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an @EAIO 3 Beneer, Takr Reveer & ae SeolVao Get Guo Sev mw worcbatiaes do. Se dedads ? > FoR, _ ACH, Mow, Va j Haen Joe de Suze. Scccloaio. 2 Soued aad ese ds mae Bio de Wat ys LTC (R004 13 Socializagédo: Como Ser um Membro da Sociedade* Peter L. Berger e Brigitte Berger A infancia: componentes nio-sociais e sociais Bem ou mal, a vida de todos nés tem inicio com o nascimento. A primeira condigéo que experi- mentamos é a de crianga. Se nos propusermas & andlise do que esta condigo acarreta, obviamente nos defrontaremos com uma porgdo de coisas que nada tém que ver com a sociedade. Antes de mais nada, a condigao de crianga envelve certo tipo de relacionamento com o préprio corpo. Expe- rimentam-se sensages de fome, prazer, conforto e desconforto fisico e outras mais. Enquanto perdu- ma a condigio de crianga, 0 individuo sofie as incursGes mais variadas do ambiente fisico. Percebe a uz ea escuridio, 0 calor ¢ 0 frio; objetos de todos os tipos provocam sua atengfo. £ aquecido pelos raios do so, sente-se intrigedo com uma superficie lisa ou, se tiver azar, pode ser molhado pela chuva ou picado por uma pulga. O nascimento representa a entrada num mundo que oferece uma riqueza aparentemente infinita de experincias. Grande parte dessas experiéncias nao se reveste de caréter social. Evidentemente, a crianca ainda no sabe escabelecer essa espécie de distingdo. Sé em retzos- ecto toma-se possivel a diferenciagdo entre as componentes ndo-sociais ¢ sociais de suas experién- cias. Mas, uma ves estabelecida essa distingo, podemos afirmar que a experiencia social também co- ‘mega com 0 nascimento. © mundo da crianga ¢ habitado por outras pessoas. Esa logo aprende a dis- tinguir essas pessoas, ¢ algumnas delas assumem uma importincia toda especial, Desde o inicio a crianga desenvolve uma intera¢o no apenas com 0 pr6prio corpo e o ambiente fisico, mas também ‘com outros seres humanos. A biografia do individuo, desde o nascimento, é a histéria de suas rela- <75es com outras pessoas Além disso, os componentes ndo-sociais das experiéncias da crianga esto entremeados e so mo- dificados por outros componentes, ou seja, pela experiéncia social. A. sensaco de fome surgida em seu estmago 56 pode ser aplacada pela ago de outras pessoas. Na maior parte das vezes a sensagio (©) Pere L Berger Beige Borer, Sacioagy — A Blopil Approcch, Ded, Base Boks, in, New York, 1975, pp. 49-49. Tadic e Richard Pal Neto. Repraduside com astray de Base Boks, ne 170 Concees Socios Fundamensis de conforto ou desconforto fisico resulta da acio cu omiss8o de outros individuos. Provavelmente 0 objeto com a superficie lisa tio agradével foi colocado ao alcance da mio da crianga por alguém. Eé ‘quase certo que, se a mesma é molhada pela chuva, isso aconteceu porque alguém a deixou do lado de fora, sem protecio, Dessa forma, a experiéncia social, embora possa ser destacada de outros cle- rmentos da experiéncia da crianga, nfo constitui uma categoria isolada. Quase todas as facetas do mundo da crianga esto ligadas a outros seres humanos. Sua experiéncia relativa aos outros indivi- duos constitui o ponto crucial de toda experiencia. So as outros que criam os padiSes por meio dos quais se realizam as experiéncias. E s6 através desses padrties que o organismo consegue estabelecer relagtes estéveis com 0 mundo exterior — ¢ nfo apenas com o mundo social, mas também com 0 da sambiencia fisica, E esses meses padtSes penetfam no organismo; em outras palavrs, inteferem em seu funcionamento. Sao 08 outres que estabelecem os padres pelos quais se satisfaz 0 anscio da crianga pelo alimento, E, ao procederem assim, esses outros interferem no préprio organismo da crianga. O exemplo mas ilustativo € 0 horério das refeigSes. Se a crianga & alimentada somente em horas determinadas, seu organismo € forgado a adaprar-se a esse pao. E, ao realizar 0 processo de adaptacio, suas fungi sofrer uma modificago. O que