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4 A LUSOFONIA E A LINGUA PORTUGUESA: INQUIETAGOES E DESAFIOS, LUSOPHONY AND THE PORTUGUESE LANGUAGUE: CONCERNS AND (CHALLENGES Nao era s6 a divida por conta do trabalho, era por conta do aprendizado da nossa cultura, da nnassa cor, do nosso jeito de ser, que tem muito a ver com o povo african. (Luiz Indcio Lula da Silva) Sosyane Malta NASCIMENTO! Resumo: O artigo discute a nogao de lusofonia e problematiza a centralizagao da lingua portuguesa para a construgdo do coneeito, Num primeiro momento, intitulado “A Iusofonia e a lingua portuguesa”, concentramo-nos na critica ao lusolinguismo e a sua centralidade na concepgio da lusofonia, entendendo essa perspectiva como homogeneizante. A seguir, trabalhamos com alguns fragmentos do romance Un estranho em Goa, de José Eduardo Agualusa, pereorrendo © espago Goés e a tensio lingvistica encenada na trama. Também cotejamos algumas inquietagdes intelectuais, a partir do posicionamento de Michel Chaen, Lourengo do Rosario e Fernando Cristévao. Finalmente, dedicamos a tiltima segao para reflexio sobre os desatios da construgao do espaco luséfono como lugar de pluralidade e inclusio, trazendo a cena o ensaio “Luso-Afonias”, de Mia Couto. Nesse interim, também aproveitamos para expor o exemplo da UNILAB na edificagio cooperativa da lusofonia. Palavras-chave: Lusofonia. Agualusa, Mia Couto. Abstract: The article discusses the notion of Lusophony and discusses the centralization of the Portuguese language for the construction of the concept. At first, entitled “Lusophony and the Portuguese language”, we focus on criticizing Lusolinguism and its centrality in the conception of Lusophony, understanding this perspective as homogenizing. Next, we work with some fragments of the novel Uin estranho ent Goa, by José Eduardo Agualusa, covering the Goan space and the linguistic tension staged in the plot. We also collated some intellectual concerns, based on the position of Michel Chaen, Lourenco do Rosario and Fernando Cristévao. Finally, we dedicate the last section to reflect on the challenges of building the Lusophone space as a place of plurality and inclusion, bringing to the scene the essay “Luso-Afonias”, by Mia Couto. In the meantime, we also take the opportunity to expose the example of UNILAB in the cooperative building of Portuguese speaking countries, Key words: Lusophony. Agualusa, Mia Couto A lusofonia e a lingua portuguesa © UNILAB — Universidade da Imtegragio Internacional da Lusofonia A fro-Brasiltra E-mail: josyanemalta@yahoo.com.br Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 Peat bees E comum haver entre a critica académica a confusio entre lingua portuguesa € lusofonia. Aquela quase sempre justificando a existéncia dessa. Entretanto, essa relagio torna-se precéria, sobretudo quando analisada a partir do didlogo sul-sul sob a perspectiva das relagdes pos- coloniais. Critico dessa relaclo identitiria superficial (quando a filiagdo se da, por exemplo, por critérios puramente linguisticos), Cahen (2009) nega a existéncia de uma “cultura luséfona”, entendendo-a como homogénea e de textura pareamente coesa. Para comegar o debate, ele menciona a oficializagio da Comunidade dos Paises de Lingua Portuguesa. A CPLP surge em 1996 anunciando nao a sua criagio, mas a sua institucionalizagao. Isso deixava subentendido que essa comunidade ja existia e que, naquele ano, tornava-se apenas oficial. Esse pretenso gesto ajudava a intensificar a confusio entre partilha linguistica e partilha de identidade; doravante, a ideia de lusofonia cada vez mais se prendia 4 rede da lingua portuguesa, entendendo o idioma como vetor responsivel pela conglomeragao de culturas. Nesse sentido, Cahen credita a esse entendimento de lusofonia uma nova interpretago do lusotropicalismo de Freyre, espécie de neolusotropicalismo. Nao. é possivel neste artigo descrever a constelagao lusotropicalista. O que se nomeia “lusotropicalismo” & principalmente o neolusotropicalismo tal como aparece nos anos 1950, quando Salazar recupera as teorizagdes de Gilberto Freyre. com seu pleno acordo. Assim, quando, por mais criticado que seja o lusotropicalismo original de Gilberto Freyre dos anos 1930, fazia da mesticagem & da “integragio dos