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Ibn Almugaffa® KaLILa E Diwna TRADUGAO, ORGANIZAGAO, INTRODUGAO E NOTAS DE Mamepe Mustara JanoucHE Brsuioteca Martins Fontes Primitivamente elaborado na India, o livro Feo ener ceee Tel amn TST MRe MTT Met EV etc UR MOR Ce Co tenccen na et Remar Ct por um letrado mugulmano de origem frure ML neat Stir Doi renat teed tana todo o-Velho Mundo, pois ha registro de Ventre sam bets (eter te Coa Core Coes acca? Peninsula Ibérica. O titulo € métonimito Oem IRC OO Gls OME Meare Te Kalila e Dimna sao os nomes dedois chacais, que figuram somente nos dois primeiros capitulos. Relas sas caracteristicasy Kalila ¢ Dima é-umia obra. qtte'se presta nao s6 a0 Pett ea ae tir taernisc ura tant Peter CMM TG tener Ty Cours ote com suas narrativas fluentes’e agradaveis; Pit ceacor mete) etme tea teen ate Te TPreCettOmren lettin Come Tesch tometer Tr Peer Reece tan eM eR (tony a considere um.autémico precursor de Ma quiavel. Ao longo da Idade Media, 0 Livro de Kalila ¢ Dina ‘constituin uma espécie de Fes tenementerolenrec er eth cel craters ent rar tnney tec site WO ne rear cera er Dies ERTS Rees EL ee arti oer aes também de seres humanos Tem emeererer Comme Darien Cou el aterm (e) portugués a partir dospriginais arabes, for Pata [tek tele lettre Thm Tn fete late curse ean eatin errant tatterter ene Breath ise) Mamepe Must Jaroucur € professor de lingua ¢ literatura arabe na USP. Entre outros foe UL sO oN Rca COLEUS Ame Um Refi Lm oe eart duziu Centd uma noites, ambos desta Editora Coragao, cabega e estomago (Ore pe Cy foe ac toner acerta cs Mceep eter arr centet Eneida Duas tragédias gregas: Hécuba e Troianas IpYterwreen (sents Lisistrata ¢ As tesmoforiantes A escola dos maridos OEE As sabichonas Escola de mulheres O tartufo © misantropo Kalilae Dimna Brstioreca Martins Fontes Karita E Dimna Ton Almugaffa® tal como imaginado por um anénimo artista egipcio do inicio do século XX Katina E DIMNA Ibn Almugaffac Trapugio, ORGANIZAGAO, INTRODUGAO E NOTAS Mamede Mustafa Jarouche Martins Fontes SGo Paulo 2005 Titulo do original érabe: KITAB KALILA WA DIMNA. Copyright © 2005, Livraria Martins Fontes Editora Lida., Sao Paulo, para a presente edicdo, I edigao abril de 2005 ‘Tradugao, introduc e notas -MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE Acompanhamento editorial Lucia Aparecida dos Santos Revisdes gréficas Renato da Rocka Carlos Solange Martins Dinarte Zorzanelli da Silva Produgio gréfica Geraldo Alves Paginacéo/Fototitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial ‘Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tbn al-Mugaffat Kalfla e Dima / Ibn Almugaffs®; tradugi0, organizacio, intro- ‘dugdo © notas Mamede Mustafa Jarouche. - Séo Paulo : Martins Fontes, 2005. - (Biblioteca Mastins Fontes) ‘Titulo original: Kitt Kalfla wa Dimna. Bibliografa. ISBN 85-336-2120-5, 1. Fébulas érabes I. Jarouche, Mamede Mustafa. IL Titulo. HI. Série. 