendê-lo a partir de sua reconstrução. Não existem
várias realidades; o que existe são diferentes visões sobre a reali-
dade. Isto quer dizer que não existem apenas relatos ou narrativas
sobre o Direito. Existem, sim, amplas possibilidades de dizê-lo de
forma coerente e consistente.
Assim, cada caso jurídico concreto pode ter diferentes interpreta-
ções. Mas isso não quer dizer que dele e sobre ele se possam fazer
quaisquer interpretações. Fosse isso verdadeiro poder-se-ia dizer
que Nietzsche tinha razão quando afirmou que “fatos não existem;
o que existe são apenas interpretações”. Contrariamente a isso, po-
de-se contrapor que, na verdade, somente porque há fatos é que
existem interpretações. E estes fatos que compõem a concretude do
caso podem – e devem – ser devidamente definidos e explicitados.15
Como diz Streck, a escolha pela fenomenologia representa a su-
peração da metafísica no campo do Direito, de tal modo que uma
abordagem hermenêutica – e, portanto, crítica – do Direito jamais
pretenderá ter a última palavra. E isso já é uma grande vantagem,
sobretudo no paradigma da intersubjetividade.16

Aplicação do método fenomenológico hermenêutico no caso concreto. No


presente parecer, pelo método fenomenológico-hermenêutico, revolver-se-á o sentido
dos institutos jurídicos abarcados pelo fato jurídico ora analisado (pandemia de
COVID-19 e os seus efeitos econômicos nos contratos empresariais submetidos
ao Código Civil brasileiro).
Metodologia.17 Nessa linha, conjuntamente com o método fenomenológico
hermenêutico temos uma metodologia de procedimento e de abordagem. A

epistêmica é o ‘dialético’. Interessante que quem o usa jamais o explica. Haveria uma tese e uma antítese?
O resultado da pesquisa seria uma síntese? Por tais razões é que o método hermenêutico-fenomenológico
adaptado e adotado pela CHD parece ter os elementos necessários para se chegar à compreensão de
um fenômeno. Revolve-se o chão linguístico em que está (sempre) assentada uma determinada tradição;
reconstrói-se-lhe a história institucional, fazendo com que o fenômeno se desvele, como em um palimpsesto.
Método fenomenológico-hermenêutico também quer dizer ‘desleituras’. O revolvimento do chão linguístico
implica desler as coisas. E, ao desler, a coisa exsurge sob outra vestimenta fenomenológica, como no
exemplo citado acerca do crime de escalada”. STRECK, Lenio Luiz. Método hermenêutico. In: STRECK,
Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica
hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. E-book.
15
STRECK, Lenio. Parecer. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/manifestacao-politica-juizes-nao-
punida.pdf. Acesso em: 2 nov. 2017.
16
TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Crítica Hermenêutica do Direito: do quadro referencial
teórico à articulação de uma posição filosófica sobre o Direito. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 9, ano 3, p. 311-326, set.-dez. 2017, p. 325.
17
Nesse sentido alude Abbagnano: “Os analistas contemporâneos também rejeitam o primeiro pressuposto
da teoria do C., isto é, que o conhecimento é uma forma ou categoria universal que pode ser indagada
como tal: assumem como objeto de indagação os procedimentos efetivos ou linguagem científica, e
‘conhecimento’ em geral. Portanto, teoria C. perdeu seu significado na filosofia contemporânea e foi

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 173
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

metodologia de procedimento se fulcra na análise da literatura jurídica e de


julgados de Tribunais sobre o tema. A metodologia de abordagem se ampara em
uma linha crítico-metodológica, baseada em uma teoria crítica da realidade que
compreende o Direito como problema e como uma “rede complexa de linguagens
e de significados”.18
Necessidade de resposta adequada. Em síntese, a interpretação a ser feita por
nós deve ser adequada material e processualmente em seus vieses constitucional
e infraconstitucional tendo em vista as posições jurídicas19 das partes contratantes
nos citados contratos.

3 Fundamentos jurídicos do parecer e resposta à consulta


O que é isto – pandemia de COVID-19? No sítio da Organização Mundial de
Saúde (OMS)20 obtivemos as seguintes informações sobre o surto de doença por
coronavírus (COVID-19) – “doença respiratória nova (...) Atualmente, a transmissão
se dá principalmente de pessoa a pessoa”:21

Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde


(OMS) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de
Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Tratava-
se de uma nova cepa (tipo) de coronavírus que não havia sido identi-
ficada antes em seres humanos.
Uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020, as autoridades chi-
nesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coro-
navírus. Os coronavírus estão por toda parte. Eles são a segunda

substituída por outra disciplina, a metodologia (v.), que é a análise das condições e dos limites de validade
dos procedimentos de investigação e dos instrumentos linguísticos do saber científico”. ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. Rev. Ivone Castilho Benetti. São Paulo: Martins Fontes,
2007. p. 174-183, p. 183. A metodologia pode ser entendida, também, como a forma como realizamos
a investigação aliada ao método. UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA. Conteúdo da Católica Ead para
a disciplina de “Iniciação à Pesquisa Científica”. Unidade 3 – Aula 1: Fundamentos da pesquisa científica.
Disponível em: https://minhasalaead.catolica.edu.br/course/view.php?id=1232#section-1. Acesso com
login e senha. Acesso em: 3 mar. 2020.
18
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática.
4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. p. 21.
19
O sentido de posição jurídica “indica um conjunto de direitos, deveres e competências conjugados de
modo organizado e inter-relacionado. Sempre que o direito disciplina certas situações típicas, atribuindo
situações ativas e passivas indissociáveis entre si, surge uma posição jurídica. O conceito de posição
jurídica permite compreender a impossibilidade de reduzir o objeto de exame apenas a um dos ângulos
(ativo ou passivo). Há um conjunto de poderes, que se entranha com os direitos e os deveres, que somente
podem ser isolados para fins didáticos. É evidente que o conceito de posição jurídica não é privativo do
direito público. Assim, por exemplo, o titular do poder familiar ocupa uma posição jurídica, o mesmo se
dizendo quanto ao cônjuge”. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo:
RT, 2018. Capítulo 15, Item 13.2. Edição eletrônica.
20
OMS. Disponível em: https://www.who.int/es/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso
em: 19 mar. 2020.
21
OMS. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em: https://www.
paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:folha-informativa-novo-coronavirus-
2019-ncov&Itemid=875. Acesso em: 19 mar. 2020.

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

principal causa de resfriado comum (após rinovírus) e, até as últimas


décadas, raramente causavam doenças mais graves em humanos
do que o resfriado comum.
Ao todo, sete coronavírus humanos (HCoVs) já foram identificados:
HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63, HCoV-HKU1, SARS-COV (que
causa síndrome respiratória aguda grave), MERS-COV (que causa
síndrome respiratória do Oriente Médio) e o, mais recente, novo co-
ronavírus (que no início foi temporariamente nomeado 2019-nCoV e,
em 11 de fevereiro de 2020, recebeu o nome de SARS-CoV-2). Esse
novo coronavírus é responsável por causar a doença COVID-19.
A OMS tem trabalhado com autoridades chinesas e especialistas
globais desde o dia em que foi informada, para aprender mais sobre
o vírus, como ele afeta as pessoas que estão doentes, como podem
ser tratadas e o que os países podem fazer para responder.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) tem prestado apoio
técnico aos países das Américas e recomendado manter o sistema
de vigilância alerta, preparado para detectar, isolar e cuidar precoce-
mente de pacientes infectados com o novo coronavírus.

Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional


Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto do novo co-
ronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância
Internacional (ESPII) – o mais alto nível de alerta da Organização,
conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Essa de-
cisão buscou aprimorar a coordenação, a cooperação e a solidarie-
dade global para interromper a propagação do vírus. Essa decisão
aprimora a coordenação, a cooperação e a solidariedade global para
interromper a propagação do vírus.
A ESPII é considerada, nos termos do Regulamento Sanitário Interna-
cional (RSI), “um evento extraordinário que pode constituir um risco
de saúde pública para outros países devido a disseminação interna-
cional de doenças; e potencialmente requer uma resposta interna-
cional coordenada e imediata”.
É a sexta vez na história que uma Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional é declarada. As outras foram:
• 25 de abril de 2009 – pandemia de H1N1
• 5 de maio de 2014 – disseminação internacional de poliovírus
• 8 agosto de 2014 – surto de ebola na África Ocidental
• 1º de fevereiro de 2016 – vírus zika e aumento de casos de micro-
cefalia e outras malformações congênitas
• 18 maio de 2018 – surto de ebola na República Democrática do
Congo
A responsabilidade de se determinar se um evento constitui uma
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional cabe ao
diretor-geral da OMS e requer a convocação de um comitê de espe-
cialistas – chamado de Comitê de Emergências do RSI.
Esse comitê dá um parecer ao diretor-geral sobre as medidas re-
comendadas a serem promulgadas em caráter emergencial. Essas
Recomendações Temporárias incluem medidas de saúde a serem
implementadas pelo Estado Parte onde ocorre a ESPII – ou por ou-
tros Estados Partes conforme a situação – para prevenir ou reduzir a

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 175
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

propagação mundial de doenças e evitar interferências desnecessá-


rias no comércio e tráfego internacional.
Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS
como uma pandemia. O termo “pandemia” se refere à distribuição
geográfica de uma doença e não à sua gravidade. A designação re-
conhece que, no momento, existem surtos de COVID-19 em vários
países e regiões do mundo.22

Situação da pandemia de COVID-19 no Brasil. No Brasil, a OMS trouxe as


seguintes informações:

Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo corona-


vírus)
Atualizada em 18 de março de 2020
Principais informações
Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
declarou que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (CO-
VID-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância
Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme
previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Em 11 de março de
2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia.
Os coronavírus são a segunda principal causa do resfriado comum
(após rinovírus) e, até as últimas décadas, raramente causavam
doenças mais graves em humanos do que o resfriado comum.
Há sete coronavírus humanos (HCoVs) conhecidos, entre eles o SAR-
S-COV (que causa síndrome respiratória aguda grave), o MERS-COV
(síndrome respiratória do Oriente Médio) e o SARS-CoV-2 (vírus que
causa a doença COVID-19).
Foram confirmados no mundo 191.127 casos de COVID-19 (15.123
novos em relação ao dia anterior) e 7.807 mortes (786 novas em re-
lação ao dia anterior) – sendo 91.845 casos e 3.357 mortes na Re-
gião do Pacífico Ocidental; 74.760 casos e 3.352 mortes na Região
Europeia; 18.060 casos e 1.010 mortes na Região do Mediterrâneo
Oriental; 4.979 casos e 68 mortes na Região das Américas; 538
casos e nove mortes na Região do Sudeste Asiático; e 233 casos e
quatro mortes na Região Africana.
O Brasil confirmou 291 casos e uma morte. O país anunciou recente-
mente uma série de orientações para reduzir o contágio da doença,
incluindo questões relacionadas a aglomeração de pessoas, gran-
des eventos, pessoas que retornam de viagens internacionais, cum-
primentar evitando apertos de mão e beijos, entre outras.
A OPAS e a OMS estão prestando apoio técnico ao Brasil e outros
países, na preparação e resposta ao surto de COVID-19.
As medidas de proteção são as mesmas utilizadas para prevenir
doenças respiratórias, como: se uma pessoa tiver febre, tosse e

22
OMS. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em: https://www.
paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:folha-informativa-novo-coronavirus-
2019-ncov&Itemid=875. Acesso em: 19 mar. 2020.

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dificuldade de respirar, deve procurar atendimento médico assim que


possível e compartilhar o histórico de viagens com o profissional de
saúde; lavar as mãos com água e sabão ou com desinfetantes para
mãos à base de álcool; ao tossir ou espirrar, cobrir a boca e o nariz
com o cotovelo flexionado ou com um lenço – em seguida, jogar fora
o lenço e higienizar as mãos.(...)
Que tem maiores riscos de ter a doença agravada?
Adultos com mais de 60 anos
Pessoas com doenças preexistentes, como diabetes e cardiopatias
Como a doença é transmitida?
Pelo contato pessoal com pessoas infectadas ou por meio de tosse
ou espirro de pessoas infectadas.
Ao tocar objetos ou superfícies contaminadas e em seguida tocar a
boca, nariz ou olhos.
Até o momento, não há vacina nem tratamento específico, somente
tratamento de sintomas. Os casos graves podem precisar de oxigê-
nio suplementar e ventilação mecânica.23

Medidas de prevenção e tentativa de controle da COVID-19 no mundo e no


Brasil. Diante da mencionada pandemia ter sido enquadrada como Emergência
de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da
Organização pela OMS, tanto a OMS, como vários países do mundo, entre eles
o Brasil, informam à sociedade medidas “para reduzir o contágio da doença,
incluindo questões relacionadas a aglomeração de pessoas, grandes eventos,
pessoas que retornam de viagens internacionais, cumprimentar evitando apertos
de mão e beijos, entre outras”.24
Algumas consequências da COVID-19 no Brasil. Nesse contexto, o Estado
brasileiro tomou algumas medidas, a saber:
a) Restrição de acesso ao Brasil por via aérea e terrestres de estrangeiros(as)
não residentes no país dos seguintes países: Argentina, Bolívia, Colômbia, Paraguai,
Peru, Suriname, Guiana e Guiana Francesa que possuem muitos casos de COVID-19,
conforme Portaria nº 125, de 19 de março de 2020, bem como de cidadãos(ãs)
da Venezuela, de acordo com a Portaria nº 120, de 18 de março de 2020;25
b) A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça e
Segurança Pública notificou, em 18.03.2020, a Associação Brasileira de Redes de
Farmácias e Drogarias (ABRAFARMA), a Associação Brasileira de Supermercados

23
OMS. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em: https://www.
paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:folha-informativa-novo-coronavirus-
2019-ncov&Itemid=875. Acesso em: 19 mar. 2020.
24
OMS. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em: https://www.
paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:folha-informativa-novo-coronavirus-
2019-ncov&Itemid=875. Acesso em: 19 mar. 2020.
25
Informação obtida do sítio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.novo.
justica.gov.br/news/coronavirus-portaria-restringe-entrada-de-estrangeiros-de-oito-paises-no-brasil. Acesso
em: 19 mar. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 177
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

(ABRAS) e diversos produtores de máscaras e álcool em gel no Brasil para que


expliquem aumento abusivo de preços praticados no Estado de Santa Catarina;26
c) A Senacon alerta aos fornecedores que mantenham as campanhas de
recall ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), de acordo
com o que determina a Portaria nº 618/2019, todavia, em razão da COVID-19,
recomendou que os(as) consumidores(as) evitem sair de casa enquanto “perdurar
o cenário de pandemia. A Senacon também recomenda que as empresas avaliem
a necessidade de readequação de suas campanhas antigas”;27
d) o Cade, em 18.03.2020, instaurou o procedimento preparatório de inquérito
administrativo nº 08700.001354/2020-48 para investigar o setor de produtos
médicos-farmacêuticos. Isso porque:

A decisão foi tomada tendo em vista a situação de elevada deman-


da por esses produtos em decorrência da necessidade de cuidados
emergenciais motivados pelo aumento de casos relacionados à CO-
VID-19 no Brasil.
De acordo com o despacho de instauração, o CADE avaliou que é ne-
cessário averiguar se empresas do setor de saúde estariam aumen-
tando os preços e lucros de forma arbitrária e abusiva, o que exige
uma atuação da autarquia para zelar que tais abusos, se efetiva-
mente verificados, sejam punidos com base na Lei nº 12.259/2011.
As empresas do setor de saúde, tais como: hospitais, laboratórios,
farmácias, distribuidores e fabricantes de máscaras cirúrgicas, ál-
cool em gel, e fabricantes de medicamentos para tratamento dos
sintomas da COVID-19 serão oficiadas para apresentar, no prazo de
10 dias, as notas fiscais de aquisição dos produtos.
O procedimento preparatório 08700.001354/2020-48 é público
e a sua tramitação pode ser acompanhada neste link https://sei.
cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.
php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08m-
g6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcfHGOR1cj-ICxg0e-
68-LPsegN5BBobYAfJO966bdAbq628

e) Criação do painel de monitoramento da COVID-19 no Brasil pelo Ministério


da Justiça e de Segurança Pública29 em conjunto com o Ministério da Saúde.30

26
Informação obtida do sítio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.
novo.justica.gov.br/news/ministerio-solicita-informacoes-sobre-aumento-no-preco-do-alcool-gel-e-mascaras.
Acesso em: 19 mar. 2020.
27
Informação obtida do sítio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.novo.
justica.gov.br/news/senacon-orienta-empresas-e-consumidores-sobre-a-realizacao-de-campanhas-de-recall-
durante-o-periodo-de-calamidade-publica. Acesso em: 19 mar. 2020.
28
Informação obtida do sítio do CADE. Disponível em: http://www.cade.gov.br/noticias/cade-abre-investigacao-
no-setor-de-produtos-medicos-farmaceuticos. Acesso em: 19 mar. 2020.
29
Informação obtida do sítio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.
justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/sinesp-1/bi/dados-seguranca-publica. Acesso em: 19
mar. 2020.
30
Informação obtida do sítio do Ministério da Saúde. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=
eyJrIjoiMjg1MjA0ZGUtYzc0Yy00NTc5LTk2YTgtZDgxOWI0MjFlMTVkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDN
mNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 19 mar. 2020.

178 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020
Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

Neste painel, até o dia 20.03.2020 foram confirmados 2 (dois) casos de COVID-19
em fevereiro de 2020 e de 902 (novecentos e dois) casos confirmados no mês de
março de 2020, com 11 (onze) mortes e 2(dois) casos curados;31
f) Medidas de prevenção da COVID-19 nos presídios brasileiros;32
g) O Ministério da Saúde fez um Plano de Contingência Nacional para Infecção
Humana pelo novo coronavírus (COVID-19);33
h) “Ministério da Saúde anunciou a liberação de R$ 432 milhões aos estados
para o reforço do plano de contingência encaminhado pelas unidades da federação
para o enfrentamento da COVID-19”;34
i) O Ministério da Economia tomou as seguintes medidas até o dia 19.03.2020:

16 de março de 2020:
Algumas medidas já tomadas podem injetar R$ 147,3 bilhões na
economia. A maior parte (R$ 83,4 bilhões) direcionados para a po-
pulação mais idosa e quase R$ 60 bilhões irão para a manutenção
de empregos;
Para dar mais capital de giro para as empresas, o governo suspen-
deu por três meses o prazo para empresas pagarem o Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e também a parte referente à
parcela da União no Simples Nacional;
Nesse sentindo ainda, as contribuições devidas ao Sistema S so-
frerão redução de 50% por três meses para não afetar o caixa das
empresas;
O governo antecipou a segunda parcela do 13º salário de aposenta-
dos e pensionistas do INSS para o mês de maio. Antes, já tínhamos
anunciado que a primeira parcela seria antecipada para abril;
Para colocar ainda mais recursos na praça para movimentar a eco-
nomia, vamos transferir os valores não sacados do PIS/Pasep para
o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para permitir novos
saques;
E antecipar para junho o pagamento do abono salarial;
Para reforçar a Saúde, o governo vai destinar o saldo do fundo do
DPVAT para o Sistema Único de Saúde (são mais R$ 4,5 bilhões);
Cortamos temporariamente o IPI para bens produzidos internamente
ou importados, que sejam necessários ao combate da COVID-19;
Facilitamos a renegociação de operações de créditos de empresas
e de famílias porque dispensamos os bancos de aumentarem a

31
Informação obtida do sítio do Ministério da Saúde. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=
eyJrIjoiMjg1MjA0ZGUtYzc0Yy00NTc5LTk2YTgtZDgxOWI0MjFlMTVkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDN
mNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 19 mar. 2020.
32
Informação obtida do sítio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.
novo.justica.gov.br/news/ministros-moro-e-mandetta-definem-medidas-de-prevencao-do-coronavirus-nos-
presidios. Acesso em: 21 mar. 2020.
33
Informação obtida do sítio do Ministério da Saúde. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/
images/pdf/2020/fevereiro/13/plano-contingencia-coronavirus-COVID19.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
34
Informação obtida do sítio do Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/
agencia-saude/46547-estados-terao-r-432-milhoes-para-enfrentar-covid-19. Acesso em: 19 mar. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 179
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

poupança que têm de deixar em caixa (provisionamento) caso essa


repactuação ocorra nos próximos seis meses;
Demos mais artilharia aos bancos para realizar as eventuais renego-
ciações e de manter o fluxo de novos empréstimos porque baixamos
a necessidade de capital próprio para a chamada “alavancagem”. Na
prática, os bancos vão precisar ter menos dinheiro em caixa para fa-
zerem as operações. Só essa mudança pode aumentar a capacidade
de concessão de crédito em torno de R$ 637 bilhões.