Tropicos” o fundamento de uma nova civilizacao: o lusotropicalismo tardio fez da ‘mestigagem uma etapa em diregio ao “branqueamento” ¢ a ocidentalizagao. A Insofonia entendida como dilatagao da lusitanidade se liga claramente a este Insotropicalismo tardio. (CHAEN, 2007, pl) A ideia de lusofonia ter-se-ia agregado a perspectivas homogeneizantes e equivocadas, seja por celebrar a lingua portuguesa, seja por celebrar a mestigagem, num pretenso movimento de expressar uma falsa igualdade e coesio entre a comunidade Ins6fona. Essa presungio da harmonia, nas formulagdes de Gilberto Freyre, se da pela empatia nata dos portugueses com os paises tropicais, ressaltando os valores positivos da mestigagem, comum a Portugal, de formagio identitaria hibrida; mais tarde Salazar ter-se-ia aproveitado do pensamento freyreano para dar uma pretensa e maldosa familiaridade as suas colénias, de forma a amenizar a violéneia colonial. Embora nao seja exatamente 0 foco do artigo realizar uma revisio do conceito de usotropicalismo, citemos, a titulo de maior informagao, algumas das justificativas utilizadas por Freyre sobre a natureza mestiga do povo portugués. Apesar de Jnterpreracdo do Brasil nao ser uma obra que explicite didaticamente o conceito de lusotropicalismo — como ocore em O iuso e 0 trdpico, por exemplo -, a citaglo a seguir mostra como as nuances que justificam aquele conceito fomentam uma espécie de lusolinguismo para explicar uma coesio falha ou iluséria entre Portugal e 0s paises que foram suas col6nias, a partir da mestigagem: © resultado geral do longo contato dos espanhéis e dos portugueses com os drabes, ou mouros @ os judeus foi antes uma integracio ou difereaciagio ostensiva de qualquer deles ou mesmo choques vviolentos. Os érabes juntaram lingua portuguesa e espanhola um rico vocabulirio de arabismos, fato este que leva a algumas conclusées sociolégicas nada despreziveis. Uma delas é que, em ambos 0s idiomas, 0s arabismos parecem dominar o vocabuldrio latino quando se trata de antiges termos cientificos ¢ téenicos de importéncia, relacionados com a agricultura ou com a indiistria extrativa, E certas expressdes populares, como “trabalhar como um mouro”, parecem explicar por que esta ou aquela parte da peninsula considerada de “solo fértil” pelos sutores arabes é considerada Arida pelos Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 116 Peat bees cristios. Um detalhe significative é que na lingua portuguesa a palavra para drvore que da azeitona, oliveira, € de origem latina, enquanto a palavra azeife, dleo, de uso comiqueito, ¢ que serve para designar um produto comercial extraido daquela planta, é de origem arabe. (FREYRE, 2016, s. p.) 0 lusotropicalismo é visto hoje por grande parte da critica académiea como discurso que fomenta o mito da mesticagem fratea, mascarando o racismo estrutural e as designaldades sociorraciais, Cahen est na esteira da critica intelectual que vé com desconfianga a ideia de uma cultura lus6fona: “O conceito de ‘lusofonia’ (como o de ‘francofonia’) apaga em uma tinica palavra realidades sociais extremamente diferentes e status sociais incompariveis.” (CHAEN, 2007, p.6) A ideologia lusolinguistica, assim como © lusotropicalismo, ou o que Cahen chama neolusotropicalismo, tende a homogeneizar o conceito de lusofonia e, consequentemente, também as questées identitirias dos paises em condicdo de plurilinguismo. Fatalmente, as linguas dos negocios, ou como prefere Cahen, as “de utilidade social”, tendem a massifiear aquelas que sio faladas apenas em comunidades periféricas, Vale a pena ressaltar um dos exemplos utilizados por Cahen acerca da questao Linguistica em Goa que, sendo hoje um estado indiano, tem o portugués falado por pouguissimos habitantes. Isso ja ocorreria, alids, muito antes da tomada territorial indiana nos anos sessenta do século XX: Por que ninguém fala portugués em Goa, por que a utilizacao da lingua portuguesa era ai tao fraca, até no tempo dos portigueses? Goa tem sido possivelmente mais lisdfona nos séculos XVIII e XIX do que no século XX. O lento declinio do Estado da India forcou grande parte da elite a migrar para Bombaim ou para algumas areas da India britanica, tanto mais que a coroa britanica procurava reenitar indiaaos que conhecessem 9 alfabeto latino. Isto explica por que goeses (gersimente 20 Jus6fonos) se encontravam em toda a administragao colonial britnics na Africa Oriental, © que, de emigragio em migracio, existiam comnidades zoesas. numerosas e persitentes em Londres, no ‘Canada, enquanto elas desaparecessem por integra¢ao em Portugal. Nao se pode sen&o constatar que a lingua portuguesa nao foi socialmente iil a esses goeses para sua atividade profssional e para sun cocsio identitria.