Você está na página 1de 8
“A MAQuINA DO MUNDO” DE DRUMMOND 4 Mauro Vittaw Quando Carlos Drummond de Andrade publicou, em 1951, 0 volume Claro Enigma, com aquela epigrafe de Valéry: Les événements m'ennuient um novo Drummond, o terceiro, que, depois do humo rismo dos comesos e do “poeta social” de Sentimento dol Mundo ¢ A Rosa do Povo, se teria transformado num| DPessimista semiclassico, fugido da sociedade, alheio as lu. tas concretas, descrente de tudo e de todos. A riqueza ¢ a altura poética dessa terceira fase nao etam contestadas, ‘mas seu reconhecimento se impunha apesar da “direcio Para 0 formalismo”, aberta ou veladamente combatida. ©-prolonganent0 Ue SmeThante ingenuidade critica alcantgou até mesmo as ‘opinides mais recentes. Em todos aqueles que, movidos Por uma atitude socialmente em- penhada, se defendiam da tentagio de adotar um con- sito grosseiro de literatura, era comum a ideia de que, no iiltimo Drummond, a despeito dos temas negativistas, a complexa estruturagao de uma nova “poesia do pen samento” — considerada, ao lado da de Joao Cabral, a expresso mais perfeita de um lirismo objetivo, supera- dor do velho cancioneirismo subjetivista ~era o suficiente para resgaté-lo da grave condenacio dos “participantes”. Estes nunca engoliram bem aquela epigrafe, nem foram em nada tocados pela nostalgica evaporacio dos fumos de Itabira, pela liquida evanescéncia da “Elegia”, ou pela desesperancada lucidez de “A Ingaia Ciéncia”... (Eu pré- prio compartilhei um dia dessa visao, arremetendo contra a mé vontade intransigente dos insensiveis ao valor da forma — mas sem ousar um pio a favor dos te |tio 1) inedmodos] do melancélico fazendeiro dk ‘Ora, essa iluséo de uma forma resgatando o contetido nao passava de expediente insustentavel. As formas artis- ticas nao sao, é verdade, inteiramente congruentes com © contetido; ndo é raro verse uma nova mensagem “ra. chando” uma velha forma. Mas este é um raciocinio his. t6rico. E possivel, de fato, constatar a eclosio subterrnea da nova arte que ainda se serve, inicialmente, de um estilo. cm breve ultrapassado. Porém, do ponto de vista estrito do estético, nao ha hipétese de a forma nao corresponder, plenamente, ao contetido: porque, do ponto de vista de obra realizada, da obra em ato, da consecucio artistica (do conseguimento, como dizia Mario de Andrade), sim- plesmente nao ha © dualismo forma-e-conteiido: existe ‘apenas a unidade das formas significativas. Nao pode a forma do terceiro Drummond “valer”, se nao “valer” sua tematica, Nao ‘ha como ser bom um Poema cuja mensagem nao tenha relevncia e validez no conjunto da experiéncia humana. Nao se pode afirmar a qualidade do “artista” contra a discutibilidade das posi- Ges do “homem” — porque, no poema, homem e artista nao sio de nenhum modo dissociaveis, Admitida, portanto, a exceléncia dos poemas de Claro Enigma, Fazendeiro do Ar, A Vida Passada a Limpo e até Liao de Coisas onde uma visio do mundo desiludida ou absenteista se revele, ceve haver, no fundo dessa visio — na forma pela qual poe-a a exprime — um valor de experién- cia reconhecivel e estimavel Por nés. Valor nao imputavel 4 simples forma externa desses poemas ~ a0 movimento mé- trico e sintatico, a indcle flos6fica, ao tom de poema e nao de canco — mas sim a sua forma intima, coextensiva com Seu suposto (para efeito de anélise) contetido ou significa- do. Na raiz das atitudes “negativas” tratadas poeticamente por Drummond tem de existir um sentido exemplar, uma revelacao de alto interesse e de permanente valia para nds, E contudo, se chegarmos a uma conclusio desse tipo, sere- mos obrigados a atribuir a essa poesia “niilista” importa i pelo menos tao grande quanto a dos versos “sociais” de Seu autor; seremos ob adoy a levantar toda objegio *t litagio sobre a existéneia iio pots cu inclinagio para o nada, para a fria uietude de uma terra nua e deserta, Aqui se contém apenas uma insinuagilo para a