17 de março de 2020:
A taxa de juros do empréstimo consignado para aposentados e pen-
sionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) passará dos
atuais 2,08% ao mês para 1,80% ao mês, enquanto a taxa para o
cartão de crédito será reduzida de 3% ao mês para 2,70% ao mês;

18 de março de 2020:
Pedimos ao Congresso Nacional para declarar Estado de Calamidade
para que o governo possa gastar mais recursos para garantir a saú-
de e o emprego dos brasileiros. Com isso, o Ministério da Economia
poderá reavaliar a meta de resultado primário de 2020;
Reduzimos a zero as alíquotas de importação de produtos de uso
médico-hospitalar;
Camex zera Imposto de Importação de 50 produtos para o combate
ao coronavírus. A Resolução abrange desde luvas, máscaras e álcool
etílico até respiradores, para facilitar o atendimento da população e
minimizar os impactos econômicos da pandemia;
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) suspenderá atos
de cobrança e facilitará a renegociação de dívidas em decorrência da
pandemia. As medidas serão publicadas no Diário Oficial da União;
A Receita Federal simplifica despacho aduaneiro de produtos de uso
médico-hospitalar destinados ao combate da COVID-19;
Suspensão, por cento e vinte dias, da exigência de recadastramento
anual de aposentados, pensionistas e anistiados políticos civis, e
também da realização de visitas técnicas, para comprovação de vida.
Ampliamos os valores destinados às medidas emergenciais de até
R$ 147,3 bilhões, inicialmente, para R$ 169,6 bilhões. Desse to-
tal, R$ 11,8 bilhões serão destinados diretamente ao combate à
pandemia; até R$ 98,4 bilhões para assistência a população mais
vulnerável; e até R$ 59,4 bilhões para manutenção de empregos;
O Governo anunciou a criação de um auxílio emergencial no valor R$
200, por pessoa, durante três meses, para apoiar trabalhadores in-
formais, desempregados e microempreendedores individuais (MEIs)
que integrem família de baixa renda. A medida vai beneficiar de 15
a 20 milhões de brasileiros e injetar até R$ 5 bilhões por mês na
economia custeados com recursos da União;
Esse auxílio emergencial não pode ser acumulado com benefícios
previdenciários, Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Fa-
mília ou seguro-desemprego;
Criação de programa para evitar demissões neste período de pan-
demia. O Ministério da Economia vai criar o Programa Antidesem-
prego. O objetivo da iniciativa é facilitar as negociações trabalhistas
de modo a reduzir os custos do contrato de trabalho e preservar os

180 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020
Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

vínculos empregatícios, dentro dos limites previstos na Constituição


Federal;
O programa prevê a adoção das seguintes medidas: teletrabalho,
antecipação de férias individuais, decretação de férias coletivas,
adoção e ampliação de banco de horas, redução proporcional de sa-
lários e jornada de trabalho, antecipação de feriados não religiosos,
além do diferimento do recolhimento do FGTS durante o estado de
emergência, que já havia sido anunciado;
Em função da urgência da crise da COVID 19, adiamos a realização
do Censo do IBGE para 2021. Com isso, vamos direcionar os recur-
sos (R$2,3 bilhões) que seriam necessários para a realização do
levantamento para a Saúde.
Vamos adotar também licença não automática para exportação de
produtos necessários ao combate à COVID-19, como álcool em gel,
antissépticos, máscaras e respiradores. O objetivo é priorizar o abas-
tecimento desses produtos no mercado interno.
O licenciamento não automático permitirá que o governo tenha a
capacidade de avaliar os pedidos de exportação de produtos neces-
sários para o combate à COVID-19. Normalmente, as exportações
desses produtos não estão sujeitas a qualquer tipo de restrição. A
partir de agora, enquanto for necessário, o governo brasileiro fará o
monitoramento dessas exportações para garantir o pleno abasteci-
mento interno de itens essenciais para o combate da COVID-19, ao
mesmo tempo que pode liberar as vendas externas do excedente
produtivo.35

j) Instituição do Comitê de crise para supervisão e monitoramento dos impactos


da COVID-19, por meio do Decreto nº 10.211/2020;36
k) Decreto nº 6/2020, que reconheceu o Estado de Calamidade Pública, na
forma do art. 136 da CF/88 e do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
É a primeira vez desde a entrada em vigor da LRF que o Brasil entrou em Estado
de Calamidade Pública;
l) Medida Provisória nº 925/2020 – pandemia de COVID-19 – medidas
emergenciais para a aviação civil brasileira;37
m) Medida Provisória nº 921/2020 – crédito para enfrentamento da COVID-19 –
ainda não publicada;38

35
Informação obtida do sítio do Ministério da Economia. Disponível em: http://www.economia.gov.br/
noticias/2020/marco/confira-as-medidas-tomadas-pelo-ministerio-da-economia-em-funcao-do-covid-19-
coronavirus. Acesso em: 19 mar. 2020.
36
Informação obtida do sítio da Presidência de República. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/
acompanhe-o-planalto/noticias/2020/03/presidente-jair-bolsonaro-institui-comite-de-crise-para-supervisao-
e-monitoramento-dos-impactos-da-covid-19. Acesso em: 19 mar. 2020.
37
Informação obtida do sítio do Congresso Nacional brasileiro. Disponível em: https://www.congressonacional.
leg.br/materias/medidas-provisorias. Acesso em: 19 mar. 2020.
38
Informação obtida do sítio do Congresso Nacional brasileiro. Disponível em: https://www.congressonacional.
leg.br/materias/medidas-provisorias. Acesso em: 19 mar. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 181
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

n) Entrada em vigor da Lei Federal nº 13.979/2020, que dispõe sobre as


medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019;39 40
Algumas consequências da COVID-19 no DF. Os efeitos da pandemia
de COVID-19 também atingiram o DF, que, segundo informação do painel de
monitoramento da COVID-19,41 aprenseta, até o dia 20.03.2020, 84 (oitenta e
quatro) casos de COVID-19 sem nenhuma morte até o momento, por exemplo:
a) Portaria nº 17, de 19 de março de 2020, que regulamenta o Decreto nº
40.526/2020, para fins de regulamentação do teletrabalho “em caráter excepcional
e temporário, o teletrabalho para servidores que fazem parte do grupo de risco
de contágio”.42 Em 20.03.2020, o regime de teletrabalho para os servidores dos
órgãos da administração pública, direta e indireta, autarquias e fundacionais do
DF, por meio do Decreto nº 40.546/2020.
b) um conjunto de outras medidas, como:

O GDF tem tomado uma série de medidas para combater a COVID-19.


Uma das primeiras ações suspendeu as aulas da rede pública e pri-
vada de escolas e universidades por cinco dias. Uma nova ordem
determinou a antecipação do recesso escolar de julho, estendendo
para mais 15 dias, a contar dessa segunda-feira (16).
O Decreto nº 40.520, publicado no sábado (14), interrompe o funcio-
namento de cinemas e teatros e proíbe alvará para eventos com a
participação de mais de 100 pessoas.
De acordo com a medida, as normas valem para eventos esportivos,
que continuam com portões fechados. Academias, centros esporti-
vos e museus também não vão funcionar pelo mesmo período dos
colégios.

Saúde
Na área da saúde, foram assinados contratos emergenciais de ma-
nutenção preventiva e corretiva para os hospitais da capital. Dezes-
sete dos 19 documentos assinados com empresas de engenharia
e consultoria são para prestar serviços continuados de manutenção

39
Sobre os efeitos da COVID-19 no setor aéreo e as relações de consumo, veja: CATALAN, Marcos Jorge;
GERCHMANN, Suzana Rahde. Quando deixar de voar torna-se um problema: uma ligeira reflexão acerca da
necessária proteção dos consumidores de transporte aéreo em um mundo muito mais preocupado com
suas vias aéreas. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/quando-deixar-de-voar-torna-se-
um-problema-uma-ligeira-reflexao-acerca-da-necessaria-protecao-dos-consumidores-de-transporte-aereo-em-
um-mundo-muito-mais-preocupado-com-suas-vias-aereas. Acesso em: 20 mar. 2020.
40
TERRA, Aline de Miranda Valverde. COVID-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas de
Peso. Disponível em: https://m.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-
em-shopping-center. Acesso em 20 mar. 2020.
41
Informação obtida do sítio do Ministério da Saúde. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=
eyJrIjoiMjg1MjA0ZGUtYzc0Yy00NTc5LTk2YTgtZDgxOWI0MjFlMTVkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDN
mNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 19 mar. 2020.
42
Informação obtida do sítio do Governo do Distrito Federal. Disponível em: https://www.agenciabrasilia.
df.gov.br/2020/03/17/coronavirus-gdf-institui-teletrabalho-em-orgaos-publicos/. Acesso em: 19 mar.
2020.

182 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020
Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

predial corretiva. Ao todo, foram empenhados R$ 20,1 milhões para


garantir a segurança nas unidades.
Os acordos também preveem fornecimento de mão de obra, peças e
materiais nos sistemas de edificações e nas instalações elétricas. O
prazo é de 180 dias improrrogáveis. Os extratos contratuais restan-
tes devem ser publicados nos próximos dias.
De acordo com a Sinfra, os contratos foram divididos em 20 lotes
para abarcar os prédios. Estão incluídos nos processos as superin-
tendências de Saúde Oeste, Sudoeste, Norte, Centro-Sul, Leste e
Central, além do Parque de Apoio, do Hospital São Vicente de Paulo,
da Subsecretaria de Vigilância à Saúde, da Fundação Hemocentro de
Brasília e da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências de Saúde
(Fepecs).
Outro decreto estabelece a criação de um Grupo Executivo para de-
senvolver ações de prevenção e enfrentamento do coronavírus e da
dengue. A equipe é formada pela Casa Civil; Consultoria Jurídica da
Governadoria do DF; Procuradoria-Geral do DF; Secretaria de Saúde;
Secretaria de Segurança Pública; Secretaria de Comunicação; Corpo
de Bombeiros Militar do DF; Instituto de Gestão de Saúde (Iges-DF).

Investimentos e créditos
O governador Ibaneis Rocha também liberou R$ 1 milhão para re-
forçar o orçamento do Corpo de Bombeiros Militar do DF. O crédito
suplementar será usado para adquirir chips eletrônicos que serão
utilizados em equipamentos que detectam o vírus COVID-19.
Para manter aquecida a economia das pequenas e grandes empre-
sas no período de suspensão de atividades e serviços e de queda de
consumo, o BRB disponibilizará até R$ 1 bilhão de crédito com taxas
e prazos de pagamentos especiais, além de agilidade na análise da
documentação.43

Decreto nº 40.539/2020. Em 19.03.2020, entrou em vigor no DF o Decreto


nº 40.539/2020, que revogou os decretos anteriores e dispôs sobre medidas
para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente do novo coronavírus, quais sejam:

Art. 1º As medidas para enfrentamento da emergência de saúde pú-


blica de importância internacional decorrente do novo coronavírus,
no âmbito do Distrito Federal, ficam definidas nos termos deste De-
creto.
Art. 2º Ficam suspensos, no âmbito do Distrito Federal, até o dia 05
de abril de 2020:
I - eventos, de qualquer natureza, que exijam licença do Poder Pú-
blico;
II - atividades coletivas de cinema e teatro;

43
Informação obtida do sítio do Governo do Distrito Federal. Disponível em: https://www.agenciabrasilia.
df.gov.br/2020/03/17/coronavirus-gdf-institui-teletrabalho-em-orgaos-publicos/. Acesso em: 19 mar.
2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 183
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

III - atividades educacionais em todas as escolas, universidades e


faculdades, das redes de ensino pública e privada;
IV - academias de esporte de todas as modalidades;
V - museus;
VI - zoológico, parques ecológicos, recreativos, urbanos, vivenciais e
afins; VII - boates e casas noturnas;
VIII - atendimento ao público em shoppings centers, feiras populares
e clubes recreativos; a) nos shoppings centers fica autorizado ape-
nas o funcionamento de laboratórios, clínicas de saúde, farmácias
e delivery;
IX - atendimento ao público em TODAS as agências bancárias e
cooperativas de crédito no Distrito Federal; a) a proibição se esten-
de aos bancos públicos e privados; b) ficam excetuados os aten-
dimentos referentes aos programas bancários destinados a aliviar
as consequências econômicas do novo coronavírus, bem como os
atendimentos de pessoas com doenças graves;
X - cultos e missas de qualquer credo ou religião;
XI – estabelecimentos comerciais, de qualquer natureza, inclusive
bares, restaurantes, lojas de conveniências e afins: a) ficam excluí-
dos da suspensão: clínicas médicas, laboratórios, farmácias, super-
mercados e lojas de materiais de construção e produtos para casa,
atacadistas e varejistas, minimercados, mercearias e afins, padarias
(exclusivamente para venda de produtos), açougues, peixarias, pos-
tos de combustíveis, e operações de delivery;
XII – salões de beleza e centros estéticos;
§1º A suspensão das aulas na rede de ensino pública do Distrito
Federal, de que trata o inciso III, deverá ser compreendida como re-
cesso/férias escolares do mês de julho com início em 16 de março
de 2020, nos termos deste Decreto;
§2º As unidades escolares da rede privada de ensino do Distrito Fe-
deral poderão adotar a antecipação do recesso/férias prevista neste
Decreto, a critério de cada unidade;
§3º Os ajustes necessários para o cumprimento do calendário esco-
lar serão estabelecidos pela Secretaria de Estado de Educação do
Distrito Federal, após o retorno das aulas;
Art. 4º Em todos os estabelecimentos que se mantiverem abertos,
recomenda-se a distância mínima de dois metros entre todas as
pessoas;
Art. 5º Ficam suspensos todos os eventos esportivos no Distrito Fe-
deral, inclusive campeonatos de qualquer modalidade esportiva;
Art. 6º Considerar-se-á abuso do poder econômico a elevação de pre-
ços, sem justa causa, com o objetivo de aumentar arbitrariamente
os preços dos insumos e serviços relacionados ao enfrentamento da
COVID-19, na forma do inciso III do art. 36 da Lei Federal nº 12.529,
de 30 de novembro de 2011, e do inciso II, do art. 2º do Decreto
Federal nº 52.025, de 20 de maio de 1963, sujeitando-se às penali-
dades previstas em ambos os normativos;
Art. 7º As pessoas físicas e jurídicas deverão sujeitar-se ao cumpri-
mento das medidas previstas neste Decreto, e o seu descumprimen-
to acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei;

184 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020
Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

Parágrafo único. A fiscalização das disposições deste decreto será


exercida pela Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanísti-
ca do Distrito Federal – DF LEGAL, que poderá trabalhar em conjunto
com os demais órgãos de fiscalização e forças policiais do Governo,
por meio da aplicação de suas legislações específicas;
Art. 8º Fica suspenso o atendimento em todas as creches do Distrito
Federal, em atendimento à decisão judicial proferida na Ação Civil
Pública 0000254-50.2020.5.10.0007, que tramita na 7ª Vara do
Trabalho de Brasília-DF.
Parágrafo único. A Secretaria de Educação deverá adotar as medidas
para reduzir o valor dos contratos das referidas creches, enquanto
durar a suspensão determinada pela Justiça;
Art. 8º As medidas previstas neste Decreto poderão ser reavaliadas
a qualquer momento, mesmo antes do prazo estipulado no art. 2º;
Art. 9º O Decreto 40.512, de 13 de março de 2020, passa a vigorar
com as seguintes alterações: “Art 2º ..........................................
............................................ X – PROCON/DF; XI – Secretaria de
Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal – DF
LEGAL.” (NR)
Art. 9º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação;
Art.10. Ficam revogados os Decretos 40.520, de 14 de março de
2020; 40.522, de 15 de março de 2020; nº 40.529, de 18 de março
de 2020; e 40.537, de 18 de março de 2020.

Atuação do Procon-DF. Um exemplo de possível incidência dos arts. 6º e 7º


do Decreto Distrital nº 40.539/20, antigo art. 5º do revogado Decreto Distrital nº
40.520/20, foi o aumento abusivo e a ocultação de produtos de proteção contra a
COVID-19, como álcool em gel, luvas e máscaras em farmácias do DF,44 na forma
do inciso III do art. 36 da Lei Federal nº 12.529/11 e do inciso II do art. 2º do
Decreto Federal nº 52.025/63.
1ª Conclusão. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto
da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19) – doença respiratória nova,
cuja transmissão ocorre principalmente de pessoa a pessoa – constitui uma
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de
alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
2ª Conclusão. É indiscutível que a pandemia de COVID-19 produz efeitos na
saúde pública, na sociedade, na economia de cada país, o que não é diferente no
Brasil. Por isso, tanto a União como os Estados, os Municípios e o DF têm adotado
um conjunto de medidas para conter todos os efeitos da citada pandemia.

44
Informação obtida do sítio do Procon-DF. Disponível em: http://www.procon.df.gov.br/procon-e-df-legal-
intensificam-fiscalizacao-em-farmacias-a-partir-deste-domingo-para-coibir-abusos/. Acesso em 19 mar.
2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 185
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

3ª Conclusão. No aspecto econômico, a União, por meio, entre outros, do


CADE e da Senacon, tem combatido o aumento abusivo de preço, como se infere,
por exemplo:
a) da notificação, em 18.03.2020, da Senacon à Associação Brasileira
de Redes de Farmácias e Drogarias (ABRAFARMA), à Associação Brasileira de
Supermercados (ABRAS) e aos diversos produtores de máscaras e álcool em gel
no Brasil para que expliquem aumento abusivo de preços praticados no Estado
de Santa Catarina;
b) da instauração, em 18.03.2020, pelo CADE, de procedimento preparatório
de inquérito administrativo nº 08700.001354/2020-48 para investigar o setor de
produtos médicos-farmacêuticos.
4ª Conclusão. No aspecto econômico, o DF também tem combatido o aumento
abusivo e a ocultação de produtos de proteção contra a COVID-19, como álcool
em gel, luvas e máscaras em farmácias do DF, seja pelos arts. 6º e 7º do Decreto
Distrital nº 40.539/20, antigo art. 5º do revogado Decreto Distrital nº 40.520/20,
corporificada pela atuação do Procon-DF, na forma do inciso III do art. 36 da Lei
Federal nº 12.529/11 e do inciso II do art. 2º do Decreto Federal nº 52.025/63.
A pandemia de COVID-19 pode ser considerada caso fortuito ou de força
maior? A resposta a esta pergunta passa pela compreensão dos institutos do
caso fortuito e de força maior.
Significados de caso fortuito e de força maior. O sentido do caso fortuito
(imprevisibilidade dos efeitos; eventos danosos decorrentes da natureza; conse-
quências advindas de eventos naturais e humanos; efeitos de eventos danosos
de causa natural, humana ou estatal) e de força maior (ex.: efeitos previsíveis e
inevitáveis ou irresistíveis – ex.: STJ – RESP 258.707; eventos danosos decorrentes
de comportamento humano; efeitos de eventos danosos de causa natural, humana
ou estatal).45
Sentido de caso fortuito e de força maior no Brasil. Desta controvérsia,
no Brasil, parte da literatura jurídica e julgados tem adotado o seguinte sentido:
“o critério da inevitabilidade das consequências como parâmetro para ambos
os significantes, independentemente de o fato ser previsível (ou não) (PEREIRA,
2012, p. 399; ALVIM, 1995, p. 335; STJ – RESP 135.542. 2ª T. Rel. Min. Castro
Meira. DJ de 29.8.2005)”.46

45
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 2. p. 423.
46
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 2. p. 423.

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

Sentido de inevitabilidade. Nesse passo, pode-se asseverar:

Dessa maneira, em um primeiro momento, afirma-se que o caso


fortuito e de força maior são eventos danosos, naturais, estatais,
sociais ou humanos, prováveis (ou não), que produzem efeitos ine-
vitáveis ou impossíveis de ser impedidos, com o fortuito e a força
maior tendo por núcleo comum a inevitabilidade das consequências,
como se deduz dos arts. 234, 393, parágrafo único, 575, caput 636,
650, 667, §1º, 862 e 868 do CC.
Ressalva-se que nem toda inevitabilidade se configura como caso
fortuito ou de força maior, sendo necessário que ela tenha conse-
quências contra o adimplemento de uma obrigação negocial ou a
reparação de uma obrigação extranegocial. Essa inevitabilidade de
efeitos deve ser estranha à atividade do agente, deixando-o impos-
sibilitado de agir para impedir tal evento (NORONHA, 2010, p. 652-
653).47

Sentido de necessidade e de externidade. Além da inevitabilidade, temos


mais dois significantes a ela somados: a necessidade e a externidade:

A necessidade se caracteriza pela capacidade fática de o evento


ocorrer sem o lesante ter contribuído para tal acontecimento (CC,
art. 393, parágrafo único), sempre analisada essa necessariedade
de maneira concreta, até mesmo inclusive com a verificação integral
do conteúdo objetivo da relação obrigacional e das partes que a com-
põem (MARTINS-COSTA, 2003, v. 5, t. 2, p. 199-200).48
Fato necessário é o fato que, não provindo do devedor nem sendo
por ele causado, não está na esfera do seu controle. A “necessarie-
dade” deve ser compreendida, pois, como a impossibilidade de o
agente manter na sua própria esfera de controle o domínio do fato.
(...)
Diante da centralidade do elemento “irresistibilidade”, mesmo a
característica da exterioridade, tradicionalmente associada à força
maior, tem sido relativizada, para ter como força maior ou caso for-
tuito certos acontecimentos produzidos na esfera do contratante,
como a doença do devedor que impede a prestação de serviços per-
sonalíssimos, caracterizada a infungibilidade da prestação. O cará-
ter inevitável pode provir, portanto, de acontecimentos naturais, de
acontecimentos humanos e sociais e decisões do Poder Público,
como, exemplificativamente, da tempestade de excepcional inten-
sidade; o acidente de trânsito provocado pela desregulação do sis-
tema de sinalização numa grande avenida; ou os danos provocados
por uma greve geral que não era nem previsível nem suscetível de
ser resolvida por conta apenas de negociações externas à empre-
sa, já que dependia de decisões de ordem político-governamental. A

47
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 2. p. 423.
48
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 2. p. 423.

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Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

irrestibilidade constitutiva da força maior, todavia, implica em que a


previsão, por parte do devedor, não fosse suficiente para impedir os
seus efeitos, o devedor tendo tomado todas as medidas necessárias
para evitar a realização do evento danoso.49

5ª Conclusão. A pandemia de COVID-19 pode ser considerada caso fortuito


ou de força maior,50 como foi reconhecido em 2010 pelo TJSP no caso da H1N1,51
visto que os dois requisitos estão preenchidos:
(i) inevitabilidade das consequências contra o adimplemento contratual,
uma vez que nenhum comportamento das partes contratantes poderia evitar os
deletérios efeitos econômicos advindos de uma Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional, caracterizada pela OMS como pandemia em 11.03.2020.
Isso porque os “coronavírus são a segunda principal causa do resfriado comum
(após rinovírus) e, até as últimas décadas, raramente causavam doenças mais
graves em humanos do que o resfriado comum”, como apontado pela OMS (grifo
nosso). Desse modo, a inevitabilidade de efeitos era estranha à atividade das
partes contratantes, impossibilitando-as de agir para impedir tal evento, mesmo
para quem trabalha na área de saúde, o que ensejou o que ensejou o Decreto nº
6/2020, que reconheceu o Estado de Calamidade Pública, na forma do art. 136
da CF/88 e do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É a primeira vez
desde a entrada em vigor que da LRF que o Brasil entrou em Estado de Calamidade
Pública;52
(ii) necessidade, visto que as partes contratantes não contribuíram para
a ocorrência da pandemia de COVID-19, a cumprir com o requisito posto no art.
393, § único, do CC.
6ª Conclusão. A pandemia de COVID-19, mesmo sendo caso fortuito e de força
maior, não produzirá o efeito de excluir a responsabilidade da parte contratante

49
MARTINS-COSTA, Judith. Art. 393. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código
Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 5. t. 2. p. 290 e 299.
50
Sobre o assunto, veja: PINTO, Almir Pazzianotto. A força maior e o coronavírus. Migalhas de Peso. Disponível
em: https://www.migalhas.com.br/depeso/321936/a-forca-maior-e-o-coronavirus. Acesso em: 19 mar.
2020. BLOCH, Francisco dos Santos Dias. Locações comerciais, coronavírus e redução dos aluguéis.
Migalhas de Peso. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/322040/locacoes-comerciais-
coronavirus-e-reducao-dos-alugueis. Acesso em: 19 mar. 2020. BONDAN, Heloisa Korb. O coronavírus
e a responsabilidade pelo descumprimento das obrigações. Migalhas de Peso. Disponível em: https://
www.migalhas.com.br/depeso/322000/o-coronavirus-e-a-responsabilidade-pelo-descumprimento-das-
obrigacoes. Acesso em 19 mar. 2020; LOPES, Lúcio Feijó; FERLA, Fernanda. Coronavírus é força maior
em contratos? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-e-forca-maior-
em-contratos-18032020. Acesso em 21 mar. 2020.
51
TJSP. Apelação Cível 0038945-82.2009.8.26.0053. Relator (a): Lineu Peinado. Órgão Julgador: 2ª
Câmara de Direito Público. Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 3ª Vara de Fazenda Pública. Data
do Julgamento: 09.11.2010. Data de Registro: 30.11.2010.
52
Informação obtida no sítio do Senado Federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2020/03/19/primeira-votacao-remota-do-senado-tem-na-pauta-decreto-de-calamidade-publica?utm_
source=hpsenado&utm_medium=carousel_0&utm_campaign=carousel. Acesso em: 19 mar. 2020.