(CAHEN. 2007. p.9) Ao pensarmos sobre 0 caso goés — on mesmo de Mogambique (cuja minoria tem a lingua portuguesa como matea), ou Cabo Verde e Guiné Bissau, em que o crioulo ¢ majoritariamente falado e assumido como lingua nacional -, pereebe-se que o ctitério puramente linguistico torna-se ineficaz para justificar uma comunidade luséfona, seja em ambito conceitual e/ou institucional; sobretudo quando buscamos as estatisticas e verificamos o baixo mimero de falantes do portugués em comunidades reconhecidas como “lusofonas”. Alids, para cada 10 falantes da lingua portuguesa no mundo, 8 sio brasileiros’, 0 que enfraquece ainda mais o lusolinguismo como arauto da lusofonia. Dentre as muitas inquietagdes que cercam 0 conceito de lusofonia, a problematizacio da lingua como lugar centralizador ¢ homogeneizante leva-nos aos desafios de descolonizar 0 outro que nos habita Inquietagdes ‘Conforme noticiou a Agéncia Brasil em outubro de 2019, a partir de dados da ONU. Disponivel em hitps://agenciabrasilebc.com-br’internacional/noticia/2019-1/africa-tera-maioria-dos-falantes-do-portugues-ate-o- fim-do-seculo#~:text=Com%20cerca%20de%20210%20milh%C3%BSes,no%20mundo%20atualmente%620s, 96C326A30%20brasileiros, Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 7 Peat bees E um angolano pelas ruas de Pangim, capital do estado de Goa, hoje parte da nagio indiana. Antigo territério portugués no oriente, retomado em 1961 e apenas reconhecido como independente de Portugal, pelos portugueses, em 1975, O narrador procura na paisagem qualquer coisa perdida da antiga metrépole. Casa seu olhar com igrejas catdlicas, construgdes barrocas, elementos ibéricos. Mas é a semelhanga com Angola que o impressiona, no pelo que fora erguido, mas pelo que fora destruid Ao chegar impressionou-me a amargura das velhas casas, os passeios em ruinas, os muros derrubados. “Estamos em Luanda, disse a Lili enquanto caminhivamos pelas ruas do centro de Pangim. (AGUALUSA, 2010, s. p.) Luanda assim evocada por esse narrador, que descobre um pouco de si em meio aos destrogos goeses. A identificagto passa pelas ruinas, nfo pela lingua, alias, pouco falada na capital goesa. Xés fomos integrados a forga nesta grande desordem — diz, revelando uma surpreendente energia. ~ Em apenas vinte e quatro horas mudow-se a lingua. A lingua era de uma poténcia colonial e passou-se para a lingua de outra poténcia, a lingua ingless. (..). Cada dia nos sentimos mais estrangeiros dentro dda nossa propria tetra. (AGUALUSA. 2010. s. p.) O século XX é marcado pela independéncia colonial de muitos paises, sobretudo na Africa. Entretanto, de acordo com Lourengo do Rosario (2009), as ex-poténcias coloniais teriam dado sequéncia a uma nova forma de dominio dos antigos temrtérios, a partir de interesses econdmicos e comerciais. Ao colonialismo, sucede uma espécie de neocolonialismo, tendo a lingua como pretexto de coesio ¢ familiaridade entre as nagdes, sob a roupagem de comunidades linguisticas. Assim teriam nascido a francofonia e a anglofonia: A década de 1960 do século pasado & conhecida por década de Attica. A maior parte das colénias afticanas da Gra-Bretanha e Franga tomaram-se estados independentes da primeira metade dessa década. Os interesses politicos e sobretudo econdmicos fizeram com que as ex-poténcias coloniais, desenhassem uma estratégia de continuidade com outra roupagem. Quer isto dizer que 20 colonialismo clissico se seguia © panorama neocolonial. E uma das configuragdes que esse novo modelo tomou foi o de comunidade linguistica. Assim nasceram as comunidades francéfona ¢ angl6fona. Contndo, um olhar mais atento hi-de-nos provar que a lingua como fator de formagio das ‘comunidades em apreco no passava de um pretexto. (ROSARIO, 2009, p.176) No caso da lusofonia, o argumento da lingua portuguesa toma o coneeito