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Sumário

O telegrama
O testamento
Sinto que a morte me tem constantemente em suas garras.
Não importa o que eu faça, ela está presente em toda parte.
Montaigne
O telegrama

Depois da conversa com meu aluno Gambetti, com quem no dia 29 me encontrei no Pincio
para combinar as datas das aulas de maio, escreve Franz-Josef Murau, e impressionado mais uma
vez, após meu retorno de Wolfsegg, por sua inteligência superior, sentia-me de tal modo
revigorado e entusiasmado, de humor cada vez melhor só de pensar em estar morando há tempos
em Roma, e não mais na Áustria, que em vez de voltar a pé à Piazza Minerva pela Via Condotti,
como costumo fazer, cruzei a Flaminia e a Piazza del Popolo percorrendo toda a extensão do
Corso até chegar a meu apartamento, onde por volta das duas da tarde recebi o telegrama que me
participava a morte de meus pais e de meu irmão Johannes. Pais e Johannes mortos em acidente.
Caecilia, Amalia. O telegrama nas mãos, aproximei-me calmamente e com a cabeça lúcida da
janela de meu gabinete e olhei a Piazza Minerva lá embaixo, completamente deserta. Eu dera a
Gambetti cinco livros, convicto de que eles lhe seriam úteis e necessários nas semanas seguintes,
recomendando-lhe que estudasse esses cinco livros com a máxima atenção e com o vagar que, no
seu caso, é de praxe: Siebenkäs de Jean Paul, O processo de Kafka, Amras de Thomas Bernhard,
A portuguesa de Musil, Esch ou A anarquia de Broch, e agora, depois de ter aberto a janela para
respirar melhor, pensei que fora correta minha decisão de dar a Gambetti justamente esses cinco
livros, e não outros, porque eles lhe seriam cada vez mais importantes no curso de nossas aulas,
lembrei que insinuara de passagem discutir com ele da próxima vez As afinidades eletivas, e não
O mundo como vontade e representação. Falar com Gambetti, também naquele dia, fora outra
vez um grande prazer para mim, depois das conversas custosas, cansativas com minha família
em Wolfsegg, todas elas circunscritas às necessidades cotidianas de caráter absolutamente
privado e primitivo. As palavras alemãs pendem da língua alemã como pesos de chumbo, disse a
Gambetti, e toda vez oprimem o espírito a um nível que é prejudicial a esse espírito. O
pensamento alemão e o discurso alemão bem rápido se paralisam sob o fardo desumano de sua
língua, que reprime tudo o que é pensado antes mesmo de ser expresso; sob a língua alemã o
pensamento alemão só pôde se desenvolver a custo, e jamais se desdobrar plenamente, ao
contrário do pensamento latino sob as línguas latinas, como demonstra a história dos esforços
centenários dos alemães. Embora eu estime mais o espanhol, provavelmente porque me seja mais
familiar, naquela manhã Gambetti deu-me uma outra lição preciosa sobre a facilidade e leveza e
infinidade do italiano, que estaria para o alemão assim como uma criança criada em plena
liberdade, numa casa feliz e próspera, está para uma criança reprimida e espancada até se tornar
velhaca, na mais pobre das famílias. Tanto maior então, disse a Gambetti, deveria ser o apreço
pelos feitos de nossos filósofos e escritores. Cada palavra, disse, puxa inexoravelmente o
pensamento deles para baixo, cada sentença, seja lá o que se atreveram a pensar, calca contra o
chão, e com isso calca sempre tudo contra o chão. Por isso também sua filosofia e também seus
textos literários eram como chumbo. De improviso recitei a Gambetti, primeiro em alemão e
depois em italiano, uma frase de O mundo como vontade e representação de Schopenhauer, e
tentei demonstrar a ele, Gambetti, como pesava o prato alemão da balança simulado pela minha
mão esquerda, enquanto o italiano, por assim dizer, arremessava-se para o alto com minha mão
direita. Para divertimento meu e de Gambetti, recitei várias frases de Schopenhauer, primeiro em
alemão, depois em minha própria tradução italiana, e as depositei, por assim dizer, de forma
inequivocamente visível para todo o mundo, mas sobretudo para Gambetti, na balança de minhas
mãos, e disso fiz gradualmente um jogo levado ao exagero, que terminou enfim com sentenças
de Hegel e com um aforismo de Kant. Pena, disse a Gambetti, que as palavras pesadas nem
sempre sejam as de maior peso, assim como as frases pesadas nem sempre sejam as de maior
peso. Meu jogo logo me cansara. Parado em frente do Hotel Hassler, fiz a Gambetti um breve
relato de minha viagem a Wolfsegg, que no fim pareceu a mim próprio detalhado demais,
prolixo mesmo. Eu tentara lhe sugerir uma comparação entre nossas duas famílias, contrapor o
elemento alemão da minha ao italiano da sua, mas em última análise não fiz mais que diminuir a
sua por meio da minha, o que só podia distorcer meu relato e importunar Gambetti de maneira
desagradável, em vez de instruí-lo com informações. Gambetti é um bom ouvinte e tem um
ouvido muito apurado, treinado por mim, para a verdade e para a coerência de uma exposição.
Gambetti é meu aluno, e vice-versa eu sou aluno de Gambetti. Aprendo com Gambetti ao menos
o mesmo tanto que Gambetti aprende comigo. Nossa relação é ideal, pois uma hora eu sou o
professor de Gambetti e ele o meu aluno, outra hora Gambetti é meu professor e eu o seu aluno,
e é freqüente acontecer que ambos não saibam se Gambetti é o aluno e eu o professor ou vice-
versa. Instaura-se então nossa situação ideal. Oficialmente, porém, eu sou sempre o professor de
Gambetti, e sou pago pela minha atividade docente por Gambetti, ou melhor, pelo pai abastado
de Gambetti. Dois dias depois de retornar do casamento de minha irmã Caecilia com o fabricante
de rolhas para garrafas de vinho de Freiburg, seu marido, meu atual cunhado, tenho de refazer a
mala de viagem desfeita apenas na véspera, que nem cheguei a guardar e deixei jogada em cima
da poltrona, ao lado de minha escrivaninha, e retornar a Wolfsegg, que nos últimos anos tornou-
se de fato, no aspecto geral, mais ou menos repulsiva para mim, pensei, sempre olhando pela
janela aberta a Piazza Minerva deserta lá embaixo, e agora a ocasião não é ridícula ou grotesca,
mas terrível. Em vez de discutir o Siebenkäs ou A portuguesa com Gambetti, vou ter de estar à
mercê de minhas irmãs que me aguardam em Wolfsegg, disse comigo, em vez de conversar com
Gambetti sobre as Afinidades eletivas, vou ter de falar com minhas irmãs sobre o enterro de
nossos pais e nosso irmão e as respectivas heranças. Em vez de caminhar de lá para cá com
Gambetti no Pincio, vou ter de ir à prefeitura e ao cemitério e à paróquia e discutir com minhas
irmãs sobre as formalidades do enterro. Enquanto repunha na mala as peças de roupa que retirara
apenas na noite anterior, tentei fazer uma idéia das conseqüências que a morte de meus pais e a
morte de meu irmão acarretariam, sem chegar a uma conclusão. Mas naturalmente tinha
consciência do que exigia agora de mim a morte dessas três pessoas, as mais próximas de mim
ao menos no papel: toda minha energia, toda minha força de vontade. A calma com que, pouco a
pouco, eu abarrotara a mala com o necessário para a viagem, enquanto fazia o levantamento do
abalo que essa tragédia sem dúvida terrível causaria em meu futuro imediato, só me pareceu
sinistra muito depois, quando já fechara novamente a mala. A pergunta se eu amara meus pais e
meu irmão, logo repelida com a palavra naturalmente, continuou não só na essência, mas
também de fato, sem resposta. Havia tempos eu já não tinha nem com meus pais nem com meu
irmão um chamado bom relacionamento, mas um relacionamento não mais que tenso e, nos
últimos anos, não mais que indiferente. Havia tempos não queria saber nada de Wolfsegg e
portanto também deles, e eles, igualmente, nada de mim, essa é a verdade. Conscientes disso,
nosso relacionamento mútuo foi reduzido ao patamar mais ou menos necessário para mantê-lo
em vida. Vinte anos atrás, pensei, seus pais não te isentaram somente de Wolfsegg, à qual
queriam acorrentá-lo pelo resto da vida, mas também dos sentimentos deles. Nesses vinte anos,
meu irmão invejou-me constantemente por eu ter deixado Wolfsegg, por minha independência
megalomaníaca, como se exprimiu certa vez a mim, pela impiedosa liberdade, e odiou-me. Em
sua desconfiança contra mim, minhas irmãs sempre ultrapassaram os limites do que é permitido
entre irmãos, perseguiram-me a partir do instante em que virei as costas a Wolfsegg e portanto
também a elas, com igual ódio. Essa é a verdade. Ergui a mala, como sempre estava muito
pesada, no fundo ela é totalmente supérflua, pensei, pois tenho tudo em Wolfsegg. Para que
arrastar a mala comigo? Decidi viajar a Wolfsegg sem mala, e desfiz a mala que acabara de fazer
e arrumei as coisas no armário, peça por peça. É natural amar nossos pais, e igualmente natural
amar nossos irmãos, pensei, de novo defronte da janela e olhando a Piazza Minerva lá embaixo,
que continuava deserta, e não percebemos que, a partir de um determinado momento, os odiamos
contra nossa vontade, mas de maneira tão natural quanto antes os amávamos, por todos esses
motivos de que tomamos consciência somente anos, muitas vezes décadas mais tarde. Não
podemos mais indicar o momento exato em que não amamos mais, senão odiamos, nos sos pais e
nossos irmãos, e também não nos empenhamos mais em averiguar esse momento exato, porque
no fundo temos medo. Quem deixa os seus contra a vontade deles, e ainda por cima da maneira
mais implacável como eu fiz, tem de dar o ódio deles como certo, e quanto maior tiver sido o
amor deles por nós, tanto maior será o ódio deles quando tivermos posto em prática aquilo que
havíamos prometido. Por décadas sofri com o ódio deles, disse-me agora, mas já não sofro mais
faz anos, habituei-me ao ódio deles e ele não me fere mais. E o ódio deles contra mim suscitou
inevitavelmente o meu ódio contra eles. Nos últimos anos eles também não sofriam mais com
meu ódio. Desprezavam o seu romano, tal como eu os desprezava como os wolfseggenses, e no
fundo não pensavam mais em mim, tal como eu a maior parte do tempo não pensava mais neles.
Eles sempre me chamavam de charlatão e tagarela, um parasita que se aproveitava deles e de
todo o mundo. Para eles eu não dispunha senão da palavra imbecis. A morte deles, só pode ter
sido um acidente de automóvel, disse comigo, não altera em nada esses fatos. Não tinha a temer
nenhum sentimentalismo. Minhas mãos nem sequer tremeram ao ler o telegrama, e meu corpo
não vacilou nem por um instante. Vou participar a Gambetti que meus pais e meu irmão
morreram e que por uns dias terei de suspender as aulas, pensei, só por uns dias, pois não vou me
demorar em Wolfsegg mais que uns dias; uma semana será o suficiente, mesmo no caso de
formalidades que se compliquem de imprevisto. Por um instante pensei em levar Gambetti
comigo, porque tinha medo do primado dos de Wolfsegg e queria ao menos ter uma pessoa a
meu lado, com quem fosse capaz de me defender contra o assalto de Wolfsegg, uma pessoa que
me fosse afim, um companheiro numa situação desesperada, provavelmente sem saída, mas logo
abandonei essa idéia, porque queria poupar Gambetti do confronto com Wolfsegg. Ele veria
então que tudo aquilo que lhe dissera nos últimos anos sobre Wolfsegg é inofensivo comparado
com a verdade e a realidade que teria sob os olhos, pensei. Uma hora eu pensava, levo Gambetti
comigo, outra hora, não o levo comigo. Decidi por fim não levá-lo comigo. Com Gambetti causo
muita sensação em Wolfsegg, uma sensação que afinal de contas me seria provavelmente
repulsiva, pensei. Em Wolfsegg eles absolutamente não entendem uma pessoa como Gambetti.
Mesmo estranhos de todo inofensivos só são recebidos em Wolfsegg sempre com aversão e ódio,
tudo o que seja estranho eles sempre rejeitaram, nunca se meteram, de uma hora para outra, com
algo estranho ou com um estranho, como é meu costume. Levar Gambetti comigo a Wolfsegg
significaria ofender Gambetti de maneira deliberada e em última análise feri-lo profundamente.
Eu mesmo mal estou em condições de fazer frente a Wolfsegg, que dirá uma pessoa e um caráter
como Gambetti. O confronto de Gambetti com Wolfsegg poderia de fato levar a uma catástrofe,
pensei, cuja principal vítima não seria ninguém mais senão o próprio Gambetti. Já antes teria
podido levar Gambetti comigo a Wolfsegg, pensei, mas sabiamente sempre me abstive, embora
me dissesse com freqüência que isso não seria benéfico só para mim, mas também para o próprio
Gambetti. Meus relatos sobre Wolfsegg teriam assim, pelo testemunho de Gambetti, uma
autenticidade que, do contrário, nada lhe poderia conferir. Conheço Gambetti há quinze anos e
não o levei comigo a Wolfsegg uma única vez, pensei. Gambetti talvez pense de forma diversa
que eu sobre esses fatos, disse-me agora, por ser naturalmente estranho eu manter há quinze anos
um contato mais ou menos íntimo com uma pessoa sem convidá-la nem levá-la uma única vez,
nesses quinze anos, ao lugar que é meu local de origem. Por que, de fato, em todos esses longos
quinze anos não deixei Gambetti espiar a mão de cartas que me coube por nascimento? pensei.