leitura mais atenta do terceiro Drummond. Agiremos dle acordo com 0 principio exposto acima, segundo o qual “forma” ¢ “contetido” nao se despregam, cons bs 2 - Escolhemos para anailise - embo- ‘a esquematica — um dos mais representativos poemas desse periodo drummondiano, 0 maior e mais sugestivo dos textos de Claro Enigma ~ a composicao intitulada “A Maquina do Mundo”: E como en palmilbasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, 0 fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos 5 que era pausado e seco; e aves pairassem 0 céu de chumbo, e suas formas pretas Pausadamente se fossem diluindo! nna escuridao maior, vinda dos montes de men proprio ser desenganado, 10 a méquina do mundo se entreabrin ara quem de a romper ja se esquivava € 86 de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, Sem emitir um som que fosse impuro 15 nem wm claro maior que 0 tolerdvel *'No volume da Nova Aguila, Poesia e Prosa, organizado pelo pro rio Carlos Drummond de Andrade, o verso diz: “letamente se fos sem diluindo ..)”. © poeta e eritico Antonio Catlos Secchin esclarece & dliferenca: *O ‘enigma’ € de fil resolugdo: Drummond optow por ‘Pausadamente’ na primeira edigdo (1951) de Claro Enigma, mantendo ( advrbio em Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora (1955) Merquioe deve ter ldo o verso numa desss eigbes, pois jd em Foemas, de 1959, ¢ dai em diante, o poeta preferiu ‘lentamente'.O curioso é que na primes tissima aparicdo do texto, nas piginas do Correo da Manic 1949, CDA grafara‘lentamente' As dlividas do poeta quanto ao emprego de lum ou outro advérbio s6 cessaram, portant, em 1989". (N. Fy 102 TRAZAO DO HOUMA 20 25 30 35 40 45 elas pupils gastas na inspecao cantina ¢ dolorosa de desert ce pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende «a propria imagem sua debuxada ino rosto do mistério, nos abismos. Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuigoes restavam «a quem de 0: ter usado os jé perdera nem desejaria recobrié-los, se em vio e para sempre repetimos ‘05 mesmos sem roteiro tristes périplos, convidando-os a todos, em coorte, 4 se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mitica das coisas, assim me disse, embora vor alguma ‘01 sopro ou eco ou simples percussio atestasse que alguém, sobre a montanba, 4 outro alguém, noturno e misenével, ‘em col6quio se estava dirigindos "O que procuraste em ti ou fora de teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, ea cada instonte mais se retraindo, olha, repara, ausculta: essa rigueza sobrante a toda pérola, essa ciéncia sublime e formidavel, mas hermética, essa total explicacao da vida, esse nexo primeiro e singular, ‘que nem concebes mais, pois tao esquivo se revelow anie a pesquisa ardente em que te consunuiste.. #8, contempla, abre teu peite para agasalhé-lo™ A MAQUINA to Muh 50 5S 60 65 70 7s 80 As mais soberbas pontes e edificios, 0 que nas oficinas se elabora, 0 que pensado foi e logo atinge distincia superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, as paixdes e os impulsos e os tormentos e tudo que define 0 ser terrestre ‘ow se prolonga até nos animais ¢ chega as plantas para se embeber no sono rancoroso dos minérios, dé volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geomiétrica de tudo, © 0 absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos a verdade; ¢a meméria dos deuses, 0 solene sentimento de morte, que floresce no eaule da existéncia mais gloriosa, tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, final submetido a vista humana. ‘Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, ois a fé se abrandara, e mesmo 0 anscio, 4 esperarca mais minima — esse anelo de ver desvanecida e treva espessa que entre 0s raios do sol inda se filtra; como defiuntas erencas convocadas presto e fremente ndo se produzissem ade novo tingir a neutra face que vou pelos caminbos demonstrando, € como se outro ser, no mais