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Tricotomia: Uma Análise Bíblica

por

Wayne Grudem

2. Dados bíblicos: Antes de perguntar se a Escritura vê


“alma” e “espírito” como partes distintas do homem, devemos
a princípio deixar claro que há forte ênfase na Escritura sobre
a total unidade do homem que foi criado por Deus. Quando
Deus fez o homem, ele “soprou em suas narinas o fôlego de
vida, e o homem se tornou um ser vivente” (Gn. 2:7). Aqui
Adão é visto como unidade, com corpo e alma vivendo e
agindo conjuntamente. Esse estado original do homem, em
harmonia e em unidade, ocorrerá novamente quando Cristo
voltar e formos totalmente redimidos em nosso corpo, assim
como em nossa alma, para viver com ele para sempre (v. 1Co
15.51-54). Ademais, devemos crescer em santidade e amor por
Deus em cada aspecto de nossa vida, em nosso corpo assim
como em nosso espírito ou alma (cf. 1Co 7.34). Devemos
purificar-nos “de tudo que contamina o corpo e o espírito,
aperfeiçoando a santidade no temor de Deus” (2Co 7.1).

Mas uma vez que temos enfatizado que Deus nos criou para
haver a unidade entre corpo e alma, devemos continuar
salientando que a Escritura claramente ensina que há uma
parte imaterial na natureza humana. Além disso, quando
olhamos para o uso das palavras bíblicas traduzidas por
“alma” (hebraico, nefesh e grego, psyche) e “espírito” (hebraico,
rûah e grego, pneuma), parece que elas às vezes são usadas
indistintamente. Por exemplo, em João 12.27, Jesus diz:
“Agora, está angustiada a minha alma” enquanto que em um
contexto muito semelhante no capítulo seguinte João diz que
Jesus “perturbou-se em espírito” (João 13.21).
Semelhantemente, lemos as palavras de Maria em Lucas
1:46,47: “Minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito
se alegra em Deus, meu Salvador”. Esse parece ser um
exemplo evidente do paralelismo hebraico, um recurso poético
no qual muitas vezes a mesma idéia é repetida usando
palavras sinônimas, mas diferentes. Essa intercambialidade
de termos também explica por que as pessoas que morreram e
foram para o céu ou para o inferno podem ser chamadas
“espíritos” (Hebreus 12.23 – “os espíritos dos justos
aperfeiçoados”; também 1 Pedro 3:19 fala de “espíritos em
prisão”) ou “almas” (Apocalipse 6.9 – “vi debaixo do altar as
almas daqueles que haviam sido mortos por causa da palavra
de Deus e do testemunho que deram”; 20.4 – “Vi as almas dos
que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e
da palavra de Deus”).
Em adição a este uso indistinto das palavras alma e espírito,
podemos também observar que o homem é visto como
possuindo tanto “corpo e alma” como “corpo e espírito”. Jesus
diz-nos para não temer aqueles que “matam o corpo, mas não
podem matar a alma”. “Antes”, disse Jesus, “tenham medo
daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no
inferno” (Mateus 10.28). “Alma” aqui claramente deve ser
entendida como referência à parte da pessoa que existe após a
morte. Além disso, quando Jesus fala a respeito de “alma e
corpo”, parece óbvio que Ele está falando a respeito da
totalidade da pessoa, embora Ele não mencione “espírito”
como componente separado. “Alma” parece equivaler à
totalidade da parte imaterial do homem.