Porque eu sempre tive medo disso e ainda tenho. Porque quero me proteger de que ele saiba
sobre Wolfsegg, de que saiba sobre minhas origens, essa é uma das razões, e porque eu próprio
quero dar a ele proteção para que não saiba sobre isso, o que de outro modo provavelmente
causaria nele um efeito devastador. Nesses quinze anos de nossa relação, jamais quis expor
Gambetti a Wolfsegg. Embora sempre me houvesse sido a coisa mais agradável não viajar
sozinho a Wolfsegg, mas em companhia de Gambetti, e passar com Gambetti meus dias em
Wolfsegg, sempre recusei levar Gambetti comigo. É claro que Gambetti teria ido a Wolfsegg
comigo a qualquer momento. Ele sempre esperou, afinal, meu convite. Mas não o convidei. Um
enterro não é somente uma ocasião triste, mas também sumamente desagradável, disse agora
comigo, e não vou convidar Gambetti justo nessa ocasião para ir comigo a Wolfsegg. Vou lhe
participar que meus pais morreram, sem ter a confirmação direi que morreram num acidente de
automóvel com meu irmão, mas não lhe direi sequer uma palavra para que venha comigo. Há
menos de duas semanas, antes de viajar a Wolfsegg para o casamento de minha irmã, falei a
Gambetti sobre meus pais nos termos mais crus e defini meu irmão mais ou menos como um
mau caráter e um imbecil incorrigível. Descrevi Wolfsegg como um reduto da estupidez. O clima
pavoroso que sempre vigorou na região de Wolfsegg e sempre dominou tudo, ampliei-o às
pessoas que são obrigadas a viver, ou melhor, a existir em Wolfsegg, e que, como esse clima, são
de uma impiedade aniquiladora. Mas mencionei também as qualidades absolutas de Wolfsegg, as
belas jornadas de outono, o frio de inverno e o silêncio de inverno, que eu amava mais que tudo,
nos bosques e vales das redondezas. Que ali a natureza era inclemente, mas também
perfeitamente clara e grandiosa. Mas que essa natureza perfeitamente clara e grandiosa não era
mais levada em consideração pelas pessoas que a habitavam, porque em sua estupidez não eram
mais capazes de tanto. Não existissem os meus, mas só os muros dentro dos quais eles vivem,
dissera então a Gambetti, tomaria Wolfsegg como uma dádiva do destino, pois era um lugar que
se harmonizava como nenhum outro a meu espírito. Mas não posso suprimir os meus só porque
queira, dissera. Posso me ouvir com nitidez pronunciando essa frase, e o significado terrível que
agora ela assumia com a morte efetiva de meus pais e meu irmão me fez pronunciar essa frase
em voz alta, sempre defronte da janela e olhando a Piazza Minerva lá embaixo. Ao retomar a
frase Mas não posso suprimir os meus só porque queira, pronunciada então perante Gambetti
com aversão extrema pelos envolvidos, e repeti-la agora em voz bastante alta e com um efeito
quase que teatral, como se fora um ator que tem de ensaiar a frase para declamá-la em público
diante de um vasto auditório, tirei-lhe no mesmo instante a mordacidade. Ela subitamente deixou
de ser aniquiladora. Porém esta frase Mas não posso suprimir os meus só porque queira logo
forçou caminho de volta ao primeiro plano e me dominou. Esforcei-me para reduzi-la ao
silêncio, mas ela não se deixava sufocar. Não me limitei a proferi-la, passei a papagueá-la várias
vezes a mim mesmo, a fim de torná-la ridícula, mas minhas tentativas de sufocá-la e torná-la
ridícula só a fizeram ainda mais ameaçadora. Súbito ela tinha um peso que nenhuma frase minha
havia tido. Com essa frase você não pode medir forças, disse comigo, com essa frase você terá de
conviver. Essa constatação serenou num átimo meu estado. Pronunciei uma vez mais a frase Mas
não posso suprimir os meus só porque queira, desta vez como a proferira perante Gambetti.
Agora ela tinha o mesmo significado de então, perante Gambetti. Na Piazza Minerva, além de
pombas, ninguém. De repente senti frio e fechei a janela. Sentei-me à escrivaninha. Sobre minha
escrivaninha amontoava-se ainda a correspondência, entre ela uma carta de Eisenberg, uma carta
de Spadolini, o arcebispo e amante de minha mãe, e um bilhete de Maria. De pronto joguei no
cesto de lixo os convites dos diversos institutos culturais romanos e todos os outros convites
privados, junto com algumas cartas que, mesmo ao exame mais superficial, haviam se revelado
cartas de ameaça ou de súplica, de pessoas que me pediam dinheiro ou explicação sobre onde
afinal eu pretendia chegar com meu estilo de vida e minhas idéias, referindo-se a alguns artigos
de jornal que eu publicara nos últimos tempos e não agradaram a essas pessoas, porque, como é
natural, foram pensados e escritos contra todas essas pessoas, naturalmente cartas da Áustria,
escritas por pessoas que me seguem até Roma com seu ódio. Recebo faz anos essas cartas, que
de maneira alguma foram escritas por loucos, como acreditara num primeiro momento, mas por
pessoas legalmente responsáveis, por assim dizer irrepreensíveis do aspecto jurídico, que me
ameaçam, entre outras coisas, com perseguição e morte pelas minhas publicações nos mais
diversos jornais e revistas não só em Frankfurt e Hamburgo, mas também em Milão e Roma.
Arrasto a Áustria constantemente na lama, dizem essas pessoas, difamo a pátria da maneira mais
despudorada, não perco ocasião de atribuir aos austríacos uma mentalidade abjeta, sórdida e
nacional-socialista, quando na verdade não haveria traço dessa mentalidade abjeta, sórdida e
nacional-socialista na Áustria, como escrevem essas pessoas. A Áustria não era abjeta nem era
sórdida, sempre foi somente bela, escrevem essas pessoas, e o povo austríaco era respeitável.
Sempre joguei logo fora essas cartas, como hoje cedo. Guardei apenas a carta de Eisenberg, o
convite de meu companheiro de estudos, agora rabino de Viena, para um encontro em Veneza,
onde ele tem afazeres em fins de maio, como ele escreve, e pretende ir comigo ao Teatro La
Fenice, não como no ano passado, como ele escreve, para ver algo como a História do Soldado
de Stravinski, mas sim o Tancredo de Monteverdi. Aceito obviamente o convite de Eisenberg,
lhe responderei de imediato, pensei, mas de imediato significa depois de meu regresso de
Wolfsegg. Passear por Veneza com Eisenberg, o simples fato de ter a companhia de Eisenberg,
sempre foi um grande prazer para mim, pensei. Vindo ele à Itália, ainda que só a Veneza por
alguns dias, avisa-me com antecedência, pensei, e me convida, sempre, a um prazer altamente
artístico, como diz, e o Tancredo no Fenice é sem dúvida um prazer do gênero, pensei. Haviam
me enviado um exemplar do Corriere della Sera em que vem publicado meu artigo sobre Leos
Janácek. Abri o jornal cheio de expectativa, mas meu artigo, em primeiro lugar, não foi
diagramado em posição de destaque, o que logo me azedou o humor, e, em segundo lugar, já na
primeira leitura sumária descobri uma série de gralhas imperdoáveis, portanto a coisa mais
terrível que pode me acontecer. Joguei de lado o Corriere e li de novo o que Maria escrevera no
bilhete que depositou na minha caixa de correio. Minha grande poetisa escreve que quer sair para
jantar comigo sábado à noite, só com você, e por sinal ela escrevera novos poemas para você,
como ela escreve. Minha grande poetisa está bastante produtiva nos últimos tempos, pensei, e
abri a gaveta em que conservara fotos de minha família. Observei com insistência a fotografia
em que meus pais estão subindo no trem para Dover na estação Victoria de Londres. Eu havia
tirado aquela fotografia sem que o soubessem. Eles tinham me visitado quando eu estudava em
Londres, em 1960, e depois de uma visita de quatorze dias à Inglaterra, que os levara até
Glasgow e Bristol, haviam seguido para Paris, onde eram esperados por minhas irmãs, que por
sua vez, vindo de Cannes, onde tinham visitado nosso tio Georg, haviam chegado a Paris para
encontrar meus pais. Em 1960 eu ainda tinha uma relação pelo menos tolerável com meus pais,
pensei. Havia desejado estudar na Inglaterra, e eles não opuseram a menor resistência,
certamente porque supunham que depois de terminar a universidade na Inglaterra eu retornaria a
Viena e finalmente a Wolfsegg, para realizar seu desejo de dirigir e administrar Wolfsegg com
meu irmão. Mas já na época não tinha intenção de retornar a Wolfsegg, de fato eu partira de
Wolfsegg para a Inglaterra e para Londres com o único pensamento de nunca mais retornar a
Wolfsegg. Eu odiava a agricultura, a paixão de meu pai e de meu irmão. Odiava tudo o que se
relacionasse a Wolfsegg, pois lá o que importava era sempre a vantagem econômica da família,
nada mais. Em Wolfsegg, desde que ela existia e estava nas mãos de minha família, eles não se
interessavam por outra coisa senão sua rentabilidade e como auferir com o tempo um lucro cada
vez maior de suas áreas produtivas, ou seja, de sua agricultura, que ainda hoje engloba doze mil
hectares, e da mineração. Não tinham eles mais nada na cabeça senão explorar sua propriedade.
Embora sempre fingissem que se ocupavam também de outra coisa que não apenas de sua avidez
de lucro, que tinham interesse pela cultura e até pelas artes, a realidade sempre foi deprimente e
humilhante. Embora tivessem milhares de livros nas bibliotecas de Wolfsegg, que abriga cinco
bibliotecas, e espanassem esses livros com absurda regularidade, três ou quatro vezes por ano,
eles nunca leram esses livros dessas suas bibliotecas. Eles mantinham essas bibliotecas sempre
reluzentes, para poder mostrá-las a suas visitas, sem ter de envergonhar-se, e para vangloriar-se
diante dessas visitas e para exibir suas preciosidades impressas, mas dessas milhares ou até
dezenas de milhares de preciosidades eles jamais faziam pessoalmente o uso que teria sido
natural. As cinco bibliotecas de Wolfsegg, quatro no prédio principal, uma nas dependências, já
haviam sido fundadas por meus tataravós, meus pais não haviam acrescentado um único volume.
Dizem que nossas bibliotecas, em seu conjunto, são tão valiosas quanto a biblioteca da abadia de
Lambach, célebre em todo o mundo. Meu pai não lia livros, minha mãe limitava-se a folhear de
vez em quando velhos livros de ciência natural, para deleitar-se com as gravuras de cores
magníficas que ornam esses livros. Minhas irmãs nunca punham os pés nas bibliotecas, a não ser
para mostrá-las a alguma visita que expressasse o desejo de ver nossas bibliotecas. A fotografia
que eu havia tirado de meus pais na estação Victoria mostra meus pais numa idade em que ainda
faziam viagens e não eram afligidos por doenças. Eles vestiam impermeáveis comprados havia
pouco na Burberry e de seus braços pendiam guarda-chuvas novos, também comprados na
Burberry. Como típicos habitantes do continente, eles queriam parecer mais ingleses do que os
próprios ingleses, e davam com isso uma impressão bastante grotesca, por refinada e distinta, e
cada vez que eu contemplava essa fotografia não podia evitar o riso, mas agora minha vontade de
rir passara. Minha mãe tinha um pescoço um pouco longo demais para poder ser ainda
considerado bonito, e quando tirei sua foto, no momento em que ela subia no trem, ela o estendia
alguns centímetros a mais que de costume, duplicando com isso o ridículo de uma imagem por si
só ridícula. A postura de meu pai foi sempre a de um homem que não sabe esconder sua
consciência pesada diante do mundo e em virtude disso é infeliz. Quando tirei a foto, ele vestia
seu chapéu um pouco mais enterrado na cabeça que de costume, o que o faz parecer na minha
foto muito mais canhestro que era na realidade. Não sei por que guardei justo essa foto de meus
pais. Um dia vou descobrir a razão, pensei. Depus a foto sobre a escrivaninha e procurei uma
outra, tirada havia nem dois anos às margens do Wolfgangsee, que mostra meu irmão em seu
barco a vela, que ele mantém o ano inteiro num galpão arrendado aos Fürstenberg. O homem da
foto é uma pessoa amargurada, arruinada pelo fato de viver sozinha com seus pais. O traje
esportivo só a custo dissimula as doenças que já haviam se apossado dele por completo. Seu
sorriso, como se diz, é forçado, e a foto só pode ter sido tirada por seu irmão, a saber, eu. Quando
lhe dei uma cópia da foto, ele a rasgou sem comentários. Coloquei a foto que mostra meu irmão
ao lado da foto na qual meus pais sobem no trem para Dover em Londres e as observei por um
bom tempo. Você amou essas pessoas enquanto elas te amaram, e as odiou a partir do instante
em que elas passaram a te odiar. Naturalmente nunca pensei que fosse sobreviver a elas, pelo
contrário, sempre fora da opinião de que eu seria o primeiro a morrer. A situação que se
instaurou agora é uma que eu jamais pensara, em todas as outras situações possíveis sempre
pensei seguidamente, nessa jamais. Imaginara com freqüência e com freqüência também sonhara
morrer, deixá-los para trás, deixá-los sozinhos sem mim, libertá-los de mim com minha morte,
mas jamais que eles me deixariam. O fato de que agora eles estivessem mortos, e não eu, era no
momento para mim não somente o mais imprevisto que se pudesse imaginar, era para mim algo
sensacional. Esse elemento sensacional, a natureza sensacional dessa ocorrência elementar era o
que me chocava, não propriamente o fato de que agora eles estivessem mortos, e mortos
irrevogavelmente. Meus pais, ainda que de fato um casal sempre em tudo desamparado, mas que
a vida inteira foi diabólico para mim, da noite para o dia foram reduzidos a essa foto grotesca e
ridícula que agora tinha sobre a escrivaninha e observava com a maior insistência e despudor.
