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DA SILVA, T. T. (org.) Identidade e diferenca: a perspectiva dos estudos culturais. Petrépolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000, 133 pags. Resenliado po. Solange de Carvalho Lustosa Identidade e diterenca: a perspectiva dos estudos culturais constitui-se um importante trabalho reflexivo sobre conceitos atualmente bastante em voga que permeiam todo e qualquer trabalho sobre a sociedade denominada pds-moderna ou moderna tardia. O livro é composto por trés artigos: 0 ptimeiro, Identidade e diferenca: uma introducao teérica e conceitual, de Kathryn Woodward; o segundo, A producao social da identidade e da diterenca, de Tomaz Taden da Silva; ¢ 0 ultimo, Quem precisa da identidade?, de Stuart Hall. Todos os artigos, embora versem sobre o mesmo tema, tragam perspectivas ¢ abordagens diferentes, fornecendo uma explanagao satisfatéria sobre 0 assunto que é bastante complexo Woodward, utilizando um texto de Michael Ignatieff sobre a guerra entre sérvios e bdsnios, ilustra magistralmente questdes pertinentes a iden- tidade, a qual é marcada pela diferenca, pela simbologia e, principalmente, pelo social. Além disso, ha, também, o cariter histérico que faz com que a identidade adquira o aspecto de processo, sendo influenciado, atualmente, pelas miltiplas praticas discursivas ou representagées existentes em um mesmo individue , fato que traz 0 germe da mudanca social. Tal processo sé pode ser vislumbrado, considerando-se 0 individuo como fragmentado, pertencendo a identidades diferentes, que “no sfo unificadas”, criando, com isso, “contradicoes no seu interior que tém que ser negociadas” (p. 14). A chamada ‘crise de identidade’ pode ter origem nessas identidades globalizadas, as quais massificam as culturas entrando em choque com as identidades locais, como, também, pelo conflito, questionamento ou nao adequacio as posigées de sujeito estabelecidas ou sugeridas na quase- interacio.' Esse termo foi proposto por Thompson, para descrever, entre outras coisas, a influéncia midiatica na vida das pessoas. A televisio, a internet € os outros meios de comunicacado de massa atuais ‘invadem’ as casas, tra- 156 Solange de Carvalho Lustosa zendo uma quantidade incalculivel de informacdes e, com elas, as represen- tacdes sociais. Além disso, nao sio sé as identidades ‘prontas’ e retratadas? que sio levadas 20 grande ptiblico pela midia; ha, também, os debates pro- movidos por ela, criando uma espécie de esfera publica’ na qual varias minotias ¢ culturas adquirem voz para serem representadas.* Dessa forma, © pitblico é levado a 1efletir sobre os seus intimezos papéis na sociedade em que vive. Uma coisa que pode ser tida como falha no livro é a falta de abordagem sobre a influéncia midistica na constituicio dos papéis sociais Uma citacao bastante importante para compreender a identidade na pés-modernidade é a que trata de identidades didsporas. Assim como o termo ja define, so aquelas sem patria, as quais nfo se pode atribuir uma Gnica fonte © cujos efeitos podem ser potencializados pelo éxodo de gran- des contingentes humanos de paises pobres para paises ricos Segundo Woodward, existem dois tipos de perspectivas utilizadas em questées de identidade: a essencialista a nao essencialista. A primei- ra concebe a identidade como algo homogéneo (geralmente ligado a etnia, as questdes biolégicas ¢ a nacionalidade), partilhado por todos do grupo, nio sofrendo nenhum tipo de alteracéo; a segunda concebe a identidade como processo ¢, por isso, sofre mutacdes, sendo marcada pela diferenca. Um aspecto que nao deve ser desvencilhado de questdes de representa- goes simbélicas é 0 que trata de ideologia. E possivel ver claramente nas duas perspectivas apresentadas por Woodward os modos de operacio da ideologia propostos por Thompson (1995), principalmente o da 1 Hesas identidades sugerem uma determinada maneica de vestir, comportar-se, pensar, baseada na sepresentacao de personagens de filmes e novelas, criando modismos, naturali- zando compostameatos. 