188 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020
Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

se ela assumiu a responsabilidade pelo adimplemento da prestação mesmo se


ocorresse caso fortuito ou de força maior, como se extrai da segunda parte do
caput do art. 393 do CC.
Repercussão jurídica da pandemia de COVID-19 nos contratos empresariais
no Brasil. Com o Código Civil de 2002, o Direito brasileiro “unificou parcialmente o
direito negocial civil e empresarial, já que, como destacado por Silvio Meira, ainda
quando o Código Civil de 1916 ainda era um Projeto de Lei, ‘não há tipo para essa
arbitrária separação de leis a que deu-se o nome de Direito Comercial ou Código
Comercial; pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem
ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário,
como outra satisfação de existência’.53 Isso não afeta eventuais diferenças que
possam existir entre as disciplinas jurídicas”.54 55
Necessidade de o fato jurídico superveniente ser imprevisível. A literatura
jurídica civil e empresarial aponta que o fato jurídico superveniente à conclusão
do contrato deve ser imprevisível:

Dos glosadores extrai-se a seguinte expressão: contractus qui ha-


bent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stan-
tibus intelligentur. Vale dizer, os pactos de execução continuada e
dependentes do futuro entendem-se como se as coisas permane-
cessem como quando da celebração. Em outras palavras, o contrato
só pode permanecer como está se assim permanecerem os fatos.
Tal cláusula (rebus sic stantibus) consagra a teoria da imprevisão,
usual em nossas páginas de doutrina e corriqueira nos julgados de
nossos Tribunais. (...)
Esclareça-se, porém, que a teoria da imprevisão recebeu um novo
dimensionamento pela doutrina francesa um pouco diferente de sua
origem, que remonta à cláusula rebus sic stantibus. Nesse contexto,
nota-se que, para a aplicação desta teoria, há a necessidade da
comprovação dessas alterações da realidade, ao lado da ocorrência
de um fato imprevisível e/ou extraordinário, sem os quais não há
como invocá-la. Nelson Nery Jr. lembra que, no Direito Alemão, a
teoria da imprevisão é denominada ainda como teoria da pressupo-
sição (A base..., 2004, p. 61). De qualquer forma, alguns autores
diferenciam a teoria da imprevisão da teoria da pressuposição. En-
sina Otávio Luiz Rodrigues Junior que “a teoria da pressuposição de

53
MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas – o jurisconsulto do império: vida e obra. São Paulo: Olympio, 1979. p.
347-365.
54
SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação
empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Disponível em: https://
www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/315377/a-desnecessidade-de-uma-teoria-geral-da-
obrigacao-empresarial-e-os-equivocos-do-projeto-de-codigo-comercial. Acesso em: 19 mar. 2020.
55
FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. A interpretação do negócio jurídico empresarial no projeto de Código
Comercial do Senado Federal nº 487/2013. Migalhas Contratuais. Disponível em: https://www.migalhas.
com.br/coluna/migalhas-contratuais/317033/a-interpretacao-do-negocio-juridico-empresarial-no-projeto-
de-codigo-comercial-do-senado-federal-n-487-2013. Acesso em: 19 mar. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 189
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

Bernard Windscheid (1902, p. 394-395) é baseada na premissa de


que, se alguém manifesta sua vontade em um contrato, o faz sob um
determinado conjunto de pressuposições que, se mantidas, conser-
vam a vontade, e, se alteradas, exoneram o contratante” (Revisão...,
2006, p. 82).
Como regra geral, portanto, os contratos devem ser cumpridos en-
quanto as condições externas vigentes no momento da celebração
se conservarem imutáveis. Caso haja alterações modificando-se a
execução, deverá ser aplicada a regra rebus sic stantibus, resta-
belecendo-se o status quo ante. A Lei da Liberdade Econômica (Lei
nº 13.874/2019) acabou por dar primazia à autonomia privada e à
força obrigatória do contrato, como antes destacado, prevendo que
a revisão do contrato civil é excepcional e limitada às partes contra-
tantes (novos arts. 421, parágrafo único, e 421-A, inc. III, do CC).
Todavia, reitere-se que essa já era a realidade quanto aos contratos
regidos pela codificação privada de 2002.
A aplicação da teoria da imprevisão está presente em nossa juris-
prudência, apesar da restrição às hipóteses práticas tidas como
imprevistas pelos Tribunais brasileiros. Na realidade, a amplitude
restrita de fatos imprevisíveis diminui as possibilidades dessa re-
visão contratual, conforme se pode notar em julgados mais antigos
do Superior Tribunal de Justiça (STJ, AgRg no Ag 12.795/RJ, 3ª
Turma, Rel. Min. Dias Trindade, j. 23.08.1991, DJ 16.09.1991, p.
12.639; STJ, REsp 5.723/MG, 3.ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro,
j. 25.06.1991, DJ 19.08.1991, p. 10.991). (...)
A partir dessas constatações, entendemos ser interessante dizer
que, até afastando qualquer discussão quanto à teoria adotada, o
Código Civil de 2002 traz a revisão contratual por fato superveniente
diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade exces-
siva.56

Sentido de imprevisibilidade. Somado à onerosidade excessiva (prova do


prejuízo e do desequilíbrio negocial), ao contrato ser comutativo o fato jurídico
superveniente deve ser imprevisto,57 cujo sentido de imprevisão, por exemplo, é
aquele no qual “não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação”
(Enunciado 366 da Jornada de Direito Civil CJF/STJ e STJ – RESP 1.581.075. 3ª T.
Rel. Min. Moura Ribeiro. DJ-e de 22.03.2019). Alude Tartuce: “Como se percebe,
o enunciado doutrinário transcrito é argumento relevante que afasta a revisão
contratual, comprovando ser essa, de fato, excepcional, nos termos do que consta
dos novos arts. 421, parágrafo único, e 421-A, inc. III, do CC, incluídos pela Lei
da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019)”.58

56
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 208-210.
57
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3,.p. 211-213.
58
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 213.

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

Art. 317 do CC. Ocorre que o dispositivo que recepcionou a revisão contratual
no Direito Civil brasileiro é o art. 317 do CC, visto que o art. 478 do CC trata de
resolução da relação contratual59:

Este autor não concorda com tal entendimento, uma vez que o citado
artigo está inserto no Capítulo II do Título V do Código, que trata da
“Extinção do Contrato” e não da sua revisão, objeto do presente
estudo. Por tal constatação, é forçoso concluir que, na verdade, o
dispositivo que trata da revisão do contrato por imprevisibilidade é
o art. 317 do CC:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier despropor-
ção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de
sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo
que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Isso porque o comando legal por último destacado consta da parte
da codificação que trata do pagamento da obrigação. Sabe-se que o
contrato é fonte principal do direito obrigacional, razão desse nosso
entendimento. Compartilhando dessa mesma opinião cabe destacar
os ensinamentos de Paulo Luiz Netto Lôbo quanto ao art. 317 do CC:
“Essa norma tem significado distinto do que prevê o art. 478, pois
este é voltado para a resolução do contrato, em virtude de onerosida-
de excessiva da prestação de uma das partes, provocada por acon-
tecimentos imprevisíveis e extraordinários, enquanto aquela não
atinge o fato jurídico fonte da obrigação, inclusive o negócio jurídico,
mas apenas a prestação, com o fito de sua revisão ou correção”
(LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral..., 2005, p. 205).60
Para que o juiz possa realizar a revisão contratual, deve haver i)
manifesta desproporção entre o valor da prestação no momento da
formação e o da execução e ii) a desproporção decorrer de motivos
imprevisíveis. Note-se que o contrato nasce equilibrado e o sina-
lagma funcional sofre um desequilíbrio. É por isso que estamos no
plano da eficácia a permitir a revisão contratual. (...)
O dispositivo tem por base dois princípios relevantes: a conserva-
ção do negócio jurídico e a função social em sua eficácia interna. A
conservação interessa aos contratantes e o equilíbrio garante que
se atenda à função social como norma de ordem pública que é (ver
art. 2.035 do CC). O art. 317 adota a teoria da imprevisão, que é
desdobramento da medieval cláusula rebus sic stantibus. A cláusula

59
“O Enunciado 176 da Jornada de Direito Civil CJF/STJ aponta que o art. 478 do CC se aplica à revisão
contratual: ‘Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de
2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual’.
Percebe-se, pelo enunciado transcrito, a valorização da conservação contratual, ou seja, que a extinção do
negócio é o último caminho. Para a prática cível, é necessário que fique claro que o enunciado deve ser
considerado, ou seja, o art. 478 do Código Civil também deve ser utilizado para a revisão do contrato”.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 215.
60
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 211-213.

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Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

rebus foi criada pelos canonistas para justificar o abrandamento da


obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt servanda).61

Imprevisibilidade no STJ. A rigor, os julgados brasileiros têm utilizado o


parâmetro do mercado, “o meio que envolve o contrato, não a parte contratante”.62
Em termos econômicos dificilmente existe algo imprevisto, “tudo se tornou
previsível. Não seriam imprevisíveis a escala inflacionária, o aumento do dólar
ou o desemprego, não sendo possível a revisão contratual motivada por tais
ocorrências”.63 Tal percepção é verificada no STJ:

“Civil. Teoria da Imprevisão. A Escalada Inflacionária não é um fator


imprevisível, tanto mais quando avençada pelas partes a incidência
de Correção Monetária precedentes. Recurso não conhecido” (STJ,
REsp 87.226/DF (9600074062), 3ª Turma, Rel. Min. Costa Leite,
Decisão: por unanimidade, não conhecer do Recurso Especial, j.
21.05.1996, DJ 05.08.1996, p. 26.352. Veja: AgA 12.795/RJ, AgA
51.186/SP, AgA 58.430/SP).
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. RE-
VISIONAL. COMPRA E VENDA DE FERTILIZANTES. INDEXAÇÃO COM
BASE NA MOEDA AMERICANA. RELEVANTE ALTERAÇÃO DO DÓLAR
AO FINAL DO ANO DE 2008. TEORIA DA IMPREVISÃO. AFASTAMENTO.
1. “O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no pa-
drão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho
de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de
relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do
dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, não autorizam
concluir pela imprevisibilidade desse fato nos contratos firmados
com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando
de relação contratual paritária.” (REsp 1321614/SP, Rel. Ministro
PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO
VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014,
DJe 03/03/2015).
2. Não envolvendo relação de consumo, o contrato objeto do pedido
de revisão, mas, sim, revelando-se paritário, convém que se subme-
tam as partes aos termos do acordo celebrado, não decorrendo da
variação cambial verificada base para a revisão do negócio entabu-
lado.
3. A variação ocorrida no valor da moeda americana ao final do ano
de 2008, com reflexo no contrato de compra e venda de fertilizantes,
indexado com base na variação do dólar americano, não se revela
imprevisível a ponto de autorizar o Poder Judiciário, com base na

61
SIMÃO, José Fernando. Art. 317. In: TARTUCE, Flávio; DELGADO, Mário; MELO, Marco Aurélio Bezerra de;
SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 182.
62
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 215.
63
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 215.

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Teoria da Imprevisão, a proceder à sua revisão e alterar o indexador


estipulado.
4. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (STJ. AgRg no REsp
1.518.605. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJ-e de
12.04.2016).

Lei da Liberdade Econômica e ausência de revisão no STJ. Tal entendimento


foi sufragado pelo art. 421, parágrafo único, e III, do CC, a corroborar a percepção
de que a revisão é excepcionalíssima e, em mais de 15 (quinze) anos de vigência
do Código Civil, não foram encontrados julgados admitindo tal revisão no âmbito
do STJ.64
Critérios interpretativos dos negócios jurídicos civis e empresariais indicados
nos arts. 112, 113, 421 e 421-A do CC. Os arts. 112, 113, 421 e 421-A do CC
trazem balizas para interpretação dos negócios jurídicos civis e empresariais:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção


nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido
que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebra-
ção do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas
ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identi-
ficável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre
a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e
da racionalidade econômica das partes, consideradas as informa-
ções disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei
nº 13.874, de 2019)
§2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação,
de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos
diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de
2019).65
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função
social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

64
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 215-216.
65
Sobre as mudanças do art. 113 do CC diante da Lei da Liberdade Econômica, veja: TARTUCE, Flávio. A
“Lei da Liberdade Econômica” (Lei n. 13.874/2019) e os seus principais impactos para o Direito Civil.
Segunda parte. Mudanças no âmbito do Direito Contratual. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.
br/artigos. Acesso em: 10 dez. 2019; ELIAS, Carlos. Lei da Liberdade Econômica: diretrizes interpretativas
da nova lei e análise detalhada das mudanças no Direito Civil e nos registros públicos. Disponível em:
http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados. Acesso em 10 dez. 2019.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 193
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o


princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão con-
tratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários
e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem
o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos
previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela
Lei nº 13.874, de 2019)
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos
para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupos-
tos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de
2019)
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e
observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e
limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).

Inexistência do princípio da intervenção mínima no direito brasileiro. Como


visto, no que toca à revisão da relação contratual, o art. 421-A, III, do CC parece
dificultar tal hipótese ao indicar que tal situação “somente ocorrerá de maneira
excepcional e limitada”. Sobre o ponto, a literatura jurídica traz uma certeira crítica:

Além da alteração do caput, o art. 421 do Código Civil passou a con-


tar com parágrafo único que estabelece “o princípio da intervenção
mínima” e consigna a excepcionalidade da revisão contratual. A in-
clusão de tal disposição no artigo do Código Civil que trata da função
social do contrato – e que, a rigor, sequer precisava dele constar,
haja vista a inclusão do art. 421-A em sentido idêntico – apenas
reforça a já anunciada pretensão da Lei nº 13.874/2019 de estabe-
lecer o contrato como espaço “livre”, no qual as partes têm prerro-
gativas para estabelecer o que lhes convier, sendo a possibilidade
de valoração de seus termos episódica, rigorosa e, principalmente,
excepcional.66
Todavia, não existe, a rigor, na ordem jurídica, o chamado princípio
de intervenção mínima. Ao contrário, há um conjunto de pressupos-
tos e requisitos, autorizados pela Constituição da República e incor-
porados ao Código Civil, para a intervenção judicial. De outra parte,
a revisão e a resolução contratual encontram-se previstas nos arts.
317 e 478 do Código Civil, sendo esses os parâmetros norteadores
da intervenção judicial nos contratos e que a tornam, só por si, pelo
rigor dos requisitos ali previstos, limitada e excepcional.

66
Anderson Schreiber aludiu: “A MP 881/2019 parece ter se deixado levar aqui por uma certa ideologia que
enxerga o Estado como inimigo da liberdade de contratar, quando, na verdade, a presença do Estado – e,
por conseguinte, o próprio Direito – afigura-se necessária para assegurar o exercício da referida liberdade”.
SCHREIBER, Anderson. Alterações da MP 881 ao Código Civil – Parte I. Carta Forense. Disponível em:
http://cartaforense.com.br/conteudo/colunas/alteracoes-da-mp-881-ao-codigo-civil---parte-i/18342?fbclid=-
IwAR0tAjJ4CtDj074LYaPUJShr2OWxUFg8ZDiUyY9EPqs2UOngIJ4gypNiHVI. Acesso em: 22 nov. 2019.

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Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

Em outras palavras, a previsão de excepcionalidade da revisão


contratual nada adicionou ao ordenamento, vez que os requisitos
exigidos para tanto permanecem os mesmos. De mais a mais, a
possibilidade de revisão judicial em casos de desproporção super-
veniente entre o valor da prestação devida e o do momento de sua
execução, em virtude de fatos imprevisíveis – nos termos do art.
317 do Código Civil, diuturnamente interpretado em conjunto com
os artigos 478 a 480 do Código Civil – pela qual o juiz pode cor-
rigir a desproporção manifesta entre as prestações, também tem
lastro constitucional. Decorre, com efeito, do princípio do equilíbrio
contratual, cujo fundamento consiste no objetivo de construir uma
sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, C.R.). Tal imperativo es-
pelha-se na demanda de proporcionalidade mínima no âmbito do
direito contratual, de modo que o instrumento não se torne, pela
contingência de fato que alterou a correspectividade das prestações,
palco para vinculações das partes a situações injustificadamente
descompassadas.67 Não se trata de coibir posições de vantagem (ou
alocações de risco) estabelecidas consensualmente pelas partes,
mas de coibir desproporções contingenciais que não merecem tutela
do ordenamento por não promoverem os valores alçados ao seu
vértice.68
Dessa feita, tal qual a persistência do limite interno da função social
no âmbito dos contratos a despeito da alteração legislativa, tam-
bém no âmbito da revisão, tal como antes, permanece invulnerado
o vetor constitucional que impõe a tutela da proporcionalidade das
prestações assumidas pelas partes. E tal proteção justamente ga-
rante que o sinalagma contratual seja tutelado, o que guarda íntima
relação com a alocação de riscos realizada pelas partes. Tendo sido
a alocação de riscos no contrato feita no âmbito do exercício legítimo
da autonomia das partes – conformada, portanto, à boa-fé objetiva
em todas as suas vertentes e aos limites internos e externos da fun-
ção social –, ela se encontra refletida nas prestações mutuamente

67
Sobre o tema: “A correspectividade ou comutatividade consiste no liame funcional entre as obrigações
reciprocamente assumidas pelos contratantes. Trata-se do sinalagma que, por indicar o escopo funcional,
revela o equilíbrio pretendido entre as prestações. Percebe-se, assim, a relevância do princípio do equilíbrio
das prestações para a garantia da comutatividade, que se associa à função contratual e cuja preservação,
por isso mesmo, torna-se imperativo da boa-fé objetiva. (…)”. TEPEDINO, Gustavo. Hermenêutica contratual
no equilíbrio econômico dos contratos, p. 461-462. In: TEPEDINO, Gustavo. Soluções práticas de Direito:
relações obrigacionais e contratos. São Paulo: RT, 2012. v. 2. p. 451-472.
68
Alude a literatura jurídica: “Cumpre, desde logo, afastar certas confusões que têm contribuído para a
diminuta aplicação do princípio do equilíbrio contratual no direito brasileiro. Não se trata, em primeiro
lugar, de um mecanismo de redistribuição de riquezas que permita ao intérprete reordenar, de acordo
com a sua própria concepção de justiça, as transferências patrimoniais que integram o contrato (…) Não
se trata tampouco de reequilibrar posições subjetivas dos contratantes, concedendo-se ao intérprete a
discricionariedade para majorar ou reduzir vantagens asseguradas no contrato com o escopo de compensar
situações de desvantagem em que as partes possam se inserir, por características próprias que trazem
consigo, como suas inaptidões pessoais ou vulnerabilidade (…) Trata-se de um princípio aplicável a todo
e qualquer contrato, ancorado na contínua avaliação de merecimento de tutela do seu objeto, desde o
nascimento até a extinção da relação contratual”. SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de
renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 52-54.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 195
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

assumidas. Trata-se da gestão positiva da álea normal, segundo a


qual as partes distribuem os riscos previsíveis no âmbito do contra-
to.69
A revisão contratual, portanto, figura como meio, preenchidos os
requisitos legais, para recuperação do sinalagma contratual (caso
ele tenha sido injustificadamente alterado) e, com efeito, para a dis-
tribuição de riscos livremente pactuada.70 Ainda nesse sentido, a
revisão contratual não disputa, mas antes garante, segurança jurí-
dica no que tange à manutenção da vontade declarada das partes,
refletida nas obrigações reciprocamente assumidas.71
Disso decorre que a revisão contratual não consiste em instrumento
voltado à alteração das bases contratuais em contrariedade ao in-
teresse originário das partes, sendo improdutivo seu refreamento.
Direciona-se, de modo contrário, a preservar a relação contratual,
como alternativa à resolução contratual,72 alinhada, ainda, ao princí-

69
Afirma a literatura jurídica: “Do ponto de vista técnico, pode-se enunciar o equilíbrio contratual como princípio
que objetiva garantir a equivalência entre as prestações assumidas pelos contratantes, preservando
a correspectividade ou o sinalagma pactuado no decorrer da inteira execução do contrato, de modo a
satisfazer os interesses pretendidos por ambos os contratantes com o negócio. A equivalência não quer
significar correspondência objetiva de valores, mas a correspectividade entre as prestações que satisfaz os
interesses concretos das partes contratantes. Por outras palavras, o princípio do equilíbrio contratual tem
por escopo preservar a equação econômica entre as prestações, estabelecida pela autonomia privada a
partir dos mecanismos de alocação de riscos. O respeito à repartição de riscos efetuada pelos contratantes,
em uma palavra, preserva o equilíbrio contratual, desde que essa alocação de riscos observe os demais
valores e princípios que integram o sistema jurídico – complexo e unitário. (…) No âmbito dos mecanismos
de alocação de riscos, como visto, as partes distribuem os riscos econômicos previsíveis a partir das
cláusulas contratuais, efetuando a gestão positiva da álea normal. Tal alocação de riscos, identificada
a partir da vontade declarada pelos contratantes, define, portanto, o equilíbrio econômico do negócio.
Essa equação econômica, que fundamenta o sinalagma ou a correspectividade entre as prestações, há
de ser respeitada no decorrer de toda a execução contratual, em observância aos princípios do equilíbrio
econômico e da obrigatoriedade dos pactos”. BANDEIRA, Paula Greco. Contratos incompletos. São Paulo:
Atlas, 2015. p. 174-175.
70
Assevera a literatura jurídica: “A revisão judicial do contrato deve reestabelecer o contrato em uma dimensão
sinalagmática tal que, se existisse ao momento da execução do ajuste, não permitiria à parte onerada
demandar a resolução ou a revisão do ajuste”. DIAS, Antônio Pedro Medeiro. Revisão e resolução por
excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 187.
71
A literatura jurídica aponta: “O que interessa é que a equação económica do negócio, tal como foi querida
pelas partes, seja quebrada. Parte-se do princípio que a desproporção entre vantagens e sacrifícios foi
livremente querida, dentro do exercício normal da autonomia privada. Mas é esse equilíbrio voluntário que
pode ser posto em causa por alteração anormal; é nesse caso que a base do negócio é rompida. (…) A
revisão a que se procede no âmbito da alteração das circunstâncias não é inimiga da autonomia privada
e do poder auto-vinculativo da vontade. A autonomia não sai diminuída: sai pelo contrário dignificada. A
metamorfose em curso neste sector leva a que se consagre uma autonomia concreta e não uma autonomia
vazia. Respeita-se o que as partes quiseram, nas circunstâncias em que se encontravam. Havendo uma
proporção ou equilíbrio que as partes estabeleceram entre si, é essa equação que deve ser determinante.
É essa que é necessário antes de mais preservar. Até mesmo onde houver um elemento de liberalidade, ou
um desequilíbrio livre e conscientemente aceite, continua a ser essa proporção a base da vinculatividade
do negócio. Em caso de alteração das circunstâncias a preservação do negócio consiste na preservação
desse posicionamento recíproco básico. Haverá que recompor o equilíbrio substancial que as partes
pretenderam, e não insistir em poderes ou vinculações que deixaram de se justificar”. ASCENSÃO, José
de Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo código civil. In: DELGADO, Mário Luiz;
ALVES, Jones Figueirêdo Alves (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas. São Paulo: Método,
2004. v. 2. p. 167-190, p. 176 e 190. (Série Grandes Temas de Direito Privado).
72
“Quando se passa, todavia, a uma abordagem centrada sobre o desequilíbrio (…) a alteração superveniente
passa a ser vista como algo inerente às relações contratuais que se prolongam o tempo (…) Nesse
novo cenário, a resolução torna-se não apenas um remédio excessivamente drástico ou uma resposta