acaba acontecendo é que a cianga nfo ape- nas € alimentada em horas detesminadas, mas também sente fome nessas horas. Numa espécie de re- presentaglo gréfica, poderiamos dizer que a sociedade no apenas impGe seus padrdes ao comporta- mento-da crianga, mas estende a méo para dentro de seu organismo a fim de regular as fungies de seu estOmago, © mesmo aplica-se & secresio, ao sono e a outros processos fisiol6gicos ligados a0 es- cOmnago. Alimentar ou no alimentar: uma questo de fixacao social ‘Alguns dos padiées socialmente impostos @ crianga podem resultar das caracteristicas peculiares des adultos que lidam com ela. A mie, por exemplo, talves alimente a crianga sempre que a mesma chore, independentemente de qualquer horitio, porque seus timpanos s80 Tauito sensiveis, ou por- qu lhe dedica tamanko amor que no pode conformar-se com a idéia de que ela possa experimentar ‘uma sensagio de desconforto, por qualquer tempo que seja. Na maior parte das vezes, porém, 2 op- ‘elo entre a altemativa de alimentar a erianga sempre que a mesma chore ou submeté-la a um horé- Tio tigido de tefeigdes nao resulta de uma decisto individual da moe, mas representa um pedro bem mais amplo prevalecente na sociedade em que esta vive e foi ensinada que esse padrdo constitui a maneira adequada de solucionar o problema. Daf resulta uma conseqiiéncia muito importante. Em suas relagBes com outros individuos, a crianga defronta-se com um microcosmo bastante circunscrito. Sé bem mais tarde fica sabendo que esse microcosmo se entrosa com um macrocosmo de dimensGes infinitamente maiores. Numa visio retrespectiva talver cheguemos a invejar a criange por ignorar esse fato. De qualquer maneira, esse macrocosmo invistvel, desconhecido da crianga, moldou e definiu antecipadamente todas as expe- rineias com que ela se defronta em seu microcosmo. Se a mée abandona o horério rigido de refei- ges para adotar um novo regime, segundo o qual a crianga é alimentada toda vez que chora, evi- dentemente no ocorteré a esta a possibilidade de atribuir a qualquer outra pessoa que no a mie mérito dessa modificagio agradavel em sua situaglo. Nao sabe que a mie seguiu o conselho de al- ‘gum perito que reflete as idéias em voga em certo etculo como, por exemplo, o grupo da classe mé- dia superior dos Estados Unidos que possui instrugo universitéria, Em dltima andlise, no caso no foi a mle, mas antes uma entidade coletiva invisivel que intexferiu — de forma ogradavel — no sis- tema fisiolégico da erianga. No entanto, existe outra conseqiiéncia que no pode deixar de ser consi- derada. Se a mie da crianga pertencesse a outra classe social, como por exemplo a classe opersria sem instrucZo universitiria, a crianga continuaria a grtar em vo pela comida. Em outras palavras, (05 microcosmos em que se desenvolvem as experiéncias da crianga diferem de acordo com os macro- ‘cosmos em que se insezem, A experiéncia infantil guarda uma propargao de relatividade com sua si- Sociitagto: Como Ser Meira da Sociedade 171 tuagio geral na sociedade. E 0 mesmo principio de relatividade aplica-se aos estigios posteriores da infincia, A adolescéncia e a qualquer outra fase da biografia ‘As préticas alimentares podem ser consideradas um exemplo de suma importiincia. 6 claro que admirem grande niimero de variagSes — pode-se escolher entre a alimentago segundo um horério. regular ou a chamada alimentacZo a pedido, entre a amamenta¢o no seio materno e a mamadeira, centre varios tempos de desmama etc. Neste ponto existem diferencas consideraveis ndo somente de uma sociedade para outra, mas também de uma para outra classe da mesma sociedade. Assim, por exemplo, nos Estados Unidos o pioneirismo da alimentagSo por mamnadeira coube as mies da classe média, A pratica logo se disseminou entre outras classes. Posteriormente, foram novamente as mies da classe média que lideraram 2 reago 2 favor da amamentagio no seio matemo. Podemos dizer, portanto, que é geralmente o nivel de renda