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Anotações sobre a crítica

Por razões nem sempre fáceis de se identificar, a palavra ‘critica’, no Brasil, parece ter
uma conotação fortemente negativa, e aplicar-se exclusivamente à crítica jornalística, que por
seu turno seria então exercida exclusivamente por indivíduos sem exceção desonestos e
incompetentes, tomados do mais absurdo ódio por toda e qualquer atividade artística. Estes,
parece, manteriam sempre, junto à maquina de escrever ou do computador, uma imensa lista
de desafetos, aos quais perseguem implacavelmente, com o único objetivo de tirar, do
fracasso deles, um demoníaco e indizível prazer. Por razões bem mais facilmente identificáveis,
o retrato do crítico passa a ser do mais brilhante e íntegro Príncipe Encantado, quando ele
elogia qualquer obra ou grupo ou indivíduo (muitas vezes, segundo os não aquinhoados no
momento, só porque foi bajulado ou comprado). É ingrata, portanto, a atividade do jornalismo
ligado a atividades culturais, pois todas essas atitudes passionais impedem a compreensão
fundamental do que a crítica é indissociavelmente ligada à apreciação e, portanto, à própria
criação, de todas as obras de todas as áreas de todas as artes.
No entanto, a crítica, no sentido correto da palavra, é exercida por todos, inclusive por
todo menininho ou menininha que, com profundo interesse, abre a barriga do ursinho ou
arranca os olhos da boneca para saber como eles funcionam. Ou o quê, senão a crítica,
exercem todos aqueles que, na saída de um espetáculo, vão para um bar e discutem o que
viram – e muitas vezes com preconceitos bem mais fortes do que os que são atribuídos a
qualquer crítico, quando acontece o espetáculo ter sido realizado por qualquer grupo que não
seja aquele ao qual pertencem os que estão conversando, e que ficam ainda muito mais
ferinos quando se trata de algum grupo rival, sendo que se o texto é bom, todos terão
absoluta certeza de que ‘aqueles malditos não entendem o que estão fazendo, não
perceberam seu significado ou suas maiores belezas, e só o montaram porque sabiam que nós
estávamos fazendo planos de montá-lo no ano que vem’.
A verdade é que uma certa postura crítica é parte da criação, até mesmo no caso dos
mais naïf dos artistas, já que este, mesmo que não o saiba expressar em termos de alguma
estética definida, olha o mundo à sua volta, seleciona o motivo para sua criação, concebe
como deverá apresentá-lo, e com cuidado trabalha todo e qualquer material que venha a usa
da execução de sua concepção, porque – mesmo que tenha sido por tentativa e erro – acaba
por descobrir que o barro que usa não pode conter mais do que determinado percentual de
água, ou que todas as vezes em que o azul e o amarelo se mistura, o que fazia ficou verde.
A não ser pelos comentários que observam, por exemplo, que o pôr-do-sol de hoje foi
mais bonito do que o de ontem, ou que o céu sombrio cria um clima mais triste do que o
ensolarado, só a natureza, de fato, fica isenta da crítica (mesmo que não das queixas), ou seja,
não fica em discussão o fato de o pôr-do-sol ser acadêmico em sua composição e uso de cores:
a natureza. É, ela afeta a nós, não nós a ela; e a primeira coisa que temos de lembrar ao falar
de crítica é a necessidade de se ter permanente consciência de que a arte é artificial, um
produto do esforço humano; e que a respeito de tudo o que é feito pelo homem existe sempre
a curiosidade sobre como foi possível fazê-lo e quais os métodos utilizados, bem como uma
infalível tendência para se avaliar se foi bem ou malfeito, como de refletir sobre se valeu a
pena fazê-lo. A crítica é, na verdade, uma atividade muito ampla, mesmo que seus aspectos de

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pesquisa a ensaística, que são da maior significação, sejam quase sempre esquecidos ou
conscientemente ignorados pelos que sentem uma vontade inelutável de criticar os críticos.
Muitas vezes esquecem-se todos de que a visão romântica do artista criador ingênuo e
puro ficou ultrapassada: os maiores gênios produziram obras em tudo e por tudo expressivas
de suas respectivas épocas, nas quais usaram todos os recursos técnicos conhecidos em seu
tempo e, se foram realmente bons, os ampliaram e abriram novos caminhos, sempre
exercendo judiciosa crítica a respeito dos meios à sua disposição. Por outro lado, o
crescimento de uma postura científica na pesquisa, que acarretou também o desenvolvimento
da consciência histórica em todos nós, tem de ser levado em conta. O crítico colabora com o
processo criativo nem sempre servindo diretamente o criador, porém não há dúvida que ele o
faz quando prepara um público potencial para apreciá-lo, como poderá ser compreendido pelo
seguinte exemplo: com a afirmação total das regras redescobertas e reenciadas pela
renascença, de seu subsequente domínio do aparecimento do neoclassicismo francês (bem
como do sucesso do mesmo) e com a igual afirmação de seu veículo cênico ideal, o palco
italiano, tento pelos teóricos quando pelos profissionais do teatro no sec. XVII, até mesmo na
Inglaterra foi perdida a memória da forma e da utilização do palco elisabetano (graças ao fato
de os teatros da época terem sido todos destruídos pelos puritanos, o hoje consagrado William
Shakespeare foi relegado ou ao esquecimento ou a objeto de radical condenação. Até mesmo
um talento como Voltaire, já no sec. XVIII, embora fascinado pelo gênio de Shakespeare,
chamava-o de bárbaro e incompetente: como poderia ação mudar de um lugar para outro sem
mais aquela, como poderiam tantos personagens ser incluídos em uma só peça? Lembram-se
que Racine usava entre nove e doze personagens, mas que no RICARDO III de Shakespeare há
nada menos de 54 diferentes que têm falas. Mesmo no sec. XIX, quando o neorrmantismo já
redescobrira Shakespeare, foi criado o mito crítico de que o REI LEAR seria uma das obras
máximas da humanidade, sendo repetidamente comparada em dimensão e importância com a
Capela Sistina ou a 9a Sinfonia de Beethoven, mas que certamente era uma obra que não
poderia jamais ser encenada. O erro crítico era, no caso, provocado pela falta de informação
tanto a respeito da casa de espetáculo que Shakespeare usara como também a respeito da
vida pessoal e teatral do próprio autor, pois escrever uma obra não encenável seria um total
contrassenso na obra de um homem que viveu no palco e escreveu no palco e para o palco.
Quando os críticos, os estudiosos, redescobriram a forma do palco e tiveram maiores
informações sobre Londres, Stratford e da própria vida inglesa ao tempo de Elizabeth I, tudo
ficou claro. Não se pode mais hoje em dia, no mundo em que vivemos, admitir o criador que,
ao invés de se preparar adequadamente para realizar o que pretende, espere que, por milagre,
baixe o santo na hora. O diretor que se vanglorie de não fazer seus estudos críticos
preliminares, de confiar única e exclusivamente em alguma inspiração indefinida a que ele
chame de talento, como se esse fosse uma espécie de fonte milagrosa da qual jorrasse alguma
misteriosa capacidade criativa para pôr em cena um texto dramático, corre o risco de perder a
confiança de seu elenco na primeira vez em que um ator fizer uma pergunta que sua falta de
preparo não lhe permita responder pronta e competentemente. Os atores serão os seus piores
críticos, se começarem a se sentir desamparados. E tampouco vivem hoje as artes cênicas em
contato com um público tão totalmente despreparado que possa se deixar iludir pelo errado
ou o displicente. Pelo menos, parodiando Abraham Lincoln, devemos dizer que é possível
enganar parte do público todo o tempo, todo o público por algum tempo mas não todo o
público todo o tempo.