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pio da conservação dos negócios jurídicos, extraído dos arts. 183 e


184 do Código Civil.73
Em contexto de impulsionamento dos negócios, para o qual é funda-
mental a garantia de preservação dos instrumentos e da racionalida-
de econômica originariamente pactuada, a redução da possibilidade
de aplicação da revisão contratual – que, por definição, apenas se
coloca se preenchidos seus requisitos – não parece em muito con-
tribuir.74
O que se deve fazer é justamente o oposto daquilo que atualmente
ocorre em nossa jurisprudência. O foco da análise deve se deslocar
da questão da imprevisibilidade e extraordinariedade (do aconteci-
mento apontado como “causa”) para o desequilíbrio contratual em
concreto. Trata-se, em essência, de assegurar o equilíbrio contra-
tual, e não de proteger as partes contra acontecimentos que não
poderiam ou não puderam antecipar no momento de sua manifesta-
ção originária de vontade. A superação do voluntarismo exacerbado
por uma tábua axiológica de caráter solidarista consagrada em sede
constitucional, se não exige afastar inteiramente os requisitos da
imprevisibilidade e extraordinariedade, expressamente adotados pe-
los dispositivos legais constantes do Código Civil brasileiro, impõe,
todavia, que se reserve a tais expressões um papel instrumental
na atividade interpretativa voltada precipuamente à preservação do
equilíbrio do contrato. A imprevisibilidade e extraordinariedade do
acontecimento não devem representar um requisito autônomo, a ser
perquirido em abstrato com base em um acontecimento localizado a
maior ou menor distância do impacto concreto sobre o contrato, mas
sim ficar intimamente associadas ao referido impacto, o qual passa
a consistir no real objeto da análise judicial.
Em outras palavras: se o desequilíbrio do contrato é exorbitante,
isso por si só deve fazer presumir a imprevisibilidade e extraordina-
riedade dos antecedentes causais que conduziram ao desequilíbrio.
O que se afigura indispensável à atuação da ordem jurídica é que o
desequilíbrio seja suficientemente grave, afetando fundamentalmen-
te o sacrifício econômico representado pelas obrigações assumidas.
Uma alteração drástica e intensa desse sacrifício recai presumi-
damente sob o rótulo da imprevisibilidade e extraordinariedade,
pois é de se assumir que os contratantes não celebram contratos

desproporcional a uma alteração normal em virtude do decurso do tempo, mas também uma consequência
injustificável à luz da teoria geral do contrato (…) Em uma abordagem que não encara a alteração
superveniente como ‘corpo estranho’ à relação contratual, desprotegido pelo manto legitimador do acordo de
vontades originário, e não se dirige a uma reconstrução artificiosa desse acordo à luz do novo cenário, mas
pretende, tão somente, manter a proporcionalidade econômica do contrato ao longo do tempo, a resolução
perde espaço, assumindo caráter preferencial o remédio da revisão judicial, que permite a manutenção da
relação contratual, com a correção apenas aquilo que a torna desproporcional”. SCHREIBER, Anderson.
Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 251-252.
73
Nesse sentido, na III Jornada de Direito Civil aprovou-se o Enunciado 176: “Em atenção ao princípio da
conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que
possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”.
74
TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI, Laís. Notas sobre as alterações promovidas pela Lei nº 13.874/2019
nos artigos 50, 113 e 421 do Código Civil. In: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO,
Ana. (Coord.). Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2020.
E-book.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 197
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

vislumbrando tamanha modificação do equilíbrio contratual; se a ti-


vessem vislumbrado, poderiam ter disposto sobre o tema, para lhe
negar efeitos por força de alguma razão inerente ao escopo persegui-
do com aquele específico contrato (v.g., deliberada assunção de ris-
co por uma das partes). Os contratantes sujeitam-se, por essa razão,
à presunção de que não anteciparam a possibilidade do manifesto
desequilíbrio – presunção, em uma palavra, de imprevisão –, pela
simples razão de que se espera que as partes procurem ingressar
em relações contratuais equilibradas.75

Sentido de motivos imprevisíveis no art. 317 do CC. Os Enunciados 17, 175


da Jornada de Direito Civil CJF/STJ, e 23 e 35, da Jornada de Direito Comercial
CJF/STJ, apontaram, respectivamente:

Enunciado 17: “A interpretação da expressão ‘motivos imprevisíveis’


constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto cau-
sas de desproporção não previsíveis como também causas previsí-
veis, mas de resultados imprevisíveis’”.
O que o enunciado traz como conteúdo é uma interpretação do fato
imprevisível tendo como parâmetro as suas consequências para a
parte contratante e não tendo em vista o mercado, a sua origem tão
somente. Em outras palavras, são levados em conta critérios subje-
tivos, relacionados com as partes negociais, o que é mais justo, do
ponto de vista social.
Isso seria uma espécie de função social às avessas, pois o fato que
fundamenta a revisão é interpretado na interação da parte contra-
tante com o meio, para afastar a onerosidade excessiva e manter o
equilíbrio do negócio, a sua base estrutural.76
Enunciado 175: “A menção à imprevisibilidade e à extraordinarieda-
de, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não
somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também
em relação às consequências que ele produz”.
Mais uma vez, levam-se em conta as consequências do fato impre-
visível na interpretação da sua ocorrência, a partir de uma análise
subjetiva e pessoal do fenômeno. Essa via de interpretação aproxi-
ma em muito a revisão do contrato prevista no Código Civil em vigor
à revisão do contrato consagrada no CDC, o que está em harmonia
com o princípio da função social dos contratos e da boa-fé objetiva
(diálogo das fontes, diálogo de aproximação).
Como o próprio Código Civil Brasileiro estabelece em seu art. 2.035,
parágrafo único, a matéria de relativização da força obrigatória e a
função social dos contratos são regras de ordem pública e interesse
social. Sob tal enfoque, não está a antiga interpretação de motivos
imprevisíveis de acordo com a concepção social aqui demonstrada
e defendida.

75
SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 493-494.
76
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 218.

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Em conclusão, acredita este autor que, atualmente, o único e melhor


caminho é aplicar o teor dos Enunciados do CJF/STJ por último trans-
critos, que afasta o rigor que se tem dado à aplicação dessa forma
de revisão. Na realidade, esperava-se que nossos Tribunais dessem
interpretação idêntica ao que ensina Enzo Roppo, para quem “justifi-
ca a resolução do contrato, por exemplo, a imprevista desvalorização
da moeda” (O contrato..., 1988, p. 262). Como isso não vem ocor-
rendo atualmente, os referidos enunciados representam a melhor
solução.
Dessa forma, para afastar maiores riscos ao meio social, devem-
se entender como motivos imprevisíveis os fatos supervenientes e
alheios à vontade das partes e à sua atuação culposa. Sobrevindo
a desproporção em casos tais, poderá ocorrer a revisão do negócio
jurídico.77
Enunciado 23: Em contratos empresariais, é lícito às partes contra-
tantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos
requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual.
Enunciado 35: Não haverá revisão ou resolução dos contratos de
derivativos por imprevisibilidade e onerosidade excessiva (arts. 317
e 478 a 480 do Código Civil).
O primeiro enunciado parte da premissa pela qual o contrato empre-
sarial é majoritariamente paritário e as partes podem, validamente,
estabelecer parâmetros para as hipóteses de motivos imprevisíveis
alterarem as prestações. Se for de adesão o contrato (como se ve-
rifica no caso da franquia), o enunciado deixa de ter aplicação, pois
os parâmetros objetivos seriam impostos por uma das partes. Real-
mente os contratos de derivativos têm em seu cerne o risco. São
contratos em que se deriva a maior parte de seu valor de um ativo
(físico como a soja ou financeiro como taxa de juros), taxa (preço do
euro ou dólar) ou índice (Nasdaq ou Euribor). Assim, a variação de
preço, mesmo que brutal ou excessiva, faz parte da regra desse tipo
de contrato. Não há que se falar em risco extraordinário para quem
opta por esse tipo de contratação.78

Síntese das impossibilidades de revisão contratual. A literatura jurídica79 traz


o que não seja imprevisibilidade, a partir das decisões do STJ:
(i) fatos jurídicos que não se enquadram como imprevisíveis – eventos
macroeconômicos como inflação, alteração do padrão monetário, desvalorização
da moeda, planos econômicos ou variações cambiais (STJ – RESP 1.321.614;
RESP 87.226);

77
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 219.
78
SIMÃO, José Fernando. Art. 317. In: TARTUCE, Flávio; DELGADO, Mário; MELO, Marco Aurélio Bezerra de;
SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 182.
79
LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; PRADO, Augusto Cesar Lukascheck. A liberdade
contratual e a função social do contrato – art. 421-A do Código Civil. In: LEONARDO, Rodrigo Xavier;
RODRIGUES JR., Otavio Luiz; MARQUES NETO, F. P. (Org.). Comentários à Lei da Liberdade Econômica.
São Paulo: RT, 2019. p. 309-325, p. 324.

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(ii) nos contratos empresariais o controle de abusividades é restrito pela


paridade dos agentes econômicos (STJ – RESP 1.409.849).
Critério que pode ser usado para revisar a relação contratual empresarial.
Os motivos imprevisíveis postos no art. 317 do CC podem ser lidos como causas
de desproporções previsíveis ou imprevisíveis, mas sempre com resultados
imprevisíveis, ou seja, é extraordinário o fato jurídico gerador de desequilíbrio e
também das consequências deste desequilíbrio, como posto nos Enunciados 17
e 175 das Jornadas de Direito Comercial CJF/STJ.
Caso concreto. Os efeitos trazidos pela pandemia de COVID-19 são consi-
derados imprevisíveis e extraordinários não só por terem causado desequilíbrio
superveniente à conclusão do contrato entre as partes, mas também por a
consequência deste desequilíbrio ter sido extraordinária, como posto neste parecer.
Existe um dever de negociar? Anderson Schreiber, em sua tese de titularidade
na UERJ, defende que exista um dever de negociar como expressão da boa-fé
objetiva:

A revisão judicial do contrato, embora mais útil que a resolução, não


representa panaceia para todos os males. A necessidade de pro-
positura de uma ação judicial para obtenção da revisão do contrato
serve, por vezes, de desestímulo ao contratante, que teme ver sua
relação contratual deteriorada pelo litígio. Daí ter se tornado cada
vez mais comum a busca por soluções extrajudiciais que permitam
o reequilíbrio do contrato sem a intervenção do Poder Judiciário. O
problema é que, mesmo diante do aviso da contraparte de que o con-
trato se tornou desequilibrado, o outro contratante, não raro, silen-
cia, beneficiando-se do passar do tempo. De outro lado, ocorre, às
vezes, que um contratante só venha a invocar a onerosidade exces-
siva quando cobrado por sua prestação, ainda que o fato ensejador
do desequilíbrio seja muito anterior. Para evitar essas vicissitudes,
a legislação de diversos países tem procurado disciplinar o compor-
tamento das partes em caso de excessiva onerosidade, exigindo,
por exemplo, que o desequilíbrio contratual seja prontamente comu-
nicado à contraparte e que, uma vez chamado a avaliar tal desequi-
líbrio, o contratante não possa simplesmente se omitir. O mesmo
caminho pode ser trilhado, a meu ver, no direito brasileiro, com base
na boa-fé objetiva. (...) o dever de renegociar exsurge, assim, como
um dever anexo ou lateral de comunicar a outra parte prontamente
acerca de um fato significativo na vida do contrato – seu excessivo
desequilíbrio – e de empreender esforços para superá-lo por meio da
revisão extrajudicial. Como dever anexo, o dever de renegociar inte-
gra o objeto do contrato independentemente de expressa previsão
das partes.80

80
SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 497-498.

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Consequência da quebra do dever de negociar. Para Tartuce, a quebra do


dever de negociar gera a seguinte consequência:

A quebra desse dever – seja pelo silêncio, pela sua recusa, pela sua
ruptura ou pela ausência de comunicação imediata da intenção de
renegociar – configuraria a violação positiva do contrato, gerando
a responsabilidade civil do violador, segundo propõe o doutrinador.
Acrescente-se que se pode falar, ainda, em desrespeito à eficácia
interna da função social do contrato, mais uma vez na perspectiva
de conservação do negócio jurídico (Enunciado n. 22 da I Jornada
de Direito Civil). Eis uma tese que deve ser debatida nos âmbitos
doutrinário e jurisprudencial nos próximos anos, tendo o meu apoio
integral.81

7ª Conclusão. A pandemia de COVID-19 permite a revisão da relação contratual


entre as partes, tendo em vista que os efeitos econômicos deletérios trazidos
pela pandemia de COVID-19 nos contratos empresariais entre as partes são
considerados imprevisíveis e extraordinários não só por terem causado manifesto
desequilíbrio superveniente à conclusão do contrato entre as partes, mas também
por a consequência deste desequilíbrio ter sido extraordinária, como posto neste
parecer.
8ª Conclusão. A mencionada revisão da relação contratual não permite a
concretização de novas desproporções contingenciais desmerecedoras de tutela
do ordenamento por violarem os princípios contratuais, como o da equivalência
material, até porque a majoração desmedida das prestações contratuais afetará
a população do DF, a violar os arts. 6º e 7º do Decreto Distrital nº 40.539/2020,
assim como se enquadrar em abuso do poder econômico, do inciso III do art. 36 da
Lei Federal nº 12.529/11 e do inciso II do art. 2º do Decreto Federal nº 52.025/63.

4 Conclusão
Ante o exposto, a síntese dos fundamentos deste parecer é:
1 – A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da doença
causada pelo novo coronavírus (COVID-19) – doença respiratória nova, cuja trans-
missão ocorre principalmente de pessoa a pessoa – constitui uma Emergência
de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da
Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
2 – É indiscutível que a pandemia de COVID-19 produz efeitos na saúde
pública, na sociedade, na economia de cada país, o que não é diferente no Brasil.

81
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 3. p. 225.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020 201
Pablo Malheiros da Cunha Frota, Wesley Bento

Por isso, tanto a União, como os Estados, os Municípios e o DF têm adotado um


conjunto de medidas para conter todos os efeitos da citada pandemia.
3 – No aspecto econômico, a União, por meio, entre outros, do CADE e da
Senacon, tem combatido o aumento abusivo de preço, como se infere, por exemplo:
a) da notificação, em 18.03.2020, da Senacon à Associação Brasileira
de Redes de Farmácias e Drogarias (ABRAFARMA), à Associação Brasileira de
Supermercados (ABRAS) e aos diversos produtores de máscaras e álcool em gel
no Brasil para que expliquem aumento abusivo de preços praticados no Estado
de Santa Catarina;
b) da instauração, em 18.03.2020, pelo CADE de procedimento preparatório
de inquérito administrativo nº 08700.001354/2020-48 para investigar o setor de
produtos médicos-farmacêuticos.
4 – No aspecto econômico, o DF também tem combatido o aumento abusivo e
a ocultação de produtos de proteção contra a COVID-19, como álcool em gel, luvas
e máscaras em farmácias do DF, seja pelos arts. 6º e 7º do Decreto Distrital nº
40.539/20, antigo art. 5º do revogado Decreto Distrital nº 40.520/20, corporificada
pela atuação do Procon-DF, na forma do inciso III do art. 36 da Lei Federal nº
12.529/11 e do inciso II do art. 2º do Decreto Federal nº 52.025/63.
5 – A pandemia de COVID-19 pode ser considerada caso fortuito ou de força
maior, como foi reconhecido em 2010 pelo TJSP no caso da H1N1, visto que os
dois requisitos estão preenchidos:
(i) inevitabilidade das consequências contra o adimplemento contratual,
uma vez que nenhum comportamento das partes contratantes poderia evitar os
deletérios efeitos econômicos advindos de uma Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional, caracterizada pela OMS como pandemia em 11.03.2020.
Isso porque os “coronavírus são a segunda principal causa do resfriado comum
(após rinovírus) e, até as últimas décadas, raramente causavam doenças mais
graves em humanos do que o resfriado comum”, como apontado pela OMS (grifo
nosso). Desse modo, a inevitabilidade de efeitos era estranha à atividade das
partes contratantes, impossibilitando-as de agir para impedir tal evento, mesmo
para quem trabalha na área de saúde, o que ensejou o Decreto nº 6/2020, que
reconheceu o Estado de Calamidade Pública, na forma do art. 136 da CF/88 e do
art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É a primeira vez desde a entrada
em vigor que da LRF que o Brasil entrou em Estado de Calamidade Pública;
(ii) necessidade, visto que as partes contratantes não contribuíram para
a ocorrência da pandemia de COVID-19, a cumprir com o requisito posto no art.
393, § único, do CC.
6 – A pandemia de COVID-19, mesmo sendo caso fortuito e de força maior,
não produzirá o efeito de excluir a responsabilidade da parte contratante se ela

202 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr. 2020
Efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 nos con­tratos empresariais brasileiros...

assumiu a responsabilidade pelo adimplemento da prestação mesmo se ocorresse


caso fortuito ou de força maior, como se extrai da segunda parte do caput do art.
393 do CC.
7 – A pandemia de COVID-19 permite a revisão da relação contratual entre
as partes, tendo em vista que os efeitos econômicos deletérios trazidos pela
pandemia de COVID-19 nos contratos empresariais entre as partes são considerados
imprevisíveis e extraordinários não só por terem causado manifesto desequilíbrio
superveniente à conclusão do contrato entre as partes, mas também por a
consequência deste desequilíbrio ter sido extraordinária, como posto neste parecer.
8 – A mencionada revisão da relação contratual não permite a concretização
de novas desproporções contingenciais desmerecedoras de tutela do ordenamento
por violarem promoverem os princípios contratuais, como o da equivalência material,
até porque a majoração desmedida das prestações contratuais afetará a população
do DF, a violar os arts. 6º e 7º do Decreto Distrital nº 40.539/2020, assim como
se enquadrar em abuso do poder econômico, do inciso III do art. 36 da Lei Federal
nº 12.529/11 e do inciso II do art. 2º do Decreto Federal nº 52.025/63.
Este é o parecer, salvo melhor juízo, que submetemos ao crivo dos(as)
causídicos(as) da Consulente.

Brasília-DF, 21 de março de 2020.


Pablo Malheiros da Cunha Frota
Wesley Bento

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; BENTO, Wesley. Parecer. Revista Fórum


de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 167-203, jan./abr.
2020. Parecer.

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JURISPRUDÊNCIA
Recurso Especial – Ação de compensação de dano moral –
Banco de dados – Compartilhamento de informações pessoais
– Dever de informação – Violação – Dano moral in re ipsa

Superior Tribunal de Justiça

EMENTA

Recurso Especial. Fundamento não impugnado. Súmula nº 283/STF. Ação de compensação de dano
moral. Banco de dados. Compartilhamento de informações pessoais. Dever de informação. Violação.
Dano moral in re ipsa. Julgamento: CPC/15.
1. Ação de compensação de dano moral ajuizada em 10/05/2013, da qual foi extraído o presente
recurso especial, interposto em 29/04/2016 e atribuído ao gabinete em 31/01/2017.
2. O propósito recursal é dizer sobre: (i) a ocorrência de inovação recursal nas razões da apelação
interposta pelo recorrido; (ii) a caracterização do dano moral em decorrência da disponibilização/
comercialização de dados pessoais do recorrido em banco de dados mantido pela recorrente.
3. A existência de fundamento não impugnado – quando suficiente para a manutenção das conclusões
do acórdão recorrido – impede a apreciação do recurso especial (súm. 283/STF).
4. A hipótese dos autos é distinta daquela tratada no julgamento do REsp 1.419.697/RS (julgado em
12/11/2014, pela sistemática dos recursos repetitivos, DJe de 17/11/2014), em que a Segunda
Seção decidiu que, no sistema credit scoring, não se pode exigir o prévio e expresso consentimento do
consumidor avaliado, pois não constitui um cadastro ou banco de dados, mas um modelo estatístico.
5. A gestão do banco de dados impõe a estrita observância das exigências contidas nas respectivas
normas de regência – CDC e Lei 12.414/2011 – dentre as quais se destaca o dever de informação,
que tem como uma de suas vertentes o dever de comunicar por escrito ao consumidor a abertura de
cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo, quando não solicitada por ele.
6. O consumidor tem o direito de tomar conhecimento de que informações a seu respeito estão
sendo arquivadas/comercializadas por terceiro, sem a sua autorização, porque desse direito decor-
rem outros dois que lhe são assegurados pelo ordenamento jurídico: o direito de acesso aos dados
armazenados e o direito à retificação das informações incorretas.
7. A inobservância dos deveres associados ao tratamento (que inclui a coleta, o armazenamento e
a transferência a terceiros) dos dados do consumidor – dentre os quais se inclui o dever de infor-
mar – faz nascer para este a pretensão de indenização pelos danos causados e a de fazer cessar,
imediatamente, a ofensa aos direitos da personalidade.
8. Em se tratando de compartilhamento das informações do consumidor pelos bancos de dados,
prática essa autorizada pela Lei 12.414/2011 em seus arts. 4º, III, e 9º, deve ser observado o
disposto no art. 5º, V, da Lei 12.414/2011, o qual prevê o direito do cadastrado ser informado
previamente sobre a identidade do gestor e sobre o armazenamento e o objetivo do tratamento dos
dados pessoais
9. O fato, por si só, de se tratarem de dados usualmente fornecidos pelos próprios consumidores
quando da realização de qualquer compra no comércio, não afasta a responsabilidade do gestor do
banco de dados, na medida em que, quando o consumidor o faz não está, implícita e automatica-
mente, autorizando o comerciante a divulgá-los no mercado; está apenas cumprindo as condições
necessárias à concretização do respectivo negócio jurídico entabulado apenas entre as duas partes,
confiando ao fornecedor a proteção de suas informações pessoais.
10. Do mesmo modo, o fato de alguém publicar em rede social uma informação de caráter pessoal
não implica o consentimento, aos usuários que acessam o conteúdo, de utilização de seus dados
para qualquer outra finalidade, ainda mais com fins lucrativos.
11. Hipótese em que se configura o dano moral in re ipsa.
12. Em virtude do exame do mérito, por meio do qual foram rejeitadas as teses sustentada pela
recorrente, fica prejudicada a análise da divergência jurisprudencial.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020 207
Superior Tribunal de Justiça

13. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, desprovido.