05-1769 cpp. Indices para catélogo sistematico: 1. Fébulas: Literatura érabe 892.73 Todos os direitos desta edigdo para a lingua portuguesa reservados & Livraria Martins Fontes Editora Lida. Rua Conselheiro Ramatho, 330 01325-000 Séo Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 e-mail: info@martinsfontes.com.br huip:tIwwwmartinsfontes.com.br INDICE AGRADECIMENTOS. XI NOTA SOBRE A TRADUGAO XIII VICISSITUDES DE UM LIVRO E DE SEU AUTOR XVII KALTLA E DIMNA 1 ABERTURA 3 PROPOSITO DO LIVRO, POR SABDULLAH IBN ALMUQAFFAS 5 Ohomem eo tesouro 6 O petulante eo pergaminho amarelo 7 Odorminhoco eo ladrao 7 O vendedor de sésamo e seu sécio (I) 9 Ohomem pobre e 0 ladrao 10 O vendedor de sésamo e seu sécio (II) 15 O ladrao que se enganou de pote 14 Os trés irmaos 15 O pescador ea pérola 16 O ENVIO DO MEDICO BURZUWAYH A INDIA PELO REI KiSRA’ANU XIRWAN 19 O MEDICO BURZUWAYH, NAS PALAVRAS DE BUZURJMIHR IBN ALBAUTIKAN 29 Ocrédulo tapeado 33 A mulher e 0 amante flagrado 35 O mercador de pérolas e 0 perfurador 37 O homem, sofredor desde a concepgao 40 O homem que se refugiou num pogo 43 OLEAOEOTOURO 45 O homem que fugia do lobo 47 Omacaco eo carpinteiro 48 A raposae otambor 55 Oascetaeoladrao 58 A mulher devassae sua criada 58 A mulher do sapateiro e sua vizinha 59 Ocorvo eacobra naja 62 A gaivota, os peixes e o caranguejo 62 Oledoeaslebres 64 Os trés peixes 67 O piolho ea pulga 70 O ledo, 0 camelo, 0 lobo, 0 chacale o corvo 76 O guardiao do mare aave 80 Os dois patos e a tartaruga 81 Os macacos, 0 passaro e o vaga-lume 86 O velhaco e o idiota 87 A gaivota, a cobra naja, o caranguejoeadoninha 88 O mercador de ferro e seu conhecido 90 INVESTIGAGAO ACERCA DE DIMNA 93 A mulher do mercador, seu amante e seu criado 100 O médico ignorante 107 O agricultor e suas duas mulheres 109 O sdtrapa, sua mulher e seu falcoeiro 113 A POMBA DE COLAR 119 Orato, o ascetae o hdspede 126 A mulher que trocou sésamo descascado por sésamo com casca 127 O cagador, 0 veado, 0 javalie o lobo 127 Os CORUJOES E OS CORVOS 139 A origem da inimizade entre corvos e corujGes 144 Olebrao e o rei dos elefantes 145 O passaro medroso, a lebre e 0 gato devoto 147 Oasceta, 0 cabrito e os trapaceiros 150 O mercador velho, sua jovem esposa e o ladrao_ 153 Oasceta, a vaca leiteira, o ladréo e o deménio 153 O carpinteiro, sua esposa e o amante dela 154 Oascetae a rata transformadaem menina 157 A serpente envelhecidae o rei dos sapos 160 O MACACO EO CAGADO_ 165 O ledo, 0 chacal e o burro sem orelhas nem coracao 170 O DEVOTO EO MANGUSTO 173 O devoto ea jarra de banhae mel 173 “IBLAD, TRAUT E XADARM, REI DA inna 17 O pombo, a pomba e o estoque de trigo e cevada 188 O macaco eas lentilhas 189 MIHRAYAZ, O REI DOS RATOS 201 O rei que tapou o buraco de onde safam os ventos 204 O asno que quis cornos e perdeu as orelhas 205 OGATOEORATO 213 OREIEA AVE FINZA 221 OLEAO EO CHACAL 227 O PEREGRINO E 0 OURIVES 241 O FILHO DO REIE SEUS COMPANHEIROS 247 A LEOA EO ANIMAL XACHAR 253 O ASCETA EO HOSPEDE 257 Ocorvoeaperdiz 258 [EPritoco] 259 COLOFAO 261 ANEXO 1: A APRESENTAGAO... 