7 A quase-interacio deve ser entendida como a interacio na qual as “relagBes sociais (s40) estabelecidas pelos meios de comunicagao de massa (livros, jorais, radio, televisio, etc)”. Thompson, 1998, p. 79 5 O conceito de esfera piblica, cunhado por Habermas, deve ser entendido como “a multicentzed space in which different interest groups deliberate together to reach consensus on political action” (Chouriaraki & Fairclough, 1999, p. 82). # Considete-se 0 espago na midia conquistado pelas identidades marcadas negativamente pelos representantes de identidades hegeménicas (revistas e programas televisivos para ho- mossexuais, mulheres e negros, entre outro: 157 ‘Cadomos do Linguagorn @ Sociedade, 5, 2001/2002 simbolizacio da unidade* (essencialista), da diferenciacdo® e do espurgo do outro” (nao essencialistas). Da Silva, em seu artigo, faz uma alusio mais detalhada da imbricacio de identidade com a diferenca, como produtos do uso da linguagem. Utili- za 0 conceito de signo saussureano, no qual para definir 0 signo ‘vaca’ é necessaria a sua repeticao por todos os falantes e a relacio com os outros signos. O fato de falar utilizando o signo ‘vaca’ nfo preenche completa- mente o lugar do simbolo que representa o animal vaca e depende da telacao com os outros signos, o que torna a lingua vacilante, indeterminada e instavel. Dessa forma, por serem atos de ctiacio lingitistica, a diferenca e a identidade também adquirem as caracteristicas de vacilante, indeterminada e instavel atribuidas a lingua. As identidades, as os signos lingiiisticos, sio impostas por terem sido eleitas como nor- sim como as variantes lingitisticas e até mesmo mais, contrapondo-se com o anormal que é marcado negativamente. Além disso, o autor chama a atencao para o fato de que nem questoes referen- tes a identidade, tampouco as relativas a diferenca sao trabalhadas em sala de aula, existindo uma pedagogia que sugere o respeito e a tolerin- cia nessas questées, nfo abrindo espaco para o questionamento sobre 0 assujeitamento das identidades A existéncia, segundo Da Silva, de elementos como o sincietismo, a miscigenacdo, o travestismo, fornecem o chamado terceiro espaco, no qual é possivel o questionamento das identidades hegeménicas, por introduzirem a diferenca. Novamente, a identidade didspora pode forcar a criacdo desse ter- cciro espaco. Como exemplo, tem-se 0 processo de escravidio que dissemi- nou a ctioulizacio de linguas, de miscigenacio entre os povos € suas cultucas. 5 Simbolizacio da unidade — estratégia que “envolve a construgio de simbolos de unidade, de identidade e de identificacao coletivas, que sio difundidas através de um grupo, ou de uma phusalidade de grupos” (Thompson, 1995, p. 86). $ Difecenciagio — estratégia que da énfase “as distingdes, diferencas e divisdes entre as pessoas grupos, apoiando as caracteristicas que os desunem c os impeciem de constituir um desafio efetivo as relacdes existentes, ou um pasticipante efetivo do exercicio do poder” (idem, p. 87). 7 Expurgo do outro—envolve a constmcio de um inimigo, seja ele interno ou externo, que éxetratado como mau, perigoso ¢ ameagador ¢ contza o qual os individuos so chamados a resistir coletivamente on a expurgé-lo (idem, p. 87) 158 Solange de Carvalho Lustosa Ja Stuart Hall aborda questées inerentes ao motivo pelo qual os seres humanos se submetem 4 identidade, mesmo com o prejuizo de suas vontades. Sao apresentadas abordagens de Freud ¢ Lacan para tentar ex- plicar a questio por meio da psicanilise. Nesse aspecto, a identidade ¢ concebida como um proceso, calcado na fantasia, no ilusorio, necessitan- do sempre “daquilo que Ihe falta — mesmo que esse outro que Ihe falta seja um outro silenciado inarticulado” (p. 110). Outro dado importante levantado por Hall é o processo articulado de sutura do individuo com suas posicoes de sujeito, as quais ele é obriga- do a assumir, mesmo inconscientemente, movido culturalmente ou por alguma instituicio e/ou ideologia. A identidade, para o autor, € um tema bastante recorrente € importante, principalmente, quanto ao seu carater politico, no entanto, para o avanco de sua discussio é necessitio que se- jam plenamente seconhecidas a suturacio do psiquico e do discurso em seu bojo, bem como a necessidade e impossibilidade da