vazio, sendo ineficaz para justificar uma communidade linguisticamente coesa, seja devido a phuralidade linguistica, seja devido as poucas comunidades que tém o portugués como lingua materna. Essa tensio é encenada em Un estranho em Goa. Recuperando o tiltimo fragmento citado, no caso especifico desse antigo territ6rio portugues, a lingua inglesa toma para si o lugar colonial que outrora coube aos portugueses em Goa: “de uma poténcia colonial a outra”, conforme fala 0 goss a0 narrador. Nos paises africanos de lingua portuguesa, diferentemente de Goa, portugués é a lingua das instituicdes, figurando também como lingua de exclusio daqueles que nio a dominam. 14 naquele estado indiano, isso ocorre com a lingua inglesa, como idioma de utilidade social. Goa dificilmente seria um pais lus6fono, sob a perspectiva meramente linguistica. Dentre os intelectuais que defendem o status da lusofonia, podemos encontrar Fernando Cristovie, acreditando que “essa repiiblica da lingua nfo deve ignorar aquela realidade de Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 18 Peat bees diversidade étnica e linguistica” (ROSARIO, 2009, p.178), nas palavras de Rosério. Cristovao acredita num patriménio comum da lusofonia, partilhado pelo imaginério, pela arquitetura, pela historia, pela documentagio etc. “Porque a Lusofonia nao € s6 a soma de territérios e populagdes ligados pela lingua, E também um certo patriménio de ideias, sentimentos, monumentos documentag’io” (CRISTOVAO, 2003, s. p). Acreditando que a lusofonia esta em processo constante de construc, Cristévio entende 0 coneeito a partir de trés perspectivas — trés circulos: 1. 0 primeiro se refere aos oito paises’ e as regides que compartilham em algum grau a lingua portuguesa, como Goa, Macau e a Galiza: “E neste grande cireulo que se joga o futuro da Iusofonia. E nele que se situa a ‘Comunidade dos Povos' de Lingua Portuguesa’, criada em 1996, que tarda em impor-se na cena internacional.” (CRISTOVAO, 2007, s. p.) 2. O segundo cireulo abrangeria as diversas linguas que convivem com © portugués, como as amerindias no Brasil, as de matrizes afficanas, os crioulos de Guiné Bissau, Sao Tomé e Principe e Cabo Verde, ou o concanim em Goa, entre outras. 3. Finalmente, o terceiro circulo seria o das instituigdes, formado sobretudo por estrangeiros com afinidade intelectual a todos esses paises e regides ligados a lusofonia. Embora Cristovio de fato dimensione sua defesa na relagdo cultural entre os povos que compartilham em algum grau um espirito lusofono, ele concentra seus argumentos demasiadamente ‘no mbito linguistico, caindo naquela armaditha lusolinguistica exposta anteriormente. Entretanto, vale aproveitar de sua tese a compreensdo de um patrimdnio comum. Resta entender, porém, os niveis envolvidos ou excluidos dessa comunidade, o que toma a discuss4o complexa e deixa-nos no impasse conceitual do termo lusofonia, A pretensa comunidade Iuséfona constréi-se entre tensdes identitérias, herdando, ainda, questdes que subsistem ao tempo: + Hoje sente-se indiano? = Nio, indiano nao, mas as vezes Goés. = E portugues? + Isso jd nao sei, O que é um portugues? A pergunta apanhou-me desprevenido. Hesitei, - Bem, antes de mais, suponho, um europeu.. = Os portugueses, europeus? — Riu-se com muansidao. ~ Nunca foram, Nao eram € no 0 slo hoje. Quando conseguirem que Portugal se transforme sinceramente numa nago europeia, o pais deixara de existir. Repare: os portugueses construiram a sua identidade por oposigo a Europa, ao Reino de Castela, e como estavam encurralados langaram-se ao mar ¢ Vieram até aqui, fundaram © Brasil e colonizaram a Africa. Ou seja, escolheram nao ser europeus. (AGUALUSA, 2010, s. p.) O fragmento de Uin estranho em Goa nos remete a questio identitiria portuguesa desde a fundagao nacional, pasando pela expansio maritima e colonizagao. Uma identidade formada em oposigao a Europa e projetada em suas colénias ao sul e ao oriente. Chaen nos alerta para o risco de a lusofonia tornar-se sobretudo uma projecdo da portugalidade, principalmente quando inserida na hegemonia linguistica do idioma portugues. Lembremos que a ideia de portugalidade se intensificou com o Estado Novo, no decurso dos anos cinquenta e sessenta, com o emblema “Portugal do Minho ao Timor”, presumindo-se uma coesto nacional entre Portugal e as ento colénias, na altura em que se intensificavam os movimentos anticolonialistas na Africa. Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Mogambique, Portugal, Sao Tomé e Principe e Timor Leste. +0 projetoinicial da CPLP previa o nome Comunidade dos Povos de Lingua Portuguesa Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 119 Peat bees ‘A expansio no é mais militar, mas a portugalidade sempre tem a necessidade de um espago de projecdo, predefinido e tranquilizador: a “lusofonia”. E um avatar da velba tendéncia lusotropialista segundo a qual 0 povo portugues tem a facilidade insta e hereditiria para se aclimatar harmoniosamente entre outros poves, mais frequentemente sob 0s trOpicos. A questo que este Jimaginario munca se coloca ~ os imaginarios raramente se colocam questies, € verdade ~ ¢ a de saber como os “outros luséfonos” sentem a maneira portuguesa. (CHAEN, 2007, p.11) Diferente de Cristévao, assumidamente um luséfilo, Chaen traga duras critieas 4 Iusofonia. ‘Ti em Lourengo do Rosario, podemos encontrar alguma centelha de énimo nele que, inclusive, fora discipulo de Cristavao. Rosario, entretanto, assim como Chaen, expde seu permanente desconforto em relacio comunidade lusGfona, atestando os riseos de se filiar 4 portugalidade e consequente ideologias da lingua. Como exemplo, remonta aos anos sessenta do século XX, quando Portugal reforgava a ideia de unidade nacional entre as colénias e, no caso de Mogambique, com 0 slogan “Mogambique s6 & Mogambique porque é Portugal”: ‘Sendo Mocambique um pais de origem colonial, nas circunstancias ¢ no contexto em que o slogan foi produzido, era verdadeira a acepgtio de gue Mogambique devia sua origem a Portugal ¢ naquele ‘momento estava sob administragao portuguesa, isto & era um territério portugues. Mas o slogan contém uma dimensfo seméntica e ideolégica que neutraliza outras dimensdes que pudessem sugerir varidveis da tealidade anunciada. (..) Ora, esta visio de tudo ou nada cra acompauhada de um olbar que, em tiltima anilise, entronca no grande designio de Nagio Uma e Indivisivel, do Minho ao Timor. (.) 0 Prof. Fernando Cristévao que prefere prudentemente defender uma repiiblica baseada na lingua, insiste numa ideia, a qual também partlho, que essa reptiblica da lingua no deve ignorar aquela sealidade de diversidade étnica e linguistica. (ROSARIO, 2009, p.178) Aquela centelha de esperanga em relagdo & lusofonia que creditamos, antes, a Lourengo do Rosiirio, estaria nesta expectativa de inclusto da diversidade étnica e linguistica. José Eduardo Agualusa falou-nos, certa vez, en “lusofonia horizontal”. Estava ele participando em Sao Paulo de uma mesa de debate juntamente com Mia Couto. O tema escolhido para discussio fora o lusotropicalismo. Agualusa acredita que a lusofonia ansiada pelos africanos — ele, em especial, fala pelos angolanos - estaria ligada a ideia de interculturalismo, de modo que as relagdes de identidade comunitdria fossem construidas a partir da auséncia de um centro de poder. A transerigao é nossa: (..) Essa troca de informagao entre todos esses paises nunca foi tio inteusa. Evidentemente isso esta a contribuir para a construcio de uma identidade cultural mais partcipativa (..) Inclusive, por exemplo, no dominio da musica (..), nds vemos cada vez mais misicos brasileiros colaborando com miisicos angolanos, com miisicos mogambicanos. com miisicos portugueses. E isso existe na pritica. E uma lusofonia que ndo tem a ver com governs, que ultrapassa largamente a vontade dos governos © que est a ser construida pelas sociedades civis de cada um de nossos paises, pelas pessoas. (..) © que eu acho € que existe hoje uma lusofonia que € uma lusofonia mais democratica, mais horizontal, em que todos 05 paises influenciam uns aos outros. Nao ha um centro de poder. Nao hi um centro que ‘imponlna para 0 restante a sua cultura.