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Não há engano maior ou mais pobre do que seja aquele que determina que estudar
criticamente uma obra, ou ler crítica a respeito da mesma, possa acabar com o encanto que se
tinha por ela. No caso da escolha de um repertório, se a reflexão e a leitura crítica fizerem o
antigo entusiasta descobrir que houve qualquer engano inicial, e que a obra não era realmente
boa, tanto melhor – ele se salva de montar um desastre; mas o que não pode ser esquecido é
que não há análise e nem leitura crítica que não tornem ainda maior a admiração que
sentimos por uma obra realmente boa: a apreciação aumenta com o conhecimento, que
permite uma melhor fruição dos méritos da obra.
O primeiro crítico na área do teatro, é claro, foi Aristóteles; o primeiro, quero dizer,
que resolveu tomar a peito a tarefa de examinar de forma objetiva o conteúdo da barriga do
ursinho, já que Platão, antes dela, fizera um repato grave à tragédia: na República ele a acusa
de enfraquecer o cidadão por tocar-lhe os sentimentos e o fazer chorar: segundo o notável
Gerald Eles, foi especificamente para contestar essa ideia que o cientista Aristóteles voltou-se
para as artes e desenvolveu a teoria da catarse. Aliás, recomendo sempre a leitura de
Aristóteles, porque com grande frequência ele é acusado de culpas que na realidade cabem a
Horacio, Donato, Scaliger, Castelvetro e outros semelhantes, que se consideraram com direito
de dar instruções sobre como se deve escrever para o teatro. Leiam Aristóteles com cuidado e
verão que, como bom cientista que era, o que ele diz é muito mais pelo que me foi dado
conhecer pela observação e análise da tragédia, deduzi que as características da composição
dramática são: e passa a descrever – não a prescrever, como fizeram os que vieram depois.
Toda espécie de teoria crítica já apareceu desde então, mas sob um aspecto, ao
menos, criadores e críticos sempre caminharam juntos: não há nova fase do teatro que não
apresente como justificativa de sua chegada a alegação de que as formas antes apresentadas
já não expressam a sociedade que as produz, e que portanto outras têm de ser encontradas. O
crítico, nesses caos, é muito frequentemente o instrumento usado pelo criador para seu
colaborador na busca do público, que chega ao teatro com expectativas acomodadas às
antigas fórmulas. Em âmbito mais restrito, o crítico de jornal muitas vezes escreve artigos
introdutórios, antes da estreia de montagens de autores ditos ‘difíceis’.
Nos dias de hoje, por exemplo, em que as mais sofisticadas tecnologias na área das
comunicações, e a preocupação com a massificação, são catalisadores recíprocos, e quando se
anuncia, ou até mesmo já se diagnostica a morte da artes em termos de obra de arte única,
incapaz por ser única de atrair a massa, o crítico tem sido, na verdade, o mais fiel amigo e
companheiro de um teatro em crise, estado aliás no qual, afirma-se com frequência, em que se
encontra desde os tempos de Eurípedes (que muitos já não achavam tão bom quanto
Sófocles). Felizmente, se estamos aqui a tentar refletir sobre o trabalho da relação dos
criadores com a crítica, mesmo que talvez mais em termos de jornalismo cultural, isso já nos
mostra, sem dúvida, que o teatro continua a evidenciar (a despeito de todas as opiniões
agourentas que andam por aí) surpreendente vitalidade para um moribundo cênico.
Não me lembro de nenhum momento em que não se dissesse que o teatro estava ou
em crise ou morrendo, nem também de nenhum em que, ao mesmo tempo, ele não estivesse
inovando, inventando, ou até mesmo reinventando, como grande novidade, coisas que já
tinham sido feitas antes, em outras circunstâncias; e o crítico presta sua colaboração
comentando, destrinchando, esclarecendo, destruindo com isso os obstáculos nascidos da

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falta de informação, permitindo que o público chegue mais próximo daquele espetáculo um
tanto assustador por ser novo, desconhecido. A colaboração do crítico nessa tarefa ajuda
igualmente a explicar o porquê da importância incontestável do teatro no mundo
contemporâneo, mesmo não sendo, como está em voga, mecânica ou eletronicamente
reproduzível.
De todas as artes cênicas, o teatro é justamente aquela em que mais íntimo e
produtivo é o diálogo entre o criador e o crítico - o cinema e a televisão pagam sua capacidade
de serem duplicadas com custos de produção cada vez mais altos; e muito embora ninguém
até hoje tenha encontrado uma bola de cristal confiável que possa prever realmente o sucesso
ou fracasso de qualquer produção, tanto o cinema quanto a televisão tendem a apostar mais
no previsível, e só o teatro continua ainda a experimentar mais frequentemente. Consta que o
lema da MGM, em seus antigos e áureos tempos, na escolha de roteiros, era: ‘Se já fez sucesso
uma vez, por que não há de fazer de novo?’ É muito pequeno o número de filmes
experimentais (mesmo no chamado cinema independente o peso da técnica limita e muito as
experiências formais), e menor ainda qualquer vaga sugestão de novo na televisão.
Comparado com qualquer dos dois, na verdade, o teatro é artesanal, e a não ser pelos
megamusicais anglo-americanos – que ficam um pouco duplicáveis no momentos em que
todos os Les Miserables, todos os
Fantasmas da Ópera, todas as Miss Saigon montados pelo mundo afora são clones do
original: mesmo texto, mesma música, mesma orquestração, mesma coreografia, mesma
cenografia, mesmos figurinos, mesmas marcas. Direções e marcas são tão firmes e fixas que as
incontáveis substituições nos elencos não afetam de forma alguma o sucesso. Em alguns casos
raros fracassos críticos se mantiveram em cartaz por alguns meses em função da presença de
algum astro excepcionalmente carismático. No teatro de comédia, de prosa, no teatro que é só
teatro mesmo, ou como o queiram chamar, é onde há margem para diálogo, para troca de
idéias, para o experimental; o teatro, na verdade, apesar de todos os seus percalços, é o
grande campo de provas para o cinema e a televisão, a área onde se pode testar a
possibilidade de compreensão e aceitação de novos temas e linguagens, além de ser ideal para
o desenvolvimento do ator.
Alega-se, portanto, que o teatro está morto ou morrendo em grande parte por
comparação com o alcance quantitativo do cinema e da televisão -- e é claro que o cinema
está morrendo por causa da televisão, e a televisão está morrendo por causa dos vídeos que
podemos ver no computador. Mas é preciso não confundir eficácia de comunicação com
potencialidade numérica; o crítico leva em conta, ao tentar avaliar qualquer aspecto do
problema da comunicação no teatro, o fator volitivo que invalida comparações com índices de
eficiência de veículos de natureza diversa na comunicação de massa, como por exemplo, os da
arte publicitária: não se pode comparar o número teoricamente atingido pelo outdoor – que
muitas vezes e propositadamente não leva em conta a mecânica de defesa já desenvolvida por
todos nós para NÃO vermos tal publicidade, com o grupo muito menor, sem dúvida, mas que
PROCURA a galeria de arte, a sala de concerto ou o teatro, com o propósito específico de
buscar ali a obra apresentada. Toda a situação é diversa, pois a condição no primeiro caso é a
do registro fortuito ou quase que se realiza durante uma ação empenhada (seja ela qual for,
que leva o indivíduo a passar, casualmente, por aquele outdoor), enquanto no segundo a
condição é a da contemplação, para usar o termo de Schopenhauer para a postura estética.

