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CIDADANIA NA ESCOL/ DESAFIO FE COMPROMISSO Jolie Reis* 1. Introdugao ‘A educagao para a cidadania constitui, no nosso tempo, um desafio © jum compromisso para todos os responsiveis na formagio dos publicos ‘escolares. Um desafio, que embora aparega como uma questo consensual na Sociedade portuguesa, esa longe de se tornar uma realklade. A considerivel unanimidade em torno da importineia da edueagdo para a cidadania e do reconhecimento da escola como lugar privilegindo para 0 seu desenrolar, parece no tr ainda equivaléncia nas pritias de trabalho e de relgio que se estabelecem nas comunidades escolaes. Estamos perante um desafio que consiste em tomar realidade uma questo que surge como consensual na sociedade portuguesa Juslfica-s assim, a centralidade que a edacagao para ‘8 cidadania assume no diploma legal da reorganizagao curricula, em curso, nos diferentes ciclas do ensino bisico (Decreto-lei 6/2001). Esta situagio comporta novas exigéncias, em particular, a0 trabalho dos professores. Trata-se de construit praticas de tabalho escolar capazes de desenvolver ccompeténcias para o exerci deve traduzi-se num verdadeiro compromisso com a eidadania nes escola. A centralidade da educagio para a cidadania é em granle medida, determinada pelas perplexidades e desafios do nosso tempo que exigem a revitalizagao dos lagos de cidadania, no sentido da maior parteipagio na via social e politica, num contexto de abertura pessoal aos valeres Como refere Naval (1995), a ideia de educar para a cidadania aum mundo ‘complexo, no correspond nem ao pitoresco aparato do curreuly de form ‘540 morale civica de outros tempos, nem a um complemento da educagio ‘eral, ideologicamente necessirio, mas earente de validade cognitiva eafec- tiva, Trata-se de uma tarefa essencial nas sociedades livres que associa as diferentes dimensdes da cidadanis: responsabilidade social e mera, partici- pagdo na eomunidade e Iiteracia politica (Crick Report, 1998) Facuade de Letras Universidade de Lisbon Inorg, 15, Lisboa, Edges Cali, 2000, pp. 105.116 na Inforgeo 18 ~ Educagho Geogrifia A introdugo das questdes de cidadania de forma transversal nos pro- sgramas escolares en criagio de éeas cuticular préprias para 0 seu desen- volvimento toma necesséria uma clavificago conceptual e uma atengao renovada na formacao dos professores. Importa clarifiar 0 sentido © 0 contetido da educagio para a cidadania, para que os professores possam desempenhar melhor o seu papel de formadores das competéncias,eapacid des ealitudes implicadas nesta materia, Embara esta problemétiea implique todos os professores e reas de , interessa aqui sublinhar que os professores de Geografia podem encontrar nas questbes de cidadania um sentido renovado para o seu ofci. ‘Com efeito, o compromisso de cidadania inscreve-se na vocario cultural € palitica da geografia escolar e encontra eco nos prineipins estabelecidos pela Carta Internacional sobre a Educagio Geogrifiea (UGI, 1992). Deste modo, {quer os novos planos de estudo do ensino bisieo, quer 0 traballo nas reas ‘curriculares nao diseiplinares permitem ao professor de geografia desenvol- ver pritieas onde as questdes de cidadania t8m um papel ineontoraivel, Neste contexto, procura-se em primero lugar clrificar o coneeito de cidadania © apontar alguns dos principaisaspectos que justificam a sua pre= songa na agenda escolar. Em segundo lugar, sio apresentadas as dimensdes © conceitas que alravessam a educagao para a cidadania, apontande uma pers- pectiva pedagégica e um linguagem facilitadora do entendimentsc das exi- sgéncias que se colocam ao trabalho escolar. Em terceio lugar, so identii- tadas as compoténcias de cidadania que devem ser tomadas como referencia 1» operacionalizagio dos projectos eurriculares de escola e de turma. Por im, apresentam-se algumas consideragdes que o ensino e a aprendizagem da Geografia devem observar para responder eficazmente no comromisso de cidadania da educago geogréfica do nosso tempo. 