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Que não se deve celebrar a consciência negra, e sim a consciência humana.

Isso, no
entanto, é uma ideia que pode até ter surgido com boas intenções, mas acabou prestando
um desserviço à luta contra o racismo e a favor da igualdade racial. Historicamente a
sociedade sustentou-se por meio de uma relação desigual entre pessoas por vários
fatores. Os principais fatores de desigualdade são:

Gênero;

Cor da pele;

Sexualidade;

Condição socioeconômica.

Tradicionalmente os espaços de poder da sociedade são reservados a homens héteros,


cisgênero, brancos e ricos. Mesmo nas chamadas microrrelações, nas pequenas relações
de poder cotidianas, a tendência é que:

O homem tenha mais poder e privilégio social em relação à mulher;

Os héteros também o têm em relação à população LGBTQ+;

Os brancos também possuem esse privilégio e esse poder desproporcional em relação à


população preta.

Isso evidencia, a partir de uma leitura materialista da história, que as relações sociais
são desiguais e que é preciso corrigir essa distorção para que a sociedade evolua.

Para levar a riqueza da cultura africana ao povo afrodescendente de países colonizados


por europeus (e também para os próprios povos africanos, que ainda sofrem as
consequências do colonialismo de exploração em seu continente), o poeta e escritor
martinicano Aimé Césaire criou o termo negritude, que se tornou uma corrente literária
e um movimento cultural. A ideia é a de que há uma essência cultural (a negritude) em
todos os descendentes de africanos que sofreram a diáspora forçada por europeus. A
ideia de uma consciência negra não surge, exatamente, a partir do conceito de negritude,
mas tem muito a ver.

Para unificar o povo preto em torno de sua luta contra séculos de escravização e após a
abolição da escravatura no Brasil, passou-se a pensar em uma forma de unir a população
preta e conscientizá-la de sua cultura, da luta diária das pessoas pretas e do valor de ser
preto. O objetivo é ainda parecido com o da negritude, mas vai além, pois indica às
pessoas pretas que, apesar de elas não ocuparem muitos lugares de destaque na
sociedade dominada por pessoas brancas, elas merecem destaque por sua intensa luta.

A consciência negra é isto: um misto de conscientização da importância do preto na


sociedade, do reconhecimento do valor, da cultura e da luta de pessoas pretas que não se
calaram e levantaram a cabeça contra o racismo. Apesar do protagonismo negro nessa
consciência — que mais do que uma ideia ou conceito, é uma espécie de prática que dá
“movimento” aos movimentos sociais —, podemos esperar que, a partir do choque com
a consciência negra, as pessoas brancas repensem suas práticas.

Aimé Césaire, um dos fundadores da negritude. [2]


Criação da consciência negra
O cérebro humano tem uma imensa capacidade plástica de se adaptar às situações e de
moldá-las para que elas estejam de acordo com aquilo que o ser humano quer. Assim, o
ser humano possui algo que talvez lhe seja único dentre os outros animais: consciência.
O animal tem senciência, uma capacidade de se perceber no mundo a partir dos sentidos
do corpo, da autoimagem, das necessidades corpóreas e até de sentimentos. No entanto,
o ser humano se percebe como um ser no mundo que pode modificá-lo e que pensa na
sua existência. Isso é o que a consciência nos garante: pensar a nossa existência e, com
isso, nos fazemos enquanto seres viventes.

Para filósofos existencialistas, a nossa existência precede a nossa essência. Isso significa
que é ao viver que nos criamos. Também é nesse movimento vital que criamos a nossa
consciência, que é aquela capacidade de pensar na existência e se perceber como um ser
no mundo e capaz de modificar o mundo. Tudo isso compõe uma complexa rede de
significações que nos molda enquanto seres e não é simples de ser percebida.
Para que um indivíduo que sofre a exploração contra a sua classe social, a exploração de
seu trabalho, perceba-se enquanto um ser explorado, ele precisa tomar consciência de
que o que é feito com ele não está certo. O mesmo vale para a mulher, que, para
perceber que a cultura que a colocou como um ser inferior, frágil (até mesmo um objeto
dos homens) é errada, precisa tomar consciência de que é a cultura que está errada, e
não ela mesma. Isso também se aplica para o preto: o racismo estrutural é internalizado
pelas pessoas que o sofrem, o que faz parecer normal ser historicamente discriminado.
No entanto, a criação da consciência negra na pessoa faz com que ela perceba que ela
não está errada por ser quem ela é, mas é a sociedade que está errada por discriminá-la.

Quando a pessoa preta (assim como a mulher, a população LGBTQ+, deficientes e


outras minorias historicamente discriminadas) toma consciência de seu valor e sua
importância, ela se empodera. O movimento causal contrário também acontece: quanto
mais a pessoa negra é empoderada, mais ela toma consciência de seu valor. No entanto,
essa consciência negra não é criada a partir do nada no indivíduo. É necessário que as
pessoas empoderadas mostrem para as outras pessoas que elas também podem criar essa
consciência. É necessário que a educação oferecida nas escolas seja de igualdade e que
seja ensinada a valorização da cultura negra. É necessário que sejam mostradas pessoas
negras em espaços de poder e de representatividade, como o herói preto e a heroína
preta, o presidente preto e a presidenta preta, etc.