Com a foto de meu irmão, a mesma coisa. A vida inteira não houve ninguém que você temesse
tanto quanto essas pessoas, pensei, e desse temor você fez a maior monstruosidade de sua vida,
disse comigo. A vida inteira, por mais que tenha tentado, você não conseguiu escapar dessas
pessoas, todas as suas tentativas nesse sentido em última análise fracassaram, para fugir deles
você foi a Viena, para fugir deles você foi a Londres, a Paris, a Ancara, a Constantinopla e
finalmente a Roma, em vão. Eles tiveram de morrer num acidente e reduzir-se a esse ridículo
pedaço de papel que se chama fotografia para não poderem mais te fazer mal. A mania de
perseguição acabou, pensei. Eles estão mortos. Você está livre. Pela primeira vez, ao contemplar
a fotografia que o retrata em Sankt Wolfgang no barco a vela, senti pena de meu irmão. Na foto
ele tinha agora um ar muito mais cômico do que notara antes. A impassibilidade com que o
contemplava assustou-me. Meus pais também pareciam cômicos na foto que os mostra na
estação Victoria. Os três, diante de mim na escrivaninha, com menos de dez centímetros de
altura, em roupas da moda e numa postura corporal grotesca, que faz presumir uma postura
intelectual igualmente grotesca, pareciam agora ainda mais cômicos do que notara antes. A
fotografia mostra apenas o instante grotesco e o instante cômico, pensei, não mostra a pessoa
como foi no conjunto, durante toda a sua vida, a fotografia é uma falsificação pérfida e perversa,
toda fotografia, não importa por quem seja tirada, não importa o que retrate, é um absoluto
ultraje à dignidade humana, uma falsificação monstruosa da natureza, uma desumanidade
sórdida. Por outro lado, ambas as fotos me pareciam como que tremendamente características das
pessoas retratadas, tanto dos meus pais quanto de meu irmão. Estes são eles, disse comigo, como
realmente são, estes eram eles, como realmente eram. Teria também podido trazer de Wolfsegg e
guardar comigo outras fotografias de meus pais e de meu irmão, trouxe e guardei essas porque
reproduzem meus pais e meu irmão, no instante em que essas fotografias foram tiradas por mim,
como meus pais realmente são, como meu irmão realmente é. Ao fazer essa constatação, não tive
a mínima vergonha. Não por acaso eu evitara destruir justamente essas fotografias e as trouxera
até mesmo a Roma e as guardara em minha escrivaninha. Aqui não tenho pais idealizados, disse
comigo, aqui tenho meus pais como eles são, como eles eram, corrigi-me. Aqui tenho meu irmão
como ele foi. Os três eram tão tímidos, tão sórdidos, tão cômicos. Afinal, pensei, não teria
tolerado uma falsificação de meus pais e de meu irmão em minha escrivaninha. Só as imagens
reais, verdadeiras. Só o absolutamente autêntico, por mais grotesco que seja, e possivelmente até
repulsivo. E justo essas fotos de meus pais e de meu irmão eu as mostrei uma vez a Gambetti, faz
um ano, ainda lembro onde, no café da Piazza del Popolo. Ele contemplara as fotos e não fizera
nenhum comentário. Só lembro que, após ter contemplado as fotos, ele perguntou: seus pais são
muito ricos? Respondi: são. Lembro ainda que depois fiquei constrangido de lhe ter sequer
mostrado as fotos. Você nunca deveria ter mostrado justo essas fotos, disse então comigo. Fora
uma besteira. Havia e há inúmeras fotos em que meus pais têm efetivamente um ar sério, como
se diz, mas elas não correspondem à imagem que fiz de meus pais durante a vida inteira.
Também de meu irmão há dessas tais fotos sérias, também elas são falsificações. Nunca teria
mostrado essas falsificações a Gambetti. Aliás, não há quase nada no mundo que eu odeie tanto
como mostrar fotografias. Não mostro e não deixo que me mostrem. Que tenha mostrado a
Gambetti a foto com meus pais na estação Victoria foi uma exceção. O que eu pretendia com
isso? Gambetti, de sua parte, nunca me mostrara fotografias. Naturalmente, conheço seus pais e
seus irmãos e não teria sentido algum me mostrar fotos em que eles são retratados, isso nunca
teria passado pela sua cabeça. No fundo eu odeio fotografias e a mim mesmo nunca passou pela
cabeça tirar fotografias, com exceção dessas de Londres, de Sankt Wolfgang, de Cannes, minha
vida inteira não possuí máquina fotográfica. Desprezo as pessoas que fotografam constantemente
e que andam o tempo todo com sua máquina fotográfica pendurada ao pescoço. Constantemente
elas estão em busca de um tema e fotografam absolutamente tudo, até as coisas mais absurdas.
Constantemente elas não têm nada na cabeça a não ser retratar a si mesmas, e sempre da maneira
mais repulsiva, coisa de que no entanto elas próprias não têm consciência. Em suas fotos elas
captam um mundo perversamente deformado, que não tem nada em comum com o mundo real
senão a perversa deformação de que elas são responsáveis. O fotografar é uma mania sórdida que
pouco a pouco se apodera de toda a humanidade, porque ela não está somente apaixonada pela
deformação e pela perversidade, mas louca por elas, e com o tempo, de tanto fotografar, ela toma
efetivamente o mundo deformado e perverso como o único verdadeiro. Aqueles que fotografam
cometem um dos crimes mais sórdidos que podem ser cometidos ao transformar a natureza, em
suas fotografias, num grotesco perverso. Em suas fotografias, as pessoas são marionetes
ridículas, irreconhecíveis de tão distorcidas, mutiladas mesmo, que com ar obtuso, repulsivo,
fitam assustadas suas lentes sórdidas. O fotografar é uma paixão abjeta que se apoderou de todos
os continentes e todas as camadas sociais, uma doença de que foi acometida toda a humanidade e
da qual não pode mais ser curada. O inventor da arte fotográfica é o inventor da mais desumana
de todas as artes. A ele devemos a definitiva deformação da natureza e do ser humano que nela
vive, reduzidos à careta perversa de um e de outro. Ainda não vi em nenhuma fotografia uma
pessoa natural, quer dizer, verdadeira e real, como ainda não vi em nenhuma fotografia uma
natureza verdadeira e real. A fotografia é a maior desgraça do século XX. Observar fotografias
sempre me nauseou mais que qualquer outra coisa. Mas, disse agora comigo, por mais
deformados que estejam meus pais e meu irmão nessas únicas fotografias tiradas por mim com a
máquina fotográfica de meu irmão, quanto mais as observo, elas mostram, por trás da
perversidade e da deformação, a verdade e a realidade desses fotografados, como os chamam,
porque a mim não interessam as fotos, e os nelas representados não os vejo como os mostra a
foto, em sua deformação e perversidade sórdidas, mas como eu os vejo. Meus pais na estação
Victoria em Londres, escrevi no verso da foto. Na segunda, que mostra meu irmão em Sankt
Wolfgang, Meu irmão velejando em Sankt Wolfgang. Remexi na gaveta e apanhei uma foto em
que minhas irmãs Amalia e Caecilia fazem pose diante daquela vila em Cannes que meu tio
Georg, o irmão de meu pai, comprou com o dinheiro que seu irmão, após a morte dos meus avós,
liquidou-lhe a partilha, como se diz, e meu tio foi tão hábil em investir vários lotes de ações em
diversas partes da França que pôde viver não somente com folga, mas até com um certo luxo que
lhe era congenial. Ao contrário de seu irmão, meu pai, ele tirou a sorte grande, pensei agora
observando a fotografia em que minhas irmãs mostram seus rostos mais ou menos sardônicos.
Tio Georg morreu há quatro anos de modo tão repentino quanto seu irmão, meu pai, mas em
decorrência de um ataque cardíaco que o fulminou no parque de sua vila, quando estava prestes a
inspecionar suas rosas, que perto do final de sua vida haviam se tornado sua única paixão. Com
trinta e cinco anos ele já conseguira mudar-se de Wolfsegg e retirar-se para a Riviera francesa
com um monte de dinheiro e uma pilha de livros. Ele amava a literatura francesa e o mar e
abandonara-se inteiramente a essas duas paixões. Penso várias vezes que tenho muito de meu tio
Georg, mais, em todo caso, do que de meu pai. Também eu amei a vida inteira a literatura e os
livros e o mar. Também eu saí de Wolfsegg, e isso quando era ainda mais jovem que ele. Minhas
irmãs Amalia e Caecilia diante da vila do tio Georg, escrevi na fotografia. A última vez que
estive em Cannes foi em 1978. Visitava o tio Georg pelo menos uma vez por ano. Passar uns dias
com ele em sua vila sempre me fizera bem. Como seu herdeiro universal ele nomeou, para horror
de nossa família, seu mordomo, que sempre o serviu fielmente e que ele sempre chamou com
afeto meu bom Jean. Meu tio Georg esteve muitas vezes em Roma, cidade que, tal como eu, ele
amava e apreciava mais que qualquer outra cidade do mundo. Gambetti e meu tio Georg
entendiam-se bem, passavam muitas noites ao ar livre, na Piazza del Popolo ou, se chovesse, no
Café Greco, a conversar sobre tudo possível, principalmente sobre arte, pintura. Meu tio Georg
era um apaixonado colecionador de arte e, que eu saiba, grande parte dos juros de seu patrimônio
foi gasta na aquisição de quadros e esculturas de artistas contemporâneos. Como ele tinha bom
gosto e um instinto absolutamente extraordinário para o valor das obras que lhe fossem
prediletas, com sua paixão de colecionador ele logo acumulou, ao lado do originário, um
segundo patrimônio de vulto, que se pode definir tranqüilamente como um patrimônio
milionário. Depois de os haver mais ou menos descoberto, e à medida que ele comprava e ao
mesmo tempo tornava conhecidas suas obras, os artistas desconhecidos que ele promovia logo se
tornavam famosos. Meu tio Georg não tinha nenhuma simpatia pelo espírito mercantil primitivo
de minha família, no fundo ele odiava o campo, com sua natureza explorada ano após ano, e
desprezava o conjunto das tradições centenárias de Wolfsegg, quer se tratasse da produção de
carne e gordura, pele, madeira e carvão ou da caça, pela qual ele tinha o mais profundo ódio, mas
à qual seu irmão, meu pai, e seu sobrinho, meu irmão, se dedicavam como a primeira de todas as
paixões. Entre todas as paixões odiosas, ele tinha pela caça o mais profundo de todos os ódios.
Enquanto seus pais, meus avós, entregavam-se à caça, como também meu pai, seu irmão,
entregava-se à caça, meu tio Georg sempre se recusara a sair para caçar. Ele também não comia
caça, tal como eu, e enquanto o resto da família saía para caçar, ele se trancava numa das
bibliotecas para se distrair, com uma leitura intensa, dos excessos venatórios da família,
enquanto eles abatiam cervos, eu permanecia na biblioteca, por trás dos ferrolhos
hermeticamente fechados das janelas, para não ter de ouvir seus tiros, ele dizia, e lia
Dostoievski. Meu tio amava, como eu, a literatura russa, sobretudo Dostoievski e Liermontov, e
muitas vezes fazia observações de muita inteligência sobre esses escritores russos, e sempre
continuou a ocupar-se com os dois revolucionários, Kropotkin e Bakunin, que ele, entre os
chamados memorialistas, considerava os maiores, e foi ele que me iniciou na literatura russa, na
qualidade de especialista perfeitamente versado na literatura russa, a quem o russo era tão
familiar quanto o francês e a quem eu próprio devo meu amor pela literatura russa, e mais tarde
também pela francesa. Como devo aliás a meu tio Georg grande parte do meu patrimônio
intelectual. Ele, meu tio Georg, já muito cedo havia por assim dizer aberto meus olhos para o
resto do mundo, havia chamado minha atenção para o fato de que além de Wolfsegg e fora da
Áustria existia algo a mais, algo ainda mais grandioso, algo ainda mais colossal, e que o mundo
não consistia, como é costume geral presumir, de uma só família, mas de milhões de famílias,
não de um só lugar, mas de milhões de lugares semelhantes, não de um só povo, mas de centenas
e milhares de povos, e não de um só país, mas de muitas centenas e milhares de países, que
todos, tomados isoladamente, eram os mais belos e os mais relevantes. A humanidade inteira é
infinita, com todas as suas belezas e possibilidades, dizia meu tio Georg. Só os imbecis
acreditam que o mundo termina onde eles próprios terminem. Mas meu tio Georg não me iniciou
apenas na literatura e franqueou-me a literatura como o paraíso sem fim, iniciou-me também no
mundo da música e abriu-me os olhos para todas as artes. Somente quando temos um conceito
adequado de arte é que temos também um conceito adequado de natureza, dizia ele. Somente
quando podemos utilizar corretamente e portanto desfrutar o conceito de arte é que podemos
também utilizar e desfrutar a natureza. A maioria das pessoas nunca chega a um conceito de arte,
nem sequer ao mais simples, e com isso nunca compreende a natureza. A visão ideal da natureza
pressupõe um conceito ideal de arte, dizia ele. As pessoas que afirmam ver a natureza, mas não
têm um conceito de arte, vêem a natureza superficialmente e nunca de maneira ideal, ou seja, em
toda a sua infinita grandiosidade. A pessoa de espírito tem a oportunidade de chegar primeiro,
por meio da natureza, a um conceito ideal de arte, para depois, por meio do conceito ideal de
arte, chegar à visão ideal da natureza. Em nossas viagens pela Itália, meu tio Georg não me fazia
correr, como meu pai, de uma coluna a outra, de um monumento a outro, de uma igreja a outra,
de um Michelangelo a outro, ou melhor, ele nunca me levou para ver obra de arte alguma. Mas é
justamente por isso que devo a meu tio Georg meu senso artístico, porque ele não me empurrava,
como meus pais, de uma celebridade artística a outra, antes sempre me deixava em paz com
todas essas obras de arte, sempre se limitava a chamar-me a atenção para sua existência e onde
elas seriam encontradas, mas não me impelia a todo instante a dar com a cabeça numa coluna ou
num muro romano ou grego, como meus pais faziam comigo. Porque os meus, salvo meu tio
Georg, tivessem me feito desde a primeira infância dar com a cabeça nas chamadas antiguidades
célebres do mundo, com a impiedade grosseira que lhes era própria, logo cedo tornaram minha
cabeça completamente insensível a todo tipo de arte, em vez de despertarem meu interesse por
elas, provocaram minha repulsa. Foram precisos muitos anos para botar ordem de novo em
minha cabeça, que eles haviam batido contra aquelas centenas e milhares de obras de arte até
torná-la obtusa. Se desde pequeno, pensei, como criança na qual meus pais nunca se contiveram
em atochar indiscriminadamente tudo, até o extremo fastio, eu tivesse sofrido a influência de
meu tio Georg, enorme teria sido o meu benefício. Mas o fato é que eu tinha de ser antes quase
totalmente destruído por meus pais, para depois, quando já passara dos vinte e parecia
irremediavelmente perdido, ser curado por meu tio Georg. Com cuidado e com cautela. Quando
compreendi o que meu tio Georg significava para mim e para meu futuro e para todo meu
desenvolvimento, já era quase muito tarde para um tratamento. À minha força de vontade de
livrar-me dos estragos de Wolfsegg, e portanto dos estragos a mim infligidos por meus pais,
assim como à clarividência de meu tio Georg é que devo em última análise minha salvação. Que
não tenha tido de levar, como adulto, uma vida como a de todos os meus, salvo meu tio Georg,
mas uma vida contrária à deles, como meu tio Georg. A vida inteira eles odiaram meu tio Georg,
nas últimas décadas sem nem mesmo disfarçá-lo, com o tempo eles passaram a tratá-lo
exatamente como a mim, a pensar dele o que pensavam de mim, a passá-lo para trás como a
mim. Mas ele não dependia do aval deles. Um dia, depois de ter posto em ordem suas finanças,
ele subiu no trem e partiu para Nice. Lá, a primeira coisa que fez foi dormir algumas semanas até
tarde, para então, em pleno frescor, como ele sempre repetia, sair à procura de um lugar com que
simpatizasse. Junto ao mar tinha de ser esse lugar, com um grande jardim, no melhor dos ares,
mas por outro lado servido de farta rede de transportes. Seus primeiros cartões-postais foram
recebidos com azedume em Wolfsegg. Eles vislumbraram o tio Georg lagarteando ao sol,
passeando na orla em todos os tipos de ternos de linho, obviamente confeccionados sob medida
em Paris, e nos seus sonhos, que naturalmente só eram sempre pesadelos, esse patife imprestável,
como a vida inteira eles o chamaram, não parava de cruzar os portais dos bancos nas áreas
nobres da Riviera para sacar os juros de seu patrimônio, que dia após dia crescia
espontaneamente. Eram estúpidos demais sequer para acreditar que se pudesse levar uma
existência intelectual. Meu tio Georg levava uma existência intelectual, como atestam algumas
centenas de cadernos de notas repletos de apontamentos. A estreiteza do europeu central, que,
como se diz, vive para trabalhar, em vez de trabalhar para viver, sendo de todo indiferente o que
se entenda por trabalho, deu muito cedo nos nervos de meu tio Georg e ele tirou a conclusão de
suas reflexões. Marcar passo não era com ele. É preciso que se deixe entrar ar fresco na cabeça,
ele repetia sempre, ou seja, é preciso que se deixe sempre entrar o mundo na cabeça, dia após
dia. Em Wolfsegg eles nunca deixaram entrar ar fresco, nem portanto o mundo, em suas cabeças.