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E, conscientemente ou não, essa postura de disponibilidade para a apreciação estética
é, igualmente, uma postura crítica, cujo resultado pode ir do mais primário ou ingênuo dos
‘gostei’ ou ‘não gostei’, dos ‘maravilhoso’ ou ‘que horror’, até a mais complexa das reflexões
do ensaio crítico capaz de iluminar a obra, identificando suas qualidades e imperfeições,
tornando-a mais amiga e acessível. Essa postura estética é a determinante, é claro, para a
crítica ensaística, aquela que resulta no interesse que determinada obra desperta no crítico,
dissociada de qualquer obrigação, que nasce sem ser por sugestão de outrem, esse interesse,
que muitas vezes leva a descobertas as mais intrigantes, que tanto podem ser fruto do contato
com uma obra nova quando pela enésima leitura de alguma obra favorita, a qual descobrimos,
repentina e inesperadamente, que podemos compreender de uma nova forma, mais rica, mais
interessante: dificilmente seria mantida a atual média anual de publicação de cinco mil títulos
(entre livros e artigos) sobre Shakespeare, se a descoberta só existisse nas primeiras leituras,
nos primeiros contatos. E é por uma postura assim reflexiva, estética, que são escritos os
trabalhos que nos abrem o caminho da apreciação de toda espécie de obra de arte. Mas não
podemos esquecer, tampouco, das descobertas que resultam, muito claramente, das
mudanças permanentes das sociedades que cercam criadores e críticos, e que grandes,
mesmo, são as obras que obtêm a aprovação do tempo, que sobrevivem a sucessivas análises
e interpretações segundo o pensamento dominante de cada época, tanto na estética quanto
na ética.

Bárbara Heliodora
http://www.barbaraheliodora.com/conferencias/conf3.htm

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O trabalho do crítico

A primeira coisa que preciso dizer a todos os que estão aqui presentes é que, em essência, todos
aqui são críticos, tanto neste momento, em que vieram com a possível intenção, por exemplo, de saber
como eu, que tenho oficialmente o rótulo de crítica, serei capaz - ou não - de justificar minha atividade
dentro do quadro geral das atividades nas artes, quanto quando vão assistir a qualquer espetáculo, teatro,
cinema, televisão, concerto, exposição de artes plásticas ou o que queiram. Essa afirmação fica comprovada
com o fato de cada um de vocês, depois de cada evento desses, efetivamente avalia o que viu, seja
ruminando sozinho, seja discutindo na porta do teatro ou sala ou galeria, ou na mesa do bar. Muitas dessas
ruminações ou discussões param em um primeiro patamar da crítica, o simples “gostei” ou “não gostei”,
sem maiores justificativas; mas quando há conversa, quando há debate, cada um dos muitos críticos
presentes vai ter de aprofundar sua argumentação e declarar - muitas vezes o caso será mais de descobrir -
as razões dessa reação favorável ou desfavorável: no caso do crítico profissional é claro que não é admissível
parar na primeira etapa, pois o crítico tem por obrigação arrazoar suas afirmações, sejam elas de aplauso ou
não.
Outra coisa que é preciso esclarecer desde logo é que, em quase a totalidade das vezes em que se
propõe algum tipo de conversa a respeito de crítica, como esta nossa de hoje, o grupo que se reúne só pensa
em termos de crítica jornalística, da crítica um tanto imediata que o crítico profissional faz pouco depois de
assistir o espetáculo, no caso específico do teatro, por exemplo. Mas existem outros tipos de crítica - seja
aquela de grande fôlego que,
ao fim de um longo estudo termina na redação de um livro - sobre uma obra ou um artista, como
também a crítica ensaística, que fica a meio caminho, e que é encontrada em revistas especializadas e que
oferecem ao crítico qualquer coisa entre digamos umas dez ou vinte páginas nas quais ele tem a
oportunidade de se estender mais e expor em maior detalhe o tipo de raciocínio que o conduziu a
determinada posição frente a obra ou o artista em questão. A crítica jornalística é a mais sacrificada, porque
em geral recebe dos jornais diários espaço extremamente limitado, que se torna um desafio assustador para
a capacidade do crítico, cuja obrigação é ir mais longe do que o simples “gosto” ou “não gosto”.
Qual é a função da critica? Por que razão ela existe? Tenho a certeza de que todos vocês já terão
notado, a algum momento da vida, que a extraordinária beleza de um pôr-do-sol seria considerada
absolutamente acadêmica se este fosse passível de crítica: mas não é, porque ele é parte da natureza, e a
natureza simplesmente é, ela não foi feita pelo homem. Toda arte, porém, é artificial, quero dizer, ela é
criada pelo homem e pode, por isso mesmo ser, por assim dizer, desmontada e remontada, mas
principalmente ela pode ser apreciada pela arte, a habilidade, com que foi criada. De certa maneira uma das
principais razões da existência da crítica é exatamente a necessidade que tem o artista de ter sua obra
analisada e apreciada: não há dúvida de que a apreciação particular de cada um é importante para o artista,
mas a palavra escrita, expressão da apreciação da obra por alguém que, para merecer o título de crítico,
deve ser informado sobre a área de arte em que ele trabalha. Em uma relação adequada, tive sempre a mais
profunda convicção, a função do crítico é dupla: por um lado ele serve o artista, na medida em que esse
espectador informado que é o crítico, pode informá-lo sobre como e até que ponto a sua obra “passou”, isto
é, atingiu o seu público; e por outro lado então ele informa também o público a respeito dessa mesma obra.
Quando digo que o crítico teatral é - ou deve ser - um espectador informado, é porque mesmo
deixando de lado as comparações, que na avaliação crítica são inúteis e gratuitas, quando não criminosas,