dos pais da crianga que decide se esta, quando sente fo- me, deve ser presenteada com 0 selo matemo ou com a mamadeira (I) Se compararmos varias sociedades, as diferengas nesta 4rea sio verdadeiramente novéveis. Na far milia de classe média da sociedade ocidental adotava-se, antes da divulgacao das idéias variadas dos perits sobre a alimentacéo a pedido, um regime rigido, quase industrial, de alimentaco segundo um horivio prefixado. A crianga era alimentada em certas horas, ¢ somente nessas horas. Nos intervalos. poderia chorar & vontade. Esse procedimento era justificado de varias maneiras, tantocom base em consideracées préticas como sob o fundamento de ser ttil A sade da crianga. A titulo de contraste, poderfamos examinar as préticas alimentares dos gusii do Quénia.(2) (Os gusii no conhecem qualquer horério de alimentago. A mie amamenta a crianga toda vez {que esta chora. De noite dorme nua sob uma coberta, com a crianga nos bragos. Na medida do possi- vel, a crianga tem acesso ininterrupto ¢ imediato 20 seio mateo. Quando a mae trabalha, carrega a crianga amazrada as costas, cu entio esta 6 carregada por al- guém que se mantém a seu lado, Também nesta oportunidade, a crianga, assim que comeca a chorar, € alimentada 0 mais rapidamente possivel. De acordo com uma norma geral, a crianga néo deve chorar mais de cinco minutos antes de ser alimentada, Em comparaco com a maior parte dos pa- drées de alimentacao prevalecentes nas sociedades ocidentais, esta pratica nos choca por ser excessi- ‘vamente “permissiva”. Mas existem outros aspectos das priticas alimentares dos gusli que nos impressionam sob um Angulo totalmente diverso. Foucos dias apés o nascimento, a crianga passa a receber um mingaur como complemento alimentar ao leite matemo. Segundo indicam os dados de que dispomos, a crianga no demonstra muito entusiasmo por esse mingau. Mas iso ndo the adianta nada, pois é alimentada & forga. E a alimentagio forgada ¢ realizada de uma maneira bastante desagradavel: a mie segura o nariz da crianga. Quando esta abre a boca para respirat, o mingau é empurrado para dentro da mesma. Além disso, a mae demonstra pouca afeigao pela crianga, e raramente a acari- cia, embora outras pessoas possam fazé-lo. Provavelmente procede assim no intuito de evitar os citimes das pessoas que poderiam assistir as suas demonstragbes de afeto; de qualquer maneira, na pritica isso significa que a experiencia da crianga encontra maiores demonstragies de afeto de ou- tras pessoas que da propria mae. VE-se que mesmo sob outros aspectos, a maneira pela qual os gu- sii criam os filhos na fase inicial da vida nos choca bastante, se a compararmos com os padées ocidentais, De outro lado, em relagio & desmama os gusii mais uma vez demonstram um elevado grau de “permissividade”, em comparago com as sociedades ocidentais. Enguanto nestas 2 grande maioria das criangas passa da amamentarso materna para a alimentag3o por mamadeira antes de atingir a idade de seis meses, as criangas dos gusii So amamentadas no seio matemo até a idade de 2 meses. (0 Joka e Hliabeth Newson, Pats of Infare Cae, Penguin Books, Balmore, 1965, xp 176 sees 12) Beatrice Whiting (compiaa), Sixes — Suds tu Cd Renrg. Wile, New York. 1963; pp 139 ees. 172 ConctesSociligias Fundamenats O treinamento para 0 uso da toalete: a moita ou a “inspiracao” © treinamento para o uso da toalete constitui outro setor do comportamento da crianga em. que 4s proprias fungSes fisiol6gicas do organismo séo forgadas, de maneira bastante Sbvia, 2 submeter-se 405 padres sociais. Em linhas gerais, nas sociedades primitivas raramente surgem problemas nesta rea. Segundo a regra geral a crianca, assim que sabe andas, segue os adultos para a moita ou outra frea que a comunidade considere apropriada para as fungées eliminat6rias. © problema é ainda me- nor nas regibes quentes, onde as eriangas usara pouca cu nenhuma roupa. Entre os gusii, por exem- plo, o treinamento para o uso da toalete resume-se na tarefa relativamente simples de fazer a crianga defecar fora de casa. Em médis, essa rarefa¢ intciada aproximadamente com a dade de vinte ¢ cinco ‘meses, e concluida mais ou menos dentro de um més. Ao que parece, nio ha maior preocuparao com o ato de urinar. Uma ver que as criancas nfo usam vestes na parte inferior do corpo, nfo existe © problema de mothar a roupa. Ensina-se-Thes que devem proceder com discrigio no desempenho da fangZo eliminatéria, mas ao que tudo indica elas o aprendem por meio de um simples processo de imitagfo, independentemente de ameagas ou sansies.