* Com um otimismo particular, Agualusa acredita que esteja ocorrendo uma nova forma de lusofonia, descarnada da imagem de Portugal como centro de dominio cultural, ¢ vinda das aces populares. Entretanto, embora falte a essa perspectiva do escritor uma discussio mais elaborada e complexa ~ ligada, por exemplo, 4 problematizacao da cultura de massa que, alias, nao passa pela Fala proferida por AGUALUSA, José Eduardo, convidado da mesa de debate nimero 7, 2015, evento Pauliceia Literdria, Participagao também de Mia Couto e mediagao de Manuel da Costa Pinto. © video esté disponivel emt |psy/wvww.youtube.com*watchev=TUZyDO9BEFk Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 Peat bees imagem portuguesa no ambito pés-colonial afticano (¢ que nao seré objeto de discusséo nese espago) -, é interessante pensar essa imagem vinculada as relagdes institucionais e, aqui, entendendo a lingua, a literatura ¢ todo plexo cultural dindmico dos paises que de algum modo se inserem na imagem de uma comunidade luséfona como Ingares institucionais. Esses espagos descolonizam-se a0 se orientarem ao sul, reforgando o didlogo e a cooperacio intercultural democraticamente. Desafios Em entrevista ao jomal Camdes, em 2018, Mia Couto corrobora a ideia de que a lusofonia deveria encontrar outros meios de partilha identitéria que nfo seja apenas a partir da lingua portuguesa. O titulo dado a entrevista fora justamente “Uma lusofonia para além da lingua”. Couto acredita que devemos procurar outras maneiras de construir um projeto de lusofonia, principalmente porque entende a realidade, por exemplo de Mocambique, como territério nacional onde milhdes de pessoas nao falam portugués, outros milhdes, conta-nos o escritor, falam-no como segunda lingua. Ou, acrescentamos, falam pela necessidade de atender as exigéncias do mercado. Falar de um povo, ou um pais luséfono, a partir do viés puramente linguistico, seria o mesmo que marginalizar toda a populagao que nao se enquadra nesse projeto — ainda que conceitualmente, afinal, a execugio de projetos passam, antes, pelo plano das ideias, para depois tomar corpo: “Encontrar outras maneiras de termos uma entidade partilliada que nao passe exclusivamente pela lingua, Porque se assim for, esta gente sente-se marginalizada, E nao pode aderir a um projeto que as coloca numa situagao marginal.” (COUTO, 2018, p.3) ‘No caso de Mogambique, conta-nos Mia Couto, no ensaio “Luso-A fonias ~ a lusofonia entre viagens e crimes”, que o pais construiu a imagem luséfona sob tensdes ainda reverberantes & relembra o caso de 1995, quando a nagio aderiu a Commonwealth, uma comunidade transnacional formada pelo Reino Unido e composta quase exclusivamente pelo antigo Império Britanico. A condigio desta nossa familia linguistica parece ser esta: todos aceitaram vir ao baile, mas a misica é emprestada de uma outra festa, Desde sempre, estivemos perante um processo de dtividas & desconfiangas, avangos ¢ rectos nesta invengao de uma familia Linguistica. Ha uns dez anos, Mocambique levantou abjecedes sabre o modo como se olhava o idioma como elo de ligacko. A designagio de “paises de lingua oficial” nasce dessa controvérsia. Dai aquele desgracado nome de PALOPS, A nto menos infeliz sigla de CPLP ¢ também resultado dessa briga familiar (CPLP: falta. ‘vogais nesta sigla € as vogais, sabemos, s40 0 agticar da fala) (...). Certos sectores da politica portuguesa entraram em panico com a adesio de Mocambique & Commonweath. O que se passava? (Os mogambicanos haviam traido a sua fidelidade ao idioma luso? (COUTO, 2009, p.191-192) Nao se sentir dito pelo outro, ou dizer o outro de modo a nio se ver nessa fala: “A descolonizagao sé pode ser feita pelos proprios colonizados. E nés todos éramos colonizados. Descolonizimo-nos uns aos outros, uns e outros.” (COUTO, 2009, p,192). Entre tensdes que ladeiam a identidade, a politica, a educacao ¢ todo estrato social, a lusofonia dever ser um projeto sobretudo de incluso, ou cairemos na velha tendéneia a verticalizagio e a formagao de periferias culturais Como bem lembrou Cahen, Eduardo Lourengo fora dos primeiros a expor, ainda que em outros termos, os equivocos da associagao entre lingua (enquanto idioma, pois bem sabemos que lingua tem conceito mais amplo) e lusofonia: Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 Peat bees 'S6 para nés, portugueses, a lusofonia e a mitologia da Comunidade dos Povos de Lingua Portuguesa é imaginada como uma totalidade ideal compativel com as diferengas culturais que caracterizaram cada uma das suas componentes. Como portugueses, seria impossivel e sem sentido nao a imaginar assim, pois