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todos os espectadores, sejam eles informados na parte teórica ou não, passam a sua experiência com o
espetáculo pelo filtro de tudo aquilo que eles viram e sabem a respeito de teatro. Há alguns casos, raros, em
que a desinformação é proveitosa, como a que narra Martin Esslin em seu livro sobre o teatro do absurdo:
diz ele que logo que o ESPERANDO GODOT de Beckett foi lançada em Paris, os conflitos e debates
estouraram por todo lado, e certamente na França os princípios clássicos da dramaturgia são mais
reverenciados do que na maior parte deste mundo. Afirmavam muitos, então, que aquilo não era teatro,
que faltava desenvolvimento dramático, que faltava definição dos antecedentes da ação, etc, etc. E então,
pouco tempo depois de a obra ser lançada nos Estados Unidos, uma montagem foi apresentada aos
prisioneiros que cumpriam pena na Penitenciaria de San Quentin, na Califórnia: desses prisioneiros, cerca de
99% jamais havia posto o pé em um teatro (cinema é outra coisa), teatro mesmo. Assim sendo, eles não
tinham qualquer idéia preconcebida do que fosse uma peça de teatro, prestaram a maior atenção e
compreenderam a obra, cada um segundo a sua experiência de vida e sua capacidade imaginativa. A
penitenciária tem um jornal feito pelos presos, e vários deles escreveram suas apreciações sobre o
espetáculo, sendo interessante, por exemplo, mais de um deles ver o esperado Godot como a liberdade, a
vida fora da prisão, eternamente sonhada e aguardada.
Nas mais das vezes, no entanto, ter informações sobre o que se vê, o autor e sua época são dados
muito positivos, pois cada autor, em última análise, tem de ser visto dentro dos parâmetros de sua época, e
o crítico, ao escrever, pode prestar um bom serviço a um público amplo que, tendo suas atividades em outra
área, não tem a obrigação (que tem o crítico) de saber a que época pertence cada autor, como as
circunstâncias nas quais criava a sua obra o autor dramático de então. O novo, aliás, pode criar tantas
barreiras quanto o velho - e na falta das informações mais básicas, o crítico tem de mergulhar de cabeça
orientado apenas pelo que conhece até então a respeito do teatro e suas linguagens, tanto a verbal quanto
as não verbais. Na realidade, isso não é tão horrível quanto possa parecer justamente porque o crítico, assim
como qualquer outro espectador, tem de reagir com sua sensibilidade pessoal, aquela que pode levar ao
simples gostei ou não gostei, mas que precisa sempre coexistir com a informação, o conhecido, na formação
final de sua opinião, de sua postura mais ampla em relação à obra: essa reação da sensibilidade individual,
aliada ao conhecimento que terá na área, é que irão servir ao critico quando ele enfrenta algo radicalmente
novo e inesperado. Ao emitir uma opinião, mesmo que arrazoada, a respeito de uma tal obra, é claro que o
crítico corre um risco muito semelhante ao que corre o artista ao apresentar a sua obra.
Como eu disse a princípio, todos os que vão assistir qualquer tipo de espetáculo, ou que leem um
livro, ou ouvem uma música ou olham para um quadro são críticos, mas como são críticos basicamente só
para si mesmos, e não precisam prestar contas de suas opiniões a ninguém, é claro que o componente
“gosto” ou “não gosto” pode ter, na sua reação, um peso muito maior do que o que é permitido ao crítico,
principalmente na crítica jornalística: o crítico particular, digamos assim, tem direito de afirmar, por
exemplo, que não gostou ou gostou disto ou daquilo porque não gosta, ou gosta, de tragédia, ou de
comédia, ou de ópera, ou de gravura: é pelas preferências que ele acalenta em sua visão particular das
coisas que ele escolhe ver ou não ver determinado espetáculo ou exposição, determinado livro, segundo o
que ouviu dizer a respeito. Já o crítico que tem de proclamar ao público em geral a sua opinião, em um
jornal, não é dado esse privilégio. Já imaginaram uma crítica que começasse com a frase “Eu detesto
tragédia mas tive de ir ver....” ou coisa no gênero? Para mim, pessoalmente, muito embora eu saiba muito
bem que todo mundo, inclusive os críticos profissionais, tem preferências pessoais, uma das exigências para
o desempenho desta odiada profissão é justamente o de se procurar abstrair ou superar tais preferências e
tentar encarar o espetáculo a que assisto dentro dos parâmetros a que este se propõe. A definição ou até
mesmo proclamação das convicções pessoais do crítico estiveram muito em moda nos anos 60 e 70 entre

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alguns críticos. com a consequência de tudo ser avaliado de acordo com posições ideológicas, mas a mim
sempre pareceu fundamental, indispensável, a preocupação do crítico com a identificação do que se propôs
o criador - muito embora as convicções pessoais de cada crítico acabem sempre por colorir suas opiniões:
isso é um fenômeno cultural inevitável.
Essa transparência de visão, aliás, me leva a um outro problema frequentemente aliado à ideia que
se faz do chamado poder da crítica. Esse mito de grande poder nos vem, sem sombra de dúvida, do
decantado poder dos críticos teatrais em Nova York; e é preciso que se esclareça a origem desse suposto
poder virtualmente ditatorial dos grandes jornais, capaz de fechar qualquer espetáculo. É engano julgar que
o público em geral leia individualmente as críticas negativas e por isso não vá ao teatro, o que resulta no
fechamento do espetáculo: o poder verdadeiro está nas mãos não dos críticos mas das imensas organizações
de espectadores.
Uma montagem teatral em Nova York custa não uma pequena mas uma grande fortuna, e por isso
mesmo só pode fazer carreira o espetáculo que literalmente lote diariamente o teatro em que se apresenta.
As organizações de espectadores controlam a venda de 60, 80 ou 100.000 espectadores cada uma, e se elas
não comprarem essas vastas quantidades de entradas é muito difícil o espetáculo atravessar seus primeiros
tempos, quando a produção está sendo paga. e essas associações, sim, é que muitas vezes se guiam pela
reação dos críticos. Há casos conhecidos de sobrevivência sem esses grupos de espectadores, mas são muito
raros.
Terá o crítico, entre nós, grande poder sobre o leitor do jornal? Em primeiro lugar é preciso lembrar
que os críticos não veem todos o espetáculo do mesmo modo - e daí me vem a convicção que, na verdade, o
espectador concorda com o crítico apenas quando o crítico concorda com ele, ou seja, que pessoas
diferentes preferem ler críticos diferentes porque encontram naquele crítico específico alguém cujas
opiniões de modo geral são semelhantes às suas próprias.
Como e por que alguém se transforma em crítico? Não vejo condições de ninguém dizer que em um
rápido curso de dois ou três meses tudo esteja resolvido. Mas em primeiro lugar eu diria que (e é claro que
eu falo em termos de teatro, porque esse é o meu campo) o mais fundamental mesmo é gostar muito, eu
antes diria adorar teatro, porque se anualmente eu vejo uma média de noventa a cem espetáculos, um
percentual altíssimo dos mesmos é de má ou péssima qualidade, e só um amor implacável ao teatro é que
mantém o crítico ainda disposto a continuar a considerar o teatro uma arte e a frequentar, melhor dizendo
aturar, um número assustador de coisas indevidamente chamadas de espetáculos. É claro que é preciso
estudar teatro em seus aspectos teóricos, e frequentar muito teatro (mesmo o que é horrível) para poder
adquirir a intimidade com os processos cênicos que propiciam a criação dos parâmetros que
necessariamente nos guiam quando assistimos um espetáculo. Ao contrário do que imagina aquele retrato
deformado do crítico que muitos fazem, o maior desejo do critico é que todo espetáculo seja bom, tanto
porque falar do bom é muito melhor do que falar do ruim, quanto porque para quem realmente ama o
teatro, há poucos prazeres maiores do que o de se curtir um grande espetáculo, um grande atuação. É muito
fácil atribuir ao crítico a responsabilidade por qualquer afastamento do público, mas tenho a obrigação,
aqui, de chamar a atenção de todos para um fato muito mais grave, o do peso negativo para o público do
espetáculo de má qualidade: todo mundo vê filmes ruins e continua indo ao cinema - possivelmente porque
as exigências técnicas do cinema já de si obriguem a um nível mínimo de qualidade (há sempre aquele
consolo horrível de que “mas a fotografia era muito bonita” - seria impossível, além do mais, apresentar um
filme fora de foco). Mas o cinema tem outras vantagens: você entra na hora que quiser, se aceitar isso pode
até ver o fim primeiro e o começo depois, ou seja, para ir ao cinema não se exige um horário único,