Tensos e tesos eles sentavam-se sobre sua herança, tal como sobre ela haviam sido postos, com
nenhum outro objetivo senão cuidar sempre para que essa herança, gigantesco amontoado de
bens, se consolidasse mais e mais, e nunca se dissipasse. Com o tempo todos eles absorveram
aos poucos o rigor e a solidez e a absoluta dureza desse amontoado de bens, sem o perceberem.
Eles estavam sempre fundidos a esse amontoado de bens numa unidade espantosa e repugnante,
e não percebiam. Meu tio Georg percebia, porém. Ele não queria ter nada a ver com esse
amontoado de bens. Ele aguardava apenas o momento adequado, provavelmente o momento
ideal, para se desvencilhar desse amontoado de bens de Wolfsegg. Eles lhe haviam sugerido,
como sei, não retirar sua herança de Wolfsegg, contentando-se com uma renda mais ou menos
segura. Sua clarividência preveniu meu tio Georg de uma tal besteira. Gente como os meus é a
mais inescrupulosa sobretudo com seus familiares, caso seja necessário. Eles não se intimidam,
em última análise, com nenhuma infâmia. Sob o manto de seu espírito cristão e sua munificência
e sociabilidade, eles nada mais são que gente cobiçosa e, como se diz, passam por cima de todo o
mundo. Desde o princípio meu tio Georg não se ajustou ao plano deles. De fato eles o temiam,
porque cedo ele os desmascarara. Ainda criança ele os pilhara em suas atrocidades e, destemido,
lhes chamara a atenção para essas atrocidades, lhes repreendera corajosamente essas atrocidades,
e dizem que ele foi a criança mais temida em Wolfsegg. Clarividente desde o início, dizem que
ele nutriu uma paixão precoce em pôr os seus a nu. Desde criança pequena ele os espreitava e os
confrontava com as atitudes repugnantes deles. Em Wolfsegg não há notícia de outra criança que
formulasse tantas perguntas, que exigisse tantas respostas. Os meus sempre me repreenderam
que eu ficaria igual a meu tio Georg. Como se se tratasse do mais desalentador de todos os
homens, eles a todo momento me diziam: você está ficando igual a seu tio Georg. Mas de nada
servia que me advertissem sobre meu tio Georg, pois desde o princípio não havia quem eu
amasse mais em Wolfsegg do que o tio Georg. Seu tio Georg é um monstro! eles diziam com
freqüência. Seu tio Georg é um parasita! Seu tio Georg é uma vergonha para nós! Seu tio Georg
é um delinqüente! A lista de epítetos horrendos que eles sempre tinham na ponta da língua para
meu tio Georg jamais teve sobre mim o efeito por eles desejado. A cada dois ou três anos ele
vinha de Cannes nos visitar por alguns dias, raramente por algumas semanas, e nesses dias eu era
a pessoa mais feliz do mundo. Era uma glória para mim quando o tio Georg estava em Wolfsegg.
De repente Wolfsegg assumia um aspecto diverso daquele do cotidiano. Os ares eram então de
cidade grande. As bibliotecas eram de súbito arejadas, livros transitavam de lá para cá, música
enchia os aposentos que, do contrário, não passavam de cavernas frias, sombrias, imersas no
silêncio. De repente os quartos, em geral repulsivos, tornavam-se confortáveis, acolhedores. As
vozes, que do contrário só eram ouvidas sempre num tom ríspido em Wolfsegg, ríspido ou
abafado, soavam de pronto absolutamente naturais. Podia-se rir, falar num tom de voz normal
mesmo nas conversas, e não apenas quando se tratava de distribuir ordens à criadagem. Por que
diabo vocês falam sempre em francês quando a criadagem está por perto? meu tio Georg
interpelava meus pais, isso é ridículo. Aqueles comentários de sua parte faziam de mim a pessoa
mais feliz do mundo. Por que diabo vocês não abrem as janelas com esse tempo magnífico? dizia
ele. Enquanto de costume, e de forma um tanto deprimente nos últimos anos, as conversas à
mesa sempre se circunscreviam só a porcos e bois, a carregamentos de madeira e aos preços mais
favoráveis ou menos favoráveis dos armazéns, ecoavam subitamente palavras como Tolstoi ou
Paris ou Nova York ou Napoleão ou Alfonso XIII ou Meneghini, Callas, Voltaire, Rousseau,
Pascal, Diderot. Mal consigo enxergar minha comida, dizia meu tio sem nenhuma cerimônia,
com o que minha mãe se levantava da mesa num pulo e abria as persianas. Mais, você tem de
abrir mais as persianas, dizia-lhe meu tio Georg, para eu poder enxergar minha sopa. Como
diabos vocês conseguem viver o tempo inteiro nessa penumbra? perguntava. Vocês vivem mas é
num museu! dizia. Parece que nada é usado faz anos. Para que vocês têm aquela louça magnífica
nos armários, se não a usam para comer? E sua preciosa prataria? Eu admirava o tio Georg. Com
ele por perto estávamos imunes ao tédio de sempre. Ele não se sentava à mesa como os outros,
tenso e teso, a todo momento ele se voltava para um de nós para perguntar algo ou dizer alguma
verdade ou fazer algum elogio. Você tem de usar mais azul, ele dizia a minha mãe, o cinza não te
cai bem. Parece que você está de luto. Já faz quinze anos que nosso pai morreu. Você, disse ele a
meu pai, parece empregado de si próprio. Ao que eu não pude conter uma gargalhada. Fosse a
comida servida, o que em nossa casa transcorria sempre num silêncio quase sepulcral, ele
brincava com as criadas que servissem a comida, coisa que minha mãe só engolia a custo. Não
demora muito, ele disse, sem se importar com a presença das criadas a servir a comida, e não vai
sobrar mais ninguém para lhes servir. Aí vocês vão nascer para a vida, de chofre. Há qualquer
coisa de revolucionário no ar, ele dizia. Meu palpite é de que virá algo capaz de redespertar de
tudo um pouco para a vida. A tais comentários meu pai balançava a cabeça, minha mãe resumia-
se a encarar meu tio, como se não tivesse nenhum escrúpulo de lhe mostrar sua aversão. Nos
países mediterrâneos, segundo meu tio Georg, tudo é bem diferente, dizia ele. Em detalhes ele
não entrava. Quando eu, na época talvez com dezessete ou dezoito anos, quis saber o que nos
chamados países mediterrâneos era diferente de nós, da Europa central, ele disse que um dia me
explicaria, quando eu próprio visitasse esses países mediterrâneos. Nos países mediterrâneos a
vida vale cem vezes mais do que aqui, dizia. Eu naturalmente fiquei curioso para saber por quê.
O europeus centrais se portam como marionetes, não como seres humanos, tudo é acabrunhado,
dizia meu tio Georg. Eles nunca se movem naturalmente, tudo neles é rijo e em última análise
ridículo. E insuportável. Tal como sua língua, que é a mais insuportável. O alemão é o que há de
mais insuportável, dizia. Eu me entusiasmava quando ele dizia os países mediterrâneos. É um
choque, dizia, voltar para cá. Não lhe perturbava minimamente que, com seus comentários,
tirasse o apetite de seus ouvintes. E que cozinha abominável! exclamava. Na Alemanha e na
Áustria, e também na chamada Suíça alemã, aquilo não é comida, é uma gororoba! A tão
afamada cozinha austríaca não passa de uma piada. Uma afronta ao estômago e a todo o corpo.
Levo semanas em Cannes para me recuperar da cozinha austríaca. E o que me dizem de um país
sem mar! exclamava, sem desenvolver a idéia. Quando bebia um gole de vinho, torcia o nariz.
Como podia ver claramente, ele tinha também lá suas reservas com a água mineral austríaca, que
no geral é considerada muito boa, mas se abstinha de qualquer comentário. Decerto se entediava
imensamente em Wolfsegg, eu já pensava então, pois em Wolfsegg nunca lhe foi possível tomar
parte numa conversa estimulante, coisa que sempre foi seu maior prazer. Às vezes, ao menos nos
primeiros dias de sua visita, ele fazia uma tentativa, lançava por exemplo a palavra Goethe de
forma mais ou menos inopinada à mesa; mas eles não sabiam o que fazer com ela. Que dirá com
palavras como Voltaire, Pascal, Sartre. Como eles fossem incapazes de acompanhá-lo, e era
assim que infalivelmente se sentiam, contentaram-se em nutrir por ele uma antipatia que
aumentava dia após dia e que, ao termo de sua visita, se convertia sempre em ódio aberto. Vira e
mexe lhe davam a entender que eles trabalhavam duro, enquanto ele fizera do ócio absoluto e da
especulação com esse ócio o conteúdo de seus dias e, parecia, o ideal de sua vida. Sabe, ele me
disse certa vez, não venho a Wolfsegg por causa da família, venho só por causa das paredes e da
paisagem, que me trazem de volta minha infância. E por causa de você, dizia após uma pausa.