identidade. Hall também levanta questionamento sobre as colocacoes feitas por Foucault sobre a teoria dos corpos déceis®, os quais sofrem o controle social, com caréter disciplinar. Para Hall, Foucault peca por considerar 0 individuo sempre assujeitado, nao vislumbrando praticas libertadoras, além de nio haver teorizado sobre as razdes que levam os individuos a agicem de uma determinada maneira Algo que conclui-se facilmente pelos testos é a necessidade de sujei- 3 do individuo 4 identidade, 0 que nao explica o por qué de, muitas vezes, abster-se de suas vontades em prol da manutencio da identidade. E inega- vel, conforme apresentado anteriormente, a presenca da ideologia na ma- nutengdo das representacées sociais, as quais se valem, principalmente, do modo de operagao denominado expurgo do outro, o que implica, também, cluido. relacées de poder, que definem quem exclui e quem é ex Nesse aspecto, o outro é o que eu nfo sou, isto é, para eu existir é necess4rio, sempre, algo exterior a mim, ou seja, um outro, que coloca sempre em xeque as minhas identidades. A reflesio sobre as explicacées constantes em Identidade e diferenca: a perspectiva dos estudos culturais suscita alguns questionamentos importantes: o primeiro refere-se a0 processo dialético entre identidade e diferenca, no 159 ‘Cadomos do Linguagorn @ Sociedade, 5, 2001/2002 qual é necessArio definir se realmente uma é inseparavel da outra (p. 75), ou seja, se se tratam de coisas distintas. Os trés artigos sao undnimes em confirmar que diferenca ¢ identidade no podem ser separadas, quer seja a explicacio de Woodward pelo social, de Da Silva pela linguagem ou de Hall pela psicandlise. Aliada a essa questao, tem-se outra: é realmente “possivel sermos socialmente excluidos (...) € nfo sermos simbolicamente marcados como diferentes?” (p. 33). Como j4 foi dito anteriormente, a diferenca implica identidade e a identidade, diferenca, e o processo de diferenciacao é caracterizado pelo modo de operacao da ideologia deno- minado expurgo do outro (Thompson: 1995). Dessa forma, o excluido é mascado negativamente. Se Hall questiona Foucault sobre o assujeitamento dos individu- os ao discurso, qual outra forma explicaria a investida inconsciente (ou consciente, em alguns casos) desses em ceztas posicdes de sujeito que se confrontam com suas vontades, suas necessidades? Para res- ponder a essa pergunta, faz-se necessdrio busci-la em uma outra: a explicacio da sujeicio do individuo a determinados papéis sociais co- letivamente aceitos nao estaria na busca de um corpo social, no senti- mento de coletividade, de pertencimento a algum grupo, ao carater nato do social no individuo? E por tiltimo, Hall sugere que 0 conceito de identidade que temos — imprescindivel para analisar outras questées chave — por nfo servir para abarcar todos os fatores atuais que o envolvem, deve ser posto sob rasuza, por nao ser mais possivel pensa-lo da forma antiga (p. 104). E questionavel essa sugestdo, pois se o proprio Hall reconhece que 0 con- vel utiliza- lo na andlise dessas questdes, sem, no entanto, aborda-las de forma ob- ceito de identidade esta incompleto ¢/ou defasado, como € poss soleta ou inadequada? REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Chouliacali, L. & Fairclough, N. Discoussein late modecnuty: rethinking catical discourse analysis, Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999. 160 Solange de Carvalho Lustosa Fairclough, N. Discurso e mudanca social. Coord. trad., revisto € preficio 4 ed. bras. I. Magalhaes. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2001. Foucault, M. Vigiar ¢ punir— historia da violencia nas prisées, Trad, R. Ramallae- te. 23* ed. Petropolis: Vozes, 1987. Hall, S. A identidade cultural na pos-modernidade. Trad. 'T. T. da Silva, G. L. Louro. 4% ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000 Thompson, J.B. Ideologia e cultura moderna: teoria social critica na era dos meios de comunicacio de massa, Petropolis, RJ: Vozes, 1995 Thompson, J. B. A midia e a modeznidade: uma teoria social da micia. Trad. W. O. Brandio, Petedpolis, RJ: Vozes, 1998. 161

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