Recurso Especial nº 1.758.799/MG (2017/0006521-9) – 3ª Turma – Recorrente: PROCOB S/A – Ad-
vogado: Ricardo dos Santos Abreu – Recorrido: José Galvão da Silva – Advogados: Thiago Crestani Da-
mian e outros – Relatora: Ministra Nancy Andrighi – DJE nº 2795, div. 18.11.2019, pub. 19.11.2019

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por
unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, negar-lhe provimento, nos termos
do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas
Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 12 de novembro de 2019 (Data do Julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI


Relatora

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):


Cuida-se de recurso especial interposto por PROCOB S/A, fundado nas alíneas “a” e “c” do
permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/MG.
Ação: de obrigação de fazer e compensação de dano moral ajuizada por JOSÉ GALVÃO DA
SILVA em face de PROCOB S/A, alegando o uso indevido e a comercialização de suas informações
pessoais e sigilosas.
Sentença: o Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido.
Acórdão: o TJ/MG deu provimento à apelação interposta por JOSÉ GALVÃO DA SILVA para julgar
procedente o pedido, determinando a exclusão das informações cadastrais do apelante do banco de
dados mantido pela apelada e condená-la ao pagamento de R$ 8.000,00 (oito mil reais) a título de
compensação do dano moral. Eis a ementa do acórdão:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – INOVAÇÃO RECURSAL – INTERESSE DE AGIR


– TEORIA DA CAUSA MADURA – ART. 515, §3º DO CPC – ABERTURA DE CADASTRO COM
DADOS PESSOAIS DO CONSUMIDOR SEM AUTORIZAÇÃO – RECONHECIMENTO TÁCITO DO
PEDIDO PELA RÉ – EXCLUSÃO DAS INFORMAÇÕES CADASTRAIS – CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR – INFORMAÇÕES PESSOAIS – VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE – DANOS MORAIS
CONFIGURADOS – QUANTUM INDENIZATÓRIO.
1- “No direito brasileiro vige a teoria da substanciação, segundo a qual o julgador somente
está vinculado aos fatos, podendo atribuir-lhes a qualificação jurídica adequada, aplicando-
se os brocardos “iuri novit cúria” e “mihi factum dabo tibi ius”.
2- Para que o Poder Judiciário possa ser acionado não há necessidade de prévio esgotamento
da via administrativa.
3- A Lei 10.352/01 acrescentou o §3º ao art. 515 do CPC, permitindo ao Tribunal julgar
desde logo a lide, nos casos em que a questão versar exclusivamente sobre matéria de
direito e estiver em condições de imediato julgamento ou ainda, utilizando-se de interpretação
extensiva do referido parágrafo, se simplesmente a lide estiver em condições de imediato
julgamento ou ainda, aplicando-se a “Teoria da Causa Madura”.
4- O reconhecimento tácito da pretensão autoral consubstanciada na retirada de informações
de banco de dados formado e mantido pelo réu enseja a procedência do pedido.
5- A divulgação de informações relativas à vida privada da pessoa, sem prévia autorização,
implica inobservância do disposto no inciso X, art. 5º, da Constituição Federal que
estabelece: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

208 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020
Recurso Especial nº 1.758.799/MG

6- A disponibilização de dados pessoais em banco de dados de fácil acesso por terceiros


enseja indenização por danos morais, considerando, sobretudo, o sentimento de insegurança
experimentado pelo indivíduo.
7- O arbitramento da reparação por danos morais deve atender à dupla finalidade,
compensatória e pedagógica, sendo suficiente para desestimular o ofensor, mas sem
ensejar enriquecimento indevido para a vítima.

Embargos de declaração: opostos pela PROCOB S/A, foram rejeitados.


Recurso especial: aponta violação dos arts. 515 e 333 do CPC/73 (arts. 1.013 e 373 do
CPC/15), bem como do art. 43 do CDC, além de dissídio jurisprudencial.
Alega inovação recursal quanto à incidência das regras do CDC, tendo em vista que “ao propor
a ação indenizatória em nenhum momento o recorrido pleiteou o reconhecimento da relação de
consumo” (fl. 488, e-STJ).
Sustenta que “não há a necessidade da notificação prévia com fundamento no artigo 43 do
CDC, pois a recorrente não faz negativação, sendo apenas uma fonte de validação cadastral que visa
evitar a ocorrência de fraudes a partir do confronto das informações prestadas pelo consumidor ao
comerciante e as informações disponibilizadas no banco de dados” (fl. 489, e-STJ).
Afirma que “não houve por parte do recorrido a comprovação dos supostos danos sofridos, além
de que, como confessou em audiência, sequer tinha conhecimento de que seus dados estavam sendo
disponibilizados” (fl. 495, e-STJ).
Juízo prévio de admissibilidade: o TJ/MG inadmitiu o recurso, dando azo à interposição do AREsp
1.041.669/MG, provido para determinar a conversão em especial (fl. 643, e-STJ).
É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):


O propósito recursal é dizer sobre: (i) a ocorrência de inovação recursal nas razões da apelação
interposta pelo recorrido; (ii) a caracterização do dano moral em decorrência da disponibilização/
comercialização de dados pessoais do recorrido em banco de dados mantido pela recorrente.

1. DA EXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO NÃO IMPUGNADO

No que tange à alegada inovação recursal, a recorrente não impugnou o fundamento utilizado
pelo TJ/MG de que, “embora o apelante não tenha sustentado a aplicabilidade das disposições do
Código de Defesa do Consumidor, não há óbice para a apreciação da matéria sob este enfoque, por
este egrégio Tribunal de Justiça, em atenção ao princípio de que o juiz conhece a lei” (fl. 426, e-STJ).
Aplica-se, na hipótese, a Súmula 283/STF.

2. DA CARACTERIZAÇÃO DO DANO MORAL


2.1. Da distinção com o precedente formado no julgamento do REsp 1.419.697/RS

Inicialmente, faz-se necessário distinguir a hipótese dos autos daquela tratada no julgamento
do REsp 1.419.697/RS (julgado em 12/11/2014, pela sistemática dos recursos repetitivos, DJe de
17/11/2014), cujo acórdão está ementado nestes termos:

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C DO CPC). TEMA


710/STJ. DIREITO DO CONSUMIDOR. ARQUIVOS DE CRÉDITO. SISTEMA “CREDIT SCORING”.
COMPATIBILIDADE COM O DIREITO BRASILEIRO. LIMITES. DANO MORAL.
I - TESES: 1) O sistema “credit scoring” é um método desenvolvido para avaliação do risco
de concessão de crédito, a partir de modelos estatísticos, considerando diversas variáveis,
com atribuição de uma pontuação ao consumidor avaliado (nota do risco de crédito).
2) Essa prática comercial é lícita, estando autorizada pelo art. 5º, IV, e pelo art. 7º, I, da
Lei nº 12.414/2011 (lei do cadastro positivo).

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020 209
Superior Tribunal de Justiça

3) Na avaliação do risco de crédito, devem ser respeitados os limites estabelecidos pelo


sistema de proteção do consumidor no sentido da tutela da privacidade e da máxima
transparência nas relações negociais, conforme previsão do CDC e da Lei nº 12.414/2011.
4) Apesar de desnecessário o consentimento do consumidor consultado, devem ser a ele
fornecidos esclarecimentos, caso solicitados, acerca das fontes dos dados considerados
(histórico de crédito), bem como as informações pessoais valoradas.
5) O desrespeito aos limites legais na utilização do sistema “credit scoring”, configurando
abuso no exercício desse direito (art. 187 do CC), pode ensejar a responsabilidade objetiva
e solidária do fornecedor do serviço, do responsável pelo banco de dados, da fonte e
do consulente (art. 16 da Lei nº 12.414/2011) pela ocorrência de danos morais nas
hipóteses de utilização de informações excessivas ou sensíveis (art. 3º, §3º, I e II, da Lei
nº 12.414/2011), bem como nos casos de comprovada recusa indevida de crédito pelo
uso de dados incorretos ou desatualizados.
II - CASO CONCRETO: 1) Não conhecimento do agravo regimental e dos embargos
declaratórios interpostos no curso do processamento do presente recurso representativo
de controvérsia;
2) Inocorrência de violação ao art. 535, II, do CPC.
3) Não reconhecimento de ofensa ao art. 267, VI, e ao art. 333, II, do CPC.
4) Acolhimento da alegação de inocorrência de dano moral “in re ipsa”.
5) Não reconhecimento pelas instâncias ordinárias da comprovação de recusa efetiva do
crédito ao consumidor recorrido, não sendo possível afirmar a ocorrência de dano moral
na espécie.
6) Demanda indenizatória improcedente.
III - NÃO CONHECIMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL E DOS EMBARGOS DECLARATÓRIOS,
E RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
(REsp 1419697/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO,
julgado em 12/11/2014, DJe 17/11/2014)

Na ocasião daquele julgamento, explicou o eminente Relator, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
no voto condutor do acórdão, que o sistema credit scoring “não se trata de um cadastro ou banco
de dados de consumidores, mas de uma metodologia de cálculo do risco de crédito, utilizando-se de
modelos estatísticos e dos dados existentes no mercado acessíveis via ‘internet’“, e que “constitui,
em síntese, uma fórmula matemática ou uma ferramenta estatística para avaliação do risco de
concessão do crédito”.
A partir dessa premissa, concluiu Sua Excelência que “não se pode exigir o prévio e expresso
consentimento do consumidor avaliado, pois não constitui um cadastro ou banco de dados, mas um
modelo estatístico”.
No particular, a PROCOB S/A afirma que “não faz negativação, sendo apenas uma fonte de
validação cadastral que visa evitar a ocorrência de fraudes a partir do confronto das informações
prestadas pelo consumidor ao comerciante e as informações disponibilizadas no banco de dados”,
bem como que “possui um sistema de banco de dados meramente cadastrais, que é alimentado por
dados pessoais, tais como nome, endereço, data de nascimento, signo, etc” (fls. 489-490, e-STJ).
Infere-se, portanto, que a tese firmada no julgamento do REsp 1.419.697/RS (tema 710) não
se aplica à hipótese dos autos.

2.2. Da necessidade de comunicação acerca da disponibilização/comercialização de dados


pessoais do recorrido em banco de dados mantido pela recorrente

Nos termos do art. 2º, I e II, da Lei 12.414/2011, considera-se banco de dados o conjunto de
dados relativo à pessoa natural ou jurídica, armazenados com a finalidade de subsidiar a concessão
de crédito, a realização de venda a prazo ou de outras transações comerciais e empresariais que
impliquem risco financeiro; é administrado pelo gestor, a quem a lei autoriza a coleta, o armazenamento,
a análise e a concessão de acesso a terceiros dos dados armazenados.
De fato, as informações sobre o perfil do consumidor, mesmo as de cunho pessoal, ganharam
valor econômico no mercado de consumo e, por isso, o banco de dados constitui serviço de grande

210 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020
Recurso Especial nº 1.758.799/MG

utilidade, seja para o fornecedor, seja para o consumidor, mas, ao mesmo tempo, atividade potencialmente
ofensiva a direitos da personalidade deste.
É o que bem adverte o Ministro Herman Benjamin, ao tratar das condições de utilização dos
arquivos de consumo:

Não é qualquer pessoa que pode ter acesso às informações arquivadas sobre o
consumidor. Os arquivos de consumo só se justificam quando destinados a servir ao bom
funcionamento da sociedade de consumo. Não são instrumento de bisbilhotice da vida
alheia. Têm uma função econômica e só esta.
As informações dos arquivos de consumo só podem ser prestadas uma vez
preenchidas duas condições: uma solicitação individual decorrente de uma necessidade
de consumo. Fora disso, qualquer utilização implicará mau uso, sujeitando os infratores
(o que dá e o que recebe) às sanções próprias contra a invasão de privacidade. (Código
de Defesa do Direito do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de
janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 330 – grifou-se)

Nessa toada, a gestão do banco de dados impõe a estrita observância das respectivas normas
de regência – CDC e Lei 12.414/2011 – como leciona Leonardo Roscoe Bessa:

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em diálogo com a Lei do Cadastro


Positivo (Lei 12.414/2011), permite, desde que rigorosamente atendidas as exigências
de ambos os diplomas, o tratamento de informações negativa e positiva. Todavia, quando
não observados tais limites, tanto a conduta do fornecedor (empresário), quanto da
entidade de proteção ao crédito, passam ao campo da ilegalidade, ensejando dever de
indenizar. (Responsabilidade civil dos bancos dos dados de proteção ao crédito: diálogo
entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Cadastro Positivo. Revista de Direito
do Consumidor: RDC, v. 23, nº 92, mar./abr. 2014)

Dentre as exigências da lei, destaca-se, para a solução da presente controvérsia, o dever de


informação, que tem como uma de suas vertentes o dever de comunicar por escrito ao consumidor a
abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo, quando não solicitada por ele,
consoante determina o §2º do art. 43 do CDC.
Tal imposição vinha expressamente prevista na redação originária da Lei 12.414/2011:

Art. 4º A abertura de cadastro requer autorização prévia do potencial cadastrado


mediante consentimento informado por meio de assinatura em instrumento específico
ou em cláusula apartada.
§1º Após a abertura do cadastro, a anotação de informação em banco de dados independe
de autorização e de comunicação ao cadastrado.
§2º Atendido o disposto no caput, as fontes ficam autorizadas, nas condições estabelecidas
nesta Lei, a fornecer aos bancos de dados as informações necessárias à formação do
histórico das pessoas cadastradas.
§3º (VETADO).

O texto foi alterado recentemente pela LC 166/2019, passando à seguinte redação:

Art. 4º O gestor está autorizado, nas condições estabelecidas nesta Lei, a: (Redação
dada pela Lei Complementar nº 166, de 2019) (Vigência)
I - abrir cadastro em banco de dados com informações de adimplemento de pessoas
naturais e jurídicas; (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
II - fazer anotações no cadastro de que trata o inciso I do caput deste artigo; (Incluído
pela Lei Complementar nº 166, de 2019) (Vigência)
III - compartilhar as informações cadastrais e de adimplemento armazenadas com outros
bancos de dados; e (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
IV - disponibilizar a consulentes: (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020 211
Superior Tribunal de Justiça

a) a nota ou pontuação de crédito elaborada com base nas informações de adimplemento


armazenadas; e (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
b) o histórico de crédito, mediante prévia autorização específica do cadastrado. (Incluído
pela Lei Complementar nº 166, de 2019) (Vigência)
§1º (Revogado). (Redação dada pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
§2º (Revogado). (Redação dada pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
§3º (VETADO).
§4º A comunicação ao cadastrado deve: (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
I - ocorrer em até 30 (trinta) dias após a abertura do cadastro no banco de dados, sem
custo para o cadastrado; (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
II - ser realizada pelo gestor, diretamente ou por intermédio de fontes; e (Incluído pela Lei
Complementar nº 166, de 2019) (Vigência)
III - informar de maneira clara e objetiva os canais disponíveis para o cancelamento do
cadastro no banco de dados. (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
§5º Fica dispensada a comunicação de que trata o §4º deste artigo caso o cadastrado
já tenha cadastro aberto em outro banco de dados. (Incluído pela Lei Complementar nº
166, de 2019) (Vigência)
§6º Para o envio da comunicação de que trata o §4º deste artigo, devem ser utilizados
os dados pessoais, como endereço residencial, comercial, eletrônico, fornecidos pelo
cadastrado à fonte. (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)
§7º As informações do cadastrado somente poderão ser disponibilizadas a consulentes
60 (sessenta) dias após a abertura do cadastro, observado o disposto no §8º deste
artigo e no art. 15 desta Lei. (Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019) Vigência)
§8º É obrigação do gestor manter procedimentos adequados para comprovar a autenticidade
e a validade da autorização de que trata a alínea b do inciso IV do caput deste artigo.
(Incluído pela Lei Complementar nº 166, de 2019)

Embora o novo texto da Lei 12.414/2011 se mostre menos rigoroso, no que diz respeito ao
cumprimento do dever de informar ao consumidor sobre o seu cadastro – já que a redação originária
exigia autorização prévia mediante consentimento informado por meio de assinatura em instrumento
específico ou em cláusula apartada –, o legislador não desincumbiu o gestor e/ou a fonte de proceder
à efetiva comunicação.
A propósito, o STJ, há muito, firmou a tese de que “a ausência de prévia comunicação ao
consumidor da inscrição do seu nome em cadastros de proteção ao crédito, prevista no art. 43, §2º do
CDC, enseja o direito à compensação por danos morais, salvo quando preexista inscrição desabonadora
regularmente realizada” (tema 41, súmula 385/STJ).
Essa orientação jurisprudencial, construída sob a enfoque do registro de informações negativas
sobre o consumidor, tem incidência também para o registro de informações positivas sobre o consumidor,
com base no que prevê o §2º do art. 43 do CDC, observadas as especificidades do art. 4º da Lei
12.414/2011.
Isso porque, em qualquer das circunstâncias, tem o consumidor o direito de tomar conhecimento
de que informações a seu respeito estão sendo arquivadas/comercializadas por terceiro, sem a sua
autorização, porque desse direito decorrem outros dois que lhe são assegurados pelo ordenamento
jurídico: o direito de acesso aos dados armazenados e o direito à retificação das informações incorretas.
Oportunas, mais uma vez, as palavras de Leonardo Roscoe Bessa:

Em sua origem, a privacidade estava associada ao direito de ser deixado em


paz – right to bel et alone. A preocupação atual, entretanto, é proteger o cidadão em
relação aos modernos – e cada vez mais eficientes – mecanismos de informática de
tratamento (coleta, armazenamento e difusão) de dados. Some-se a isso a crescente
tendência de análise, juízos de valor das pessoas a partir de um perfil digital, ou seja,
de dados obtidos friamente em redes eletrônicas, pela internet, por transferências
não autorizadas que, invariavelmente, não correspondem a situações reais, ensejando
tratamento discriminatório, julgamentos rápidos e equivocados ou acesso a informações
que integram dados sensíveis. Esta nova configuração de tratamento de dados, permitida

212 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020
Recurso Especial nº 1.758.799/MG

pelo progresso na área da informática apresenta, ao lado de benefícios, ameaça à dignidade


da pessoa humana, a direitos da personalidade, podendo significar a perda ou significativa
diminuição de autonomia e liberdade pessoais. (Obra citada – grifou-se)

A questão se torna ainda mais preocupante diante da possibilidade de compartilhamento das


informações do consumidor pelos bancos de dados, prática essa autorizada pela Lei 12.414/2011
em seus arts. 4º, III, e 9º. Explica o mencionado professor:

A troca de informação “por espelhamento”, de acordo com prática criada pelo


setor, significa divulgar as informações provenientes de outros bancos de dados, sem,
contudo, realizar, quando necessário, a retificação ou cancelamento das informações
difundidas, sob o argumento de que os dados não são incluídos na base da entidade que
recebeu as informações. Assim, se o consumidor constata que a dívida já foi paga, por
exemplo, a entidade que divulga a informação “por espelhamento” não retifica a informação
e sugere ao interessado que se dirija diretamente ao arquivo de consumo que “originou”
a inscrição. Enquanto não realizado o procedimento de retificação ou cancelamento da
informação perante o banco de dados que “gerou” a informação, o registro continua
sendo divulgado por ambos os arquivos de consumo. (Práticas comerciais: banco de
dados e direitos dos consumidores. Revista de Direito do Consumidor: RDC, v. 23, nº
95, set./out. 2014)

Assim, a inobservância de qualquer dos deveres associados ao tratamento (que inclui a coleta,
o armazenamento e a transferência a terceiros) dos dados do consumidor – dentre os quais se inclui
o dever de informar – faz nascer para este a pretensão de indenização pelos danos causados e a de
fazer cessar, imediatamente, a ofensa aos direitos da personalidade.
Na espécie, os serviços oferecidos pela recorrente são assim descritos em suas razões:

No presente caso, a RECORRENTE possui um sistema de banco de dados meramente


cadastrais, que é alimentado por dados pessoais, tais como NOME, ENDEREÇO, DATA DE
NASCIMENTO, SIGNO, ETC. Salienta-se que tais dados podem ser facilmente obtidos por
qualquer pessoa das mais variadas formas, como por exemplo, junto às juntas comerciais,
em sites de busca na internet, em cartórios de registro de imóveis e inclusive através
das tão conhecidas redes sociais, tal como o Facebook, informações estas franqueadas
sem qualquer necessidade de intervenção judicial e que obviamente não estão cobertas
por qualquer tipo de sigilo legal.
(...)
Ora, a RECORRENTE apenas disponibiliza aos seus clientes (frisando que somente
tem acesso ao banco de dados os clientes que firmaram contrato com a PROCOB) as
informações repassadas pela SERASA com a finalidade de dar segurança as milhares de
relações comerciais realizadas diariamente. (fls. 490 e 495, e-STJ – grifou-se)

Desse cenário se infere que a recorrente se beneficia do compartilhamento de informações e,


nessa medida, deve observância ao disposto no art. 5º, V, da Lei 12.414/2011, o qual prevê o direito
do cadastrado ser informado previamente sobre a identidade do gestor e sobre o armazenamento e o
objetivo do tratamento dos dados pessoais.
Na linha desse raciocínio, conclui, por fim, Leonardo Roscoe Bessa:

O art. 5º, V, da Lei 12.414/2011, é bastante claro no sentido de que é direito do


consumidor “ser informado previamente sobre o armazenamento, a identidade do gestor
do banco de dados, o objetivo do tratamento dos dados pessoais e os destinatários
dos dados em caso de compartilhamento”. (grifou-se). Em caso de compartilhamento da
informação com outros bancos de dados, nada mais natural e razoável que o consumidor
saiba em quais arquivos de consumo seu nome será registrado. É exatamente o que
determina o dispositivo transcrito, o qual se aplica – destaque-se – tanto em relação à
informação positiva como no tocante à informação negativa. Este direito é a própria

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020 213
Superior Tribunal de Justiça

concretização da boa-fé objetiva e não pode, em nenhuma hipótese, ser afastado,


considerando o caráter público dos bancos de dados de proteção ao crédito.
O art. 6º, III, Lei 12.414/2011, reforça a importância de o consumidor saber a
qualificação de outros bancos de dados que recebem as informações por compartilhamento.
Estabelece o dispositivo que: “Ficam os gestores de bancos de dados obrigados, quando
solicitados, a fornecer ao cadastrado: (...) III – indicação dos gestores de bancos de dados
com os quais as informações foram compartilhadas”. A norma é clara: se o arquivo de
consumo divulga – por qualquer meio – dados e informações que foram coletadas em
outro arquivo de consumo há compartilhamento da informação e, portanto, necessidade
de cumprir o que determina a Lei 12.414/2011 e o CDC a respeito.
As atividades desenvolvidas pelos bancos de dados de proteção ao crédito estão
sujeitas ao Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) em diálogo com a Lei
do Cadastro Positivo (Lei 12.414/2011). No caso de compartilhamento de informações
negativas ou positivas (ainda que outra denominação seja dada a esta forma de coleta
de dados), cabe à entidade de proteção ao crédito, no momento da comunicação ao
consumidor da inscrição do seu nome (art. 43, §2º do CDC) informar a qualificação dos
bancos de dados com os quais a informação será compartilhada (art. 5º, V, da Lei de
Cadastro Positivo). (Obra citada)

Assim, forçoso reconhecer que a recorrente descumpriu o seu dever de informar ao recorrido
sobre a abertura do cadastro e o compartilhamento dos seus dados, obstando-lhe, por conseguinte, o
acesso ao conteúdo das informações pessoais armazenadas e a sua eventual retificação.
A título de esclarecimento, cabe também ressaltar que, em sua página eletrônica, encontram-se
as seguintes informações relativas a um dos serviços prestados pela recorrente, denominado “know
your customer – CPF/CNPJ completo”:

O QUE É
Relatório geral do documento informado, contendo informações de várias pesquisas
como: Dados Pessoais, Endereço, Telefones (fixo, celular, comercial e outros), E-mails,
Situação na Receita Federal, Geomarketing, Possíveis parentes, Residentes no mesmo
endereço, Vizinhos dos endereços pesquisados.

A QUEM SE DESTINA?
Empresas que necessitam confirmar dados cadastrais e realizar análise de concessão
e recuperação de crédito.