somos o espaco matricial da lingua portuguesa, levando-a conosco para as paragens que tocamos ‘ou colonizamos, ¢ onde estamos enquanto ela estiver © continuar 4 nos definir, aos nossos olhos e 40s de outros, como interessados espiritual e vitalmente na sua irradiacao. presenca e metamorfose. O que no podemos é atribuir a essa centralidade nossa esfera luséfona eutra dimensio que nio seja essa de esséncia genealogica, de cariter estritamente comuicacional, embora saibamos que uma lingua partilhada é bem outra coisa do que intercomunicagio. (LOURENCO, 2001, p.181,-182) ‘Na esfera da lusofonia, a lingua sendo um eédigo, tomna-se também um canal: nem s6 da lingua, enquanto idioma, fazem-se as relagdes lus6fonas e husofnieas*. A lingua é um cédigo e, 20 ‘mesmo tempo, um canal pelo qual se constroem as relagdes e identificagdes, conforme detendemos em outro espaco’. A lingua, sem davida, é um importante elo comunicante entre as antigas coldnias e Portugal. Entretanto, existem pontos arteriais que flnem perifericamente, fora de um (dis)eurso propriamente portugués ou daquela miragem da lusofonia portuguesa de que Lourenco nos alertou. Existiria, afinal, algo a mais que a lingua que nos faz identificarmo-nos como lusofonos? Algo a ver com sermos periféricos ou partilharmos angustias e traumas semelhantes? Retomemos a epigrafe deste artigo: “Nao era so a divida por conta do trabalho, era por conta do aprendizado da nossa cultura, da nossa cor, do nosso jeito de ser, que tem muito a ver com 0 povo africano.”* Era 0 ano de 2017. A Universidade da Integragio Internacional da Lusofonia Atro- Brasileira formava sua segunda turma do curso de Bacharelado em Humanidades, no campus dos Malés, na Babia. O presidente Luiz Inacio Lula da Silva fora convidado para ser patrono da formatura. Ele iniciara sua caravana pelo nordeste e passaria pela cidade de So Francisco do Conde, situada entre 0 Recéneavo Baiano e a regio metropolitana de Salvador, para cumprir seu mister de simbolo méximo de um grupo de formandos. Mas nao era patrono apenas daqueles formandos. Fora um dos idealizadores daquele projeto tinico de universidade, que propunha a integragiio da lusofonia entre o Brasil, os PALOP e o Timor-Leste. Uma porgio significativa dos formandos era de estudantes africanos. Quase a totalidade composta por negros. A lei de criagio da UNILAB prevé, desde a sua consolidagao, a integragao com os paises membros da CPLP. A ideia de “nagdes irmanadas” pela partilha da lingua portuguesa, que esta contida no proceso de criagio da CPLP, acrescenta-se naquela universidade 0 “intereambio cultural” solidario, valorizando especialmente © didlogo entre o Brasil e os paises afticanos ‘Vejamos o trecho da lei de eriagdo: Art. 2 A Unilab teré como objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisas nas diversas reas de conhecimento © promover a extensio universitiria, tendo como missto institucional especifica formar recursos humanos para contribuir com 2 integracdo entre © Brasil e 0s demais paises ‘membros da Conuunidade dos Paises de Lingua Portuguesa - CPLP, especialmente os paises africanos, bem como promover o deseavolvimento regional e o intereémbio cultural, cientifico ¢ educacional, ® O conceito de lusofbnico remete- portuguesa, ‘Trata-se do artigo “Lusofonia em perspectiva: revisitando Gramiro de Matos”, ainda no prelo dos anais do IIL Congresso da AFROLIC ® Trechos da fala esto transcritos e disponiveis em huips//institutolula.org/unilab-faz-8-anos-trabalhando-pela- integracao-brasil-africa 4 performance dialégica das relagdes sul-sul entre 03 paises de lingua oficial Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 Peat bees § 12. A Unilab caracterizaré sua atuagio pela cooperagio internacional, pelo intercémbio académico © solidrio com paises membros da CPLP, especialmente os paises africanos, pela composigdo de compo docente e discente proveniente do Brasil e de outros paises, bem como pelo estabelecimento e execusao de convénios temporérios ou permanentes com outras instnigdes da CPLP, (0s cursos da Unilab serdo ministrados preferencialmente em éreas de interesse nmituo do Brasil e dos demais paises membros da CPLP, especialmente dos paises afticanes (..).? Dentre os muitos desafios que acompanham a construcdo