Em seu testamento ele dispusera que não fosse sepultado em Wolfsegg, como os seus e os meus
acreditavam, mas em Cannes. Queria ser sepultado junto ao mar. Empetecados com maior ou
menor pompa, e portanto como rematados provincianos, eles correram a Cannes para seu enterro,
na expectativa de uma formidável herança e foram obrigados a experimentar, como já me referi,
a maior decepção de suas vidas, como repetia sempre minha mãe, e foi com ela, decepção, que
voltaram para casa. O bom Jean, filho de um casal pobre de pescadores de Marselha, herdara
nada menos que vinte e quatro milhões de xelins em ações e um patrimônio pelo menos duas
vezes maior em bens imóveis. A coleção de arte, meu tio Georg legou-a aos museus de Cannes e
Nice. Na lápide que o bom Jean lhe erigiu deviam constar somente seu nome e as seguintes
palavras: aquele que deixou os bárbaros para trás no momento certo. Jean ateve-se estritamente
às instruções de meu tio Georg. Quando meus pais fizeram uma visita a seu túmulo um ano atrás,
a caminho da Espanha, dizem que se ultrajaram tanto que minha mãe jurou mais tarde nunca
mais visitar o túmulo do tio Georg, seu epitáfio lhe pareceu uma tremenda afronta, e que, de
regresso a Wolfsegg, ela não falara de outra coisa senão do crime de seu cunhado, meu tio
Georg. Com tio Georg fiz as caminhadas mais longas e interessantes nos arredores de Wolfsegg,
com ele fui a pé até Ried im Innkreis, numa direção, e até Gmunden, na outra. Sempre ele teve
tempo para mim. Que no mundo existam outras coisas além de vacas, criados e feriados legais a
serem religiosamente observados, essa descoberta eu a devo a ele. A ele devo o fato de ter
aprendido não apenas a ler e escrever, mas efetivamente a pensar e fantasiar. É mérito seu que eu
dê valor considerável ao dinheiro, mas não extremo, e que repute a humanidade fora de
Wolfsegg não como um mal necessário, como fizeram os meus a vida toda, mas como um
desafio eterno para que me entenda com ela como a maior e a mais palpitante das
monstruosidades. Meu tio Georg decifrou-me os mistérios da música e da literatura e
familiarizou-me com compositores e poetas como pessoas vivas, e não somente como bustos de
gesso a serem espanados três ou quatro vezes ao ano. A ele devo o fato de haver aberto nossos
livros, que pareciam fechados para todo o sempre em nossas bibliotecas, e de começar a lê-los e
não ter parado com essa leitura até hoje, de haver aprendido, enfim, a filosofar. A meu tio Georg
devo o fato de não me haver tornado, afinal, apenas uma pessoa inserida mecanicamente na
engrenagem financeira e econômica de Wolfsegg, mas tenha me tornado uma pessoa que pode
perfeitamente ser definida como livre. De não haver feito somente viagens estúpidas, ditas de
estudo, como aquelas com que meus pais estavam habituados e que também eu fiz com meus
pais nos primeiros anos, para a Itália e para a Alemanha por exemplo, para a Holanda e para a
Espanha, mas de haver aprendido, e desfrutado até hoje, a arte de viajar como um dos maiores
prazeres que o mundo tem a oferecer. Graças a meu tio Georg não conheci cidades mortas, mas
bem vivas, não visitei povos mortos, mas vivos, não li escritores e poetas mortos, mas vivos, não
escutei música morta, mas viva, não vi pinturas mortas, mas vivas. Em vez de colar os grandes
nomes da história nas paredes internas de meu cérebro, como decalques insípidos de uma história
igualmente insípida, ele, e ninguém mais, sempre os apresentou a mim como pessoas vivas sobre
um palco vivo. Enquanto meus pais mostravam-me dia após dia um mundo de todo em todo
tedioso, que pouco a pouco paralisava minha cabeça, um mundo em que no fundo não valia
minimamente a pena viver, meu tio Georg, pelo contrário, apresentava-me esse mesmo mundo
como sempre e invariavelmente de extremo interesse. Desde criança pequena eu sempre tive
assim a escolha entre dois mundos, o de meus pais, que sempre achei desinteressante e não mais
que incômodo, e o do meu tio Georg, que parecia consistir só de aventuras formidáveis, no qual
nunca era possível entediar-se e sempre se tinha, de fato, vontade de viver eternamente, no qual
era óbvio pensar que nunca terminaria, o que por sua vez tinha por conseqüência automática que
nele eu quisesse viver eternamente, quer dizer, até o infinito. Meus pais, trocando em miúdos,
sempre aceitaram tudo, meu tio Georg nunca aceitou nada. Desde o berço meus pais sempre
viveram segundo as leis que lhes foram prescritas por seus antecessores e nunca lhes passou pela
cabeça fazer um dia leis novas, de sua própria autoria, para viver segundo essas leis novas feitas
por eles, meu tio Georg viveu somente segundo suas leis próprias, que por ele foram feitas. E
essas leis feitas por ele próprio, a todo instante ele as infringia. Meus pais sempre trilharam o
caminho que lhes foi prescrito e nunca lhes ocorreria abandonar esse caminho sequer por um
instante, meu tio Georg só trilhou seu próprio caminho. Meus pais, para citar ainda um exemplo
do contraste entre eles e meu tio Georg, odiavam a chamada ociosidade, porque não podiam
imaginar que um homem de espírito simplesmente ignora, simplesmente não pode permitir-se a
ociosidade, que um homem de espírito vive justamente num estado de tensão extremo, de
interesse superlativo, quando por assim dizer se entrega ao ócio, porque não sabiam o que fazer
com a efetiva ociosidade deles, porque na ociosidade deles não acontecia efetivamente nada,
porque na verdade e na realidade não eram sequer capazes de imaginar, que dirá de conduzir um
processo intelectual. Ao homem de espírito é absolutamente impossível a chamada ociosidade. A
ociosidade deles era contudo uma ociosidade efetiva, pois com eles nada acontecia quando não
faziam nada. No extremo oposto, porém, o homem de espírito está no auge de sua atividade
quando por assim dizer não faz nada. Mas isso está além da compreensão dos efetivos ociosos,
como meus pais e os meus em geral. Por outro lado, eles bem que tinham uma vaga idéia da
natureza da ociosidade de meu tio Georg, pois justamente por terem dela uma vaga idéia,
odiavam-no, pois faziam a vaga idéia de que sua ociosidade, por ser uma ociosidade diversa, e
aliás exatamente contrária à deles, não só podia se tornar perigosa para eles, mas era perigosa
sempre. Como homem de espírito, o ocioso é de fato, aos olhos daqueles que entendem por não
fazer nada de fato não fazer nada e que, como ociosos, de fato não fazem nada porque com eles
não acontece absolutamente nada enquanto nada fazem, o maior dos perigos, a mais perigosa das
pessoas. Odeiam-no porque naturalmente não podem desprezá-lo. Dizem que já aos quatro anos
meu tio Georg caminhou até o povoado de Haag, a nove quilômetros de distância, para lá
explicar a pessoas totalmente estranhas que era de Wolfsegg, mas a Wolfsegg não tinha intenção
de retornar. Parece que os habitantes de Haag, compreensivelmente perplexos com aquela
estranha criança, devolveram o pequeno Georg a seus pais em Wolfsegg, esperneando como
jamais se vira. A maior parte do tempo, seus pais e outros que o supervisionavam tiveram
praticamente de acorrentá-lo a Wolfsegg como a um cachorrinho, para impedir que
desaparecesse. Já na mais tenra infância ele houvera tomado a decisão de permanecer em
Wolfsegg somente o tempo estritamente necessário. Mas naturalmente, ele me disse uma vez em
Cannes, eu aguardava o momento em que de fato pudesse me libertar de Wolfsegg sem dores de
cabeça, quer dizer, munido de todos os meios necessários para a total liberdade. Claro que
Wolfsegg é por si só algo de maravilhoso, ele disse, mas os nossos sempre a tornaram um horror
para mim. Meu irmão, seu pai, disse uma vez, é um caráter fraco. Um homem de fato amável,
mas insuportável. E sua mãe, minha cunhada, é uma pessoa ambiciosa, que casou com seu pai só
por interesse. Afinal ela veio do nada. Que ela tenha sido jeitosa, como se diz, hoje não é mais
possível notar. No fundo seu pai não é cobiçoso. Ela, sua mãe, foi quem despertou nele a
primitiva cobiça. Mas eu não me dava com ele mesmo antes de ele conhecer sua mãe, éramos
opostos em tudo. Claro, ele tem boa índole, ainda hoje tem, mas, não me leve a mal, é uma
pessoa estúpida. Sua mãe o tem completamente nas mãos. E no entanto ele era melhor aluno que
eu. Era excelente, tudo o que ele fazia. Ele entregava os melhores trabalhos. Ele era benquisto, eu
não. Tinha sempre as melhores notas, ele. Mas embora a gente vestisse as mesmas roupas, eu
sempre parecia mais elegante que ele. Não sei por quê. Mas só digo isso porque no fundo sempre
amei seu pai, meu irmão, disse tio Georg. De fato, a última vez que esteve em Roma ele não
falou de outra coisa a não ser que amara seu irmão como a ninguém mais no mundo, e que ainda
o amava, não fosse aquela mulher ter aparecido, a sua mãe. As mulheres aparecem e desviam de
suas boas qualidades, e mesmo de todo seu bom caráter, o homem com quem afinal se casam
contra a própria vontade desse homem, e o aniquilam ou pelo menos fazem dele um fantoche.
Sua mãe fez de teu pai um fantoche. Meu Deus, exclamou meu tio Georg, como seu pai poderia
ter se desenvolvido se tivesse encontrado outra mulher! Não conheço uma pessoa mais embotada
para arte que sua mãe, disse. Ela vai à ópera, mas não entende patavina de música. Ela contempla
um quadro, mas não entende nada de pintura. Ela mente e finge ler livros, mas não lê nenhum. E
no entanto ela tagarela sem parar durante as refeições, disse, e reduz tudo ao silêncio a sua volta
com seus rematados absurdos. Mas ela devia é saber como se faz para multiplicar o dinheiro por
si mesmo, e não se valer dessa maneira estúpida e doentia, que seu pai adotou como própria. Tio
Georg aludia com isso a sua própria arte de fazer dinheiro e aumentá-lo constantemente. Custa
acreditar que somos de um único e mesmo berço, seu pai e eu, dizia muitas vezes. Sempre tive
muitas idéias, disse, seu pai nunca teve idéia alguma. Fiz viagens porque essa era minha vontade,
minha paixão, seu pai nunca teve a menor necessidade de viajar, sempre viajou porque era de
boa praxe, seguindo roteiros estúpidos que outros lhe haviam feito, pessoas repulsivas como o
diabo, metidas sempre a especialistas em arte. Você tem de ir a Roma e visitar a Capela Sistina,
diziam-lhe, e ele tomava o trem e ia a Roma e visitava a Capela Sistina. Você tem de ver o
Giorgione exposto na Accademia e que se chama La tempesta, diziam-lhe, e ele tomava o trem e
ia a Veneza e contemplava o quadro de Giorgione que se chamava La tempesta. Diziam, você
tem de ir a Verona e admirar o túmulo de Romeu e Julieta, e lá ia ele e o admirava. A Acrópole,
diziam, é imprescindível que você a veja, e ele ia a Atenas e admirava a Acrópole. Você tem de
ver Rembrandt, diziam, você tem de ver Vermeer, você tem de ver a basílica de Estrasburgo e a
catedral de Metz. Ele foi a toda parte e admirou aquilo que lhe haviam aconselhado, seus ditos
especialistas em arte. E que gente pavorosa que sempre lhe aconselhava tudo isso, dizia o tio
Georg, essa terrível gentalha pequeno-burguesa com títulos acadêmicos, que só se aproximava
dele para passar uns dias de graça em nossa bela Wolfsegg. Estas figuras medonhas de Viena,
que ele sempre convidava, professores universitários, historiadores da arte etcétera, porque
acreditava fossem homens de cultura. Essas monstruosidades de Salzburgo e Linz, que nos fins
de semana empesteavam Wolfsegg com seu cheiro repulsivo, ditos filósofos, literatos,
advogados, todos eles só faziam explorá-lo. Chegavam de mala e cuia e empanturravam-se no
fim de semana inteiro e regurgitavam à mesa suas bobajadas pseudocientíficas. E depois aqueles
médicos repugnantes, que ele mandava buscar em Vöcklabruck ou em Wels. Que só o
arruinaram espiritualmente. Seu pai sempre foi da opinião equivocada de que títulos acadêmicos
altissonantes eram garantia de uma certa capacidade intelectual considerável. No que sempre
esteve enganado. Minha vida inteira eu sempre odiei todos esses títulos e quem os ostentasse.
Não há nada que me seja mais repulsivo. Fico de estômago embrulhado só de ouvir: professor
universitário! Um tal título é a maioria das vezes como que a prova de um egrégio imbecil.
Quanto mais imponente soa o título, maior a imbecilidade de quem o ostenta. E como se tudo
isso não bastasse, sua mulher, a sua mãe! Ela, que vem justamente de onde o espírito sempre foi
espezinhado. E nas décadas em que esteve casada com seu pai, ela aprimorou ainda mais essa
sua arte. Mas seu pai nunca foi uma pessoa que pensasse com independência, não tinha o mínimo
estofo para tanto. Ele sempre admirou os outros, a quem tinha por pessoas que pensavam, e
deixava que esses outros pensassem por ele. Isso naturalmente lhe foi sempre muito cômodo.
Mas essa comodidade não passou sem deixar traços. Ele não se desenvolveu. Você me desculpe,
disse meu tio Georg, mas seu pai é um homem particularmente estúpido. E era justo de um
homem particularmente estúpido que sua mãe precisava, ela que sempre foi refinada. Desse
ponto de vista seus pais foram sempre um par ideal, disse. Ainda posso ouvi-lo perfeitamente,
estávamos sentados ao ar livre na Piazza del Popolo, na boca da noite o tio Georg tornara-se mais
loquaz que nunca, porque, contra seu costume, já bebera naquela tarde várias taças de vinho
branco. Justo porque eu sempre amei seu pai, meu irmão, e o amo até hoje, é que me permito
falar assim sobre ele, disse meu tio Georg, você sabe disso. Eu sempre desejara para seu pai uma
mulher diversa de sua mãe, mas enfim, disse de repente e olhou-me consternado, o que se há de
fazer, ela é sua mãe. Talvez tenha sido um erro, ele disse, que você tenha se aproximado de mim.
Talvez você fosse mais feliz sem mim, quem sabe. Ao que respondi com um simples não. Ele
estava hospedado no Hôtel de la Ville, seu hotel preferido ao pé da Trinità dei Monti, do qual
descendo uns poucos passos já estava no Café Greco. Ao menos uma vez por ano ele vinha a
Roma, quando Cannes me dá nos nervos, dizia toda vez. Uma vez por ano Cannes lhe dava nos
nervos. Paris não me agrada, dizia muitas vezes, Roma me agrada sempre. Também porque sei
que você está em Roma. Numa cidade amada há sempre uma pessoa que se ama, dizia. Pena que
Roma ficou tão barulhenta. Mas todas as cidades ficaram barulhentas. Embora o tio Georg não
apareça na foto que mostra minhas irmãs Amalia e Caecilia diante da sua vila, pensara sem parar
praticamente só nele ao contemplar a fotografia. Ocupara-me dele. Tentara me distrair por meio
dele do telegrama de Wolfsegg, do qual não pudera ainda assimilar todo o horror. Meus pais
mortos, definitivamente mortos, meu irmão Johannes morto. Ainda não era capaz de me haver
com esse fato e suas repercussões. Adiei-o. Nessas horas meu tio Georg teria sido meu melhor
apoio. Que eu não tinha. Pensar o que me aguardava agora estava proibido. Dispus agora as três
fotografias na escrivaninha, uma sobre a outra, de tal maneira que meu tio Georg, embora não
esteja retratado porque a foto só mostra minhas duas irmãs em Cannes, ficasse no topo e portanto
viesse por assim dizer em primeiro lugar acima de meus pais, e abaixo de meus pais o meu irmão
Johannes. De um golpe todos agora estavam mortos. O que, perguntei comigo, os ligava um ao
outro e a mim? No Hôtel de Ville, onde se hospedava naturalmente no melhor e mais belo de
todos os quartos, meu tio me disse uma vez que só podia amar sua família, embora fosse
obrigado a odiá-la. Com essas exatas palavras ele caracterizou sua relação com os seus e os
meus. Seu irmão, meu pai, ele o amava e desprezava simultaneamente. Sua cunhada, minha mãe,
ele a odiava como sua cunhada, mas a respeitava como minha mãe e a mãe de meu irmão
Johannes. Eles vão viver até cair de velhos, disse uma vez, essas pessoas vivem até cair de
velhos, com o passar das décadas sua estupidez se deposita a seu redor como uma carapaça
protetora, eles não caem mortos de repente como nós. Ele estava errado. Eles têm doenças
crônicas, que lhes prolonga ainda mais a vida em vez de abreviá-la, por mais incômodas que
sejam não são fatais, do tipo que se manifestam e derrubam a pessoa. Seus interesses não as
desgastam, suas paixões não as deixam loucas, porque não as têm. Sua impassibilidade e afinal
sua indiferença regulam sua digestão dia após dia, de sorte que podem dar como certa a idade
senil. No fundo, nada os atrai no mundo e nada no mundo os repugna. Não se entregam a nada a
tal ponto que os possa debilitar minimamente. No instante em que notaram que eu era um fator
de distúrbio, disse meu tio Georg, eles me expeliram de sua comunidade, primeiro em segredo,
depois abertamente. No fundo teriam pagado qualquer preço, afinal, por mais alto que fosse, para
se verem livres de mim. De maneira automática eu assumira uma função em Wolfsegg que não
podia aceitar, era aquele que chamava constantemente a atenção para seus erros, a quem nada
escapava de sua fraqueza de caráter, que os flagrava em toda ocasião como fracos de caráter.