FORMAS DE ACESSO?
Consulta Online (usuário/senha);
Via API https://api.procob.com/

DISPONIBILIZA QUAIS INFORMAÇÕES?


Dados Pessoais; Endereço;
Telefones (fixo, celular, comercial e outros telefones vinculados ao documento
pesquisado);
E-mails;
Possíveis parentes;
Pessoas residentes no mesmo endereço;
Vizinhos dos endereços pesquisados.

COMO CONTRATAR?
CPF / CNPJ Completo

Com Mensalidade
R$ 0,20 por consulta
Com Anuidade

214 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020
Recurso Especial nº 1.758.799/MG

R$ 0,19 por consulta


Sem Mensalidade
R$ 1,43 por consulta
(Informação disponível em: https://www.procob.com/produtos-pessoa-juridica/
consultas-cadastrais/cpf-cnpj-completo/; acesso em 21/10/2019)

Como se vê, além de violar o dever de informação, o banco de dados mantido pela recorrente
faz anotações de informações excessivas – como as relativas aos possíveis parentes, aos residentes
no mesmo endereço, e aos vizinhos dos endereços pesquisados – as quais em nada contribuem para
a avaliação da situação econômica do cadastrado, como exige o §1º do art. 3º da Lei 12.414/2011,
e que, por isso, são expressamente proibidas pelo §3º, I, do mesmo dispositivo legal.
Convém salientar que o fato, por si só, de se tratarem de dados “usualmente fornecidos pelos
próprios consumidores quando da realização de qualquer compra no comércio, que não se afiguram
como os chamados dados sensíveis ou sigilosos” (fl. 496, e-STJ), como assegura a recorrente, não
afasta a sua responsabilidade.
Evidentemente, quando o consumidor fornece seus dados para a realização de uma compra
no comércio ele não está, implícita e automaticamente, autorizando o comerciante a divulgá-los no
mercado; está apenas cumprindo as condições necessárias à concretização do respectivo negócio
jurídico entabulado apenas entre as duas partes, confiando ao fornecedor a proteção de suas
informações pessoais.
Do mesmo modo, o fato de alguém publicar em rede social uma informação de caráter pessoal
não implica o consentimento, aos usuários que acessam o conteúdo, de utilização de seus dados para
qualquer outra finalidade, ainda mais com fins lucrativos.
Por todo o exposto, não merecem reparos os fundamentos do TJ/MG para reconhecer a
caracterização do dano moral; vejamos:

Assim, tenho que a conduta da apelada enseja indenização por danos morais,
considerando, sobretudo, o sentimento de insegurança experimentado pelo apelante ao
perceber que seus dados pessoais como número de telefone, CPF, endereço e filiação
se encontravam disponibilizados em banco de dados de fácil acesso por terceiros.
A conduta da apelada é no mínimo inconsequente na medida em que facilita o
acesso aos dados pessoais da pessoa cadastrada, sem o seu consentimento expresso,
o que favorece prática de atos ilícitos ou contratações fraudulentas por terceiros de
má-fé. A invasão de privacidade é flagrante. (fl. 432, e-STJ)
Configura-se, pois, a ocorrência de dano moral in re ipsa.

3. DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL

Em virtude do exame do mérito, por meio do qual foram rejeitadas as teses sustentadas pela
recorrente, fica prejudicada a análise da divergência jurisprudencial.

4. DA CONCLUSÃO

Forte nessas razões, CONHEÇO EM PARTE do recurso especial e, nessa extensão, NEGO-LHE
PROVIMENTO.
Deixo de majorar os honorários advocatícios porque arbitrados pelo Tribunal de origem no
percentual máximo previsto na lei.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 207-215, jan./abr. 2020 215
AGENDAS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Liberdade e família: uma proposta
para a privatização das relações
conjugais e convivenciais*

Renata Vilela Multedo


Doutora e mestra em Direito Civil pela UERJ. Professora titular de Direito Civil do Grupo
IBMEC. Professora da pós-graduação lato sensu em Direito Privado Patrimonial e em
Direito das Famílias e das Sucessões da PUC-Rio. Membro do Conselho Executivo da
civilistica.com – Revista Eletrônica de Direito Civil. Membro efetivo do IAB. Membro do
IBDFAM e do IBDCivil. Advogada.

Sumário: 1 Introdução – 2 Liberdade e família – 3 Uma proposta para a privatização das relações
conjugais e convivenciais – 4 Limites e justificativas para e intervenção estatal – 5 Conclusão

1 Introdução
O Direito existe sempre “em sociedade”, isto é, as soluções jurídicas são
contingentes a determinado ambiente.1 A tradição de leitura e de reutilização
sucessiva dos textos, dos conceitos e das construções dogmáticas cria novos
conteúdos ou sentidos, em virtude da interação entre as figuras do texto e os
sucessivos contextos.2 Por isso, as normas jurídicas apenas podem ser entendidas
se estão integradas aos complexos normativos que organizam a vida social, pois
a própria produção do Direito é, ela mesma, um processo social.3
É na tomada de consciência pelo jurista que reside a importância dessa
contextualização, sendo um grave erro pensar “que, para todas as épocas e para
todos os tempos, haverá sempre os mesmos instrumentos jurídicos. É justamente o
oposto: cada lugar, em cada época, terá os seus próprios mecanismos”.4 Conceitos
como “liberdade”, “democracia”, “contrato” e “família” são conhecidos como

*
Anteriormente publicado em: MULTEDO, Renata Vilela. Liberdade e família: uma proposta para a privatização
das relações conjugais e convivenciais. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola Albuquerque;
ANDRADE, Gustavo (Coord.). Direito das relações familiares contemporâneas: estudos em homenagem a
Paulo Luiz Netto Lôbo. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 105-132. ISBN 978-85-450-0700-5.
As ideias deste artigo também foram desenvolvidas por esta autora no livro Liberdade e família: limites
para intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais. Rio de Janeiro: Processo, 2017.
1
HESPANHA. A cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Coimbra: Almedina, 2012. p. 13.
2
HESPANHA. A cultura jurídica europeia, 2012. p. 51.
3
HESPANHA. A cultura jurídica europeia, 2012. p. 25-27.
4
PERLINGIERI, Pietro. Normas constitucionais nas relações privadas. Revista da Faculdade de Direito da
UERJ, n. 6 e 7, p. 63-64, 1998/1999.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 219
Renata Vilela Multedo

construções jurídicas há séculos, mas, por detrás da continuidade aparente na


superfície das palavras, esconde-se uma descontinuidade radical na profundidade
de sentido. É certo que, desde o Direito romano, já se tinha o instituto jurídico
da família. Entretanto, cabe indagar: o que continua na família desde os tempos
dos romanos?5
Naquele contexto histórico, a perspectiva era fulcrada no patrimônio privado,
isto é, a família era juridicamente regulada para assegurar a manutenção da
propriedade nas famílias romanas.6 Depois, com a difusão do cristianismo, foi
introduzida a moralidade, sem se perder a essência de salvaguarda do patrimônio. A
religião pode não ter criado a família, mas, sem dúvida, criou as regras familiares,7
baseadas na indissolubilidade, na castidade, na virgindade e na procriação. São
paradigmas que, ainda no século passado, pautavam o Direito de Família até
mesmo nos Estados, em teoria, laicos.
Na perspectiva contemporânea do Direito Civil, todas as situações jurídicas
subjetivas submetem-se a controle de merecimento de tutela, com base no
projeto constitucional.8 Uma concepção moderna da família requer, portanto,
uma funcionalização do instituto que responda às escolhas de fundo da sociedade
contemporânea,9 operadas pela Constituição.
Essa concepção implica a rejeição do paradigma, que por muito tempo perdurou,
do direito de família como um sistema hermético, que tinha no casamento o centro
gravitacional. O fenômeno familiar não é mais unitário, tendo deixado o casamento
de servir como referência única.10 Na passagem da estrutura à função,11 a família
deixou de ser unidade institucional para tornar-se núcleo de companheirismo,12
sendo hoje lugar de desenvolvimento da pessoa no qual se permitem modalidades

5
HESPANHA. A cultura jurídica europeia, 2012. p. 59.
6
“(…) patrimonium era a missão do pai: gerar e manter os bens de Roma no ager romanus (campo romano)
sem desvio algum. E matrimonium era a missão da mãe: gerar e criar na domus romana (casa romana),
também sem desvio algum, os futuros cidadãos e chefes das famílias e gentes romanas, herdeiros
das coisas romanas, a dar continuidade à civitas romana” (BARROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e
patrimônio. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 2, n. 8, p. 6-7, 2001).
7
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 45-46.
8
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos cruzados do direito civil pós 1988 e do constitucionalismo
de hoje. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade
constitucional. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da cidade do Rio de Janeiro.
São Paulo: Atlas, 2008. v. 1. p. 263.
9
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 138.
10
BODIN DE MORAES, Maria Celina. A nova família, de novo: estruturas e funções das famílias contemporâneas.
Revista Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2, p. 587-628, maio/ago. 2013. p. 593.
11
Ver, por todos, BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo:
Manole, 2007. Na definição de Luiz Edson Fachin (2015, p. 49), “a travessia é a da preocupação sobre
como o direito é feito para a investigação a quem serve o direito”.
12
VILLELA, João Baptista. Repensando o direito de família. In: COUTO, Sérgio (Coord. Cient.). Nova realidade
do direito de família. Rio de Janeiro: COAD, SC Editora Jurídica, 1999. t. 2. p. 52-59.

220 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020
Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

de organização diversas, desde que estejam finalizadas à promoção daqueles que


a ela pertencem.13
A referida função promocional assumida pelo direito nas constituições
pós-liberais14 possibilitou, no âmbito da família, o reconhecimento de novas
entidades familiares, plurais, porque deixadas à livre escolha de seus membros
e, como dito, tuteladas como instrumento de promoção da dignidade daqueles
que a compõem. A axiologia constitucional tornou possível a propositura de uma
configuração democrática de família, na qual não há direitos sem responsabilidades,
nem autoridade sem democracia.15
Uma das principais questões que protagoniza a arena política-jurídica mundial
hoje é a garantia da liberdade individual para proteger o livre desenvolvimento da
personalidade, principalmente em respeito às escolhas pessoais no âmbito das
relações familiares. Com a expansão do conceito de privacidade – e, principalmente,
com seu reconhecimento como um direito fundamental16 –, faz-se sempre mais
necessário estender os espaços para o exercício da autonomia existencial como
um dos aspectos da tutela da dignidade da pessoa humana.
Todos os institutos de direito privado – a exemplo da família, do contrato e da
propriedade privada – passam a só ser tutelados na medida em que funcionalizados
à promoção da dignidade da pessoa humana, princípio regedor das mencionadas
constituições do pós-guerra. Juridicamente, percebe-se com nitidez que o reco-
nhecimento da normatividade e a incidência direta dos princípios constitucionais
nas relações privadas acarretaram a superação das fronteiras entre o público e o
privado, fazendo aflorar novos debates em torno do cotejo entre autonomia privada
e intervenção do Estado.
Não por acaso, a família é uma das searas em que se percebe de forma
mais explícita essa constante tensão. No Brasil, mantida por mais de 300 anos
como uma instituição à margem de qualquer interferência externa, a família,
reduto exclusivamente privado, foi alvo, nas últimas décadas, de substanciosa
regulamentação. Foi a Constituição de 1988 que iniciou essas transformações na
família brasileira, modificando o paradigma sobre o qual se assentava o conceito
jurídico em tela. A família estava, até o advento do texto constitucional, fundada
exclusivamente no casamento e preservada a qualquer custo como instituição
acima dos interesses de seus integrantes.
Como é evidente, também no Direito de Família um novo cenário axiológico
foi delineado pelo texto constitucional. O processo de transformação foi seguido

13
PERLINGIERI. O direito civil na legalidade constitucional, p. 972.
14
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007.
p. 13.
15
BODIN DE MORAES, A nova família, de novo..., p. 591-593.
16
Art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 221
Renata Vilela Multedo

de perto pela jurisprudência, que teve um papel atuante na construção de um


novo padrão familiar, ora chamado de ‘democrático’.17 Com efeito, os órgãos
judicantes, como os primeiros a serem sempre chamados a se manifestar frente
às novas demandas sociais, são instados a tutelar interesses de uma realidade
que se encontra à margem da legislação infraconstitucional.
São tantos novos arranjos familiares quanto são os novos problemas concretos,
que reclamam da doutrina um devido aprofundamento teórico diante de inúmeros
debates sobre o tema, inclusive entre Legislativo e Judiciário. Ressalta-se o valor
substancial dos sentimentos em detrimento das formalidades dos vínculos como
a forte característica das relações familiares, em contraponto, destaca-se a difícil
“autogestão da liberdade”,18 na medida em que se abre mão do esteio de normas
heterônomas, como o maior desafio da comunidade familiar.
A título de exemplo, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que
igualou, em sede incidental, a sucessão do cônjuge ao do companheiro abriu
um campo a novas discussões sobre a heteronomia estatal, tanto na esfera do
Direito das Sucessões como na seara do Direito de Família. A doutrina mais atenta
logo se manifestou para chamar a atenção para o “paradoxo da equiparação”,19
lembrando que a distinção seria, ela mesma, constitucionalmente garantida e que
“se as pessoas não se casam no civil é porque não querem fazê-lo”,20 trazendo
à lembrança a advertência mais antiga de outro autor,21 o qual, aparentemente,
conseguira antever esse percurso jurisprudencial. Com efeito, enfaticamente, afirmou
que parecia “um delírio do Estado casar ex officio aqueles que não quiseram casar
motu proprio”,22 argumento que justificaria por que seria inconcebível aplicar a
normativa do casamento a pessoas que deliberadamente optaram por uma união
livre, cabendo a elas o direito de viverem segundo as próprias regras, e não segundo
aquelas que deliberadamente rejeitaram.23

17
V., por todos, GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-
democracia. Rio de Janeiro: Record, 2000 e A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo
nas sociedades modernas. São Paulo: UNESP, 1992. A expressão “família democrática” de Anthony
Giddens foi analisada no Brasil por Maria Celina Bodin de Moraes (A família democrática. In: BODIN DE
MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 207-234).
18
TEPEDINO, Gustavo. Dilemas do afeto. Jota, 31 dez. 2015. Disponível em: https://jota.info/especiais/
dilemas-do-afeto-31122015. Acesso em: 18 jul. 2017.
19
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. União estável e casamento: o paradoxo da equiparação. 2016. Disponível
em: http://www.rodrigodacunha.adv.br/uniao-estavel-e-casamento-o-paradoxo-da-equiparacao/. Acesso
em: 30 mar. 2020..
20
PEREIRA, União estável e casamento..., [n.p.].
21
VILLELA, João Baptista. Repensando o direito de família. In: COUTO, Sérgio (Coord. Cient.). Nova realidade
do direito de família. Rio de Janeiro: COAD, SC Editora Jurídica, 1999. t. 2. p. 52-59. Ora tb. em: jfgontijo.
com.br/2008/artigos_pdf/Joao_Baptista_Villela/RepensandoDireito.pdf. Acesso em: 03 dez. 2016.
22
VILLELA, Repensando o direito de família, 1999. p. 52-59.
23
VILLELA, Repensando o direito de família, 1999. p. 52-59.

222 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020
Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

E aqui é o caso de indagar-se: estaria mesmo a jurisprudência “sepultando”


a união estável, como normalmente se pensa? Não seria o caso de pesquisar
se o que vem sendo atingido é o casamento? Parece que a segunda formulação
possa corresponder melhor à visão prospectiva dos fenômenos, considerando,
especialmente, o enorme número de regras a serem cumpridas para o casar e o
descasar e a ausência completa delas para viver em união estável, obtendo-se em
ambos os casos, como vimos, praticamente os mesmos efeitos.24
Nesse contexto é que se propõe uma reflexão crítica sobre o exercício da
autonomia existencial nas relações conjugais e convivenciais, considerando
a contextualização e a compatibilização entre a liberdade de escolha para a
constituição do projeto familiar e as justificativas para a heteronomia estatal na
regulamentação dessas relações.
Para tanto, é preciso afastar propostas calcadas em argumentos moralistas,
etnocentristas e intolerantes, que afrontam a axiologia constitucional. Emerge,
ainda, a importância de concretizar-se a laicidade no atual contexto sociocultural
brasileiro e, ao mesmo tempo, respeitarem-se as convicções religiosas de cada
pessoa dentro do seu projeto existencial, desde que não conflitem com os princípios
constitucionais.25
Já se afirmou que o casamento civil tem a função principal, no Direito
contemporâneo, de servir como uma prova pré-constituída da união estável.26
Juridicamente, porém, tem ele ainda funções específicas, que não possam ser
alcançadas pela união estável? Surgem, assim, duas observações de ordens
distintas: as numerosíssimas regras que dizem respeito ao casamento devem
permanecer incólumes? Ou, ao contrário, será preciso estender mais algumas à
união estável (como os impedimentos, por exemplo) – lembrando que, em relação
a esta, tudo sempre se verifica a posteriori, relativamente às consequências27 – e
esperar que o casamento volte a ser, um dia, um acontecimento eminentemente
religioso, como ocorria até o início da era contemporânea? Em outras palavras:
para que serve hoje o casamento?28

24
VILELA MULTEDO, Renata; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.
com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 2, 2016. Disponível em: http://civilistica.com/a-privatizacaodo-casamento/.
Acesso em: 05 jul. 2017.
25
LÔBO, Paulo. Estado laico é conquista de todos e das famílias. Revista Consultor Jurídico, 06, dez. 2015.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/ 2015-dez-06/processo-familiar-estado-laico-conquista-todos-
familias. Acesso em: 13 jul. 2016.
26
BODIN DE MORAES, Maria Celina. A nova família, de novo: estruturas e função das famílias contemporâneas.
Revista Pensar, v. 18, n. 2, p. 587-628, maio/ago. 2013.
27
De modo que, por exemplo, a união estável entre irmãos é de ser considerada nula e não geradora de
efeitos jurídicos para o casal.
28
VILELA MULTEDO, Renata; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.
com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 2, 2016. Disponível em: http://civilistica.com/a-privatizacaodo-casamento/.
Acesso em: 5 jul. 2017.

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Renata Vilela Multedo

2 Liberdade e família
O Direito de Família positivado fotografa instantes de uma realidade mutante.29
Se é assim, só é possível ver as entidades familiares previstas em lei como
exemplificativas, admitindo-se a liberdade das pessoas de constituírem o modelo
de família que melhor corresponde a seus anseios. Uma vez engajados por ato de
autonomia, um se torna responsável pela construção do outro: conviver e escolher
permanecer juntos, em expressão da liberdade, origina a solidariedade, pois faz
do outro algo especial a ser cuidado.30
A família recuperou sua função e rompeu com os obstáculos em sua vasta
casuística, por meio da solidariedade que emerge nas relações familiares. É grupo
unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida, e passa a exigir uma
“tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de constituição, convivência e
dissolução; a autorresponsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com
reconhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gêneros”;31 a igualdade
entre cônjuges e conviventes; igualdade entre irmãos biológicos, socioafetivos
e adotivos; com respeito aos direitos fundamentais, fundada na solidariedade
recíproca, que deve ser protegida acima de quaisquer interesses patrimoniais.
Com a Constituição de 1988, o Estado inimigo das minorias, protagonista da
repressão e da imposição da moral dominante, como se fosse a única legítima,
cedeu passo ao Estado solidário, agente da tolerância e da inclusão social.32
Inaugurou-se uma nova fase do Direito de Família, baseado na adoção de um
pluralismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir
família, recebendo todos eles a especial proteção do Estado. Por isso, não há
que se negar o casamento para as famílias que por ele quiserem optar, se esta
recusa for baseada em razões discriminatórias, tal qual foi durante tanto tempo
com as homoafetivas.
A família transcendeu do modelo de uma rígida organização autoritária para
tornar-se uma forma de convivência solidária na qual se desenvolve, de modo livre,
a personalidade humana.33 Desse modo, a liberdade de se casar convive, é claro,
com o espelho invertido da mesma liberdade, a de não permanecer casado.34 O

29
FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003. p. 55.
30
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a
realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 97.
31
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
v. 36, n. 141, p. 99-100, jan./mar. 1999.
32
BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no
Brasil. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 17, p. 105-138, jan./jun. 2011. p. 113.
33
BIANCA, Cesare Massimo. Famiglia: Diritto. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/
famiglia_%28Enciclopedia_delle_scienze_sociali%29/. Acesso em: 13 de jan. 2016.
34
FACHIN, Direito de família..., p. 169.

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

advento da Lei nº 11.441/07 representa, no âmbito das relações conjugais, um


marco legislativo extremamente relevante. O diploma em referência foi responsável,
entre outras alterações, por acrescer o art. 1.124-A ao Código de Processo Civil
de 1973. O artigo específico passou a permitir o processamento extrajudicial das
separações e dos divórcios consensuais, em não havendo filho menor ou incapaz
do casal, independentemente de homologação judicial. O conteúdo do art. 1.124-A
foi reproduzido pelo novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), em seu
art. 733, que, além de excepcionar os interesses de filhos menores ou incapazes,
faz menção também aos direitos de eventual nascituro.
Considerada por si só, a alteração levada a cabo em 2007 parece indicar
uma (tardia) tendência no sentido da desjudicialização das relações conjugais e,
consequentemente, de um menor intervencionismo do Estado em relação ao exercício
da autonomia existencial nas relações conjugais. Ao mesmo tempo, oportuniza
uma alternativa significantemente mais célere, mais informal e menos custosa,
tanto financeira como emocionalmente, para formalizar o fim da vida conjugal.
De fato, a vida familiar contemporânea evoluiu de tal forma que a imposição
de empecilhos pelo Estado no sentido de dificultar a separação do casal, sob o
suposto pretexto de preservar a família, não faz mais nenhum sentido. Como se
sabe, no passado, a certidão de casamento revestia as relações sexuais sob o
manto da legalidade, além de assegurar aos envolvidos a conformação a certas
expectativas sociais.35 Este, no entanto, não é mais o papel desempenhado pelo
instituto que, inclusive, deixou de ser a única modalidade de união legitimada
pelo Direito.
Na estrutura hierarquizada da família, se a liberdade regia as situações
patrimoniais, o arbítrio era o traço marcante das relações existenciais. Sob a égide
do Estado liberal, a autonomia privada no âmbito familiar só cabia ser pensada a
partir de uma ótica patrimonialista, exclusivamente patriarcal e matrimonializada. A
liberdade, vista do ponto de vista existencial, restringia-se a um perfil negativo, sendo
transportada, sem nenhuma adequação, da lógica patrimonial para a existencial.
Algo bastante diverso é a ideia de liberdade plural disposta no texto
constitucional, que não parte da mera transposição da ótica patrimonial para a
existencial, “mas antes visa a superlativizar este último ante o primeiro, por meio

35
Em tradução livre: “A licença conferida pelo Estado era uma forma de garantir que a atividade sexual não
seria um crime; além do que era difícil adotar crianças fora da relação conjugal. Mas o casamento oficial
já não tem essa função. Na verdade, as pessoas agora têm o direito constitucionalmente garantido de ter
relações sexuais mesmo se não forem casadas – e de se tornarem pais, inclusive pais adotivos, sem o
auxílio do casamento. Agora que o casamento não é uma condição jurídica, nem para se fazer sexo nem
para se ter filhos, o papel de licenciamento do Estado parece menos importante” (Nudge, Cap. Privatizing
Marriage. SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard H. Nudge: improving decisions about health, wealth and
happiness. New Haven, CT: Yale University Press, New Haven, 2008a. p. 219).