(3) Ja nas sociedades ocidentais o tweinamento para a toalete constitul uma grande preocupasto. (i bbem provével que, se Freud tivesse sido ura gusii, nunca se teria lembrado de conferir ao teinamen- to para o uso da toalete um lugar to importante na sua teoria do desenvolvimento infantil.) Se compararmos, por exemplo, a sociedade norte-americana com a dos gusii, no veremos maiores dif- culdades em explicar por que, na primeira, o treinamento para a toalete constitui um problema mais importante que na éltima. Afinel, devemos considerar a variedade de roupes usadas pelas criangas € a complexidade dos arranjos domésticos, além da auséncia eneralizada de moitas. Dessa forma, as atribulages, os sucessos ¢ os insucessos experimentados nesta érea constituem um t6pico bastante fequente na conversagio das mes norte-americanas. Em estudo recente realizado numa comunida- de da Nova Inglatecra,(4) os pesquisadores descobriram uma série espantosa de medidas punitivas aplicadas as criancas que nio reagiam da forma esperada ao treinamento para o uso da toalete. Essas medidas punitivas consistiam tanto em esfregar 0 nariz da crianga em suas proprias fezes, como no uso de supositérios e clisteres por meio dos quais se pretendia levar a crianga a adotar hébitos regula- res de evacuago. (Na verdade, entze um quarto um terco das mes entrevistadas informaram ter aplicado estas tiltimas medidas.) Ao que parece, a crianga vota um desapreco total aos clisteres, mo- tivo por que a simples ameaca de sua aplicagio geralmente era suficiente para “inepirar” a mesma a defecar quando a mie 0 desejasse. Esses dados poderiam levar um soci6logo gusii & conelusio de que o treinamento para o uso da toalete nos Estados Unidos ¢ extremamente rigido, mas o mesmo incidiria em erro se generalizesse «ssa conclusdo, aplicandova & maneira pela qual as criangas americanas fo tratadas em outras éreas, de comportamento. Os americanos, por exemplo, acham perfeitamence natural que uma crianga queira muito movimento, ¢ via de regra esse comportamento € tolerado até mesmo nos graus ele- rmentares da escola. Jé os franceses tém uma opinido totalmente diversa a este respeito.(5) Num es- tudo recente sobre a maneira pela qual sio criadas as criangas francesas, um observador americana mostra-se espantado pelo fato de que as mesmas sio levadas para brincar no parque clegantemente vvestidas, ¢ conseguem manterse limpas. Evidentemente uma crianga americana colocada em situar 0 semelhente conseguiria sujar-se num instante. A explicagio do fenémeno reside na relativa imobilidade da crianga francesa. O estudioso americano notou o fato em criangas franceses de dois a trés anos: ficou surpreso ao ver que as mesmas eram capazes de se manter absolutamente iméveis por longos perfodos. © mesmo estudo relata o caso de uma crianga americana que 0 professor encami- (9) Whiting, i, pp. 154 segs GY Bid, wp 44 ese (5) Margaret Mead e Martha Wolfescein (compara, Cita in Contemporary Cubes, Phoenix Books, Chicago, 1955, pp. 1056 pn Sociales Come Sern Menbro da Sociedade 73 thou ao psicdlogo escolar, unicamente porque a mesma néo conseguia manterce quieta durante as aulas. O professor francés, totalmente descbituado 2 esse tipo de comportamento, concluiu que a crianga devia estar doente. Em outras palavras, um grau de atividade motora considerado normal nas escolas americanas passou a ser