263 A cotoviae oelefante 268 ANEXO 2: A POMBA, A RAPOSAE A GARCA 285 NOTAS 287 AGRADECIMENTOS FAPESP; Biblioteca Nacional do Egito; Servigo de Aquisigao e Intercambio do SBD da FFLCH/USP; *Abn Ala’ “Abdurrahman ASiarqawt, ‘Afaf Assayid, Mahmoud Tarchouna, Mamdth ‘Alt Ahmad, M. ‘Isam Fawzi; Adma Fadul Muhana, Carlos Alberto da Fonseca, Julia Maria de Paiva, Marcia Elisa Garcia de Grandi, Safa Jubran. XI NOTA SOBRE A TRADUGAO Como edi¢ao principal, espécie de “texto-base”, foi adotada a do fildlogo egipcio ‘Abdulwahhab ‘Azzam, baseada no manuscrito da- tado mais antigo, de 618 H./1221 d.C., e aqui indicada como A. Con- sultou-se tanto a primeira edigao (Cairo, Dar Almacarif, 1941) como a segunda (Argel/Beirute, Ministério da Educagao/Dar Axxurtq, 1973), na qual se operam algumas modificages no corpus fixado por Azzam e se suprime a apresentagao, de qualquer modo pifia, do fic- cionista e critico Taha Husayn. Utilizaram-se ainda, como edigées de apoio: B: edicdo do padre jesuita turco-libanés Luis Cheikho (Beirute, Almatba‘a Alkatultkiyya, 1905). Foi o principal texto de apoio para a traducao, em virtude da antiguidade de seu manuscrito, datado de 739 H./1339 d.C. Utilizou-se B1 para indicar os capitulos que Chei- kho introduziu em sua edig¢4o mas que nao constavam do manus- crito utilizado como base, e sim de um outro do século XVIII ou da edigao do capitulo “O rei dos ratos” feita pelo arabista Noeldeke. Ressalve-se que nao se trata da edigao escolar, para uso de ginasia- nos, feita por Cheikho alguns anos depois; C: edigao de "Ahmad Hasan Tabbara (Siria, sem indicagao de ci- dade, data ou editora. A Encyclopaedia of Islam refere “Beirute, 1904”), baseada num manuscrito de 1080 H./1675 d.C.; XT Karita & Dimna D: edigao do Cairo, com ultima revisio de ‘Ibrahim Addasaqi cAbdulgaffar, 1285 H./1868 d.C., e baseada na muito criticada edigdo do arabista francés Silvestre de Sacy, Paris, 1816; Guidi: edigao de fragmentos, que nao constavam da edigao de Sacy, publicados pelo arabista italiano Ignazio Guidi (Studii sul testo arabo del Libro di Calila e Dimna, Roma, Libreria Spithéver, 1873) a par- tir de trés manuscritos, dois sem data e um datado de 1701. Talvez por falta de uma tipografia provida de caracteres arabes, Guidi publi- cou tais fragmentos com sua propria caligrafia arabe, em que pese 0 paradoxo de se dar o nome de “caligrafia” aos seus garranchos, de lei- tura bastante desagradavel. Além dessas, também foram consultadas outras edigdes arabes correntes, como as de M. N. Almarsaff, ‘Ilyas Haltl Zabariyya e Yaziji e a versio metrificada do século XI de Ibn Alhabbariyya (Bei- rute, Dar Almawasim, 1995, ed. de Hasan Asim). Das tradugGes, citou-se exaustivamente a espanhola de 1251, na excelente edi¢ao de Juan Manuel Cacho Blecua e Maria Jestis Lacar- ra (Calila e Dimna, Madrid, Editorial Castalia, 1984), bem como, ape- nas para referéncia, a erudita mas em muitos pontos discutivel tra- dugao francesa de André Miquel (Le Livre de Kalila et Dimna, Paris, Klincksieck, 1980, 12. ed., 1957). Toda remissdo as tradug6es em sirfa- co, persa ou hebraico, bem como ao Paficatantra, provém dos apara- tos criticos estabelecidos por ‘Azzam ou Cheikho, salvo indicagao expressa em contrario. Para transcrigao das letras arabes, lang¢ou-se mao do seguinte sistema: ’ bttj hhddrzsxsdtz‘gfqkIlmnh wy; paraas vo- gais longas, 4, G, 7; para o “a breve” final, a. Trata-se, na pratica, do sistema internacionalmente utilizado pelos orientalistas, com duas excegGes: para a fricativa palatal sonora, j em vez de g; e, para a fri- XIV Nota SOBRE A TRADUGAO. cativa palatal surda, x em vez de S. Existe, talvez, alguma arbitrarie- dade no uso do x, mas bem