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Renata Vilela Multedo

de ressignificações possíveis de um conceito outrora cativo a um lugar patrimonial


que, contemporaneamente, não pode ser visto sequer como seu lócus privilegiado”.36
A passagem da família instituição, que se sobrepunha a seus componentes,
para a família instrumento, “que coloca as aspirações coexistenciais dos seus
membros acima do ‘todo’ institucional”,37 apreendida, sobretudo, pelo tratamento
constitucionalmente oferecido a essas relações, modifica o destino das próprias
prestações funcionais que se espera da família. E isso ocorre não de tentativa de
recondução a um conceito contratualista de família, mas “de uma liberdade que se
manifesta e se constrói no viver – e não, simplesmente, na gênese formal de um
modelo unitário de família por meio da categoria abstrata do negócio jurídico”.38
Se a expressão jurídica da família tem, entre suas funções, o exercício, a
proteção e a promoção de liberdade(s), admitir uma interpretação restritiva que
elimine, em termos concretos, a proteção jurídica de opções de constituição familiar
livres na normatividade que esse (con)viver enseja, pode ser encarada como uma
violação dessa dimensão funcional. Na medida em que a família é um espaço de
autoconstituição coexistencial, não cabe nem ao Estado, nem à comunidade a
definição de como essa autoconstituição será desenvolvida.
A repercussão do casamento como o único modelo jurídico de família e lugar
de não liberdade pode ser percebida no Direito brasileiro até os dias de hoje. A
ausência de proteção jurídica da liberdade de quem opta por um modelo de família
não expresso na lei ou no texto constitucional é, a rigor, a afirmação de que o
Direito não reconhece como passível de tutela aquela forma de autoconstituição,
o que viola a dignidade da pessoa humana.
Com efeito, no que tange à constituição da família, a doutrina tem apontado
três requisitos ditos imprescindíveis para sua caracterização, quais sejam, a
afetividade, a estabilidade e a ostensibilidade da convivência.39 São parâmetros
doutrinários que podem auxiliar a identificação de uma entidade familiar, embora
se defenda não serem requisitos cumulativos essenciais.40 A recusa, a priori, de
reconhecimento de efeitos jurídicos às relações familiares que prescindam de
um ou mais dos requisitos aludidos fere o desenvolvimento da personalidade da
pessoa, privando-a de realizar seu projeto familiar, que é “uma das dimensões que
dão sentido à sua própria existência”.41 Ao mesmo tempo em que se deve tutelar
e reconhecer as diversas famílias constituídas de forma plural e não taxativa,

36
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a
dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 318.
37
RUZYK, Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s)..., p. 322.
38
RUZYK, Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s)..., p. 325.
39
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 172.
40
Da mesma forma entendem: SCHREIBER, Anderson. Famílias simultâneas e redes familiares. In: SCHREIBER,
Anderson. Direito civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 300; NAMUR, Samir. Autonomia privada
para a constituição da família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 164-166.
41
FACHIN, Luiz Edson. Famílias: entre o Público e o Privado. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família:
entre o Público e o Privado. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2012. p. 162.

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

mostra-se necessária a reflexão acerca de como a regulamentação deva ocorrer


a fim de que não afete a liberdade de escolha dos indivíduos.
Nesse sentido, o ambiente do Direito de Família é singular porque, mesmo as
questões patrimoniais, intuitivamente disponíveis, podem produzir uma “reverberação
existencial, onde afloram as manifestações conditas da personalidade”.42 As
relações familiares frequentemente abarcam situações extremamente complexas,
cujos efeitos transitam pela zona mais cinzenta entre a patrimonialidade e a
extrapatrimonialidade. Assim, o estudo de ambos os aspectos e da função que as
relações patrimoniais de família podem gerar merece especial atenção, “mormente
no que se refere ao pacto antenupcial, aos alimentos e à autoridade parental”.43
Os pactos antenupciais celebrados antes do casamento ou, no caso da união
estável, os contratos de convivência, visam, no Direito brasileiro, a regular as
relações patrimoniais entre cônjuges ou companheiros, da forma coerente com seu
projeto de vida. Assim, “não obstante estejamos a falar de questões de natureza
eminentemente patrimonial, não se pode descurar que elas servem a um projeto
existencial, de construção de uma família”.44
O legislador brasileiro, no que tange à opção pelo regime de bens, prestigiou
a autonomia conjugal, não sendo os regimes constantes no Código Civil restritas
opções numerus clausus. Os direitos de livre pactuação e alteração são coerentes
com as diretrizes de um Direito de Família constitucionalizado, que tem como
premissa que a união conjugal é uma comunhão plena de vida. Para que isso
ocorra, nada melhor do que as próprias partes escolherem as regras que regerão
sua relação. No entanto, qual seria o limite da autonomia das partes na escolha
das normas que regerão a conjugalidade: essa liberdade se restringe ao aspecto
patrimonial ou deveria englobar, também, a seara existencial?45
No âmbito de um Estado Democrático de Direito – em que se renova o conceito
de ordem pública de modo a atrelá-lo à realização da dignidade humana –, vem
sendo discutida a possibilidade de o próprio casal construir a sua ordem familiar.
Isso se dá pela viabilidade de os cônjuges ou companheiros pactuarem – e
recombinarem no curso do casamento – as regras que regerão sua relação conjugal,
independentemente de essas disposições coincidirem ou não com as disposições
legais. O pacto antenupcial e o contrato de convivência, portanto, são bons exemplos
de situações jurídicas patrimoniais que podem ter também função existencial.

42
TEPEDINO, Gustavo. Contratos em direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de
direito das famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015. p. 476.
43
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas dúplices: controvérsias na
nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, v. 3. p. 14-15.
44
TEIXEIRA; KONDER, Situações jurídicas dúplices..., p. 15.
45
TEIXEIRA; KONDER, Situações jurídicas dúplices..., p. 15.

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Renata Vilela Multedo

Em doutrina, fala-se hoje de um “Direito de Família Mínimo”, que propaga


a menor intervenção possível do Estado nas relações familiares, ressalvadas
hipóteses excepcionais.46 Com efeito, um dos aspectos que reforçam a principio-
logia minimalista do Direito de Família é a excessiva judicialização dos conflitos
existentes nessa seara.47 Em atenção a essa questão, se argumenta em doutrina
que o Código Civil prevê no seu art. 1.513 o que se poderia denominar de uma
cláusula geral de reserva de intimidade,48 que tem como norte as diretivas gerais
constitucionais, com o objetivo de implementar condições para o desenvolvimento
das personalidades e da dignidade de cada um dos cônjuges e conviventes num
espaço relacional.49

3 Uma proposta para a privatização das relações conjugais


e convivenciais
Nas relações conjugais e convivenciais, ganha relevância a tendência hoje já
ressaltada por estudiosos americanos que defendem a desregulamentação legal
das relações conjugais por meio da “privatização do casamento”.50 Sustenta-se que
o Estado não deveria mais tutelar essas relações através de normas imperativas,
mas tão somente mediante regras supletivas (standards), em caso de não
manifestação expressa do casal.51
A intervenção heterônoma justificada pela proteção dos interesses do próprio
sujeito sobre quem se intervém precisa de questionamentos a respeito de seu

46
“A expressão direito de família mínimo é colhida do direito penal, seara na qual se presencia fenômeno
semelhante, propugnando-se um direito penal mínimo, uma vez que o Estado somente deve utilizar o
direito penal para tutelar os bens mais caros à sociedade (fragmentaridade) e como extrema ou última ratio
(intervenção mínima propriamente dita), quando insuficiente a tutela promovida por outros instrumentos
sociais, como a família, a coletividade, o direito administrativo, o direito civil etc.” (ALVES, Leonardo Barreto
Moreira. Direito de família mínimo: a possibilidade de aplicação e o campo de incidência da autonomia
privada no direito de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 144).
47
Assinala Marília Xavier que as questões ligadas à família figuram como a terceira causa que motiva o
cidadão brasileiro a buscar o Poder Judiciário. Lamentavelmente, destaca que ainda há em nosso país
uma cultura de submeter ao crivo do Poder Judiciário o deslinde desses casos, embora a vivência dos
profissionais militantes na área revele que a eleição dessa via nem sempre será o melhor caminho.
(Disponível em: http://virtualbib.fgv.br/dspace/bitstream/handle/ 10438/7727/RelICJBrasil3tri2010%.
Acesso em: 15 dez. 2015). (XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família
mínimo. 2011. 128 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2011. p. 60).
48
“Código Civil, art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão
de vida instituída pela família”.
49
CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço relacional
da conjugalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 268-269.
50
Nesse sentido é artigo de opinião de Stephanie Coontz, publicado no New York Times, intitulado “Taking
Marriage Private”. Disponível em: http://www.nytimes.com/2007/11/26/opinion/26coontz.html?_r=3
&em&ex=1196226000&en=5e70532fce256fe0&ei=5087%0A&oref=slogin &. Acesso em: 20 set. 2015.
51
SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard H. Privatizing Marriage. The Monist, v. 91, n. 3 & 4, p. 377-387, July/Oct.
2008b. Disponível em: http://secure.pdcnet.org/monist/content/monist_ 2008_0091_0003m_0377_0387.
Acesso em: 20 set. 2016.

228 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020
Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

cabimento. Essas indagações não são só quanto à necessidade de se exercer


uma intervenção sobre determinado sujeito, mas também em relação ao tipo de
intervenção que se justifica fazer.52 A análise da legitimidade das intervenções
jurídicas de acordo com a legalidade constitucional passa, necessariamente, por
considerações acerca do caráter paternalista que uma restrição à autonomia pode
apresentar.53
De fato, o paternalismo54 é exercido não só em relação a um indivíduo que
dele necessite, mas também em relação às circunstâncias objetivas da situação
em que um indivíduo pode se colocar, e que podem ser prejudiciais a si mesmo,
caso não seja feita a intervenção.55 A depender das esferas jurídicas envolvidas
no exercício da autonomia, as intervenções jurídicas nos espaços de liberdade
existencial poderão ser consideradas como paternalistas ou não paternalistas
e classificadas em variados tipos e graus de intensidade.56 Para análise da
heteronomia estatal na família, interessante proposta é encontrada na corrente
doutrinária denominada paternalismo libertário.
Os libertários57 advogam que o exercício da liberdade se faz quando não há
qualquer interferência estatal em suas escolhas. Já os paternalistas encaram a
suposta liberdade de escolhas irrestrita com ceticismo, isto é, entendem que, em
maior ou menor grau, sempre haverá algum tipo de intervenção heterônoma nas
escolhas individuais.

52
SÊCO, Thaís. A autonomia da criança e do adolescente e suas fronteiras: capacidade, família e direitos
da personalidade. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2013. p. 76.
53
DALSENTER, Thamis. Autonomia existencial na legalidade constitucional: critérios para interpretação da cláusula
geral de bons costumes no Código Civil brasileiro. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, UERJ, Rio de Janeiro, 2015. p. 64-65.
54
Macario Alemany define que haverá uma intervenção paternalista quando dois requisitos estiverem presentes:
(i) A exerce poder sobre B; (ii) esse poder de A é exercido com o propósito de evitar que B pratique ações
(ou deixe de praticar) que causem danos a si mesmo ou representem um aumento de risco de dano. Por
esse raciocínio, seria possível afirmar a intervenção como decorrente do paternalismo jurídico se o exercício
de poder de A sobre B for respaldado pelo Direito, ou seja, se A tem poderes jurídicos para determinar, por
si, modificações na situação jurídica de B (mesmo que B não queira). (ALEMANY, Macario Garcia. El paternalismo
jurídico. Madrid: Iustel, 2006). Nesse sentido, ver também SILVA, Denis Franco. O princípio da autonomia:
da invenção à reconstrução. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina (Coord.). Princípios do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 152.
55
SÊCO, A autonomia da criança e do adolescente e suas fronteiras..., p. 76.
56
Os conceitos de “soft paternalism” e de “hard paternalism” foram desenvolvidos pelo filósofo Joel
Feinberg no livro Harm to Self (FEINBERG, Joel. Harm to Self. Oxford: Oxford University Press, 1986). Para
uma didática classificação das modalidades de paternalismo, v. SCHRAMM, Fermim. A autonomia difícil.
Bioética, Brasília, v. 6, n. 1, p. 27-37, 1998. Gerald Dworkin classifica o paternalismo em “pure” and
“impure”: “In ‘pure’ paternalism the class of persons whose freedom is restricted is identical with the
class of persons whose benefit is intended to be promoted by such restrictions. In the case of ‘impure’
paternalism in trying to protect the welfare of a class of persons we find that the only way to do so will
involve restricting the freedom of other persons besides those who are benefited” (DWORKIN, Gerald.
Paternalism. In: SARTORIUS, Rolf. Paternalism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1983. p. 22).
57
A concepção de John Stuart Mill sobre a liberdade estabelece que é legítimo instituir obrigatoriedade de
comportamentos somente para a proteção de terceiros, nunca para a proteção do próprio indivíduo. V.
MILL, John Stuart. A liberdade: utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 17-18.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 229
Renata Vilela Multedo

Em meio a esse debate, surge na doutrina americana o denominado


paternalismo libertário, o qual pode, à primeira vista, parecer uma contradição
terminológica,58 porque paternalistas e libertários sempre se apresentaram como
opostos. No entanto, a corrente encerra uma forma singular de paternalismo, que
afirma ser possível e legítimo que instituições públicas e/ou privadas afetem o
comportamento das pessoas ao mesmo tempo em que respeitam sua liberdade.
O paternalismo libertário é paternalista na medida em que tenta influenciar os
indivíduos a optar pelo arranjo que os interventores julgam ser a melhor opção
do ponto de vista do bem-estar, e é libertário porque concede a esses mesmos
indivíduos a possibilidade de recusa ao arranjo se assim desejarem, preservando
assim a liberdade de escolha.
Essa doutrina pretendeu demonstrar que a presença de alguma espécie de
paternalismo é inevitável no momento em que o legislador (ou qualquer outro
planejador de regras) cria normas padronizadas dispositivas e (ou) supletivas,
denominadas “regras padrão” (default rules). Isso porque a própria forma de
apresentação das regras jurídicas já tem o condão de influenciar as escolhas
feitas pelas pessoas.
Uma das razões dessa influência é o fato dos indivíduos, em muitas hipóteses,
não terem preferências definidas sobre determinados assuntos. Outras vezes,
tendem a ficar inertes, postergando a tomada de decisões que possam ter efeitos
muito sérios.59 Defende-se que, uma vez inafastável a influência dessas regras
sobre o comportamento das pessoas, elas devem ser escolhidas com o objetivo
explícito de melhorar o bem-estar dos seus destinatários.60 Contudo, o aspecto
libertário é assegurado, pois há a possibilidade de não adesão a essas “regras
padrão” pré-estipuladas (o que a doutrina norte-americana chama de “opt-out”),
garantindo-se a liberdade de escolha.61
Essa proposta se torna ainda mais atraente quando se nota que nem sempre
as pessoas tomam boas decisões para si mesmas. Isso ocorre por diversos
motivos, sendo um deles o fato de que muitas são inexperientes em relação à
tomada decisões. De fato, os indivíduos escolhem melhor em contextos em que
dominam o tema, porém suas decisões tendem a ser falhas quando tomadas com
pouca frequência naquela seara. Assim, parece uma boa alternativa que exista

58
Ver por todos SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard H. Libertarian Paternalism is not an Oxymoron. Civilistica.
com – Revista eletrônica de direito civil, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2015. Disponível em: http://civilistica.
com/libertarian-paternalism-is-not-an-oxymoron. Acesso em: 5 jan. 2017.
59
SUNSTEIN; THALER, Libertarian Paternalism is not an Oxymoron.
60
SUNSTEIN; THALER, Libertarian Paternalism is not an Oxymoron, p. 3-4.
61
Por meio de um sistema denominado opt-out, através do qual se presume que todas as pessoas estão
incluídas naquela regra, a não ser que se manifestem expressamente em contrário (SUNSTEIN; THALER,
Libertarian Paternalism is not an Oxymoron, p. 4).

230 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020
Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

um direcionamento por parte de ‘planejadores’ que, em tese, dominem melhor o


assunto e que já se debruçaram sobre ele.62
Note-se que grande parte das decisões no Direito de Família se enquadra
perfeitamente nesse contexto, especialmente no começo da vida das pessoas,
quando são inexperientes em relação tanto a aspectos conjugais como a aspectos
parentais. É por esse motivo que a determinação de “regras padrão” pelo Estado
pode ser bem-vinda em diversos momentos, contanto que tais standards de conduta
sejam contornáveis sem excessivo ônus para aqueles que deles desejarem se
desviar.
Os momentos em que o Estado deveria direcionar as pessoas em decisões
visando seu bem-estar, por meio de “regras padrão” e de outros mecanismos,
quando estas optem por não decidir, são bem identificados por Sunstein e Thaler.63
Um dos pontos mais interessantes de sua proposta refere-se à privatização do
casamento, que abrange uma reflexão interessante acerca da tutela da autonomia
existencial nas relações conjugais e convivenciais.64 Neste ponto, sustenta-se
que as uniões deveriam ser completamente privatizadas, não cabendo ao Estado
distribuir licenças de casamento, validando as pessoas casadas em detrimento
daquelas que optam por outro tipo de projeto de vida familiar.65 Desta forma,
afirma-se que o Estado deveria sair de cena, garantindo apenas uniões civis, cujas
regras e normas seriam muito mais flexíveis e em maior parte supletivas.
Assim, organizações religiosas ou outras formas de associações privadas
estariam absolutamente livres para celebrar casamentos e praticar suas crenças,
podendo aplicá-las livremente. Aqueles que quisessem aderir a elas poderiam fazê-lo
por meio de pactos celebrados diante destas instituições, independentemente das
uniões civis reconhecidas para todos perante a lei. Nessa concepção, a solução
para o casamento homoafetivo, por exemplo, seria bem menos conflituosa. Além
disso, esses entes privados poderiam manter suas regras sobre o casamento, o
divórcio e a monogamia, sem nenhum prejuízo, sendo desnecessária qualquer licença
oficial para que as pessoas cumpram com seus deveres para com os outros. Isso
porque aqueles que celebrarem casamentos privatizados segundo suas crenças
provavelmente serão as pessoas bastante envolvidas com essas organizações,
que por isso acreditam suficientemente nos termos daquele compromisso a ponto
de desejarem contraí-lo e respeitá-lo.66

62
SUNSTEIN; THALER, Libertarian Paternalism is not an Oxymoron, p. 5.
63
SUNSTEIN; THALER, Libertarian Paternalism is not an Oxymoron, p. 5.
64
“Em suma: quando as pessoas se casam, elas recebem não apenas benefícios materiais, mas também
uma espécie de legitimidade oficial, um selo de aprovação por parte do Estado”. (SUNSTEIN; THALER.
Nudge…, p. 220).
65
SUNSTEIN; THALER. Nudge…, p. 215-224.
66
SUNSTEIN; THALER. Nudge..., p. 215-226.

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Renata Vilela Multedo

Ao mesmo tempo, se o Estado apenas concedesse uniões civis no lugar


de casamentos, esses indivíduos cujas práticas e crenças são inaceitáveis para
muitas entidades privadas teriam o mesmo status civil dos demais. O regramento
padrão trataria de constituir uma união civil para a produção de efeitos jurídicos
para todos aqueles que desejassem constituir uma família, sem nenhuma hierarquia
entre as diferentes entidades familiares, mas com igual reconhecimento jurídico.
Além disso, poderiam ser previstas regras supletivas patrimoniais e existenciais
para proteção dos vulneráveis e para aqueles que não quiserem fazer nenhuma
escolha nesse sentido, como um regime de bens padrão, a guarda de filhos caso
não haja acordo entre as partes, a questão dos alimentos, entre outras, é claro,
sempre respeitando a principiologia constitucional. Todavia, é necessário que as
pessoas possam contornar essas regras quando conhecerem uma alternativa
que julgam como melhor para atingir a realização dos próprios anseios. É nesses
casos que os contratos do Direito de Família podem mostrar-se bastante eficazes.
Ao propor a eliminação do casamento como uma instituição estatal, estariam
protegidos a liberdade religiosa, os valores culturais e as liberdades individuais,
já que o único status conferido pelo Estado seria o das uniões civis.67 De fato,
reconhece-se que a fixação de regras padrão apropriadas para todos os tipos
de pessoas que desejam firmar um compromisso no Direito de Família deve ter
em comum a proteção daqueles que são mais vulneráveis, o que se identifica
em doutrina como as minorias, especialmente as mulheres e os filhos menores,
preservando-se o máximo possível a liberdade dos envolvidos.
Nessa direção, em se tratando de relações conjugais, torna-se mais provável
a aplicação dos ideais do paternalismo libertário, visto que os envolvidos estão
no mesmo patamar jurídico. Um exemplo brasileiro que se encaixa nas ideias
aqui expostas diz respeito ao regime de bens de um casal. Os artigos 1.639 e
1.940 do Código Civil determinam que os nubentes podem estipular o que lhes
aprouver sobre seus bens; no entanto, no silêncio, a regra padrão é a do regime
de comunhão parcial. Às vezes, as pessoas não querem tomar decisões ativas e
preferem que seja oferecido um padrão no qual possam confiar. Essa também é
uma forma de se respeitar as liberdades.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o paternalismo libertário é uma excelente
ideia no que tange à liberdade dos indivíduos em busca da realização de sua
dignidade, que é, afinal, o objetivo da proteção à família. No entanto, a unidade
do sistema jurídico jamais poderá permitir essa liberdade irrestrita, uma vez que
essa só merecerá tutela se for condizente com a tábua de valores disposta no
texto constitucional que rege todas as relações jurídicas.

67
Os autores fazem uma ressalva expressa de que não pretendem adentrar na questão do poliamor.

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

É importante frisar que nem sempre a liberdade de escolha deve prevalecer.


Evidentemente que não deve na hipótese de leis protetivas em favor de vulneráveis
e contra situações de agressão, como nos casos de violência no âmbito da família.68
As normas da Lei Maria da Penha, por exemplo, não são meras regras padrão que
possam ser afastadas pelas partes. Para essas hipóteses, tão importante quanto
o papel do legislador é o papel do Judiciário, ator essencial na manutenção da
compatibilidade do Direito de Família com a realidade social.