Como ficaram surpresos, disse meu tio Georg, quando um belo dia eu lhes fiz notar que havia
seis meses nossas bibliotecas não eram abertas e que eu exigia acesso às bibliotecas. Quando eu
dizia nossas bibliotecas, as pessoas sempre se surpreendiam, pois todos os outros podiam na
melhor das hipóteses dizer nossa biblioteca, porque tinham somente uma biblioteca, nós
tínhamos cinco, mas com essas cinco bibliotecas ficávamos intelectualmente a ver navios de
maneira muito mais vergonhosa, disse meu tio Georg, do que aqueles que só tinham uma única
biblioteca. Um dos nossos tataravós criara aquelas cinco bibliotecas, de que eu próprio tanto me
orgulhei minha vida inteira, certamente não um louco, como sempre se dizia em Wolfsegg, mas
um doido pelas coisas do espírito, que quis e pôde se dar ao luxo de instalar bibliotecas em
nossos prédios, e com pleno conhecimento da literatura, em vez de construir salões por toda
parte, que só serviam para espalhar o tédio e a estupidez. Um dia, disse meu tio Georg, eu por
assim dizer arrombei essas bibliotecas adormecidas, coisa que eles não me perdoaram pelo resto
da vida. Mas depois que eu saí de Wolfsegg eles trancaram novamente as bibliotecas e nelas não
puseram mais os pés durante anos, até que correu a notícia de sua existência e não houve jeito
senão mostrá-las aos curiosos, para não perderem a reputação. Em Wolfsegg nada era utilizado,
disse meu tio Georg, até que eu subitamente passei a utilizar tudo. Sentei-me em poltronas em
que havia décadas ninguém se sentava, abri portas de armários que havia décadas ninguém abria,
bebi de copos de que havia décadas ninguém bebia. Cheguei até mesmo a andar por corredores
pelos quais havia décadas ninguém andava. Desde o princípio fui o curioso, de quem eles tinham
a temer, disse tio Georg. E comecei a folhear nossos documentos centenários, armazenados em
grandes caixotes nos sótãos, dos quais eles sempre tiveram conhecimento, sem nunca examiná-
los mais de perto. Eles temiam descobertas desagradáveis. A mim, disse tio Georg, sempre me
interessou tudo e, como é natural, interessava-me em particular nossas relações. A história me
interessava, mas não do modo que eles se interessavam pela história, por assim dizer só pelas
páginas gloriosas coligidas às centenas e aos milhares, senão como um todo. Ao que eles nunca
haviam se atrevido, olhar para dentro, para o fundo dos terríveis abismos de sua própria história,
eu me atrevera. Isso os pôs em fúria contra mim. Georg se tornou afinal uma palavra temível
para todos eles em Wolfsegg, disse meu tio. Eles tinham medo que a criança que eu era pudesse
dominá-los, e não vice-versa. Meus pais, seus avós, disse, me acorrentaram a Wolfsegg e me
amordaçaram. Era justamente isso que nunca deveriam ter feito. E com o erro de meus pais, seus
avós, seus pais não aprenderam nada, pelo contrário, usaram de métodos ainda mais infelizes
para lidar com você. Mas por outro lado, disse, o que teria sido de você se eles não tivessem se
portado com você da maneira como se portaram? Essa pergunta não precisava ser respondida,
respondia a si própria. Quando te vejo, disse meu tio Georg, no fundo vejo sempre a mim. Você
tomou exatamente o mesmo rumo. Você se separou deles, você os evitou, você lhes virou as
costas, você escapou deles no momento certo. Assim como nunca me perdoaram, nunca vão
perdoá-lo. Meu Deus, disse, Roma é para você o que Cannes é para mim. É assim que podemos
ajustar as contas com Wolfsegg, de longe. Quando penso naquelas tardes arrastadas com os
meus, em que os tópicos mais magníficos caíam no vazio no instante mesmo em que eram
proferidos! Seja lá o que se diga, não é compreendido. Seja lá o que se proponha, nem é tomado
em consideração. Quando ele lê um jornal, seu pai, é só a Gazeta Agrícola da Alta Áustria,
quando lê um livro, é só o livro de contabilidade. E então, como têm de aproveitar a assinatura,
vão ao teatro em Linz para assistir a uma porcaria de comédia, sem se envergonharem disso, e
vão a esses concertos ridículos na chamada Brucknerhaus, onde imperam as notas erradas
tocadas ao máximo volume. Essas pessoas, seus pais, quero dizer, não compram apenas uma
assinatura para o teatro e para o concerto, disse, eles vivem sua vida por assinatura, todos os dias
vão à sua vida como se fossem ao teatro, para assistir a uma porcaria de comédia, e não se
envergonham de irem à sua vida como a um concerto deplorável, no qual somente as notas
erradas são as dominantes, e vivem porque assim deve ser, não porque o queiram, não porque
esta seja sua paixão, sua vida, não, mas porque seus pais lhes fizeram uma assinatura. E tal como
no teatro eles aplaudem no momento errado, também no momento errado eles aplaudem em sua
vida e, tal como no concerto, exultam continuamente em sua vida quando não há absolutamente
nada a exultar, e estampam em seus rostos arrogantes a careta mais repulsiva quando deviam rir
de peito aberto. E tal como as peças a que eles assistem por assinatura são uma catástrofe e do
mais baixo nível, também sua vida é uma catástrofe e do mais baixo nível. Por outro lado, disse,
estava na hora que nos fosse indiferente aquilo que eles fazem, o que fizeram com suas vidas não
é da nossa conta. E quem dirá se nós mesmos seguimos o caminho correto? Nós mesmos não
somos as pessoas mais felizes do mundo. E estivemos sempre em busca do ideal, sem encontrá-
lo. O fato é que nós todos sempre buscamos um caminho para nos aproximar uns dos outros e
com isso sempre nos afastamos cada vez mais, quanto maiores foram nossas tentativas de nos
reaproximar, tanto mais nos afastamos uns dos outros. Nossas tentativas nesse sentido, disse,
sempre terminaram em mágoa. Sempre desistimos de nossas tentativas somente porque, do
contrário, seríamos sufocados por nossas próprias censuras, disse. Nosso erro é que nunca nos
resignamos com o fato de que Wolfsegg não nos diz mais respeito, é a Wolfsegg deles, disse,
não nossa Wolfsegg. Quisemos sempre lhes impor e impingir uma Wolfsegg que é nossa
Wolfsegg, mas não a deles, em vez de deixá-los em paz. Sempre nos intrometemos na Wolfsegg
deles, quando melhor teríamos feito deixá-la como estava. Eles nos deram o troco, e deveríamos
nos dar por satisfeitos com isso, de uma vez por todas. Não temos mais direitos sobre Wolfsegg,
disse. Observei em pormenores a fotografia na qual minhas irmãs estavam com uns vinte e dois
ou vinte e três anos. Seus rostos sardônicos vingaram-se delas, pensei. Elas ficaram sozinhas, não
tiveram força para se livrar de Wolfsegg. Esses rostos sardônicos eram sua única arma contra seu
ambiente, contra seus pais, de quem não podiam escapar, mas com tais rostos intimidavam os
próprios homens que desejassem ter. Minhas irmãs não eram bonitas, nunca foram, em nenhum
momento, pensei. Mas também não eram interessantes. Não se desenvolveram, permaneceram as
caiporas bobas que sempre foram. Só que, vinte anos mais tarde, os rostos sardônicos perderam o
frescor, foram sulcados pelas muitas rugas da amargura. No aspecto geral elas são feias. Talvez
Caecilia tenha melhor gênio que Amalia. À cobiça de origem materna veio somar-se o azedume.
A princípio ambas tinham talento para música, e meu tio Georg tentou torná-las músicas, uma
tentativa deplorável, condenada ao fracasso. Faltava-lhes a perseverança, elas também não
faziam nenhuma questão de música, com isso sua musicalidade foi obviamente por água abaixo,
servindo apenas para a suplência no coral da igreja. Já com quatro, cinco anos de idade, elas
foram metidas em vestidos tiroleses por sua mãe, sempre idênticos no corte e na estampa, nos
quais era inevitável que definhassem com o tempo. Ambas têm a saúde debilitada, herança de
sua mãe, mas uma saúde debilitada que augura uma vida longa. Elas tossem ininterruptamente,
não as conheço de outro modo, em Wolfsegg elas tossem de cima para baixo e de baixo para
cima, mas essa tosse não é para ser levada a sério, não é letal, é como se essa tosse fosse sua
única paixão, a diversão mais cômoda de suas vidas. Seu talento musical, ao que parece,
refugiou-se nessa tosse. Também em público elas tossem ininterruptamente. Não têm nada a
dizer, mas tossem sem parar. Cada qual usa no pescoço uma corrente de prata herdada de nossa
avó, e quando alguém lhes pergunta o que elas são, a primeira coisa que dizem é a palavra
católicas. Ambas foram enviadas a cursos de culinária em Bad Ischl, porque pensou-se que lá
aprenderiam a cozinha imperial, mas nenhuma delas aprendeu a cozinhar em Bad Ischl, elas
cozinham pior ainda que nossa mãe, que sempre se compromete quando a cozinheira está de
férias em Aschau no Danúbio. Sopa de batata é a única coisa que nossa mãe sabe cozinhar bem.
Mas nenhum de nós gosta de sopa de batata. Só meu pai tem paixão por ela, ao menos isso é o
que afirma. Minhas irmãs sempre foram, como se diz, bem-educadas, o que não altera em nada o
fato de sempre terem sido também as pessoas mais ardilosas que se possa imaginar. Acaso uma
delas tomasse na mão um livro, a outra o arrancava da mão. Nunca eram vistas separadas,
sempre juntas. Elas têm um ano de diferença, mas portam-se como gêmeas. Se digo que sempre
as amei, isso não significa que não as tenha igualmente sempre odiado. Quando adultos, como é
natural, eu as odiei mais que amei, provavelmente, penso agora, só restou mesmo o ódio. Elas
sempre se decepcionaram comigo. Que eu saiba, sempre falaram mal de seu irmão, sobretudo em
público, quando isso teria sobre mim, como elas deviam supor, efeitos devastadores. Tudo o que
elas não inventaram contra mim, para me humilhar! As pessoas estúpidas causam sempre efeitos
muito mais devastadores que os outros, penso. Sempre as amei não significa que não as tenha
também sempre destratado. Desde o princípio, sua mãe as acorrentou a si e nunca mais as soltou.
Não podiam fazer viagens, não podiam ir a bailes, mesmo quando já beiravam os vinte ainda
eram sempre obrigadas a pedir permissão se quisessem ir ao chamado mercado de quinta-feira
em Lambach. A soma que recebiam de mesada era sempre apenas o suficiente para que suas
escapadelas não fossem muito longas, bastando somente para uma bebida e uma fatia de pão
como tira-gosto. Seus sapatos por princípio só eram feitos sob medida pelo sapateiro de
Schwanenstadt, que já confeccionara os sapatos de nossos avós, e com isso estavam sempre fora
de moda e fizeram com que minhas irmãs adquirissem com o tempo aquele modo de andar
apatetado, que elas conservaram mesmo mais tarde, quando tiveram então oportunidade de
comprar sapatos em Viena. Sou incapaz de dizer qual das duas é mais inteligente. Sou incapaz de
dizer, Caecilia tem mais bom gosto que Amalia. Sou incapaz de dizer, Amalia sabe mais do que
Caecilia. Suas vozes são tão parecidas que é difícil reconhecer, quando uma das duas chama,
qual das duas chamou. Como em princípio elas sempre apareciam juntas e nenhuma das duas,
parece, jamais teve necessidade de soltar-se da outra, por todo esse tempo não encontraram um
marido à altura. Acho mesmo que nunca pensaram em se casar, até que no ano passado Caecilia
fez uma viagem à Floresta Negra. A Titisee, onde mora nossa velha tia. Lá conheceu o fabricante
de rolhas para garrafas de vinho. Caecilia casou-se e incorreu assim no ódio de sua irmã Amalia.
Amalia deixou o prédio principal e mudou-se para a casa dos jardineiros. Fez somente uma breve
aparição no chamado banquete de núpcias após a cerimônia na igreja, logo depois saiu e não foi
mais vista. Conhecendo-a como a conheço, penso, ela não deixou mais a casa dos jardineiros.