Por outro lado, o homem é às vezes mencionado como “corpo e


espírito”. Paulo quer que a igreja de Corinto entregue um
irmão em pecado a Satanás “para que o corpo seja destruído,
e seu espírito seja salvo no dia do Senhor” (1 Coríntios 5.5).
Isso não significa que Paulo tenha se esquecido da salvação
da alma do homem; ele simplesmente usa a palavra “espírito”
para referir-se à totalidade da existência imaterial de uma
pessoa. Semelhantemente, Tiago diz que “o corpo sem o
espírito está morto” (Tiago 2:26), mas não menciona nada a
respeito da alma existindo separadamente. Além disso,
quando Paulo fala de crescimento em santidade pessoal, ele
aprova as mulheres estão preocupadas em “serem santas no
corpo e no espírito” (1 Coríntios 7.34), e sugere que isso cobre
a totalidade da vida da pessoa. Ainda mais explícito é o texto
de 2 Coríntios 7.1, no qual Paulo diz: “...purifiquemo-nos de
tudo que contamina o corpo e o espírito, aperfeiçoando a
santidade no temos de Deus”. Limpar a nós próprios da
corrupção da “alma” ou do “espírito’ envolve a totalidade do
lado imaterial de nossa existência (ver também Romanos 8.10;
1 Coríntios 5.3; Colossenses 2.5).

De modo semelhante, tudo o que é dito que a alma faz é


também dito que o espírito faz e tudo que é dito que o espírito
faz é também dito que a alma faz. Os advogados da tricotomia
enfrentam o problema difícil de definir clara e exatamente
qual é a diferença entre a alma e o espírito (da perspectiva
deles). Se a Escritura desse apoio à essa idéia de que nosso
espírito é a parte de nós que diretamente se relaciona com
Deus na adoração e na oração, ao passo que a alma inclui o
intelecto (pensamentos), as emoções (sentimentos) e a vontade
(decisões), então os tricotomistas teriam um argumento forte.
Contudo, a Escritura parece não permitir que tal distinção
seja feita.

Por um lado, não é mencionado que as atividades do


pensamento, do sentimento e das decisões são executadas
somente pela alma. Nosso espírito também pode experimentar
emoções. Temos o exemplo disso em Paulo, quando é dito que
“o seu espírito se revoltava” (Atos 17.16), ou quando é dito que
Jesus “perturbou-se em espírito” (João 13.21). Também é
possível ter “o espírito oprimido”, que é o oposto da pessoa de
“coração bem disposto” (Provérbios 17.22).

Além disso, as funções de conhecer, perceber e pensar


também podem ser executadas por nosso espírito. Por
exemplo, Marcos fala que Jesus “percebeu [grego, epiginosko,
‘conheceu’] logo em seu espírito” (Marcos 2.8). Quando o
Espírito “testemunha ao nosso espírito que somos filhos de
Deus” (Romanos 8.16), nosso espírito recebe e entende esse
testemunho, o que certamente constitui a função de conhecer
alguma coisa. De fato, nosso espírito parece conhecer nosso
pensamento muito profundamente, pois Paulo pergunta: “Pois
quem conhece os pensamentos do homem, a não ser o espírito
do homem que nele está?” (1 Coríntios 2.11).

O objetivo desses versículos não é dizer que é o espírito (e não


a alma) que sente e pensa as coisas, mas ao contrário, eles
dizem que tanto a alma como o espírito são termos usados
para descrever o lado imaterial das pessoas em geral, e é
difícil ver qualquer real distinção no uso desses termos.

Por outro lado, a alegação tricotomista de que o espírito é o


elemento em nós que se relaciona mais diretamente com Deus
na adoração e na oração não parece ter o apoio da Escritura.
Lemos muitas vezes a respeito da alma adorando a Deus e se
relacionando com Ele em outras espécies de atividade
espiritual. “A Ti, Senhor, elevo a minha alma” (Salmo 25.1).
“Minha alma engrandece ao Senhor” (Lucas 1.46).

Essas passagens indicam que a alma pode adorar a Deus,


louvá-lo e render-lhe graças. A alma pode orar a Deus, com
Ana sugere quando diz: “eu estava derramando minha alma
diante do Senhor” (1 Samuel 1.15). De fato, o grande
mandamento é: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu
coração, de toda a sua alma e de toda as suas forças”
(Deuteronômio 6.5; conforme Marcos 12.30). Não parece haver
qualquer área da vida ou do nosso relacionamento com Deus
na qual a Escritura diga que o espírito é ativo em vez da alma.
Ambos os termos são usados para falar de todos os aspectos
de nosso relacionamento com Deus.