4 Limites e justificativas para e intervenção estatal


É preciso destacar que não se procura aqui defender um Estado ausente,
mas sim garantidor de espaços de autodeterminação para realizar a autonomia
existencial. Para tanto, mostra-se fundamental a privatização das relações conjugais
e convivenciais, salvaguardando-se as situações de vulnerabilidade e desigualdade
material69 em que, diante do princípio da solidariedade e da dignidade da pessoa
humana, se faz necessária a ação positiva do Estado.70
A fim de que se defenda a “ausente presença”71 do Estado, mostra-se
necessário o questionamento acerca do cabimento e dos limites da atuação
estatal no âmbito da vida íntima das relações conjugais por meio da imposição de
direitos e deveres recíprocos. Reconhecida a família como um instrumento para a
realização de seus membros, mostra-se questionável que a pretensa manutenção do
vínculo conjugal se sobreponha às necessidades dos cônjuges de se relacionarem
conforme melhor lhes aprouver. Os cônjuges e conviventes, ressalvados os direitos
de terceiros, devem ser livres para planejar, deliberar, constituir e desconstituir
a forma de se relacionarem e de estruturarem suas relações familiares e suas
aspirações para a vida conjugal.72
Nessa linha, propõe-se a concepção de um regramento73 que permita
conjugar a tutela estatal, necessária para conferir segurança e efeitos jurídicos

68
Como é o caso da Lei Maria da Penha ou dos estatutos protetivos, como o Estatuto da Criança e do
Adolescente e o Estatuto do Idoso.
69
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias: entre a norma e a
realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 91.
70
“Mas, ao mesmo tempo em que é necessária a configuração de um ‘Estado ausente’, permitindo que as pessoas
constituam suas relações segundo uma liberdade vivida, é igualmente necessário que determinados
direitos sejam tutelados pela presente intervenção do ente estatal, mormente em face daqueles que se
encontram mais vulneráveis e desamparados” (FACHIN, Famílias: entre o Público e o Privado, 2012. p.
164).
71
FACHIN, Famílias..., p. 162.
72
“Esta ideia de igualdade dos dois parceiros da relação aliada com a privatização do amor e com o
enfraquecimento das referências externas dadas ao casal por outros ordenamentos tradicionais – a
religião, os costumes, a vizinhança – têm produzido a diminuição do conteúdo imperativo do casamento,
do conjunto dos chamados efeitos pessoais do casamento, tal como estávamos habituados a entendê-los”
(OLIVEIRA, Guilherme de. Temas de direito de família. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 338).
73
SUNSTEIN; THALER, Nudge..., p. 215-226.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 233
Renata Vilela Multedo

aos arranjos familiares e aos espaços de autonomia existencial do indivíduo. É sob


esse prisma que a proposta do paternalismo libertário se torna valiosa na medida
em que concilia a liberdade de escolha com a preocupação estatal em relação
a pontos de partida mínimos de intervenção. Isso porque, ao mesmo tempo em
que muitas pessoas desejam fazer uso de sua autonomia existencial da forma
mais ampla possível para decidirem os rumos de suas vidas, outras não possuem
decisões claras ou ordenadas em relação às diversas formas de entidades e
regimes familiares e seus diferentes efeitos jurídicos. Nesse ponto, as “regras
padrão” devem ser escolhidas com o escopo de nortear as pessoas, de forma a
esclarecer e melhorar o seu bem-estar, tutelando as situações patológicas e os
interesses dos vulneráveis.
Trata-se apenas de um regramento previamente estipulado, que não impede
que as pessoas optem de forma diversa, se assim preferirem. As formas de família
mais frequentemente adotadas no Brasil são o casamento e a união estável e é
importante, nesse ponto, que se entendam esses modelos como essencialmente
distintos, embora, muitas vezes, se pretenda aproximar os dois institutos. Importante
atentar que ao se afirmar que não há hierarquia entre os modelos familiares não
se quer dizer que devem ser regulados de forma idêntica.
A atribuição de uma maior liberdade, principalmente no que se refere às
formalidades e aos deveres entre conviventes e, portanto, a uma menor segurança
jurídica, ocorre, justamente, diante da informalidade optada por aqueles que buscam
o modelo familiar da união estável. Isso não significa que haja prevalência do
casamento como forma de família perante o Estado, pois ambos os modelos são
merecedores da mesma tutela estatal, embora preservem aspectos distintos em sua
essência. Ou seja, “o tratamento jurídico das entidades familiares será diversificado
na medida em que estas se diferenciem”. Por outro lado, “onde houver identificação
de situações, especialmente em virtude do amor, respeito e solidariedade que
informam os laços familiares, o tratamento deve ser equiparado”.74
Interpretação diversa não estaria em consonância com uma análise sistemática
do ordenamento jurídico, nem de acordo com os ditames constitucionais. Na época
da família cristalizada e singular, aqueles que viviam em uniões estáveis eram
os que predominantemente não podiam se casar, em razão dos impedimentos
matrimoniais. Hoje, com as uniões estáveis igualmente legitimadas perante a
sociedade e o Direito, muitas pessoas optam por esse modelo para, justamente, ter
mais liberdade na criação das regras que regem seu projeto familiar. As pessoas,
em muitos casos, simplesmente não querem se casar por opção.

74
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge do companheiro na legalidade constitucional.
2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 161-162.

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

Estudos mostram que as uniões consensuais (como opção preferencial


de forma de vida conjugal) vêm atraindo cada vez mais as camadas médias da
população. Isso significa uma ruptura com os valores e normas tradicionais. Desde
1995, há registros de uma significativa queda das uniões formalizadas religiosas
no Brasil,75 a comprovar a forma anacrônica dos dispositivos infraconstitucionais
que regulam as entidades familiares no Direito brasileiro. Mesmo no âmbito da
Constituição, foi preciso uma hermenêutica em consonância com a sistemática
do ordenamento para dirimir a controvérsia com relação à taxatividade do rol de
entidades familiares disposto no art. 226 e seus parágrafos.76 De modo diverso,
mesmo que não se sustente a hierarquia entre as entidades familiares, não se
pode ignorar a valorização cultural do casamento dentro da sociedade brasileira,
bastando lembrar que a separação entre Igreja e Estado, historicamente considerada,
é bastante recente.77
É neste ponto que a proposta do paternalismo libertário se coaduna muito mais
com um Estado laico e com a principiologia constitucional, que tutela o pluralismo
familiar com fulcro nos princípios da dignidade, da igualdade e da solidariedade
familiar. Com efeito, ao Estado só caberia regular as uniões civis, uma vez que vai
contra a própria hermenêutica constitucional uma norma que venha a privilegiar
as pessoas casadas em detrimento daquelas que optem por se unirem em
modelos familiares diversos do casamento.78 As justificativas patrimonialistas e
individualistas para privilegiar o matrimônio não mais se sustentam frente à axiologia
constitucional, que só tutela a família como forma de promoção da dignidade de
seus membros e não como um instituto que visa à procriação, à manutenção do
patrimônio, à estabilidade social, à paz doméstica e ao controle estatal.

75
Conforme registrado no censo realizado em 2010, “o tipo de união conjugal que mais cresceu no período
intercensitário foram as uniões consensuais. Esse crescimento se deu em todas as Unidades da Federação
com diferentes intensidades, evidenciando uma mudança de valores culturais” (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010: nupcialidade, fecundidade e migração –
resultados da amostra. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/98/cd_2010_
nupcialidade_fecundidade_migracao_amostra.pdf. Acesso em: 12 jan. 2017).
76
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas. In: Anais do III Congresso Brasileiro
de Direito de Família. Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey/ IBDFAM,
2002.
77
“O Brasil era oficialmente católico até a proclamação da República em 1890, quando Estado e Igreja foram
oficialmente separados, o que foi expressamente reforçado com a Constituição de 1891. Todas as constituições
seguintes se pronunciaram como uma república laica, embora sob a proteção de Deus. De fato, uma república
laica não significa a ausência de religião, mas apenas que nenhuma delas será privilegiada, uma vez que
a liberdade de crença é uma questão de foro íntimo de cada pessoa” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Estado
laico é conquista de todos e das famílias. Revista Consultor Jurídico, 06 dez. 2015. Disponível em: http://
www.conjur.com.br/ 2015-dez-06/processo-familiar-estado-laico-conquista-todos-familias. Acesso em: 13
dez. 2016).
78
Ao se referirem sobre o tema Sunstein e Thaler frisam que: “Para dizer o mínimo, há um imenso e
diversificado conjunto de benefícios e nós, de forma alguma, listamos todos eles. Os benefícios também
tendem a ser relativamente estáveis ao longo do tempo; recorde-se que o status quo é poderoso, e existem
sérias restrições políticas a qualquer esforço de se repensar isso” (SUNSTEIN; THALER, Nudge..., p. 217,
tradução livre).

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 235
Renata Vilela Multedo

Essa é a razão porque se afirma que o termo ‘casamento’ e a maneira


como esta forma de entidade familiar é tutelada pelo Estado ainda trazem em si
certa ambiguidade, já que o termo remete tanto à forma de união civil quanto à
religiosa. Não à toa, a proposta do paternalismo libertário sugere a privatização
do casamento, passando o Estado a tutelar apenas as uniões civis, de maneira a
afastar de sua regulamentação quaisquer regras com traços religiosos, culturais
e morais. Dessa forma, a regulação das relações conjugais e convivenciais traria
um arcabouço mínimo de direitos e deveres, com a finalidade de traçar regras
supletivas para aqueles que decidam formalizar sua união civil perante o Estado,
de maneira a deixar as pessoas livres para estabelecerem suas formações
familiares, incrementando-as pela via privada, segundo suas crenças individuais,
caso desejem, ou, paralelamente ao reconhecimento da união civil estatal, desde
que não violem a legalidade constitucional.
É nesse cenário que Sunstein e Thaler propõem que o casamento religioso não
seja regulamentado mais pelo Estado, mas somente pelas instituições privadas,
que podem reconhecer e excluir delas os que optem por nela se casarem caso
descumpram suas regras. Nessa direção, em termos de relações conjugais, torna-se
factível a aplicação dos ideais do paternalismo libertário, visto que os envolvidos
estão em igualdade de posição, do ponto de vista jurídico.

5 Conclusão
O que legitima uma relação amorosa? A resposta jurídica não está ligada
somente a preferências morais e éticas pessoais, mas insere-se num quadro de
princípios dentro do qual pode ser colocado um direito ao amor.79 Tais princípios
são a igualdade e a liberdade, a solidariedade e a integridade psicofísica, os quais,
juntos, concorrem para definir a dignidade e, portanto, o limite da autodeterminação,
ao mesmo tempo em que reclamam a necessidade do respeito recíproco fazendo
emergir, assim, seu nítido caráter relacional.
Como relata Stefano Rodotà, na experiência histórica o direito se apoderou do
amor. Fechou-o em apenas um perímetro, considerado como o único juridicamente
legítimo: o casamento, um contrato de direito público vigiado pelo Estado; baseado
na estabilidade social, na procriação e na educação dos filhos; e portador de uma
moral considerada como prevalente, a católica. Era a obediência e a subordinação
para as mulheres, uma lógica autoritária e patrimonial, um bloco compacto no
qual o amor conseguia, com esforço, abrir alguma brecha. Hoje, conclui o autor,

79
RODOTÀ, Stefano. Diritto d’amore. Bari: Laterza, 2015. Disponível em: https://tolinoreader.ibs.it/library/
library.html#!/epub?id=DT0245.9788858123645. Acesso em: 3 fev. 2017.

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

encontramos um futuro declinado em modo bem diferente do passado e parecemos


despedir-nos de um direito hostil ao amor.80
Para tanto, nas relações conjugais e convivenciais, o Estado deve cumprir
papel promocional por meio de uma tutela que não implique necessariamente
intervenção, sem restringir sua constituição e dificultar sua dissolução. Essas
relações são essencialmente volitivas, isto é, a família só existe se e enquanto
representa a vontade dos cônjuges. A descoberta do caminho de realização do
próprio projeto de vida pertence, de forma exclusiva, ao casal. Quando se trata de
pessoas livres e iguais, soa ilegítima a heteronomia em matéria tão íntima, sendo
a interferência estatal válida tão somente para garantir o exercício da liberdade
em condições de igualdade material.
Vale sublinhar que a desejada redução da intervenção estatal não signi-
fica recusar hipóteses em que o Estado deva desempenhar um papel ativo de
ingerência na seara da família. Tais casos, como se viu, são os que envolvem
sujeitos vulneráveis, como idosos e crianças, violência doméstica no âmbito
familiar, dentre outros. Nessas hipóteses, justifica-se plenamente que a liberdade
consubstanciada na autonomia privada ceda espaço à incidência de imposições
próprias da solidariedade familiar.81
Com uma atuação não interventora, mas atenta e vigilante, o sistema jurídico
poderá assegurar a implementação do respeito à dignidade da pessoa humana na
dimensão familiar, na medida em que reconhece aos sujeitos liberdade e autonomia,
não intervindo em aspectos pessoais que impliquem restrição injustificada, sem
respaldo constitucional.82 Sob esse prisma, destaca-se que, se antes as soluções
repousavam na lei, cabe agora à doutrina traçar critérios para nortear o Judiciário
em sua fundamentação, observando sempre a legalidade constitucional.83
Com efeito, uma relação de solidariedade pessoal, existencial, decorrente da
escolha do projeto de vida conjugal ou parental não pode ser considerada como ilícita
apenas por ser contrária ao que é tido como aceitável pela maioria, uma vez que os
conceitos de ordem pública, de moral e de bons costumes84 são demasiadamente
amplos e variáveis, diante do pluralismo da sociedade contemporânea e da laicidade
que dão o contorno do Estado Democrático de Direito.

80
RODOTÀ, Diritto d’amore.
81
Para um exemplo, v. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos morais em família? conjugalidade, parentalidade
e responsabilidade, ora em Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2016, p.
423-455.
82
CARBONERA, Reserva de intimidade..., p. 271.
83
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Do juiz boca-da-lei à lei boca-de-juiz: reflexões sobre a aplicação-
interpretação do direito no início do século XXI. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 56, p. 11-30,
2013, segundo a qual: “o deslocamento foi radical e parece imprescindível sua rápida identificação, para
que se comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar possibilidades”.
84
Sobre os bons costumes v. DALSENTER, Autonomia existencial na legalidade constitucional...

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 237
Renata Vilela Multedo

Logo, é por força dessa solidariedade que se propaga pelo ordenamento


jurídico, presente nas normas constitucionais e, portanto, em todas as demais
regras e princípios, que não mais se sustenta um ordenamento que dê espaço à
discriminação.85 Cabe ao legislador não se descuidar dessas diversas configurações
no sistema jurídico, pois só por meio da necessária coligação entre dignidade e
solidariedade estará garantido o quadro dos direitos fundamentais, estendendo-o
às relações privadas e, em particular, às relações conjugais.
A ideia de que os conteúdos da relação íntima são assunto exclusivo dos nela
envolvidos e de que cada casal é seu próprio legislador supõe que os sistemas
jurídicos eliminem progressivamente os conteúdos que outrora infligiam a todos,
mas hoje estão sujeitos à negociação. Isso porque cônjuges e conviventes, ao
espontaneamente escolherem entrar para uma comunhão de vida, assumem
compromissos próprios. E mais, não são apenas os compromissos de natureza
existencial de que se está falando, é importante também que se possa dispor de seu
patrimônio da forma que lhes pareça mais aceitável, especialmente considerando
o impacto que essas questões têm na vida de uma família.
“O deslocamento foi radical e parece imprescindível sua rápida identificação,
para que se comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar possibilidades”.86
Cabe também ao legislador ordinário não se descuidar dessa diversa configuração
do sistema jurídico, pois é só pela necessária ligação entre solidariedade, igualdade
e liberdade que não se coloca em risco todo o quadro de princípios fundadores
da ordem constitucional, em prol da promoção do valor maior: a dignidade da
pessoa humana.
O sistema constitucional de liberdade e direitos fundamentais hoje constitui
uma sólida, ainda que muitas vezes negada, referência. É justamente isso que
nos permite demandar respeito pleno à pessoa humana e instituir, sobre novas
bases, a relação entre o amor e o direito. Só a família fundada na aptidão para
responder ao mistério do amor e da comunicação que habita cada ser humano
pode livrar o mesmo ser humano do vazio e da solidão.87

85
RODOTÀ, Stefano. Solidarietà: un’utopia necessaria. Bari: Laterza, 2014, p. 54-56.
86
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Do juiz boca-da-lei à lei boca-de-juiz: reflexões sobre a aplicação-
interpretação do direito no início do século XXI. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 56, p. 11-30,
2013.
87
RODOTÀ, Stefano. Amore ‘a bassa istituzionalizzazione’. In: Diritto d’amore. Bari: Laterza, 2015. Disponível
em: https://tolinoreader.ibs.it/library/library.html#!/epub?id=DT0245.9788858123645. Acesso em: 3
fev. 2017.

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

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Renata Vilela Multedo

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Liberdade e família: uma proposta para a privatização das relações conjugais e convivenciais

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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MULTEDO, Renata Vilela. Liberdade e família: uma proposta para a privatização


das relações conjugais e convivenciais. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC,
Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 219-241, jan./abr. 2020 241
TESES E DISSERTAÇÕES
Projetos parentais ectogenéticos
LGBT: o desafio da construção
das famílias homoparentais e
transparentais perante o ordenamento
jurídico brasileiro

Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Direito
pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Advogado. Mediador Humanista.
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/
UFPE/CNPq). Membro do Grupo Frida de Gênero e Diversidade (UNICAP). Membro da
Comissão da Advocacia Popular da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pernambuco
(OAB/PE). E-mail: manuelcamelo2012@hotmail.com.

Resumo: Pode-se dizer que a Constituição de 1988 representou um marco histórico que modificou
completamente a interpretação normativa em torno do Direito das Famílias pátrio, instaurando um
paradigma pautado na inclusão, na pluralidade de configurações e no respeito entre os membros
do núcleo familiar, pondo em xeque o modelo patriarcal anterior. Não obstante, em que pese tais
transformações, a base heterocisnormativa, na qual estão sedimentadas as tradições da sociedade
brasileira, ainda acaba por interferir no reconhecimento legislativo expresso de direitos por parte da
população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros). Afinal, a despeito
dos nítidos avanços doutrinários e jurisprudenciais na tutela dos direitos dessas pessoas, a exemplo das
uniões homoafetivas e da possibilidade de retificação registral sem prévia submissão a procedimento
cirúrgico de redesignação genital, a inércia do Congresso Nacional ocasiona um cenário de insegurança
jurídica para essas pessoas. Diante disso, o presente trabalho buscou contribuir para o debate da
emancipação desses indivíduos, na seara jusfamiliarista, levantando a seguinte problemática: apesar
da escassez legislativa na matéria, é possível conferir às famílias LGBT uma autonomia legítima para o
exercício do direito fundamental ao Planejamento Familiar na concretização de seus projetos parentais,
máxime no tocante à escolha pelo uso das técnicas de reprodução humana assistida? Para tanto,
pretendeu-se analisar o direito fundamental ao exercício da autonomia existencial nesse Planejamento
Familiar das famílias LGBT à luz de uma metodologia civil-constitucional, notadamente no tocante
à opção por projetos parentais ectogenéticos, ou seja, aqueles que advêm do uso da reprodução
humana assistida. Diante disso, foram adotadas as técnicas da pesquisa bibliográfica e documental,
a partir de um método de raciocínio analítico-dedutivo e de um estudo qualitativo, a fim de construir um
embasamento teórico-jurídico que estabelecesse critérios para a configuração da homoparentalidade
e da transparentalidade por meio da procriação medicamente assistida. Dessa forma, constatou-se
que os projetos parentais LGBT encontram-se protegidos pela sistemática constitucional vigente,
particularmente pelas regras que norteiam o Planejamento Familiar, devendo ser garantida a autonomia
no seu exercício por esses indivíduos, desde que respeitados os limites impostos pela Dignidade da
Pessoa Humana e pela Parentalidade Responsável. Não obstante, demanda-se ainda uma atuação do
Poder Legislativo no sentido de promover o reconhecimento expresso dessas garantias no âmbito legal,
com a finalidade de promover a Igualdade Material e a proteção específica da Diversidade Sexual e de
Gênero no ordenamento jurídico pátrio.
Palavras-chave: Famílias LGBT. Homoparentalidade. Transparentalidade. Reprodução Humana
Assistida. Planejamento Familiar.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 245-246, jan./abr. 2020 245
Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto

LGBT ectogenetic parental projects: The challange of building homoparental and transparental
families before the Brazilian legal order
Abstract: It can be said that the 1988 Constitution represented a historical landmark that completely
changed the normative interpretation around the homeland Family Law, establishing a paradigm based
on the inclusion, the plurality of configurations and the respect among the members of the family
nucleus, putting in check the previous patriarchal model. However, despite these transformations, the
heterocisnormative basis on which the traditions of Brazilian society are based still interferes with the
express legislative recognition of rights by the LGBT population (lesbian, gay, bisexual, transvestite,
transsexual and transgender). After all, despite clear doctrinal and jurisprudential advances in the
protection of their rights, such as homo-affective unions and the possibility of registration rectification
without previous submission to surgical procedure of genital reassignment, the inertia of the National
Congress causes a scenario of legal insecurity for those people. Given this, the present work sought
to contribute to the debate on the emancipation of these individuals in the jusfamiliarist field, leading
to the following problem: despite the lack of legislation on the subject, it is possible to give LGBT
families a legitimate autonomy to exercise the fundamental right to Family Planning, in the realization
of their parental projects, especially regarding the choice for the use of assisted human reproduction
techniques? To this end, it aimed to analyze the fundamental right to the exercise of existential
autonomy in this Family Planning of LGBT families in the light of a civil-constitutional methodology,
notably regarding the choice of ectogenetic parental projects, that are those that come from the use of
human assisted reproduction. Thus, the techniques of bibliographic and documentary research were
adopted, based on a method of analytical-deductive reasoning and a qualitative study, in order to
build a theoretical-legal basis that established criteria for the configuration of homoparentality and
transparentality by through medically assisted procreation. In that sense, it was found that the LGBT
parental projects are protected by the current constitutional system, particularly by the rules that guide
Family Planning, and should be guaranteed autonomy in their exercise by these individuals, as long as
respected the limits imposed by the Dignity of the Human Person and by the Parental Responsability.
However, there is still a demand for action by the Legislative Power to promote the express recognition
of these guarantees in the legal framework, with the purpose of promoting Material Equality and the
specific protection of Sexual and Gender Diversity in the homeland legal order.
Palavras-chave: LGBT Families. Homoparentality. Transparentality. Human Assisted Reproduction.
Family Planning.

Data da Defesa: Dia 13.02.2020


Local: Espaço Memória/ Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE)
Banca Examinadora:
Professora Dr.ª Fabíola Albuquerque Lôbo (Presidente/Orientadora/UFPE)
Professora Dr.ª Carolina Valença Ferraz (Examinadora Externa/UNICAP)
Professor Dr. Torquato da Silva Castro Júnior (Examinador Interno/UFPE)
Professor Dr. Roberto Paulino de Albuquerque Junior (Examinador Interno/UFPE)

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. Projetos parentais ectogenéticos LGBT:
o desafio da construção das famílias homoparentais e transparentais perante
o ordenamento jurídico brasileiro. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo
Horizonte, ano 9, n. 23, p. 245-246, jan./abr. 2020. Resumo de dissertação.

246 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 9, n. 23, p. 245-246, jan./abr. 2020
Instruções para os autores

A Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, ISSN 2238-9695, com periodicidade


quadrimestral, é um periódico especializado em Direito Civil, contendo rica seção
de Doutrina, contendo artigos e pareceres de grande interesse e repercussão na
atualidade. Possui ainda uma seção de Jurisprudência selecionada com acórdãos na
íntegra, ementário e tendências jurisprudenciais.
As propostas de artigos para edição em nossas revistas deverão ser enviadas
para: contato@marcosehrhardt.adv.br ou conselhorevistas@editoraforum.com.br.
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artigo, referências. O autor deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o local
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