visto como sintoma dum estado patologico na Franca A socializagao: padrées relativos experimentados como absolutos O processo por meio do qual o individuo aprende a ser um membro da sociedade € designado pelo nome de sociaizagdo. © mesmo revela uma série de facetas diversas. Os processos que acabam de ser ‘examinados constituem faceras da socializacio. Vista sob este angulo, a soctalizacto é a imposigéo de padtSes sociais & conduta individual. Conforme procuramos demonstrar, esses padtées chegam mes- ‘mo a intetferir nos processos fisiol6gicos do organismo. Conclui-se que na biografia do individuo a socializago, especialmente em sua fase inicial, constitu um fato qué se reveste dum temendo poder de conscri¢ao © duma importincia extracrdinaria. Sob o ponto de vista do observador estranho, os paces impostas durante 0 processo de socializagto s#o altamente relatives, conforme ja vimos, Dependem nio apenas das caractertsticas individuais dos adultos que cuidam da crianga, mas tamy 1bém dos varios grupamentos a que pertencem esses adultos. Assim, por exemplo, a naturéza dos par des de conduta aplicados a uma crianga depend nfo somente do fato de ser a mesma um gusi oa um americano; mas também da circunstancia de pertencer A classe média ou & classe operdria dos Estados Unidos. Mas, sob o ponto de vista da crianga, estes mesmos padres so sentidos de forma bastante absoluta. Temos razSes para supor que, se nfo fosse assim, a crianga seria perturbada e 0 processo de socializaco néo poderia ser levado avante. O caréter absoluto com que os padrées sociais atingem a crianca resulta de dois fatos bastante simples: 0 grande poder que 0s adultos exercem numa situacio como aquela em que se encontra a cctianga e a ignoréincia desta sobre a existéncia de padrées aleemativos. Os psicélogos divergem sobre se a crianga tem a impressdo de que nessa fase da vida exerce um controle bastante pronunciado so- bre 0s adultos (uma vez que os mesmos so sensiveis as suas necessidades), ou se vé neles uma amea- ga continua, porque depende deles tio fortemente. De qualquer maneita, no pode haver a menor divida de que, em termos objetivos, os adultos exercem um poder avassalador sobre a crianga. E cla- ro que esta pode resistr & pressao exercida por eles, mas o resultado provvel de qualquer conflito #8 poderd set a vitéria dos adultos. Sao eles que trazem a maior parte das recompensas pelas quais anv seia a crianga e dos castigos que teme. Na verdade, o simples fato de que a maior parte das criancas acaba por socializarse constitui prova cabal desse fato. Além disso é evidente que a crianga ignora qualquer alternativa aos padrdes de conduta que the so impostos. Os adultos apresentam-the certo mundo — e para a crianga, este mundo € © mundo. Sé posteriormente a mesma descobre que exis: tem alrernativas fora desse mundo, que o mundo de seus pais € relativo no tempo e no espago € que pacitoes diferentes podem ser adotados. S6 entiio o individuo toma conhecimento da relatividade dos padres e dos mundos sociais — numa hipétese extrema, poderé prosseguir na trilha dessa visio, escolhendo a profisséo de socislogo. A iniciagéo da crianga: o mundo transforma-se em seu mundo ‘Vernos que uma das maneiras de encarar © processo de socializaglo comresponde aquela que se po- deria designar como a “visio policialesca", Segundo ela, a socialisacSo ¢ vista principalmente como uma série de controles exercidos de fora e apoiada por algum sistema de recompensas e castigos. O mesmo fendémeno pode ser examinado sob outro angulo, que pode ser considerado mais benigno. A socializagao passa a se considerada um processo de iniciaglo por meio do qual a crianga pode desen- 174 ConceonSecoligirs Faxdanensais volver-se e expandirse a fim de ingressar num mundo que esté ao seu alcance. Sob este panto de vista a socializag%o constitui parte essencial do processo de humanizagao integral e plena realizago do potencial do individuo. A socialicagto 6 um processo