menor, por exemplo, do que a de certos arabistas espanhdis, que usam 0 j para indicar a fricativa velar surda he o y com acento grave (“) para indicar o g. Para a transliterac¢ao das palavras arabes, nao se transcreveu o | do artigo definido inva- ridvel “al” quando sucedido pelos fonemas ditos “solares” (tt dd rz sxsdtzn), que o assimilam, nem se usou 0 hifen para separar 0 ar- tigo da palavra por ele determinada. Assim, em vez de al-sayf, optou- se pela transliteragao assayf. Alguns nomes de cidades arabes talvez causem estranheza, como Albasrae Alkafa (pois em arabe somente se utilizam antecedidos de artigo), em vez dos injustificaveis embo- ra hoje disseminados “Basra” (ou, o que € pior, “Bassora”) e “Kufa” (ou “Cufa”). Para os nomes préprios masculinos compostos de ‘Abd (‘adorador”) e Allah (“Deus”) ou algum de seus atributos, optou-se pela grafia fundida, mantendo-se o primeiro termo no caso nomi- nativo: ‘Abdullah, ‘Abdulhamtd, ‘Abdurrahman etc. Caso, porém, tal nome estivesse regido por Ibn ou Bin (‘“filho [de]”), a transcrigao pos 0 primeiro termo no genitivo: Ibn ¢Abdillah, Ibn “impossiveis de solucionar”: nao constava da edi¢ao principal, isso foi indicado con- forme o seguinte modelo: 5D: + “mas em seguida os homens partiram”. Isso posto, deve-se acrescentar que, obviamente, muitas vezes as edi¢des apresentaram variac6es tao radicais que se tornava impossivel sua indicag¢4o pormenorizada; nes- ses casos, as notas se limitam a referir 0 fato. A excegao, como se observa na introdugao, ficou por conta do capi- tulo “Investigagao acerca de Dimna”; Il) Indicagao dos trechos ou palavras cuja tradugao se conside- rou significativa, curiosa ou problematica. Nesse caso, trans- creveu-se e transliterou-se em drabe o trecho ou a palavra; Ill) Observagées de ordem lingiiistica ou histérica que parece- ram pertinentes ao tradutor, em especial no que tange as re- lagGes do texto arabe com o da tradugao espanhola medieval. Finalmente, cumpre ressalvar que a leitura do aparato é dispen- savel ao leitor que nao esteja interessado em questies desse género. XVI VICISSITUDES DE UM LIVRO E DE SEU AUTOR Deixando de lado as interminaveis e nem sempre frutiferas dis- cussdes a respeito das fontes e origens de Kalila e Dimna, deve-se sa~ lientar que a proeminéncia desse livro transcende em muito o ambi- to da cultura arabe-islamica. Traduzido para quase uma trintena de idiomas (e nao raro por mais de uma vez), é considerado uma das mais importantes fontes do fabulario universal. Para ficar no limite de apenas algummas linguas ocidentais, dele existem uma tradugao gre- ga (século X), trés latinas (duas no século XII e uma no XIV), quatro espanholas (séculos XIII, XV, XVII E XVIII)! e trés italianas (século XVI). Todas essas tradugées, e muitas outras mais, foram feitas do arabe ou a partir de alguma tradugao cuja origem era o arabe, numa “cadeia de transmissao” por vezes extensa. Como exemplo, cite-se 0 caso da tradugao inglesa de 1570: ela foi feita a partir de uma tradu- ¢40 italiana de 1552, que, por sua vez, tinha sido feita sobre a tradugao hebraica do rabino Joel, em 1270, a qual, enfim, provinha da tradu- 40 arabe do século VIII. Nao é esse, ao que tudo indica, 0 caso da pri- 