da lusofonia, certamente tirar a lingua portuguesa de um starus de poder faz-se urgente se quisermos construir um projeto lus6fono democritico ¢ realmente plural, No exemplo que trouxemos acima, da UNILAB, @ partir do meu trabalho como docente de literatura, pude verificar essa construc3o horizontal da lusofonia em diversos projetos do tripé universitério, mas que aqui nao caberia elencé-los, com 0 risco de deixar algum de fora. Manter o projeto, entretanto, & uma marcha de resisténeia coletiva. Nao é raro encontrar criticas destrutivas e mal informadas, sobretudo na grande midia, relacionadas aos componentes curiculares ou a projetos de inclusio (e que aqui no vale a pena nem referenciar a alustio). Mesmo sendo fruto de sensacionalismo e ignorincia alheia, a mobilizacio irresponsivel de (des)informagdes acaba por fomentar o senso comum num sentido vazio do debate, em prejuizo a construgio de uma sociedade plural e inclusiva Para fins de reflexdo, retomemos uma passagem da intervengdo “Luso-A fonias ~ a lusofonia entre viagens e crimes”, de Mia Couto. Ele lembra um episédio protagonizado por Eduardo Mondlane, em 1961, quando do regresso a Maputo (entio Lourengo Marques) a servigo da ONU. Mondlane faria um discurso na Associagao dos Negros de Mogambique. Sabendo de sua influéneia 1na populagio, a PIDE o impedira de falar sobre uma lista imumeravel de assuntos, deixando-o com um parco repertério temitico. Mondlane escolhera, entao, contar uma histéria do arquivo oral mogambicano. Tratava-se do conto da aguia que achava ser uma galinha, Um dia, um homem incomodado, resolveu fazer aquela aguia voar, langando-a de um imenso precipicio. “a aguia iniciou um esplendoroso voo ¢ venceu as alturas, cruzando o horizonte para além de si mesma.” (COUTO, 2009, p.190). Conta-nos Mia Couto que Mondlane nfo poderia mobilizar a populacao, nem falar de politica, tampouco tocar em assuntos que ameacassem a ordem colonial. Entretanto, Mondlane nfo estava proibido de falar em sua lingua materna, compartiluada pela maioria na capital. A escolha pela lingua portuguesa fez-se subversivamente: usé-la para expressar uma fabula do repertorio oral mogambicano, cujo teor era altamente alegorico para aquele momento, quer seja, para a liberdade, Todos os mogambicanos ali reunidos eram a 4guia em seu potencial voo. A lingua portuguesa fora, sobretudo, um artificio para expresso de uma forma particular de pensar que & comum no universo afficano: a recorréncia A fibula e as histérias. Mais importante que falar a lingua portuguesa, para lusofonia, & deixar que a lingua portuguesa nos fale, Esse é um desafio e uma esperanca. E talvez o mais importante pilar de uma lusofonia solidaria. © Disponivel em: hntp:/www.planalto.gov.br/ceivil_03/_ato2007-2010/2010/leiL.12289.h1m Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115 Peat bees REFERENCIAS AGUALUSA, José Eduardo. Um estranho em Goa. 2.ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2010 (e-book) CAHEN, Michel. “Lusitanidade e lusofonia: consideragdes conceituais sobre realidades sociais e politicas”. Trad. Maringela Peccioli e André Luiz Joanilho, Plural Pluriel — revue des culture de langue portugaise, n. 7, automne/hiver, 2010. Disponivel em: Acesso em 5 de junho de 2020 COUTO, Mia. E se Obama fosse afticano e outras interinvengdes. Lisboa: Caminho, 2009. - “Uma lusofonia para além da lingua”. Jornal das Letras. Numero 1237. Lisboa: 28 de Fevereiro a 13 de marco de 2018 CRISTOVAO, Fernando. “Os trés circulos da lusofonia”. Revista Humanidades. Lisboa: 2000. FREYRE, Gilberto. Interpretagao do Brasil - aspectos da formagao social brasileira como processo de amalgamento de ragas e culturas. Sao Paulo: Global, 2016 (e-book) LOURENGO, Eduardo. A Nau de fearo ¢ Imagem ¢ miragem da lusofonia. S20 Paulo: Companhia das Letras, 2001. QUEIROZ, Brito, “Africa teré maioria dos falantes de portugués até o fim do século.” Agéneia Brasil, out., 2019. Disponivel em: . Acesso em 10 jul. 2020, ROSARIO, Lourengo. Singularidades 11. Maputo: Texto editores, 2009. Entheoria: Cademos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol.10, n. 1: Descolonizacion del linguaje, practicas culturales, 114-123, Jul/Dez. 2023 ISSN: 2446-6115

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