2, Sobre a coneeito de cidada |A ideia de cidadanin nasce da transformagio do stibdito em cidadto, em resposta aos desafios do contexto historico e social. Essa transformagio consttui um patriménio de valor inquestionavel para as sociedades demo- criticas do nosso tempo. O desenvolvimento da cidadania, ancorado na liber- dade e na democracia, permitiu alargar as possibilidades de paticipagio Civica e a construgio de sociedades mais just. A cidadania é, portanto, uma qualidade de todos os membros de uma sociedad, conferindo-Ihes direitos e deveres de participacao na vida pica. Dai resulta uma capacidade integradora traduzida, no apenas numa iguali- ‘ago de direitos formais, mas também num sentimento de pertenga a uma ‘comunidade de cidadios.'Os deveres numa sociedade democrética consti- tem a outra face dos direitos e so encarados como responsabilidades, for- ‘mando uma rede de obrigagdes horizontais. muma comunidace. Fora da comunidade no € possivel stingir © pleno desenvolvimento da personali- dade, os nassos deveres perante aquela sto elemento constitutive desta, ldadania a Escola: Desao€ Compromiose us Este modelo de cidadania que se desenvolveu nas soviedades democr’- sivas reelama actualmente um alargamento e um aprofundamento, deforma a ‘encontrar respostas para os novos problemas que se colocam a0; cidadio. ‘As mudangas a que assstimas em todos os sectores da nossa sociedade no invalidam as formas tradicionais de cidadania: associadas 4 ideatidade, a0 terttério nacional e a0 exercicio dos direitos civis e politicos. Contudo, esses formas tornaram-se insuficientes, 0 modelo de cidadania tem de evolu para formas mais especializadas capazes de responder a fliagbes mais locais ou mais transnacionais ¢ integrar os grupos que (&m permanecido excluidos de uma cidadania efectiva, © aprofundamento da cidadania esti cada vez mais ligado i acglo face a problemas como: o ambiente, o urbanismo, « qualidade de vida, a exclusio social, © emprego e o desemprezo, os direitos das mino- rins, a transparéneia na administragao e, naturalmente, a utilizagio das tec- nologias de informaga0 e comunicagao. ‘Uma eidadania renovada exige mais responsabilidad dos ciadios que somos todos nés (os jovens no esto & parte). Falamos das responsabili ddes que cada um fem perante a sua comunidade, o que inclui a responsabili ddade de exigit que aqueles que ocupam cargos piblicos prestem contas do seu desempenho, A coneretizagio deste modelo de cidadania implica: sen- tido da identidade, cultura civiea, formago e autodeterminagao para a parti- cipagio. Como salienta uma publicacio oficial recente (ME-DES 2001), uma vex que a vitalidade da demacracia exige autonomia individual eeapacidade pessoal de cuidlar dos interesses proprios, as chamadas “virtues sciais” e as ‘competéncias eivieas so indispensiveis para a constituigdo e manutengo da sociedade, 3.4 cldadania na agenda escolar Superado o ambiente relativista de décadas anteriores assistimos, nos anos oitentae noventa, a uma sucesso de declaragdes de intengtes, da parte de responsiveis da educagio, sobre a importincia da formagio’ moral e ivica dos piblicos escolares. Surgem recomendagdes de_organismos internacionais, consagram-se suportes legais no mbito dos. sistemas educativos, multiplieam-se os programas de acgo que, um pouec por todo 0 lado, visam promover edueagio para a cidadania nas escolas. Muito chucidativa deste movimento & a compilagdo de textos internacionais sobre edueaglo para a cidadania feta por Reis Monteiro (2001). ‘A importincia que o problema da formagao dos eidadaos tem vindo a assumir, inscreve-se no alargamenta do campo de intervengao da escola e na redefinigo do seu papel social. Com efeito, nos sistemas edwativos das sociedades democriticas, os modelos de abordagem da educsgdo para a cidadania revelam um claro avanga no processo de explicitagao das inten- ‘es em dominios como a educagio para