'Existe um problema de datagao relativamente 4 primeira tradugao espanhola (feita "por mandado del infante don Alfonso, fijo del muy noble rey don Fernando”), cujo colofio traz.a data de “mill et dozientos et noventa et nueve afios*. Segundo J. M. Cacho Blecua e M. J. Lacarra, responsaveis pela fixagao do texto, essa data corresponderia a 1261 da Era Crista — mas Alfonso fora coroado rei em 1251, 0 que torna contraditéria tal datagao. CE. Calila e Dina, edig3o de J. M. Cacho Blecua e Maria Jestis Lacarra, Madrid, Castalia, 1984, pp. 12-9, As outras tradugdes espanholas sio, respectivamente: 1) século XV: “Exemplario contra los engatios y peligros del mundo”, Saragoca, 1493, Pablo Hurus, feita sobre a versio latina de Juan de Capua, que por seu turno se baseava na hebraica de Joel; 2) sé- culo XVIL “Espejo politico y moral para principes y ministros y todo género de personas”, por V. Bartolomeu Brattuti, intérprete de Felipe IV, feita sobre uma versio turca; e 3) século XVII, feita pelo orientalista José Conde em 1797 ¢ inédita até pelo menos 1984. XVII Katia & Dimna meira tradugao espanhola, feita no século XIII, por ordem de Al- fonso, o sabio, diretamente do texto drabe. Essa tradugio, alids, teve importancia consideravel no posterior desenvolvimento da prosa es- panhola?, fato que, entre muitos outros, amplia a relevancia do texto arabe e do estudo de suas apropriagées no interior da cultura ibérica. Reza a tradi¢ao que o Livro de Kaltla e Dimna foi traduzido ao arabe (expressdo que se deve tomar cum grano salis, uma vez que, na época, era comum utilizar, para textos postos em lingua drabe, uma ex- pressao equivalente a “interpretar”) em meados do século II H./VIII d.C. Até o presente momento, nao se conhece uma edigo critica dessa tradugao — talvez devido ao excessivo numero de manuscri- tos, que se dividem em seis familias‘—, e por isso impe-se fazer tabula rasa de algumas condi¢ées prévias para um trabalho mais satisfatorio a respeito. Seja como for, a mesma tradi¢ao atribui a tradugdo a um letrado de origem persa denominado Razbth (“feliz e bem-aventu- rado em todos os seus dias”), 0 qual, ao se converter ao islamismo, adotou o nome de ‘Abdullah, embora tenha sido sempre mais co- nhecido pela alcunha, por sinal bem pouco honrosa, de Ibn Almu- qaffa‘. Segundo alguns relatos histéricos, esse personagem, nascido em 80 H.5 na aldeia persa de Gur (atual Fayrtzabad, pertencente ao ? CE. a biografia citada por Blecua e Lacarra, op. cit., pp. 75-7. 3 Quanto a datagao, convém observar que em alguns momentos esta introdugio dé ambas as datas, a islamica e a cristd; nalgumas vezes, porém, dé apenas a islamica, e, em outras, apenas a crist@. Mas 0 Ieitor que o desejar poderd converter ambas as datas usando as seguintes f6rmulas, convencionan- do-se aqui “G”, de “gregoriano”, para 0 ano cristo e “H”, de “Hégira”, para o muculmano: a) para encontrar 0 ano cristdo: G = H - (H = 33) + 622; b) para encontrar o ano islamico: H = G - 622 + (G- 622) + 32}, Assim, aleatoriamente, suponha-se que se queira encontrar o equivalente islamico do ano de 1500 d.C.: H = 1500 - 622 + (1500 - 622) ~ 32], o que resultaria 905,4375, ow seja, o ano de 1500 4.C. equivale 905 ou 906 H. 4CE. Sprengling, Martin. “Kalila Studies. I”, in: The American Journal of Semitic Languages and Literatures, vo- lume XL, n. 2, janeiro/1924, pp. 81-97, e ainda, apesar dos erros do artigo, as referéncias de Brockel- mann, C. “Kalila wa Dimnna”, in: The Enciclopaedia of Islam, v. 1V, 2 ed., 1990, pp. 503-6. 