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possivelmente a compra de ingressos antecipada e, de modo geral, a criação de um clima algo especial:
quando, depois de tudo isso, no teatro, o espectador depara com um espetáculo de muito má qualidade,
toda a atividade teatral está sendo prejudicada, pois aquele espectador não voltará tão cedo a ir assistir a
uma peça. A autocomplacência de vários espetáculos é mais prejudicial para o teatro do que qualquer
crítico.
Isso me leva, naturalmente, ao eterno problema da condenação ao crítico que faz comentários
negativos a respeito de um espetáculo. Há dois aspectos a serem ressaltados aí: o primeiro é a confusão
constante que é feita sobre a atividade crítica com lado colunista de assuntos gerais ou de mexericos, que se
permite escrever estritamente na base do gosto ou não gosto e, pior, se permite muitas vezes atacar
individualmente atores, autores ou diretores, por motivos fora de suas atuações. Esses não são críticos e, se
efetivamente usar o rótulo de crítico aquele que age assim, estará usando um título que não lhe cabe.
Eu sempre digo que desde que, há muitos e muitos anos eu comecei a fazer crítica, tinha grandes
discussões com o saudoso Paschoal Carlos Magno, um grande incentivador do teatro no Brasil, mas que
favorecia o que chamo de crítica paternalista ou assistencial. A frase de Paschoal era inesquecível, como sua
maneira de falar: “É preciso incentivar esses moços” e aí começava a nossa briga. Para mim, qualquer crítico
que vai assistir a um espetáculo de um grupo jovem, vê uma série de erros e enganos, e escreve que é tudo
muito bom, está na realidade prejudicando esses jovens, já que os estimula à falta de autocrítica, que pode
resultar na continuação no erro e até mesmo impedir que ele venha a desenvolver uma boa carreira: não
cabe ao crítico ser nem “bom” e nem “mau”, quero dizer elogiar ou condenar à toa, sem justificativa, por
compreensão ou pena; do mesmo modo, não é possível elogiar o espetáculo ruim apenas porque está dando
emprego a um número x de atores: ele pode efetivamente afastar do teatro uma quantidade de público
suficiente para fazer com que um número ainda maior de atores fiquem desempregados pela
impossibilidade de novas montagens.
Estou tentando esclarecer certos problemas da crítica jornalística. Uma coisa que acontece muitas
vezes é a alegação de que o crítico foi logo no início da carreira ver o espetáculo, ao que tenho dois
esclarecimentos a fazer: eu, por exemplo, nunca fui assistir a um espetáculo, enquanto crítica, senão na data
para a qual fui convidada; por outro lado, não acho justo que o crítico não possa ver o espetáculo desde a
estréia, já que a bilheteria está aberta desde o primeiro dia: como justificar que o público pagante possa ver
o espetáculo em seu período que, por assim dizer, os próprios realizadores consideram como sendo de uma
precariedade inicial, mas o crítico não? Não seria isso um desrespeito injustificável a esse público pagante?
Depois de todas essa explicações, podemos então voltar a encarar um problema básico? De que
serve a crítica? Entre outras coisas, serve de ponte entre o público e o novo, mas mesmo no caso do não
novo a crítica serve também para explicitar, para colaborar com a identificação de qualidades: se cada leitor
mesmo de uma crítica jornalística fizer seu debate pessoal com o que foi dito -- sabendo que não há
obrigatoriedade nem de concordar e nem de discordar com o crítico -- ele vai esclarecer para si mesmo as
razões do seu gostei ou não gostei, e com isso tornar-se um espectador mais preparado. É claro que o
espectador mais preparado se transforma, igualmente, no espectador mais exigente: mas só um público
mais preparado, mais conhecedor das regras do jogo, permite a apresentação de um repertório mais
complexo, mais ambicioso ou, no sentido verdadeiro do termo, mais experimental. Conhecer as regras do
jogo é crucial para a apreciação mais consciente do trabalho realizado: deixando um momento o teatro de
lado, pensem um pouco em termos de público de futebol; por um lado, é claro, saber as regras faz o bom
jogo ter muito público e a pelada não. Será que para o teatro não seria também bom garantir o sucesso do
bom jogo e o fracasso da pelada? A perspectiva de um bom público para um espetáculo de categoria é

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significativa até mesmo por proporcionar ao ator a oportunidade de um trabalho prazeroso em uma
montagem de qualidade.
É também uma postura crítica que serve quem faz teatro na escolha correta de seu repertório, e
receio ter de dizer que grande parte dos enganos começa exatamente aí: são fadados não só ao fracasso
como a vida muito curta os grupo que, sem nunca ter feito nada, começam seus trabalhos com o HAMLET ou
o EDIPO REI ou A MÃE CORAGEM; vale a pena, no caso, pensar em termo de outras artes: será que um
pequeno grupos de músicos improvisados, sem o devido conhecimento ou a devida formação, devem
começar suas atividades com a PAIXÃO SEGUNDO SÃO MATEUS de Bach, a MISSA SOLENE de Beethoven ou
o DON GIOVANNI de Mozart?
O teatro esbarra constantemente no problema de o artista teatral ser o seu próprio instrumento:
todos acreditam que o violinista tem de aprender a tocar violino antes de se exibir em público, mas como no
teatro o que o intérprete tem de fazer é andar, sentar, levantar, falar e passar pelos climas emocionais que
afetem o ser humano diariamente, foram criados, a certa altura, dois mitos perigosíssimos, hoje felizmente
já um tanto fora de moda: o mito de que qualquer um pode ser ator (é mentira, o imponderável do talento é
uma coisa que efetivamente existe), e o mito de que a técnica atrapalha - convicção intensamente
acalentada pelos inspirados criadores de alguns do piores espetáculos a que é sujeitado o público. Há duas
frases que ouvi pessoalmente de dois significativos homens de teatro, que merecem permanente atenção.
Em conferência proferida no Teatro Municipal por ocasião de sua última temporada no Rio, Jean-Louis
Barrault falou magistralmente sobre o ator e a arte de representar, e incluiu em seus comentários o
seguinte: “Para se ser ator é preciso que se tenha algum motivo mais forte do que o de querer encontrar
uma profissão na qual se acorde tarde”. Por outro lado, proferindo a aula inaugural da escola de teatro de
Dulcina de Moraes ainda nos tempos em que ela era no Rio, disse Ruggero Jacobi: “O segredo do ensino
teatral no Brasil é acabar com a bossa”; ambas as frases podem parecer brincadeira mas não são: a profissão
teatral exige uma dedicação, uma disciplina, uma consciência de o que se está fazendo e por que razão se o
está fazendo, cuja presença ou ausência transparecem no espetáculo e atinge o espectador. É claro que uma
arte de tamanha exigência não pode ser criada só na base da bossa - o famoso ter jeito para o teatro não é
garantia de nada se o dono do jeito não dominar a sua arte e o seu instrumento - pois só assim ele poderá
efetivamente criar o fenômeno teatral, que é uma obra de arte extraordinariamente complexa e difícil.
Vamos dar uma pequena olha na natureza de determinadas formas de arte: muito embora todo
termo que se usa tenha limitações, a grosso modo podemos dividir as artes em criativas e interpretativas
(não que as interpretativas não sejam criativas sob vários aspectos). Usamos esses termos para separar a
pintura, a escultura e a literatura, por exemplo, como artes “criativas” porque de certo modo elas dependem
apenas de seu criador: o pintor pinta um quadro, o altera e o retoca até o momento em que se dá pôr
satisfeito com ele, quando considera pronta a sua obra. Essa obra pronta, pôr seu lado, não depende da
presença do artista e nem de sua proximidade no tempo ou no espaço. O mesmo podemos dizer a respeito
da escultura, da arquitetura, ou da literatura: suas obras uma vez trabalhadas, realizadas, estão prontas e
separadas do artista que as criou. Na música e no teatro temos uma situação um pouco diferente: é claro
que o compositor da música ou o dramaturgo, como os outros artistas já mencionados, são criadores na
medida em que sua composição ou seu texto ficam “prontos” a determinado momento.
Mas a obra de arte interpretativa não fica pronta desse mesmo modo: ela para existir exige uma
nova etapa, a da sua execução prática. E se abandonarmos os recursos tecnológicos recentes como discos,
filmes, vídeos etc., voltaremos ao aspecto essencial das artes interpretativas: ela exigem não só intérpretes