Até a notícia das mortes. Como seu lado teatral é muito mais marcado que o de sua irmã,
certamente prorrompeu aos berros da casa dos jardineiros e subiu em disparada ao prédio
principal, penso. Mas naturalmente não posso saber como as coisas se passaram na realidade. É
provável que, no momento da tragédia, o marido de Caecilia estivesse ainda em Wolfsegg, pois
só pretendia regressar à Floresta Negra e a Freiburg depois de duas semanas, pensei. Parece que
nossa tia do Titisee, como se diz, patrocinou o matrimônio de Caecilia. É típico de Caecilia
acreditar que pudesse permanecer em Wolfsegg mesmo depois do casamento. Que sacrifício há
de ter sido para minha mãe persuadi-la a seguir com seu marido para Freiburg, de vez que nossa
mãe jurara em segredo jamais deixar nenhuma das filhas partir de Wolfsegg, porque a vida
inteira teve medo da solidão. As duas filhas deveriam ficar com ela em Wolfsegg, de modo que,
se algum dia uma delas lhe faltasse, como devia pensar, nem por isso precisasse ficar totalmente
solitária. Nossa mãe sempre previa com muita antecedência e sempre levava tudo em
consideração, em especial o que dissesse respeito, em primeiro lugar, a seu próprio futuro. Perder
seu marido, meu pai, era algo que ela sempre calculara, mas então terei sempre minhas filhas,
mesmo que meus dois filhos não estejam mais em Wolfsegg. Tal o seu pensamento, que
prosseguia ainda: se uma filha for embora, tenho ainda a outra. Ela estava furiosa com Caecilia
e fez mesmo com que ela o notasse durante todos esses dias de casamento, mas esperta como é,
não, esperta como era, guardou-se de manifestar abertamente sua fúria e seu ódio repentino pela
renegada, pelo contrário, não perdia a chance de fingir o quanto se alegrava com essa feliz união,
como se expressava a todo instante. Agora, sim, ela era a mãe feliz que sempre quis ser, dizia,
um espetáculo de fato repugnante para os iniciados. Em todos os cantos e recantos de Wolfsegg
ela se fez ainda fotografar por seu genro, ela, que por assim dizer nunca se deixou fotografar por
um estranho, em toda espécie de pose ridícula, despudorada mesmo, como acho, e a todo instante
abraçava-se ao genro e pedia a um ou outro dos circunstantes que tirasse uma foto daquele
abraço. Sua veia histriônica atingira sem dúvida o auge nesse casamento. E justo da Floresta
Negra! exclamava. Sempre amei Freiburg! E Titisee! Seu mau gosto não conhecia limites. Em
segredo, não havia nada que ela desejasse com tamanha sofreguidão quanto o pronto rompimento
da união de Caecilia com aquele seu marido um tanto apalermado, que provavelmente nem tinha
idéia do que fizera para merecer tudo aquilo. Ela nunca fora puritana em seus pensamentos. É
bem possível, penso, que nossa tia do Titisee tenha se vingado de minha mãe ao casar sua
sobrinha Caecilia com o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, pois nada é mais claro,
nossa tia do Titisee é responsável por esse casamento grotesco. Ela jamais pôde engolir minha
mãe, agora saboreava seu triunfo. Enquanto não parava de fazer poses da maneira mais repulsiva
durante esse casamento, minha mãe já tinha certamente em vista o caminho mais ligeiro de
destruir esse casamento indesejável, penso. Em sua cabeça já operava esse mecanismo de
destruição, enquanto ostentava ao público presente ao casamento a imagem da mãe que
transbordava de felicidade com esse matrimônio. Que pena o tio Georg não poder estar presente!
ela exclamava. Ao longo de todos esses dias meu pai comportou-se com bastante indiferença,
tocou seus negócios, a maior parte do tempo na fazenda ou no bosque, tais festas sempre lhe
foram antipáticas e ele sempre as tolerou por amor a sua mulher e porque ela sempre o forçara a
tanto. O tempo inteiro, como se diz, ele foi a clama em pessoa. Eu não parava de pensar que
subitamente ele se tornara velho, sem forças, privado de todo interesse. Mas sou incapaz de dizer
que senti pena dele. Na infância, penso, tive uma relação normal com minhas irmãs, ainda que
não particularmente boa, depois de adultos a relação foi sempre ruim e agora, após a morte de
meus pais e de Johannes, temia o confronto com elas. Elas vão me criar dificuldades imensas,
pensei. Não vou conseguir suportar seus rostos, nas fotos sardônicos e agora amargurados, seu
jeito de falar, seu jeito de andar, seu jeito de vestir e de prorromper em acusações contra mim ao
menor ensejo, quando não há nada para acusar. Que eu renegara Wolfsegg, que impusera um
duro golpe a meus pais, praticamente os ferindo de morte, isso elas sempre me repreenderam, e
agora, depois da morte de meus pais, elas certamente o fariam com um descaro tanto maior. Elas
não vão hesitar diante de nenhuma acusação, por mais absurda, por mais sórdida que seja,
pensei. De nada vai adiantar que me contenha, que as evite o máximo possível, é infalível que
elas estejam lá e joguem nas minhas costas a culpa por toda a desgraça. Nas minhas e, ainda que
esteja morto há tanto tempo, nas do tio Georg. Não vão perder a oportunidade de dizer que levei
meus pais à loucura, à sandice, que os feri de morte. Mesmo que a coisa nada tenha a ver
comigo. Quando eram vivos, eu já era continuamente acusado de sua desgraça, e não apenas da
desgraça dos meus pais, também da delas próprias. Ao partir de Wolfsegg e virar as costas a
Wolfsegg, essa a teoria delas, eu me tornara culpado, entre outras coisas, por elas terem sido
acorrentadas a Wolfsegg, por terem sido forçadas a definhar em Wolfsegg, por não terem podido
se desenvolver o mínimo que fosse, não terem podido se casar etcétera. Por toda a atmosfera de
Wolfsegg ter se turvado, de maneira espantosa, nas duas últimas décadas, a partir justamente do
momento em que deixei Wolfsegg e vim para Roma. Por meu pai e também Johannes terem
ficado doentes e por minha mãe, além da enxaqueca de que padeceu a vida inteira, ter sido
acometida por doenças estomacais e renais. Por ter se deteriorado tanto a saúde deles todos. Por
nada mais ter sido renovado em Wolfsegg. Mesmo por não terem mais sido feitos consertos no
telhado nessas duas décadas seria culpa minha, sempre que as goteiras pingavam, que tinham de
acudir ao sótão com seus trapos e baldes para enxugar o molhado, eles punham a culpa em mim.
Antes, quando ainda estava em Wolfsegg, tudo fora sempre divertido, a partir do instante em que
sumi para Roma, não mais. De um golpe, deixara-se de ouvir música em Wolfsegg, por exemplo.
Wolfsegg emudecera, disse-me uma vez Amalia, por sua causa, por causa dessa sua cabeça dura
que o levou a Roma, porque eu, como ela teve a audácia de dizer, não tinha nenhum senso de
responsabilidade, faltava-me amor filial, havia sempre odiado meus pais, havia sempre odiado
meus pais, enquanto ela os havia sempre amado. O dinheiro todo deles, que competia também a
elas, meus pais o teriam por assim dizer torrado comigo e dele as teriam privado. Com meu estilo
de vida dispendioso, disse Caecilia, eu lhes teria rebaixado o padrão de vida, seria enfim culpado
pela depreciação cada vez mais alarmante de suas legítimas etcétera. Chegaram elas a ponto de
afirmar que eu teria estudado e escolhido para esse fim as universidades mais caras da Europa
por nenhum outro motivo senão mantê-las em aperto o quanto pudesse. Por que tem de ser
Londres, Oxford, elas perguntavam com insistência, se Innsbruck faria o mesmo serviço? Elas
me chamavam ininterruptamente, até onde alcanço com a memória, de seu irmão
megalomaníaco, que dissipava o dinheiro delas, embora se tratasse do meu dinheiro, na melhor
das hipóteses do dinheiro de meus pais, pode-se dizer. Eu andava sempre nas roupas mais caras,
enquanto elas eram forçadas a vestir do mais simples por causa da minha mania de grandeza. O
culpado por andarmos molambentas é você, disse uma vez minha irmã Amalia. Primeiro elas
jogaram toda a culpa nas costas de meu tio Georg, depois em mim. Mesmo meu irmão teve a
petulância de me censurar pelo meu estilo de vida, Wolfsegg não estava em condições de me
financiar dessa maneira tão esbanjadora, essas suas palavras. Não pude crer em meus ouvidos,
mas ouvira perfeitamente bem. Em geral meus irmãos só repetiam os comentários de meus pais,
que eles tinham de ouvir o ano inteiro, estivesse eu em Wolfsegg eles davam vazão a seu lero-
lero maledicente contra mim, não se continham. A todo momento meus irmãos definiam
abertamente minha vida como inútil e minha existência como a mais supérflua possível, e
tentavam impedir meus pais de me remeter a ajuda de custo mensal, ou em todo o caso a
submetessem a uma drástica redução, era isso o que exigiam de meus pais. Eles não paravam de
lhes encher a cabeça para que, como eu próprio ouvi certa vez, não pensassem duas vezes
comigo, para que não se deixassem levar no bico, como disse certa vez minha irmã Caecilia,
quando ela e minha mãe tomavam o chá da tarde no chamado caramanchão, ao qual por puro
acaso eu chegara mais cedo que o anunciado. Continuamente eu tive de ser testemunha de seu
descaro comigo, e até onde alcanço com a memória eles sempre foram atormentados,
secretamente ou não, pelo pensamento de que eu recebesse mais do que eles e mais do que me
coubesse, e que levasse uma vida, segundo sua opinião, melhor e mais agradável, coisa que,
segundo sua opinião, nunca caberia a mim. Quem diabos ele é? perguntavam a todo instante,
quem ele pensa que é? Se me calasse à mesa, eles não achavam certo, se falasse à mesa, também
não achavam certo. Você sempre se cala, eles me censuravam, ou sempre é você quem fala. Se
ficasse em casa, o tempo todo eles diziam, por que você não sai? Se saísse, o tempo todo diziam,
por que você não fica em casa? Se usasse um terno claro, eles queriam que eu vestisse um
escuro, se vestisse um escuro, queriam em mim um claro. Se conversasse com o médico na
cidade, em tom de reprovação eles diziam, ele está sempre de conversa com o médico e põe o
médico contra nós. Se não conversasse com o médico, eles diziam, ele nem sequer se digna a
falar com o médico. Se dissesse preferir Roma a Paris, logo retrucavam que eu elogiava Roma só
porque eles a odiavam. Se dissesse não querer sobremesa, reportavam essa menção a respeito da
sobremesa a si próprios, embora ao fazer menção à sobremesa não tivesse absolutamente
pensado neles, seja lá o que dissesse, a seus ouvidos eu sempre dizia mal deles. Com o tempo, já
por esse motivo, não pude mais aturar Wolfsegg. Se tivesse vontade de ir ao lago, acusavam-me
de ir constantemente ao lago, o que era absurdo, pois tinha vontade de ir ao lago no máximo uma
vez por ano, ao contrário de meu irmão, que ia de fato constantemente ao lago, a cada dois, três
dias, no verão com freqüência ainda maior, mas acusar meu irmão nunca lhes passou pela
cabeça. Se fosse ao bosque, a seus olhos eu era um louco, se meu irmão fosse ao bosque,
achavam a coisa mais natural do mundo. Se pedisse uma vez um martíni no restaurante, logo
diziam, ele pede sempre um martíni caro. Se lhes enviasse um cartão-postal de um lugar
qualquer, de imediato diziam, ele só nos envia o cartão-postal para nos magoar. Ele pode se dar
ao luxo de viajar a Cannes, a Lisboa, a Madri, a Dubrovnik, nós não. Foi assim que logo cedo
perdi o hábito de lhes enviar cartões-postais. Mas quando deixaram de receber cartões-postais de
mim, diziam, ele não nos envia mais cartões-postais, o unha-de-fome. Ficavam cinco ou seis dias
inteiros zangados comigo, porque no auge do inverno arejava meu quarto para não morrer
sufocado, repreendiam-me que desperdiçava seu dinheiro ao abrir as janelas para deixar entrar ar
puro, num tempo em que o dinheiro estava tão curto e a lenha, tão cara. Nunca me perdoaram
que eu arejasse meu quarto no inverno, porque em quartos não arejados sou incapaz de viver e
muito menos dedicar-me a meu trabalho intelectual. Prefeririam quase morrer sufocados a
mostrar alguma compreensão pelo fato de que arejasse meu quarto, e isso em Wolfsegg, onde o
que não falta é lenha para aquecer a casa durante mil anos. A primeira vez que voltei de Roma a
Wolfsegg, crente de ser esperado com a maior das satisfações, logo nos primeiros instantes
mencionei como Roma era magnífica em fevereiro, quando se podia sentar ao ar livre na frente
dos cafés, em roupas bem leves, e pedir um café para beber. De pronto eles se zangaram com o
fato de em fevereiro eu beber café ao ar livre em Roma, e o tempo inteiro me repreenderam por
eu sempre me sentar ao ar livre e beber café, enquanto eles próprios tinham de trabalhar duro
não só em fevereiro, mas o ano todo. Está pensando o quê, temos muito que trabalhar em
Wolfsegg! diziam a todo instante. Não podemos nos dar ao luxo de nada, mas nada mesmo.
Você vive no luxo, enquanto nós aqui damos um duro danado para conseguir manter Wolfsegg!