A visão tricotomista geralmente encara o espírito como mais


puro que a alma e, quando renovado, livre do pecado é capaz
de responder às sugestões do Espírito. Contudo, esse
entendimento (que algumas vezes encontra lugar na pregação
e nos escritos cristãos populares) não têm realmente apoio do
texto bíblico. Quando Paulo encoraja os cristãos a se
purificarem “de tudo o que contamina o corpo e o espírito” (2
Coríntios 7.1), ele claramente sugere que pode haver impureza
(ou pecado) em nosso espírito. Semelhantemente, ele fala da
mulher não casada que está preocupada em ser santa “no
corpo e no espírito” (1 Coríntios 7.34). Outros versículos falam
de modo similar. Por exemplo, o Senhor tornou o “espírito” de
Siom, rei de Hesbom, obstinado (Deuteronômio 2.30). O Salmo
78 fala de pessoas rebeldes de Israel: “gente de espírito infiel”
(v. 8). O “espírito altivo” precede a queda (Provérbios 16.18), e
é possível para o pecador ter “um espírito pretencioso”
(Eclesiastes 7.8, TEB). Isaías fala dos “desorientados de
espíritos” (Isaías 29.24). Daniel diz que o “espírito” de
Nabucodonosor “se tornou soberbo e arrogante” (Daniel 5.20).
O fato de que “todos os caminhos do homem lhe parecem
puros, mas o Senhor avalia o espírito” (Provérbios 16.2) sugere
a possibilidade de pecado em nosso espírito (ver Salmos 32.2;
51.10). Finalmente, o fato de que a Escritura prova quem
controla “o seu espírito” (Provérbios 16.32) sugere que
simplesmente o espírito não é a parte pura de nossa vida que
deve ser seguido em todos os casos, mas que ele igualmente
pode ter inclinações ou desejos pecaminosos.

O que, então, Paulo quer dizer quando afirma: “que o próprio


Deus da paz os santifique inteiramente. Que todo o espírito, a
alma e o corpo de vocês sejam preservados irrepreensíveis na
vinda do nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Tessalonicenses 5,23)?
Este versículo não fala claramente de haver três partes no
homem? A expressão “o espírito, a alma e o corpo” é em si
mesma inconclusiva. Provavelmente Paulo está aqui
acumulando sinônimos para dar ênfase, como algumas vezes
acontece em outros lugares da Escritura. Por exemplo, Jesus
disse que devemos amar o Senhor “de todo o [nosso] coração,
de toda a [nossa] alma e de todo o [nosso] entendimento”
(Mateus 22.37). Será que isto significa que a alma é diferente
do entendimento ou do coração? O problema é ainda maior
em Marcos 12.30, que diz: “Ame o Senhor, o seu Deus, de
todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu
entendimento e de todas as suas forças”. Se usarmos o
princípio de que tais listas de termos dizem respeito às partes
que compõem o homem, se também acrescentarmos espírito a
essa lista (e talvez também o corpo), teremos cinco ou seis
partes no homem! Mas certamente essa é uma conclusão
falsa. É muito melhor entender que Jesus estava acumulando
termos sinônimos para demonstrar enfaticamente que
devemos amar a Deus com a totalidade do nosso ser.
Igualmente, em 1 Tessalonicenses 5.23, Paulo não está
dizendo que a alma e espírito são entidades distintas, mas
simplesmente que, seja qual for o nome que possamos dar a
nossa parte imaterial, ele quer que Deus continue a santificar-
nos totalmente para o dia de Cristo.
(Grudem, Wayne – Manual de Teologia Sitemática, Editora
Vida, págs. 208-211)

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