os valores, o desenvolvimento do raciocinio moral e das atitudes democriticas. O desenvolvimento destes dominios est implicito na formagao para o exerci de uma eidadania res- 16 Iforgen 18 Educagto Geogrifca ponsivel. Como defende Chokni (1995), preparar as novas gepBes para ‘uma intervengio mais activa e responsivel na sociedade civil implica ajuda -las a viver uma cidadania no espago escolar, tarefa que nfo pod dispensar ‘uma estatégia global de educagdo para a cidadania ‘As esiratégias de reestuturagio da educagao, ensaiadas nas cltimas ‘décadas, procuram oferecer uma resposta satisfitéria aos desatins e trans- formagdes da ordem politica, econémica e social. Na Europa Ocidental, rnwitos dos sistemas educativos do pas-guerra foram eriados na canvicgto de que as pessoas era politicamente educadas. Entretanto, as midangas na ‘ordem politica e social deram origem a geragdes em que isso ao se veri- fica, Em paralelo, assistimos ao acesso, praticamente generalizado, a uma excolaridade bisica obrigatéria que se estende, em muitos easos, ror cerea de ddez anos, Entre outros, estes dois factores vieram reforgar as expectativas da sociedade relativamente ao papel da escola e 20 peso efectivo desta na edu- cago global dos seus piblicos. Coneorrem também, para colocar a educagio para a citadania na agenda escolar, as condigdes de formagdo ¢ socalzagfo das noves geragdes, onde a escola dupa o lugar de iatermedirio entre a familia ea vida pabliea (Gacial e politica), Face as transformagdes sociais rpidas, interessa salientar ‘alguns obsticulos e dificuldades que se calocam familia e eseola no exer- cio das suas responsabilidades educativas. (0 processo de modemizaglo das estruturas familiares pareze produzi uum vazio de espagos iniciticos para os jovens, dada a diffeuldade em ‘encontrar adultos significativos que sejam saporte para os seus processos de identficagio. Enquanto os préprios adultos vivem um fascinio pelo mito da jjuventude e tomam os jovens como modelo, estes encontram-se frequente- ‘mente igoladas e condenadas a voltarem-se sobre 0 agrupamento monogera- cional vivendo, por vezes, tajectos sem projecto, Conjuntamene com esta confusio de papéis apontam-se outros factores, tis eomo a falta de isponi- bilidade interior ou mesmo falta de tempo real por parte ds pas, que osei- Jam entre o autortarismo e 0 desinvestimento (Pais, 1993). Também a com- posiglo do quadro familiar tem vindo a ser alterada: @ relagZo quotidian fenlre geragdes torou-se mais rara, as familias monoparentais proiferam, 0 rnimero de rms & reduzido. ‘Com a proliferagao de insttuigbes de formago no familiares, os pro~ ‘blemas familiares dos jovens tomaram-se também socias e a sua integrapao € socializagto faz-se cada vez mais pela escola e pelos meios de comunica- ‘plo de massas, Neste quad, deve ainda acentuar-se que os jovens de hoje st20 sujeitos a um processo de erescente marginalizago das estraturas pro ‘dutvas e simultaneamente a uma forte integragio através dos mecanismos de consumo, fomentadores da passividade recepliva © da evasio diversiva (Cruz, 1995), Assim se justifiea a importincia de uma educagio para a ciadania que mobilize os mais jovens, para a tarefa de encontro de sentido, num mundo livre e com as maiores possbilidades, mas que reclama, para se aperfeioar, Cada na Escola: Desa € Compromise Ww solidariedades voluntérias ¢ responsabilidad individusis (Marts, 1991) ‘Trata-se de enfientar 0 declinio da coesio social ditado pelo individualismo crescente © pela fragmentagio da sociedade que ameagam a cooperagio © ceonfianga que esto na base de qualquer comunidade. 