de iniciagio num mundo social, em suas formas de interaco e nos seus numeroses significados. De infcio, o mundo social dos pais apresenta- se A crianga como uma tealidade externa, misteriosa e muito poderosa. No curso do processo de so- cializagio este mundo tomase inteligivel. A crianga penetra nesse mundo e adquire a capacidade de patticipar dele. Ele se transforma no seu mundo. A linguagem, o pensamento, a reflexio e a “fala respondona” © veiculo primordial da socializago, especialmente sob a segunda faceta, € a linguagem. Logo mais realizaremos um exame mais detalhado da linguagem. Neste ponto 6 queremos ressaltar que cla constitui um elemento essencial do processo de socializago €, mais do que isso, de qualquer par- ticipaco posterior na sociedade. Ao assenhorear-se da linguagem, a crianca aprende a transraitir € reter certos significados socialmente reconhecidos. Adquire a capacidade de pensar abstratamente, isto é, consegue ir além da situagio imediara com que se deftonta. E é também por meio do aprendi- zado da linguagem que a crianga adquite a capacidade de refletic. As reflexGes incidem sobre a expe- riéneia passada, que se integra numa versio coerente e cada ver mais ampla da realidade. A expe- riéncia presente € continuamente interpretada em conformidade com essa visio e a experiéncia fu- tura no pode ser apenas imaginada, mas também planejade. E através dessa reflexio cada veo mais intensa que a ctianga toma conscigncia de si mesma como uma individualidade, no sentido literal de reflex, isto é, do fendmeno atzavés do qual a atengio da crianga retoa do mundo exterior para incidir sobre ela prépria. E muito fécil dizer, e até certo ponto nfo deixa de ser cometo, que a socializagao é um processo de configuracio ou moldagem. A crianga é configurada pela sociedade, € por ela moldada de forma a fax zet dela um membro zeconhecido e participante. Mas é importante que nio se veja nisso um proces- 50 unilateral. Mesmo no infcio da vida, a crianga ndo 6 uma vitima passiva da socializago. Resiste & mesma, dela participa e nela colabora de forma variada. A socializagao é um processo recfproco, vis to que afeta ndo apenas o individuo socializado, mas também os socializantes. Nao € dificil cbservar esse fato na vida quotidiana. Geralmente os pais alcangam um éxito maior ou menor em moldar a crianca de acordo com os padres gerais criados pela sociedade e desejados por eles. Mas a experién- cia também produ: modificagtes nos pais. A reciprocidade da crienga, isto €, sua capacidade de cexercer uma ago individual e independente sobre o mundo e as pessoas que 0 habitam, cresce na razlo direra da capacidade de usar a linguagem. No sentido literal da palavra, a ctianga nessa fase co- mega a responder acs adultos. Neste contexto, toma-se necessirio admitir que ha limites para a socializagao. Essas limitagSes estio fixadas no organismo da crianga. Desde que possua uma inteligéncia razoavel, qualquer crian- ‘ga de qualquer parte do mundo pode ser socializada para ser transformada num membro da socieda- de americana. Qualquer crianga normal pode aprender o inglés. Qualquer crianga normal pode aprender os valores ¢ padres de vida ligados ao uso da lingua inglesa nos Estados Unidos. Provavelmente qualquer ctianca normal podria aprender um sistema de notagio musical. Mas é evidente que nem toda crianga normal poderia ser transformada num génio musical. Se essa quali- dade nao estiver presente, em potencial, no organismo da crianga, qualquer tentativa de socializa- <0 que se desenvolvesse nesse sentido esbarraria em resistincias duras e invenciveis. O estado ual do conhecimento cientifico (especialmente na érea da Biologia Humana) nao nos permite ‘agar os limites precisos da socializagao. Todavia, é muito importante que no nos esquegamos de que esse limite existe. By 0 <2 ORR Ae: & Seco: Com Ser ton Meme da Sorzdade 175 Tomando as atitudes e desempenhando o papel dos outros ‘Através de que mecenismo € levada avante 2 socializago? O mecanismo fundamental consiste ‘num processo de interagio e identificagdo com os outros. Um passo decisivo é dado no momento fem que a crianga aprende, na expresso de Mead, a tomar as atitudes do ousro.