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preparados para apresentar a forma final da obra, como também exigem a presença material desse artista-
intérprete, seja no concerto, seja no espetáculo teatral.
Entre outras coisas, isso significa que nem o texto dramático e nem o espetáculo devidamente
ensaiado constituem o verdadeiro fenômeno dramático, que é a obra de arte em si: o teatro, ou seja, texto
mais espetáculo, só existe quando ele é apresentado diante de uma plateia, porque a obra de arte é o que
acontece diante de seu público, graças à interação emocional que existe entre o palco e a plateia. Para poder
criar o espetáculo capaz de estabelecer esse diálogo emocional indispensável à obra de arte teatral, é
preciso que todos os envolvidos em sua criação sejam adequadamente competentes. Ser ator é uma arte e
uma profissão; para exercer uma e outra é preciso ter talento e respeitar esse talento, isto é, cultivá-lo,
treiná-lo, aprimorá-lo sempre e sempre: sucesso em um trabalho não quer dizer que se possa descansar e
fazer outro apenas graças ao aplauso alcançado no anterior.
Não se pode nunca, no teatro, esquecer que quem tem de sentir é a plateia, e que ao ator compete
ter imaginação e domínio de si o suficiente para transmitir a essa plateia não aquela emoção mas a imagem
daquela emoção, não aquela morte mas a imagem daquela morte, não aquela paixão mas a imagem daquela
paixão, não aquele ódio mas a imagem daquele ódio. É claro que o ator não fica gélido e indiferente
enquanto faz tudo isso, mas toda e qualquer carga emocional que ele sinta ou carregue em cena tem de
estar sob seu controle, para que ele possa criar o que poderá detonar o processo emocional e imaginativo
do público.
Quando eu falo tanto de emoção não estou de modo algum dizendo que acredito na tão citada ideia
de que o teatro aristotélico aliena e o épico conscientiza, porque não me parece que seja possível alguém
ver EDIPO REI e ANTIGONA, por exemplo, e não refletir - o teatro, enquanto arte, tem uma limitação muito
interessante: ao contrário da música, das artes plásticas ou até mesmo da literatura, o teatro só fala de
comportamentos humanos. Não creiam que ao falar desses sistemas de interpretação, por exemplo, eu
esteja fugindo ao tema básico da crítica, já que é a interpretação do elenco que vai dar corpo ao espetáculo
a ser criticado.
Permitam que eu cite um trecho sobre a interpretação e a natureza do teatro, que me parece muito
significativo, mas que também mostra de forma concreta que o diretor tem funções eminentemente críticas,
sem as quais ele não pode dar forma ao espetáculo que deseja criar. Pensem um momento se o que é dito a
seguir não é baseado em uma atitude crítica fundamental:
Repeti o trecho, por favor, como eu o pronunciei, com naturalidade; pois se o dizeis afetadamente,
como muitos atores fazem, admite até que o pregoeiro público vá bradar nas ruas as minhas linhas. Não
gesticuleis, tampouco, assim, serrando o ar com as mãos; usai de moderação, pois na própria torrente,
tempestade ou direi mesmo torvelinho da paixão, deveis adquirir e empregar um controle que lhe dê
alguma medida. Oh, ofende-me até a alma ouvir rasgar um paixão em farrapos, em verdadeiros molambos, e
ferir os ouvidos da plateia que, na maior parte, não é capaz senão de apreciar pantomimas e barulho. Eu
mandaria chicotear tal camarada por exagerar o papel de Termagante: isso é super-herodiar Herodes. Por
favor, evitai-o.
Mas não sejais fracos, tampouco; deixai que o vosso critério seja o vosso mestre. Ajustai o gesto à
palavra, a palavra à ação; com esta observância especial, que não sobrepujeis a moderação natural. Pois
qualquer coisa exagerada foge ao propósito da representação, cujo fim, tanto no princípio quanto agora, era
e é oferecer um espelho à natureza; mostrar à virtude seus próprios traços, ao ridículo sua própria imagem,
e à própria idade e ao corpo dos tempos sua forma e aparência. Ora, o exagero ou a deficiência, conquanto

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façam rir os incompetentes, não podem causar senão desgosto ao criterioso: e a censura deste deve
constituir na vossa estima mais do que um teatro lotado pelos outros.
É claro que isso é do Ato III cena ii do HAMLET, que aconselha os atores antes da comédia, e creio
poder ser levado a sério, já que tudo indica que Shakespeare sabia do que estava falando...
Tudo o que ele diz é parte de uma visão clara do teatro, e de certo modo o trabalho do crítico
consiste em buscar esses valores interpretativos, com o permanente objetivo de tornar mais abrangente a
apreciação da obra de arte. Ele precisa, portanto, situar o espetáculo, identificar o período e o gênero a que
pertence o texto: se alguém montar uma comédia de Molière não é lógico que eu vá procurar na encenação
o clima de um Samuel Beckett, nem tão pouco, o de um Gastão Tojeiro; isso, explica por que nem sempre as
montagens ditas criativas funcionam: não basta um diretor resolver montar o ‘Rei Lear’ como uma comédia
musical leve; é preciso que ele busque, no texto, caminhos pelos quais seja possível chegar a esse tipo de
encenação E FAZER SENTIDO, criar um espetáculo válido, arrazoado, coerente. Ninguém pode acertar por
acaso no teatro, não um espetáculo inteiro - em qualquer montagem é preciso que todos, sem exceção,
saibam o que estão fazendo e por que estão fazendo: não podemos esquecer que o teatro é transmitido por
várias linguagens - a do conteúdo do texto é o que mais obviamente vem à mente, mas até mesmo o texto
implica outras linguagens, as da sonoridade e do ritmo, por exemplo. O ator empresta seu corpo para outros
tipos de linguagem: seu tipo físico, como seu tom de voz, vão ajudar a construir o personagem, cuja
funcionalidade é preciso que o intérprete identifique perfeitamente: nenhum papel em nenhuma peça é
mais importante do que qualquer outro quando falamos das linguagens que compõem o fenômeno teatral,
pois o erro pode ser tão fatal para a destruição do fenômeno teatral ao partir do maior dos papeis quanto ao
partir do menor deles: o cortineiro que fecha a cortina na hora errada pode acabar com o mais maravilhoso
espetáculo: em teatro o trabalho de todos tem de ser igualmente respeitado, para que cada um faça sua
contribuição na medida certa. O trabalho do crítico não é fácil, porque ele precisa ao mesmo tempo
observar cada detalhe e - se quiser ao menos tentar exercer corretamente a sua profissão - não perder ao
mesmo tempo a capacidade para se entregar ao espetáculo, com a mesma disponibilidade imaginativa que
devemos exigir de todo espectador.
Uma coisa, tenho a certeza, é muito difícil para o crítico fazer: uma palestra a respeito da crítica -
porque quando fazemos crítica, estamos trabalhando em cima de alguma coisa, analisando algo que já foi
feito, enquanto que em uma situação como a atual tenho de começar da estaca zero, e propondo eu mesma
ideias a respeito do assunto. Não sei se os que estão aqui teriam preferido discutir mais a crítica ensaística,
mas pareceu-me que é o doloroso dia a dia da crítica jornalística que mais interessa ao público em geral.
Por razões nem sempre fáceis de se identificar, a palavra "critica", no Brasil, parece ter uma
conotação fortemente negativa, e aplicar-se exclusivamente à crítica jornalística, que por seu turno seria
então exercida exclusivamente por indivíduos sem exceção sem sensibilidade ou inteligência, desonestos e
incompetentes, tomados do mais absurdo ódio por toda e qualquer atividade artística. Estes, parece,
mantiveram sempre, no passado, junto à máquina de escrever, e mantêm hoje em dia junto ao computador,
uma imensa lista de desafetos, aos quais persegue implacavelmente, com o único objetivo de tirar, do
fracasso destes, um demoníaco e indizível prazer. Por razões bem mais facilmente identificáveis, o retrato do
crítico passa a ser do mais brilhante e íntegro Príncipe Encantado, quando ele elogia qualquer obra ou grupo
ou indivíduo (muitas vezes, segundo os não aquinhoados no momento, só porque foi bajulado ou
comprado). É ingrata, portanto, a atividade do jornalismo ligado a atividades culturais que escape ao mero
âmbito da divulgação. Principalmente ao nível jornalístico, no entanto, toda opinião a respeito de crítico é