5 Normalmente, os historiadores situam a data de nascimento do autor em 106 H. (724 d.C.). Preferiu-se aqui, porém, seguir o pesquisador iraniano Muhammad Gufrant Alburdsant, que, baseado em ar- XVII VICISSITUDES DE UM LIVRO E DE SEU AUTOR distrito de X1raz), fora anteriormente adepto da religiao de sua fami- lia, o maniqueismo. Seu pai, “Dadawayh”, encarregado de recolher impostos (faraj) na regiao, teria se apropriado de algum dinheiro pertencente ao governo, motivo pelo qual sofrera torturas que Ihe atrofiaram a mio: almugaffa‘ significa “aquele que tem a mio atro- fiada”; portanto, Ibn Almugaffa‘, “filho daquele que tem a mio atrofia- da”. Eis como 0 episédio é narrado pelo historiador levantino *Ahmad Ibn Hallikan (608 H./995 d.C. — 681 H./1064 d.C.): “Seu pai [de Ibn Almugaffa‘] era coletor de impostos na Pérsia, por nomeagao de Alhajjaj Ibn Yusuf Attaqaff, governador do Iraque [de 75 a 95 H.]. Porém, quando ele se pés, segundo dizem, a manipu- lar verbas para gasta-las com luxo e opuléncia, provocou a colera de Alhajjaj, o qual determinou que ele sofresse um doloroso espanca- mento, até que sua mio se atrofiou, e por isso ele ficou conhecido como almugaffa‘ [o de maos atrofiadas].”6 Seja qual tenha sido o motivo, em 95 H., durante a vigéncia do Estado Omfada, a familia foi estabelecer-se na cidade de Albasra, en- gumentos bastante plausiveis, sugere 85 H., o que desfaz 0 mito, muito caro a alguns, do "grande autor” abatido em plena juventude promissora, aos 36 anos, conforme diz Ibn Hallikan. C&. “Abdullah Ibn Almugaffas, 1965, Cairo, Addar Algawmiyya Littibara wa Annaxcr, pp. 63-6. Para uma visio sintéti- ca, embora nitidamente falha, sobre a vida desse autor, pode-se consultar Gabrieli, F. “Ibn al-Mukaf- fac”, im: The Enciclopaedia of Islam, cit., v. II, pp. 883-5. 6 Wafayat al’a:yan wa ‘anba'‘abna’ azzaman (A morte dos notaveis as noticias dos filhos de cada época, numa tradugio que perde toda elegincia do original), Cairo, Maktabat Annahda Almisriyya, 1948, v.1,p. 415. Nessa enciclopédia biogréfica, um dos mais importantes conjuntos de relatos sobre escri- tores arabes, a biografia de Ibn Almuqaffa¢ surge, de modo aparentemente incidental, como resposta a um anacronismo relatado por outro historiador, dentro da biografia do famoso mistico Alballz), executado sob a acusagdo de heresia em 922 d.C. Jé no Alfilrist (Catdlogo), de ‘Aba Alfaraj Muham- mad Ibn "Abo Ya‘qab "Ishaq Annadim, dito Alnarraq (o livreiro), obra enciclopédica do século X na qual se procurou repertoriar todo os saberes existentes em lingua arabe, o relato € um pouco dife- rente: “ele (0 pai de Ibn Almuqaffas| ficou atrofiado porque (0 governador] Alhajjaj Ibn Yasuf supli- ciou-o, em Albasra, em virtude de verbas do governo, verbas essas que ele havia enganchado; foi um suplicio atroz que Ihe atrofiou a mao” (Beirute, Dar Almastra, 1988, p. 132, edigdo de Rida Tajad- dud), Situando o local do suplicio em