É necessário desconstruir um papel de subalternidade que sempre foi atribuído à


população preta e mostrar cada vez mais nos espaços midiáticos os pretos e as pretas
empoderados, para que sirvam de inspiração para os outros que ainda não se
empoderaram.

Leia também: Três grandes abolicionistas negros brasileiros

História da consciência negra


No Brasil, a história da consciência negra culminou na criação do Dia Nacional da
Consciência Negra, uma data que celebra a negritude e a luta da população preta de
nosso país. No entanto, a história por trás disso é mais longa. Ainda no século XIX,
negros alforriados e seus filhos, muitos dos quais tiveram a oportunidade de estudar
(como o advogado e jornalista Luiz Gama, o patrono da abolição da escravatura no
Brasil), impulsionaram o movimento abolicionista, que advogava pelo fim da
escravidão em nosso país.
Intelectuais e políticos brancos também endossaram o movimento. No dia 13 de maio de
1888, não conseguindo mais resistir à pressão interna do movimento abolicionista e nem
à pressão externa promovida principalmente pela Inglaterra, a Princesa Isabel assinou a
Lei Áurea, abolindo a escravatura em nosso país.

A trajetória dos ex-escravos libertos não foi fácil. Eles não tiveram direito à terra nem a
qualquer tipo de indenização. Começaram a viver à margem da sociedade, iniciando a
difícil trajetória da população preta após a abolição em nosso país. Mesmo compondo
uma comunidade em sua maioria pobre e marginalizada, a cultura negra, com suas ricas
raízes africanas, continuou se desenvolvendo.

Em 1971, o professor, escritor, pesquisador e militante negro Oliveira Silveira


organizou um grupo de estudo e apreciação da cultura e da literatura negra em Porto
Alegre com outras pessoas interessadas no assunto. O grupo propôs a criação de uma
data comemorativa que simbolizasse a união e a luta do povo negro. O dia 20 de
novembro foi escolhido por ser o dia da morte de Zumbi dos Palmares, personalidade
considerada símbolo de luta e resistência contra a escravidão.

O grupo sofreu certa perseguição, pois, na ocasião de seu nascimento, o Brasil vivia o
auge dos chamados anos de chumbo da Ditadura Militar. No entanto, os movimentos
sociais que atuavam em defesa da população negra cresciam cada vez mais em nosso
país. Em 1978, inclusive, foi criado no Brasil o Movimento Negro Unido (MNU).

Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal de nosso país, apelidada pelo
deputado Ulysses Guimarães como Constituição Cidadã. Ela recebeu esse carinhoso
apelido por ser resultado de uma intensa consulta popular de vários setores da
sociedade, representados por deputados e por movimentos sociais que puderam
participar das sessões de criação e votação do texto constitucional. Um dos princípios
estabelecidos na constituição é a igualdade e o veto à discriminação por qualquer
motivo, inclusive racial.

Em 1989 foi promulgada a Lei n.º 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que dispõe contra o
preconceito racial, tornando a discriminação racial, de cor, de religião ou nacionalidade
um crime passível de punição penal.

Entre embates judiciais, leis e a luta dos movimentos, o sentimento de empoderamento e


a necessidade de se celebrar a africanidade cresciam cada vez mais, aumentando a
necessidade de se criar uma lei que determinasse a data proposta na década de 1970
como uma data comemorativa.

Veja também: Como ficou a vida dos ex-escravos após a Lei Áurea?

Consciência negra e o Zumbi dos Palmares


Zumbi dos Palmares é tido como uma das maiores personalidades representativas da
força e da luta da população negra em nosso país. Muito pouco se sabe sobre a história
de Zumbi, inclusive muitos dados são apontados como lendas. No entanto, a
representatividade de Zumbi coloca-o como um herói e une a comunidade negra em
prol da defesa de seus valores e de sua cultura.

Zumbi teria liderado por anos o Quilombo dos Palmares, um complexo de quilombos na
região da Serra da Barriga. Na época, a região pertencia à Capitania de Pernambuco,
sendo atualmente o estado de Alagoas.

Dados apontam que a morte de Zumbi teria ocorrido em 20 de novembro de 1695, em


combate e fuga. Daí veio a escolha do dia 20 de novembro como data de celebração do
Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil.

Dia da Consciência Negra


A Lei n.º 12.519, de 10 de novembro de 2011, instituiu o dia 20 de novembro como o
Dia Nacional da Consciência Negra. É um dia voltado para a reflexão sobre o que
movimenta a criação da data. O dia 20 de novembro não é um feriado nacional, mas
alguns estados e municípios adotaram a data como feriado.

Créditos das imagens

[1] Rodrigo S Coelho / Shutterstock

[2] Chris Allan / Shutterstock


Gostaria de fazer a referência deste texto em um trabalho escolar ou acadêmico? Veja:

PORFíRIO, Francisco. “Consciência negra”; Brasil Escola. Disponível em:


https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/consciencia-negra.htm. Acesso em 10 de
março de 2024.

De estudante para estudante


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