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confundida, por um lado, com a função do divulgador, e, por outro, com o colunista de generalidades que
divulga intrigas, boatos ou conluios como fonte fundamental de uma dúbia popularidade.
No entanto, a crítica, no sentido correto da palavra, é exercida por todos, não só pelos que vieram
aqui hoje com o intento de avaliar se eu, que sou efetivamente rotulada de crítica, sou capaz de esclarecer e
justificar minha atividade profissional proclamada, como também por todo menininho ou menininha que,
com profundo e incontestável interesse, abre a barriga do ursinho ou arranca os olhos da boneca para saber
como eles funcionam. Ou o que, senão a crítica, exercem todos aqueles que, como já dissemos, na saída de
um espetáculo, vão para um bar e discutem o que viram – e muitas vezes com preconceitos bem mais fortes
do que os de qualquer crítico, se acontece o espetáculo ter sido realizado por algum grupo rival, sendo que
se o texto é bom todos os que criticam terão absoluta certeza de que " aqueles malditos só o montaram
porque sabiam que nós estávamos fazendo planos de monta-lo no ano que vem “.
A verdade é que a crítica é indissociável da criação, até mesmo no caso do mais naïf dos artistas, que
mesmo sem expressa-lo em termos de alguma estética definida, olha o mundo à sua volta, seleciona o
motivo para sua obra, concebe como deverá apresenta-lo, escolhe o material a ser usado segundo sua
concepção, porque – mesmo que tenha sido por tentativa e erro – já sabe que o barro não pode conter mais
do que determinado percentual de água, ou que todas as vezes em que o azul e o amarelo se misturam, o
que fazia ficou verde.
A não ser pelos comentários que observam, por exemplo, que o pôr-do-sol de hoje foi mais bonito
do que o de ontem, ou que o céu sombrio cria um clima mais triste do que o ensolarado, só a natureza, de
fato, fica isenta da crítica (mesmo que não de queixas): a natureza é, ela afeta a nós, não nós a ela; e a
primeira coisa então que temos de lembrar ao falar de crítica é a necessidade de se ter permanente
consciência de que a arte é artificial, um produto do esforço humano; e que a respeito de tudo o que é feito
pelo homem existe sempre a curiosidade sobre como foi possível fazê-lo e quais os métodos utilizados, bem
como uma infalível tendência para se avaliar se foi bem ou mal feito. A crítica é, na verdade, uma atividade
muito ampla, com seus aspectos de pesquisa e ensaística, que são da maior significação, muitas vezes sendo
esquecidos em favor das terríveis limitações da crítica jornalística, pelos que sentem uma vontade inelutável
de criticar os críticos.
Muitas vezes esquecem-se todos de que a visão romântica do artista criador ingênuo e puro ficou
ultrapassada: os maiores gênios produziram obras em tudo e por tudo expressivas de suas respectivas
épocas, nas quais usaram todos os recursos técnicos conhecidos em seu tempo e, se foram realmente bons,
os ampliaram e abriram novos caminhos. Por outro lado, o crescimento de uma postura científica na
pesquisa histórica, que acarreta o desenvolvimento da consciência histórica em todos nós, tem de ser levado
em conta. O crítico colabora com o processo criativo, nem sempre servindo diretamente o criador, mas sem
dúvida ele o faz quando prepara um público potencial para apreciá-lo, como poderá ser compreendido pelo
seguinte exemplo: com a afirmação total das regras do neoclassicismo francês e de seu veículo cênico ideal,
o palco italiano, tanto pelos teóricos quanto pelo profissionais do teatro no sec. XVII, até mesmo na
Inglaterra foi perdida a memória da forma e da utilização do palco elizabetano (com os teatros da época
tendo sido todos destruídos pelos puritanos), o conhecido William Shakespeare foi relegado ou a um quase
esquecimento ou a objeto de radical condenação. Até mesmo um talento como Voltaire, já no sec. XVIII,
embora fascinado pelo gênio de Shakespeare, chamava-o de bárbaro e incompetente: como poderia a ação
mudar de um lugar para outro sem mais aquela, como poderiam tantos personagens ser incluídos em uma
só peça? Lembrem-se de que Racine usava entre nove e doze personagens, mas que no RICARDO III de
Shakespeare há nada menos de 54 diferentes que têm falas. Mesmo no sec. XIX, quando o romantismo já

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redescobrira Shakespeare, foi criado o mito de que o REI LEAR seria uma das obras máximas da humanidade,
sendo repetidamente comparada em dimensão e importância com a Capela Sistina ou a 9a Sinfonia de
Beethoven, mas que certamente era uma obra que não poderia jamais ser encenada, o que seria um total
contrassenso na obra de um homem que viveu e escreveu no palco e para o palco. Quando os críticos, os
estudiosos, redescobriram a forma do palco, tudo ficou claro Não se pode mais hoje em dia, no mundo em
que vivemos, admitir o criador que, ao invés de se preparar adequadamente para realizar o que pretende,
espere que, por milagre, baixe o santo na hora. O diretor que se vangloria de não fazer seus estudos críticos
preliminares, de confiar estritamente em um decantado talento e em alguma misteriosa capacidade criativa
para por em cena um texto dramático, corre o risco de perder a confiança de seu elenco na primeira vez em
que um ator fizer uma pergunta que sua falta de preparo não lhe permita responder pronta e
competentemente. Os atores serão os seus piores críticos, se começarem a se sentir desamparados. E
tampouco vivemos hoje com um público totalmente despreparado que possa se deixar iludir pelo errado ou
o displicente.
Não há engano maior ou mais pobre do que aquele que determina que estudar criticamente uma
obra, ou ler crítica a respeito da mesma, possa acabar com o encanto que se tinha por ela. Se a reflexão e a
leitura crítica fizerem o antigo entusiasta descobrir que houve qualquer engano inicial, e que a obra não era
realmente boa, tanto melhor – ele se salva de montar um desastre; mas não há análise e nem leitura crítica
que não tornem ainda maior a admiração que sentimos por uma obra realmente boa: a apreciação aumenta
com o conhecimento, que permite uma melhor fruição dos méritos dessa obra.
O primeiro crítico na área do teatro, é claro, foi Aristóteles; o primeiro, quero dizer, que resolveu
tomar a peito a tarefa de examinar de forma objetiva o conteúdo da barriga do ursinho, já que Platão, antes
dele, fizera um reparo grave à tragédia: na República ele a acusa de enfraquecer o cidadão por tocar-lhe os
sentimentos e os fazer chorar: parece-me particularmente brilhante a afirmação do crítico e professor
Gerald Else de que foi com a intenção de contestar essa ideia que Aristóteles desenvolve a teoria da catarse.
Aliás, recomendo sempre a leitura de Aristóteles, porque com grande frequência ele é acusado de culpas
que na realidade cabem a Horacio, Donato, Scaliger, Castelvetro e outros semelhantes, que se consideraram
com direito de dar instruções sobre como se deve escrever para o teatro. Leiam Aristóteles com cuidado e
verão que, como bom cientista que era, o que ele diz é muito mais "pelo que me foi dado conhecer pela
observação e análise da tragédia, deduzi que as características da composição dramática são” : e passa a
descrever – não a prescrever, como fizeram os que vieram depois. Só um talento de observação irretocável é
capaz de estabelecer definições tão perfeitas como aquela que hoje nos parece óbvia só porque ele a
enunciou há 2400 anos, ao afirmar que a tragédia tem de ter começo, meio e fim: “começo é aquilo que não
precisa de nada antes, meio é o que precisa de algo antes e algo depois, e fim é aquilo que não precisa de
nada depois”: é exatamente por isso, aliás, que é tão difícil saber onde começar uma peça e onde concluí-
la...
Toda espécie de teoria crítica já apareceu depois, mas sob um aspecto, ao menos, criadores e
críticos sempre caminharam juntos: não há nova fase do teatro que não apresente como justificativa de sua
chegada a alegação de que as formas antes apresentadas já não expressam a sociedade que as produz, e que
portanto outras têm de ser encontradas (o que subentende uma precedência para a mudança social sobre a
mudança dramatúrgica). O crítico, nesses casos, é muito frequentemente o instrumento usado pelo criador
para seu colaborador na busca do público, que chega ao teatro com expectativas acomodadas às antigas
fórmulas. Em âmbito mais restrito, o crítico de jornal muitas vezes escreve artigos introdutórios, antes da
estreia de montagens de autores ditos "difíceis".