Albasra, a narrativa torna-se problemnatica e questiondvel. Cum- Pre observar que os relatos dos diversos historiadores, como Albaladurl, Aljahxiyarl e outros, apre- sentarn contradiges entre si. Cf: Sourdel, Dominique, “La biographie d'lbn al-Mugaffas d’apris les sources anciennes”, in: Arabica, I, 1954, pp. 307-23, XIX Kavita & Dimna to prospero centro intelectual e econémico para onde afluiam aos magotes nao sé os mucgulmanos, “antigos” e recém-convertidos, como também beduinos, persas, cristaos e indianos. E tao forte era a presenga da cultura indiana no lugar que ele ficou conhecido como “India”. De acordo com o pesquisador contemporaneo M. G. Alburasant, Ibn Almugaffa‘ teria se beneficiado com o pujante am- biente cultural da cidade, ampliando seu conhecimento em todos os campos do saber e estreitando amizades com gente de mor quali- dade, como 0 mais celebrado escriba dos Omiadas, ‘Abdulhamtd Ibn Yahya Alkatib8. Apesar de ter, ao que tudo indica, gozado do respei- to dos Omiadas, Ibn Almugaffa‘ parece haver passado incélume pela revolugao que os depés e levou ao poder os Abéssidas, a cujo servigo, alids, ele logo se colocou. Seguindo o mesmo Alburasani, ora esco- Ihido como guia, “em Albagra, a fama de Ibn Almugaffa‘ [como le- trado] chegou a todos os circulos e pairou por todo canto. O governa- dor abissida da cidade, Sulayman Ibn ‘Aly, tio do califa Almansar, conheceu-o, aproximou-o da corte local e ficou muito admirado com ele, tomando-o como mestre para um de seus filhos”®. Tam- bém trabalhou como escriba para outro tio do califa, ‘Isa Ibn ¢Al, governador abassida da regido de Kirman, possivelmente entre os anos de 133 e 136 H. E parece ter residido em Alkafa, por alguns anos T Layla Hasan Satd Addin, Kata wa Dinma fral‘adab aFaratt (Katia e Dima na literatura érabe). Ama, Ar- risala, sid. 8 Uma anedota mencionada, entre outros, pelo historiador Aljahxiyart, narra os seguintes eventos, imediatamente posteriores a derrubada da dinastia Omiada pelos Abissidas: “[comesou-se a] procu- rar pelo escriba “Abdulhamtd Ibn Yahya, 0 qual era amigo de Ibn Almugaffas. Ambos foram sur- preendidos juntos numa casa. Perguntaram os nvasores: qual de v6s dois éAbdulhamntd?" Responde- ram ambos: ‘eu’, por medo de que seu companheiro fosse atingido por algo desagradavel; porém, temeroso de que prendessem Ibn Almugaffa’, disse “Abdulhamtd: ‘muita calma! Como eu possuo alguns sinais, que alguns de vés fiquem nos vigiando enquanto outros se dirigem a quem vos man- dou aqui, a fim de mencioné-los para ele’. E assim se fez, sendo entio preso “Abdulhamtd”. In: Kitab aluuzara’ wa alkutb (Livro dos vizires e dos escribas). Texto estabelecido por “Abdullah Aggawt. Cai- 10, Matbacat ‘Abdulhamtd, 1938, p. 52 9 Op. cit., p. 69. XX VICISSITUDES DE UM LIVRO E DE SEU AUTOR capital do califado, até que em 145 H., segundo o historiador AttabarT (morto em 310 H./923 d.C.), 0 califa Almansa se decidisse pela construgao de Bagda. Foi por volta dessa €poca, pouco antes ou depois, que Ibn Al- mugaffa‘ resolveu converter-se ao islamismo — mas a motivagao, conforme observa Alburasant, parece meio inverossimil: os histo- riadores mencionam seu repentino encantamento com a recita¢ao do Alcorao, ouvida por acaso