aquele babitante de mins bid tantos anos, passasse a comandar minka vontade que, jé de si vobivel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes 85. em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio jé nio fora apetecivel, antes despiciendo, baixei os alhos, incurioso, lasso, desdenhando colber a coisa oferta 90 que se abria gratuita a meu engenbo. A treva mais estrita jd pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, ea maquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, 95 enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de maos pensas. Este é um dos poemas mais sombrios de Drummond. A. serena marcha dos tercetos, classicos, mas ndo no modelo encadeado de Dante, faz de seus versos algo sem preceden- tes na historia de nossa lirica. S6 no belissimo “Triunfo” de José Albano (que possui igualmente um arcabougo nar- rativo) consigo ver, de pena brasileira, tio firme tragado, nesse tipo de estrofacio. E se o poeta se afastou da disposi- ‘ao estr6fica de Dante, logo se vé, na sintaxe dos tercetos, a razio do desvio. Em Albano, praticamente todos os ter- ‘cetos constituem um periodo; cada terceiro verso termina em ponto, Em “A Maquina do Mundo”, porém, em trinta e duas estrofes, existem apenas seis periodos (versos 1-12, 13-21, 22-48, 49-69, 70-90, e 91-96); 0 “enjambement” € muito frequente. A energia do ritmo, suas aceleragées, suas “cristas” — como o pice de enumeragéo, no verso 67 ~ modificam o interior daquela serenidade de maneira talvez pouco adequada ao esquema das “terzine” encadea- das. Ha um predominio do encadeamento sintatico sobre 6 estrofico; do ritmico, sobre o métrico. Os nove primeiros versos oferecem a moldura tem- poral-modal do avontecimento que sera narrado. Quatro oragbes regidas pela conjungio do inicio (e como...) configuram uma narrativa elaborada hipotaticamente: por subordinagio sintitica e mi nalmente § ‘oragio principal, no déein estrofes ja preparara por ju igo, Quando fi fe. Ao abrirse a maquina do mundo, sabemos da condigio do viajante € da paisagem que a reflete. A consciéncia disso foi viva ‘mente comunicada pela sintaxe de subordinagio. Vinha ele vago, mas pausado; numa estrada ingreme, ‘que a noite préxima envolvia... € possivel firmar, entre 0 vago andar ¢ a noite crescente, uma equivaléncia corres- Thos € explicitamente confirmado pela indicagao acistica (versos 3-5): 0 sino rouco se confunde com o som dos sa- patos. Portanto, duas ordens de significados: 0 motivo do ago, da noite, do obscuro ~ ¢ o motivo do palmilhar, do dificil, da medida lentidao: do pausado. Na segunda parte do quinto verso, assistimos & transposigao desse contraste para o interior da propria natureza. A chave da transpo- isto € 0 advérbio pausadamente, que ecoa o som dos sapatos; agora, entretanto, sendo as aves que se opdem 4 noite, na dissolugo de suas formas, 0 tema do pausa- do contrasta com o do vago dentro da paisagem. Enfim todas essas “oposigées” tematicas, isoladas pela anilise, na verdade, representam, no poema, duas ordens que se misturam, bem mais do que se contrariam. A explicacao est nos versos 8 9: é que a escuridao, a vaguidade, o motivo noturno, tem origem tanto no fisico quanto no animico: sombra vinda do céu, escuro desengano. Vemos entio que o motivo do pausa- do termina embebido no tema dominante da noite abru- madora. Com se alguém, cansado da aspereza de andar, mentalmente se diluisse, e acompanhasse a imersio dos pAssaros na noite gravida e completa. © surgimento da maquina do mundo incide sobre essa fadiga. A preciséo do verbo o demonstra: para quem de a romper ja se esquivava | e s6 de ter pensado se car- ia (versos 11-12). O imperfeito indica, nao um ponto qualquer na escala do tempo, mas a duragao da ago. Ele 100 | RAZAO DO PORMA 6 como se sabe, uma forma verbal menos “temporal” do que aspectnal, N quarta estrole 6 ilusteagio plistien da ‘oposigao entre @ aspecto “em curso” do