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Nos dias de hoje, por exemplo, em que as mais sofisticadas tecnologias na área das comunicações e
a preocupação com a massificação são catalisadores recíprocos, e quando se anuncia, ou até mesmo já se
diagnostica a morte das arte em termos de obra de arte única, incapaz por seu única de atrair a massa, o
crítico tem sido, na verdade, o mais fiel amigo e companheiro de um teatro em crise, estado aliás no qual,
afirma-se com frequência, em que se encontra o teatro deste os tempo de Eurípides ( que muitos já não
achavam tão bom quanto Sófocles). Felizmente, se estamos aqui a tentar refletir sobre o trabalho da relação
dos criadores com o jornalismo cultural, isso já nos mostra, sem dúvida, que o teatro continua a evidenciar
(a despeito de todas as opiniões agourentas que andam sempre por aí) uma surpreendente vitalidade para
um moribundo crônico.
Não me lembro de nenhum momento em que não se dissesse que o teatro estava ou em crise ou
morrendo, nem também de nenhum em que, ao mesmo tempo, ele não estivesse inovando, inventando, ou
até mesmo reinventando, como grande novidade, coisas que já tinham sido feitas antes, em outras
circunstâncias; e o crítico presta sua colaboração comentando, destrinchando, esclarecendo, destruindo com
isso os obstáculos nascidos da falta de informação, permitindo que o público chegue mais próximo daquele
espetáculo um tanto assustador por ser novo, desconhecido. A colaboração do crítico nessa tarefa ajuda
igualmente a explicar o porquê da importância incontestável do teatro no mundo contemporâneo, mesmo
não sendo, como está em voga, mecânica ou eletronicamente reproduzível.
De todas as artes cênicas, o teatro é justamente aquele em que mais íntimo e produtivo é o diálogo
entre o criador e o crítico – o cinema e a televisão pagam sua capacidade de serem duplicados com custos
de produção cada vez mais altos; e muito embora ninguém até hoje tenha encontrado uma bola de cristal
confiável que possa prever realmente o sucesso ou fracasso de qualquer produção, tanto o cinema quanto a
televisão tendem a apostar no mais previsível, e só o teatro ainda continua a experimentar mais
freqüentemente. Consta que o lema da MGM, em seus antigos e áureos tempos, na escolha de roteiros, era:
"Se já fez sucesso uma vez, por que não há de fazer de novo?" É muito pequeno o número de filmes
experimentais, menor ainda qualquer vaga sugestão de novo na televisão. Comparado com qualquer dos
dois, na verdade, o teatro é artesanal, e a não ser pelos megamusicais angloamericanos – que ficam um
pouco duplicáveis no momento em que todos os Les Miserables, todos os Fantasmas da Opera, todas as
Miss Saigons montados pelo mundo afora são clones do original: mesmo texto, mesma música, mesma
orquestração, mesma coreografia, mesma cenografia, mesmos figurinos, mesmas marcas. Direções e marcas
são tão firmes e fixas que as incontáveis substituições nos elencos não afetam de forma alguma o sucesso.
Em alguns casos raros, fracassos críticos se mantiveram em cartaz por alguns meses em função da presença
de algum astro excepcionalmente carismático. No teatro de comédia, de prosa, no teatro que é só teatro
mesmo, ou como o queiram chamar, é onde há margem para diálogo, para troca de ideias, para o
experimental; o teatro, na verdade, apesar de todos os seus percalços, é o grande campo de provas para o
cinema e a televisão, a área onde se pode testar a possibilidade de compreensão e aceitação de novos temas
e linguagens, além de ser ideal para o desenvolvimento do ator.
Alega-se, portanto, que o teatro está morto ou morrendo em grande parte por comparação com o
alcance quantitativo do cinema e da televisão – e é claro que o cinema está morrendo por causa da
televisão, e a televisão está morrendo por causa dos vídeos que podemos ver no computador. Mas é preciso
não confundir eficácia de comunicação com potencialidade numérica; o crítico leva em conta, ao tentar
avaliar qualquer aspecto do problema de comunicação no teatro, o fator volitivo que invalida comparações
com índices de eficiência de veículos de natureza diversa na comunicação de massa, como por exemplo os
da arte publicitária: não se pode comparar o número teoricamente atingido pelo outdoor – que muitas vezes
e propositadamente não leva em conta a mecânica de defesa já desenvolvida por todos nós para NÃO ver tal

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publicidade, com o grupo muito menor, sem dúvida, mas que PROCURA a galeria de arte, a sala de concerto
ou o teatro, com o propósito específico de buscar ali a obra apresentada. Toda a situação é diversa, pois a
condição no primeiro caso é a do registro fortuito ou quase que se realiza durante uma ação empenhada
(seja ela qual for, que leva o indivíduo a passar, casualmente, por aquele outdoor), enquanto no segundo a
condição é a da contemplação, para usar o termo de Schopenhauer para a postura estética.
E, conscientemente ou não, essa postura de disponibilidade para a apreciação estética é,
igualmente, uma postura crítica, cujo resultado pode ir do mais primário ou ingênuo dos "gostei" ou "não
gostei", dos "maravilhoso" ou " que horror", até a mais complexa das reflexões do ensaio crítico capaz de
iluminar a obra, identificando suas qualidades e imperfeições, tornando-a mais amiga e acessível. Essa
postura estética é a determinante, é claro, para a crítica ensaística, aquela que resulta do interesse que
determinada obra desperta no crítico dissociada de qualquer obrigação, que nasce sem ser por sugestão de
outrem: esse interesse, que muitas vezes leva a descobertas as mais intrigantes, que tanto pode ser fruto do
contato com uma nova quanto pela enésima leitura de alguma obra favorita, a qual descobrimos, repentina
e inesperadamente, que podemos compreender de uma nova forma, mais rica, mais interessante:
dificilmente seria mantida a atual média anual de publicação de cinco mil títulos (entre livros e artigos) sobre
Shakespeare, se a descoberta só existisse nas primeiras leituras, nos primeiros contatos. E é por uma postura
assim reflexiva, estética, que são escritos os trabalhos que nos abrem o caminho da apreciação de toda
espécie de obra de arte. Mas não podemos esquecer, tampouco, das descobertas que resultam, muito
claramente, das mudanças permanentes das sociedades que cercam criadores e críticos, e que grandes,
mesmo, são as obras que obtêm a aprovação do tempo, que sobrevivem a sucessivas análises e
interpretações segundo o pensamento dominante de cada época, tanto na estética quanto na ética.
Seja como for, e justamente porque minha intenção é a de atender à curiosidade de vocês a respeito
do exercício da crítica, prefiro parar pôr aqui e dedicar o resto do tempo a responder, na medida que me for
possível, as perguntas que acaso alguém deseja fazer.

Bárbara Heliodora
http://www.barbaraheliodora.com/criticas/critica_0.htm

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