(6) Isso significa que 2 crianga ndo s6 aprende a recorthecer certa atitude em outra pessoa e a compreender seu sentido, mas também aprende a tomé-la ela mesma. Por exemplo, a crianca observa quando a mde toma, em cer- tas ocasiGes, uma atitude de c6lera — por exemplo, nas ocesites em que a crianca se suja. Além de exprimir-se por gestos e palavras, a atitude de c6lera encerra um sentido perfeitamente definido, qual seja o de que nio € correto sujar-se. De infcio a crianga imitard as exteriorisacGes dessa atitude, assim verbais como no-verbais.E € nesse processo de interagdo ¢ identificagdo que o sentido dessa atitude € absorvido pela crianca. ssa fase expectfica da socializagéo teré sido coroada de @xito quando a crianga tiver aprendido a tomar a mesma aticude para consigo mesma, até na auséncia da mie. Pode-se observar uma crianga “brincando de mae” quando se encontra sorinha. Isso aconteceré, por exémplo, quando ela se re- preende a si mesma por inftagSes as regras ligadas a0 uso da toalete, chegando por vezes a elaborar ‘uma figura caricata a titulo de imitago do papel anteriormente desempenthado pela mie: Chegaré o dia em que niio mais seri necessévio realizar a caricatura. A atitude acha-se firmemente implantada na conscigneia da crianca, que consegue realizé-la em siléncio, sem elaborar conscientemente o res: pectivo papel. Da mesma forma, acrianga aprende a desempenhar 0 papel do oxo. Para os fins ora vi- sados, podemos ver no papel desempenhado apenas uma atitude que se fixou num padrdo de condu- 1a cocrente ¢ reiterado. O que a mie transmite ao filho nao é apenas uma série de atitudes, mas sim tum pad:io geral de condura que pode ser designado como © “papel de mae”. A crianga aprende nao ‘96 tomar atitudes especificas, mas a asumnir os respectivos papéis. © brinquedo representa uma par- te muito importante desse aprendizado. Nao ha quem nfo tenha visto uma crianga que brinca de pai, irma ou irméio mais velho e, mais tarde, de policial, “cowboy” ou indio, A importancia desse ti po de brincadeira nao resulta somente dos papéis especificos que envolve, més do fato de que ensina a crianga a desempenhar qualquer papel. Pouco importa, portanto, que a crianga jamais vena a ser tum “cowboy” ou um fndio. Ao desempenhar estes papéis aprende, antes de mais nada, a seguir um padrao de conduta reiterada. © que importa nd € tomar-se um fio, mas aprender como desempenhar sum papel Socializacio: dos “outros significativos” ao “outro generalizado” ‘Além da fungao de aprendizagem generalizada realizada auavés do ato de “desempenha” paptis, fesse mesmo processo pode transmitir significados sociais “verdadeiros”. A maneira pela qual uma ccrianga americana desempenharé o papel de policial depende em larga escala do significado que esse papel assume em seu ambiente social imediato. Para a crianca dum bairro residencial branco, 0 poli- cial representa a imagem da autoridade e da seguranca; é uma pessoa & qual se deve recorrer sempre que haja algun problema. Jé para a crianga negra do centro da cidade, o mesmo papel muito prover velmente envolve uma idéia de hostilidade e perigo, uma ameara antes que um fator de seguranga, ‘uma pessoa & qual nfo se deve recorrer, mas da qual é preciso fugit. Ainda é de supor que o desempe- rho dos papéis de “cowboy” e indio assume significados totalmente diversos no bairro residencial branco ¢ numa reserva indigena. Ve-se que a socializacio se realiea numa continua interago com outros. Mas ngrm todos os outros com que a crianga se defronta assumem 2 mesma importéncia nesse processo. Alguns deles evidente- (6) Exes conceit «or que sero apresenados a sagul foram definides por George Herbert Men.

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