4.A perspectiva pedagogiea ‘A problemitica da edueaglo para a cidadania, mormente nas sociedades democriticas ocidentais, coloea-nos perante uma matéria que, 20 nivel da feducagdo formal, tem sido objecto de designagdes ¢ intencionalidades diver- ss. E fiequente a uilizago mais ou menos indiferenciada das designagdes: edueago civica” ou “formagio civiea”. Sucede jgualmente, nesta maria, ‘uma natural conolago com as questdes éticas e morais bem como com a Formagio politica e 6 desenvolvimento pessoal e social. De facto, esta situapio traduz bem a complexidade do universo con- ‘ceptual da eduicagio para a cidadania e a intencionalidace, nem sempre con- verwente. das propostas educativas por ela suscitada. Contudo, quer na lite- Tatura sobre esta materia, quet nas configuragdes escolares de diferentes contextos sobressaem preacupagbes educativas que, no essencial, se situam fem dois niveis associados: o da formagio étiea ou moral e o d formagao civiea ou sociopolitica. Embora a formagao civiea nfo seja o mesmo que Formagio moral, oma-se fundamental superar a ideia de um civisno exterior 0 sujeto e desigado do sentimento de integragio na comunidade, Sem uma ‘componente éica, a integraglo sociale politica resultaria em mera adaptagio, as tendéncias dominates. Podemes afirmar que existe na expressio “educagdo para a cidadania™ ‘um reconhecimento implicto do paralelismo, salientado por Rensud (1991), centre formagio ética e formagio civica, na medida em que os comportamen- tos eivieos (sociopoliticos) implicam a interiorizagao de valores morais. Isto significa uma abertura pessoal aos valores, de modo a que estes passem a fazer parte da existéncia individual e, asim, esteiamos dispostos a defendé- clos. Os valores da cidadania io aqueles que desencaceiam uma participagio responsivel, ou seja,orientada para a procura do bem comum & 4a justia. ‘A aceitapio do desenvolvimento morale civico dos pblices escolares, como horizonte da educagdo para a cidadania, justifiea a associago com a expresso “formagio morale eivica”. Com efeito, as expressder “educagio pata a cidadania” e “formagio moral e civiea” podem ser tomadas como ‘equivatentes, como sucede em grande parte da literatura sobre a’ matéra, ‘Ambas as designagdes podem encerrar na sua intencionaldade a ideia de formar cidadios e promover 0 seu desenvolvimento moral ecivico com vista 10 exercicio de uma cidadania responsivel "Nas sociedades democrtcas, o acolhimento escolar da educagio para a cidadania esté associado a trés dimensdes de aprendizagem: a rsponsabili- dade social © moral, a partcipagio na comunidade © a Iiteracia politien a8 Inforgeo 15 Educagio Geogrifien (tick, 1998). A operacionalizagdo pedagégica das diferentes dimensbes da educagao para a cidadania resulta da conjugagao das trés dominios no cha- ‘mado tridngulo da cidadania (Fig.!). Na base do triingulo encontramos 5. dominios cognitivo e afectivo entre os quais se estabelece uma relagio de interdependéncia, 'No dominio cognitivo, podemos incluir metodologias pedagogicas liga- das 8 compreensio do direitos e deveres, ao desenvolvimento de raciocinio ‘moral, 8 teflexdo critica, a transmissdo © & consciéncia dos valores. No dominio afeetivo, podem — incluir-se metodologias ligadas 20 desenvolvimento da auto-estima, dos sentimentos de identidade e Jeadade, assim como as atitudes perante 0s outros e as comunidades de partenga. Os {dois dominios considerados convergem para 0 dominio da azo ou, Se ‘quisermos, do comportamento e da expressao. Este dltimo dominio considera ‘especificamente a coneretizagio de conhecimentos, eapacidades,atitudes e valores em comportamentos, traduz-se no exercicio da resporsabilidade ‘pessoal no confianto com as situagdes e problemas da vida social » politica "gura I.Tdngla da eidadnia (ead adapade de Kom, 1999) Eve cd remparatiiata pases noamata socal alien (aa) echo aEcTWvO" ‘coeurvo “ees Campoane as ras oders 1 Serene doer ede ‘Rate ren {Sener rato oe "Taam eons rs CChegamos, assim, a uma perspectiva pedazégica que, tendo em vista a formagao moral e eivica das piblicos escolar, integra a aquisigao de conhe= cimentos, capacidades e valores, num contexto de desenvolvimento cognitive, ‘fective € comportamental, A concretizagio de competéncias de cidadania

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