imperfeito € 0 confronto dos tempos verbais (entreabrin / esquivava-se, carpia-se), sentimos, com toda a nitidez, como a aparigao: ‘da miquina do munéo surpreendeu o viajante em meio fa sua rentincia, no curso de um movimento para assumir lo cansaco ¢ desistir de uma penosa perquirigao. Os dois Verbos no imperfeito sa0, em Tinguagem direta, O que os trés primeiros tercetos figuraram pela imagem: a confis- sio da resignada atitude do caminhante, decidido a evi- taf, imerso na noite, a luta cansativa pelo conhecimento. Eee tree ort ae ieee ex orcent visualmente agrediré esse vencido indagador. A sedutora maquina nao quer ferit as ex-curiosas, abdicantes pupi- las. Abrirse-4, portanto, em calma pura, sem exigir do caminhante mais do que uma percepgo minima: mini- ma, porque os sentidos estdo gastos, embotados, feridos: mas também porque, ainda que no o estivessem, nio se- riam agora, pelo desejo do homem, reativados (verso 25), se em vio e para sempre repetimos ‘os mesmos sem rotviro tristes périplos. Essas duas linhas reiteram a abdicagao ao conhecer ‘expressa por imagem nos primeiros tercetos e, declarati- vamente, nos yersos 11-12 ¢ 16-21. Mas desta vez, com seu ar parentético, com sua sabia aliteracao“(r)) com 0 timbre dominante em’é,'¢ com o quase completo parale- lismo ritmico (acentos na 2+, 6* ¢ 10*), somente alterado, a segunda linha, pelo arrastado peso da oitava silaba (iris) a expresso da rentincia ao esforgo cognitivo se torna realmente lapidar. ‘io tais sentidos, cansados e restantes, que capta~ 10 a oferecida verdade, a natureza mitica das coisas. © movimento hipotatico, concentrado no gertindio con- vidando (versos 22 ¢ 28), novamente temporal, reexpoe a jante aré © comeco da fala da maquina, tal situagio do vi Ee a pene Antes, porém, do parlamento da maquina, outro dexilo bramento subordinative intervem, em forma de oragie concessiva (versos 31-35). As palavras da maquina sio imaterializaveis, intestemunhaveis (versos 31-33). Nenhum sinal externo pode comprova-las. Assim, o caminhante so: zinho, noturno € misenivel, sozinho as ouvira. Noturno, i sabjamos que ele se fizera, mergulhando na escuridao nascida da terra e de si mesmo, Mas por que misenivel? Nio sera porque, noturno, ele desceu a uma condigio de- gradada? Com efeito, ele abdicou uma dignidade superior, a da manutengéo da vontade de saber. Por isso a maquina, embora aliciante, embora sem ferir-Ihe os olhos doloridos, emprega logo o imperativo (verso 40): manda que veja o que lhe mostra (e que, isso sim, é sublime, pairando porten- toso acima da capacidade do homem); e manda, ainda, que © agasalhe em seu peito, num peito que faz as vezes de uma inepta visio, e capta, em seu lugar, o segtedo do mundo. Na enumeragao seguinte, que constitui 0 quarto periodo, a presenga do humano nao € mais dignificada. Das trés esferas de objetos oferecidos a contemplagio do homem, totalizando aquela “natureza mitica” do ser — as obras e pensamentos humanos (versos 49-53); as obras da natureza, realizadas no homem, nos animais, nas plantas ou nos minerais (versos (54-60); 0 “absurdo original”, a lembranga de deuses eo sentimento de mor- te (versos 61-66) — nao é a primeira a mais valorizada pelo poema. Nao s6 ocupa menor extensdo, como, vin- do no comego, nao usuftui do crescendo ritmico que a longa vertente enumerativa, cada vez com maior impeto, acaba resumindo na oragao culminante do final, iniciada pelo pronome-climax tudo (verso 67). A espera fisica € a merafisica superam a humana. No “reino augusto”, na “ciéncia sublime” que a maquina exibe, o homem é ape- ‘nas uma parte, sem ser sequer a mais valiosa. Tinhamos um homem pronto a desistir do esforgo de conhecer. Temos agora uma revelacao que Ihe é feita, mas que, longe de estimular o reexercicio daquele esforco, an- tes prefere o homem rendido~ nao de visio armada, mas 108 | RAZAO DO POEMA _ sobrenatural, que € um universo amplissime, n posto emin o