quando passava pela rua; dirigiu-se en- tao a Isa Ibn ‘Alre anunciou: “o islamismo encontrou seu caminho para o meu cora¢ao; quero converter-me pelas tuas maos”, o que foi providenciado logo no dia seguinte, na presenga de testemu- nhas. Contudo, 0 relato é inverossimil porque, vivendo numa cida- de mugulmana, nao parece razoavel que somente naquele instante Ibn Almugaffas se tivesse dado conta da beleza da recitagao do texto sagrado mugulmano. Mas as fontes referem a importancia conferi- daa tal atitude — “que seja na presenga de [muitas] pessoas e de ho- mens versados em religido”!, disse-Ihe ‘Isa —, 0 que evidencia o prestigio do neoconverso. Esse progressivo envolvimento, no entanto, acabaria culminan- do em sua sentenga de morte: em 137 H., um dos tios do califa Aba Jafar Almansar, ‘Abdullah Ibn cAlt, irmio do ja citado Sulayman Ibn ‘Al, sublevou-se contra o governo do sobrinho, reivindicando para si o califado — ao qual, alias, julgava fazer jus por ter sido sob seu comando que os Abassidas infligiram decisiva derrota aos Omia- das. Durante a sublevac3o contra o sobrinho, porém, o talento mi- litar nao lhe parece ter sido de grande valia: suas tropas foram des- 106, , ao": ees a versa ina presenga de muitas pessoas e de homens versados em religiio”: essa é a versio de Ibn Isfandiyar (que viveu no século VII H_/XIII d.C.), divulgada por M. G. Alburasant (op. cit, p. 71). J& a versio de Ibn Ballikan diz: “na presenga das liderangas e dos homens notaveis" (op. cit, p. 413). XXI Katina & Dimna baratadas apds cinco meses de combate, e ele se viu obrigado a refu- giar-se em Albasra, na casa de seu irmao Sulayman, ainda governa- dor da cidade. O califa determinou que Sulayman fosse pressionado a entregar ‘Abdullah. Apds algumas tratativas, chegou-se a um consenso: o califa daria garantias de vida ao tio mediante um termo de compromisso (‘ahd), que seria assinado entre 138 e 139 H. Eo en- carregado de redigir esse compromisso foi Ibn Almugaffas, o qual, muito cuidadoso, fé-lo em termos tais que ndo permitissem nenhu- ma interpretacdo equivoca. Abaixo, a tradug4o conforme o relato mais antigo, que € o do historiador Muhammad Ibn . Existem outros elementos para comparacao: em 1875, 0 estu- dioso I. P. N. Land publicou A légica siriaca, de Paulo, o persa, um dos poucos textos que sobreviveram do periodo de Kosroes (531-579 d.C.), rei da Pérsia, que os arabes conhecem como “Kisra”. Como afir- ma 0 arabista tcheco Paul Kraus, pouco se sabe desse Paulo além do fato de que, natural de Dirxar (?), frequientou a corte de Kisra e era muito versado em teologia e filosofia; porém, ao ser preterido na fun- go de bispo da Pérsia, tornou-se astrélogo. Paul Kraus supe que o trecho a seguir traduzido serviu de base para a redaco de parte do “Capitulo do Médico Burzuwayh”: % Amid . Enfim, o cronista e historiador Almas‘adt, morto em 956 d.C., referindo-se aos reis da India, fez um registro dubio: “depois reinou Dabxalim, que é 0 criador [wadi‘] do livro de Kalla e Dimna, o qual é atribuido a Ibn Almugaffa‘. E Sahl Ibn Haran, escriba do principe dos crentes Alma’mnon, elaborou-lhe um livro — que ele intitulou Tula [ou Ta‘la] e Ufra [ou

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