homem em nada parece ocupar u Como reagina 0 viajante a esse convite, a0 mesmo t rte, persistindo na fadiga Nas oragbes causais imiperioso e sedutor? Curiosan ena rentincia em que se envolve do. quinto periodo se alinham as razdes da frieza do ca- minhante face ao maravilhoso conhecimento revelado. le € wm homem sem fé, sem mais nenhuma esperanga, sexn mesmo a derradeira palpitagio da crenga. A impossi- bilidade de conheces, a impoténcia da visio, desde o ini- cio do poema traduzida em imagens do velho simbolo “obscuridade”, perfaz agora uma treva to densa que entre os raios do sol inda se filtras Nada reavivard, nesse espirito estéril para a fé, os anti- os anseios do acreditar. A “neutra face” desconhece 0 cstremecimento mistico, a vibrante certeza do crente. ‘A prépria vontade apaixonada de conhecer, que tanto 0 dominara antes, no se enamora da gratuita revelagao. (“dom tardio”, nao conquistado, mas oferecido, nio con- segue seduzir; a ciénea, dada, nao estimula 0 engenho; a0 cansaco dos olhos, exaustos de tentar ver, no tenta agora ‘© quase insulto de uma visdo que nao lhes custa. ‘O caminhante recusa o dom gracioso da maquina do mundo. Desdenha 0 conhecimento sobre-humano, acima das deficiéncias insanaveis da medida humana; 0 conhe- cimento mistico, a graca, o presente de poderes mais al- tos que o homem. Ao recusé-lo, investe-se da condi¢ao plenamente antropocéntrica, estritamente profana, do homem moderno: nao aceita nada que nao esteja contido em sua propria capacidade, sem auxitio superior. A visio de que desvia 0 olhar é a mesma a que aspirou, fremente de fé, 0 habitante da dimensio teocéntrica, o home que buscava jubiloso a unido com o ser sagrado; a visao iri- descente do religioso, tio comovido por ela, que a luz suprema termina por cegé-lo, dilufda na pura vibragio do sentimento ~ como a contemplou, cego de beatitude, © mais ilustre dos Viajantes: “A MAQUINA EO MUNDO* DE DRUMMOND | 108 como, no inicio do pocma, até o instante de sua aparigao. Antes, porém, do parlamento da maquina, outro desdo bramento subordinative intervém, em forma de oragio concessiva (versos 31-35). As palavras da miqui imaterializaveis, intestemunhéveis (versos 31-33). Nenhum sinal extetno pode comprova-las. Assim, o caminhante 50- zinho, noturno e miserdvel, sozinho as ouvirs. Noturno, ja sabjamos que ele se fizera, mergulhando na escuridio nascida da terta e de si mesmo. Mas por que miserdvel? Nido serd porque, noturno, ele desceu a uma condigao de- gradada? Com efeito, ele abdicou uma dignidade superior, a da manutengio da vontade de saber. Por isso a maquina, embora aliciante, embora sem ferir-Ihe os olhos doloridos, emprega logo 0 imperativo (verso 40): manda que veja 0 ‘que Ihe mostra (e que, iso sim, é sublime, pairando porten- toso acima da capacidade do homem); e manda, ainda, que © agasalhe em seu peito, num peito que faz as vezes de uma inepta visio, e capta, em seu lugar, o segredo do mundo. Na enumeracio seguinte, que constitui 0 quarto periodo, a presenca do humano nao é mais dignificada. Das trés esferas de objetos oferecidos & contemplacao do homem, totalizando aquela “natureza mitica” do ser — as obras © pensamentos humanos (versos 49-53); as obras da natureza, realizadas no homem, nos animais, nas plantas ou nos minerais (versos 54-60); 0 “absurdo original”, a lembranca de deuses e o sentimento de mor- te (versos 61-66) - nao é a primeira a mais valorizada pelo poema, Nao s6 ocupa menor extensiio, como, vin- do no comeco, nao usufrui do crescendo ritmico que a longa vertente enumerativa, cada vez com maior impeto, acaba resumindo na oragio culminante do final, iniciada pelo pronome-climax tudo (verso 67}. A espera fisica ¢ a metafisica superam 2 humana. No “reino augusto”, na “cigneia sublime” que a maquina exibe, o homem é ape- znas uma parte, sem ser sequer a mais valiosa. Tinhamos um homem pronto a desistir do esforgo de

Você também pode gostar