Nessas duas décadas que estive longe de Wolfsegg, minhas irmãs criaram o hábito de dirigir-se a
mim num tom repulsivo, que simplesmente não posso aceitar. Para que andar de avião, se o trem
custa um terço do preço, ponderou-me minha mãe da última vez, e minhas irmãs, com toda
sordidez, logo fizeram eco a essa censura ridícula. Assim como desde crianças, junto com sua
mãe, elas investiam contra mim com suas vozes finas e esganiçadas, agora investem contra mim
com suas repugnantes vozes de velhas, que me transpassam a cabeça cada vez que tenho de
escutá-las. Minha mãe dizia uma sordidez e minhas irmãs captavam essa sordidez e, sem refletir,
triplicavam-na. Jamais teria ousado mostrar a Gambetti essa Wolfsegg pavorosa, penso, e todos
esses anos guardei-me de convidá-lo a Wolfsegg, uma única vez que fosse. O que lhe disse até
agora sobre Wolfsegg, penso, é algo perversamente inofensivo comparado com a situação real e
efetiva que lá impera. Jamais teria podido consentir que Gambetti lançasse um olhar nesse
inferno. Nem no vilarejo minhas irmãs eram benquistas, sobre elas eu ouvia, quando me
informava, somente os comentários mais repulsivos. Minha mãe também não era bem-vista no
vilarejo. Mas meu pai as pessoas estimavam e lamentavam em segredo que tivesse de viver com
aquela mulher e com aquelas filhas. Com meu irmão Johannes elas tinham de trabalhar em nossa
lavoura e em nossa silvicultura e nas minas de carvão, se o faziam de boa vontade, não sei. Mas
não era ele uma pessoa totalmente inacessível. No fundo, também não era tão presunçoso como
dele sempre se dizia. Não tinha, porém, maneiras agradáveis. Mais por timidez que por
presunção ele se mostrava a maior parte do tempo arrogante, coisa que todavia ele não era. Ao
contrário de minha mãe e de minhas irmãs, mas como meu pai e aliás como eu próprio, ele
sempre tivera uma boa relação com o povo e sobretudo soubera conquistá-lo para si. Minhas
irmãs, porém, e isso posso dizer com tranqüilidade, eram malquistas de todos. Também, elas
nunca fizeram a tentativa de se fazer benquistas. Não era só cômico que mesmo em idade madura
elas não largassem uma da outra, era repugnante, não era só grotesco, era de fato repulsivo. E
que mesmo em idade madura as duas continuassem a vestir-se de maneira igual. Até hoje elas
ainda são da cabeça aos pés as marionetes de sua mãe, dotadas de vozes terrivelmente
esganiçadas. Se por um acaso se dignassem a cerzir minhas meias, cerziam-nas com pontos tão
grossos que as meias ficavam impossíveis de usar, e além disso com uma cor que absolutamente
não combinava com a cor das meias, cerziam sem mais nem menos minhas meias verdes com
linha vermelha, por exemplo, e ofendiam-se profundamente quando, em vez de agradecê-las, eu
lhes jogasse na cara seu remendo medonho, cheio de nojo. Nunca pude também deixar de sentir
como um tanto estúpido ver minhas irmãs andar ininterruptamente de lá para cá naqueles trajes
de singular mau gosto da Alta Áustria, e os ditos vestidos de tirolesa, que duas vezes por ano elas
tinham de mandar fazer na costureira de nossa mãe, também sempre me repugnaram. Quando eu
chegava a Wolfsegg vindo de Roma e elas corriam a meu encontro nesses vestidos de tirolesa,
toda vez tinha de me conter para não soltar ofensas já nos primeiros instantes. De pequenas elas
usaram tranças, mais tarde apanharam os cabelos num coque sobre a nuca. O coque loiro ficou
nesse meio tempo grisalho. Lembro que já de pequenas elas não suportavam me ver sentado no
jardim com um livro. Não me deixavam em paz, chamavam-me, coisa que sempre me foi
extremamente repulsiva, de gênio fracassado, termo que haviam tomado de empréstimo ao
vocabulário de nossa mãe, e me gritavam nos ouvidos essa definição descarada até que jogasse
longe meu livro e me erguesse num pulo e me enfurnasse no meu quarto. Busco coisas
agradáveis a respeito de minhas irmãs, mas não acho. Claro que com tempo poderia relatar
algumas histórias sobre elas que as mostraria numa luz mais amena, mas tão poucas, comparadas
com as coisas terríveis ocorridas entre nós, que absolutamente não valem a pena ser
mencionadas. Devo confessar que nem sequer me espanta dizer minha verdade sobre elas, que a
vida toda só me atormentaram e invejaram até mesmo o ar que respiro. Seria culpado de uma
falsificação grosseira se calasse agora todas essas mesquinharias e tormentos que me infligiram.
Elas não merecem isso e isso não mereço eu próprio. Uma ou duas vezes por ano, para me
refrescar e para minha própria diversão, sempre compro um desses chapéus de palha romanos
que se acham sempre por uma ninharia no Trastevere e que, por serem mais leves que todos os
outros, oferecem a melhor proteção contra o calor romano, que em alguns dias pode ser de fato
insuportável. Quando voltei certa vez com um desses chapéus baratos para Wolfsegg, e portanto
para casa, como então ainda acreditava, minha mãe me pediu explicações, nada mais, nada
menos, justo desse chapéu de palha que eu trazia na cabeça. Se era mesmo preciso que eu
comprasse um chapéu de palha tão caro, agora que a crise econômica andava catastrófica e que
Wolfsegg não ia bem das pernas. Isso apenas como exemplo das barbaridades dos meus, que,
parando para pensar, mal conheceram as palavras vergonha, sensibilidade, consideração. E que
também nunca tiveram a menor necessidade de melhorar-se, que há décadas, todos, já não saem
do lugar e se dão por satisfeitos com isso. Enquanto eu sempre fiz de tudo para melhorar-me,
para acolher e assimilar tudo o que houvesse para ser acolhido e assimilado, eles não fizeram o
menor esforço nesse sentido. Tal como a maioria dos acadêmicos, que com o término de seus
estudos acadêmicos crê ter feito o quanto baste para sua existência e não ter mais de se preocupar
com a ampliação de seus conhecimentos e com o desenvolvimento de seu caráter, porque
acreditam já ter alcançado o ápice de sua existência, como por exemplo uma grande parte dos
médicos que conheço, assim também os meus, após haverem terminado o colégio, o chamado
secundário, não se preocuparam mais com nada e pelo resto de suas vidas permaneceram onde
estavam, naquela posição de fato totalmente insatisfatória. Mas essa atitude é repulsiva, acreditar
que o enriquecimento intelectual não é mais necessário, que a ampliação dos conhecimentos, seja
ele qual for, é supérflua, que a contínua instrução do caráter é perda de tempo. Muito cedo eles já
pararam de ampliar seus conhecimentos e de instruir seu caráter, desistiram, ao deixar o colégio,
e portanto com menos de vinte anos, de trabalhar sobre si mesmos e deram-se por satisfeitos com
o que fora alcançado, superestimando-se grosseiramente. Enquanto meu tio Georg, por exemplo,
esteve empenhado a vida inteira em ampliar seus conhecimentos, fortalecer seu caráter, explorar
plenamente, ao extremo, suas potencialidades, eles não mostraram nisso o menor interesse, numa
época em que ainda não haviam atingido nem sequer o grau mínimo aceitável de seu
desenvolvimento. Com cerca de vinte anos, devo dizer, eles já haviam desistido, não
assimilavam mais nada, não se sujeitavam mais a nenhuma fadiga, subtraíam-se a todo esforço
para melhorar a si mesmos. E no entanto é uma coisa óbvia ampliar os conhecimentos e formar e
reforçar o caráter enquanto se está vivo. Pois quem pára de ampliar seus conhecimentos e
reforçar seu caráter, e portanto de trabalhar sobre si mesmo para tirar de si o máximo possível,
parou de viver, e todos eles já haviam parado de viver com cerca de vinte anos, dali em diante
não fizeram mais que vegetar, devo dizer, naturalmente até se fartarem. A cada cem anos, penso,
eles geraram apenas um homem tal como meu tio, um tal caráter extraordinário, e justo esse
homem e caráter extraordinários eles perseguiram com aversão e ódio enquanto ele viveu. Ao
observar as fotografias nas quais estão retratados, penso que eles teriam podido fazer muito de si,
e provavelmente aquilo que há de mais sublime, e no entanto não fizeram nada de si por puro
comodismo. Contentaram-se com o ramerrão diário, que deles não exigia mais que a estupidez
tradicional que lhes era congênita. Não puseram nada em jogo, não arriscaram nada, desde os
mais verdes anos sempre se deixaram levar, como se diz. Nunca fizeram uso das potencialidades
que sem dúvida sempre tiveram, como todas as pessoas. E fizesse um deles uso de suas
potencialidades e das potencialidades deles, como meu tio Georg, para não ter de repisar meu
caso, eles o atormentavam com sua incompreensão e com sua inveja. Minhas irmãs estacaram o
passo assim que deixaram o colégio. Saíram elas do colégio de cabeça erguida, empunhando seus
diplomas como um certificado de garantia vitalício para algo de extraordinário, quando se tratava
porém, na melhor das hipóteses, apenas de um certificado de garantia para uma extraordinária
mediocridade, e estacaram o passo. Hoje, com seus quase quarenta anos, acham-se ao nível dos
seus dezenove anos, e tudo nelas é mais ou menos ridículo e, como é natural em sua idade, de
mau gosto, embora de modo algum lamentável. Mas também nosso pai estacou o passo logo
cedo, e depois de ter concluído a chamada escola técnica de engenharia florestal, que cursou em
Wiener Neustadt, acreditou ter alcançado o ápice da sua existência, e então não fez mais que
largar o corpo. Com vinte e dois anos estacara o passo, para então não fazer mais que se
imobilizar e atrofiar. E meu irmão Johannes também estacou o passo no dia em que colou grau
na escola florestal de Gmunden, e não se desenvolveu mais. Tal como noventa por cento da
humanidade, também ele acreditava que o diploma conferido com mérito pela última escola que
freqüentara fosse o auge de sua vida. E assim é com a maioria das pessoas, é de deixar qualquer
um maluco. Elas saem do colégio e estacam o passo e não fazem mais o menor esforço. E
desmoronam, como se pode dizer, sobre si mesmas. E alguém que não se esforça é sem dúvida
uma pessoa repulsiva que, quando a observamos, não há como observá-la sem a máxima
aversão. Ela nos deprime, com o tempo não nos deixa só infelizes, mas furiosos. Avançamos
contra ela, sem o mínimo proveito. A humanidade, parece, só se esforça enquanto tem em vista
diplomas estúpidos, dos quais possa gabar-se em público, tão logo tenha em mãos o suficiente de
tais diplomas estúpidos, ela solta o corpo. Em grande parte ela vive somente para obter diplomas
e títulos, por nenhum outro motivo, e uma vez obtidos, em sua opinião, um número de diplomas
e títulos suficiente, ela se deixa cair no leito macio desses diplomas e títulos. Ela não tem, parece,
nenhum outro objetivo na vida. Não tem, ao que parece, nenhum interesse numa vida própria,
independente, numa existência própria, independente, só nesses diplomas e títulos, sob os quais
há séculos a humanidade ameaça sufocar. As pessoas não se empenham por independência e
autonomia em geral, por seu próprio e natural desenvolvimento, mas apenas por esses diplomas e
títulos, e por esses diplomas e títulos estariam dispostas a morrer prontamente, se eles lhes
fossem incondicionalmente entregues e conferidos, essa é a desmascaradora e deprimente
verdade. Elas estimam tão pouco a vida em si que só têm olhos para os diplomas e títulos, e mais
nada. Elas penduram os diplomas e títulos nas paredes de suas casas, nas casas dos açougueiros e
dos filósofos, dos ajudantes de cozinha e dos advogados e juízes estão pendurados os diplomas e
títulos, e sua vida inteira eles fitam esses seus diplomas e títulos com olhos ávidos, que ganharam
de tanto fitar avidamente tais diplomas e títulos. Quando falam de si mesmos, no fundo não
dizem, eu sou esta ou aquela pessoa, mas eu sou este ou aquele título, eu sou este ou aquele
diploma. E não privam da companhia desta ou daquela pessoa, mas somente deste ou daquele
diploma e deste ou daquele título. Assim, podemos afirmar sem rodeios que, na humanidade, não
são as pessoas que se relacionam entre si, mas só os diplomas e títulos, as pessoas,
grosseiramente falando, não contam na humanidade, importantes são apenas os títulos e
diplomas. Há séculos não são as pessoas que atraem a vista, mas só títulos e diplomas. Não é o
sr. Huber que elas encontram no café, mas o título de doutoramento Huber, não saem para
almoçar com o sr. Maier, mas com o diploma de engenheiro epônimo. Só atingem seu objetivo,
parece, quando não são mais a pessoa, senão o diploma de engenheiro, quando não são mais,
como acreditam, somente a sra. Müller, senão a senhora do consultor jurídico. E não recebem em
seus escritórios a srta. Fulana de Tal, senão seu diploma de excelência. Embora essa mania de
diploma e título esteja disseminada por toda a Europa, sem dúvida ela alcançou na Alemanha e
sobretudo na Áustria um grau de barbaridade e um grotesco tal que chega a estarrecer. Ainda
recentemente disse a Gambetti que os austríacos e os alemães não estimam as pessoas, mas
somente os títulos e diplomas, chegando a ponto, aliás, de acreditar que a pessoa só nasce no
instante em que obtém um diploma ou alcança um título, antes nem uma pessoa ela seria.
Gambetti achou essa observação de minha parte muito gritante, chamou-a exagerada, mas no
curso de nossas aulas ainda lhe provo que não exagero e que as coisas não são assim só na
Áustria, como agora torno a pensar, mas em toda a Europa e, com o passar do tempo, com
espantosa rapidez, em todo o mundo. Mas essa mania de diploma e título não é naturalmente
uma invenção deste século, dela as pessoas sempre padeceram. Como elas mesmas se
estimassem muito pouco, um belo dia, já faz séculos, fizeram-se passar por diplomas e títulos,
para fazerem boa figura a seus próprios olhos. Era freqüente meu tio Georg dizer, sempre que
vou a Áustria tenho a impressão, ao viajar de trem, de que no vagão só viajam títulos de
professores e doutores, não pessoas, de que nas ruas só caminham hordas de diplomas, não
jovens, só conselheiros, não idosos. Tal como havia feito meu pai com o diploma da escola
técnica de engenharia florestal, meu irmão, seu filho Johannes, havia pendurado na parede acima
de sua escrivaninha, numa espessa moldura, o diploma da escola florestal de Gmunden, como se
se tratara de um retábulo. Sentiam a conclusão dessas suas escolas, sem dúvida necessárias mas
completamente ridículas, como o apogeu de suas vidas. E minhas irmãs grasnavam a todo
instante a palavra colégio, sem que ninguém lhes houvesse perguntado a respeito. O mundo
inteiro sofre da mania de diplomas e títulos, que torna impossível uma vida natural. Mas nos
países latinos ainda não se atingiu, em absoluto, essa situação extremamente deprimente que
vigora na Áustria e na Alemanha, dizia meu tio Georg. E acredito que essa situação austro-
germânica não dará frutos por lá. Esses povos não foram e não são tão bitolados. Nesses povos a
vida natural ainda é largamente difundida, enquanto em nosso meio já expirou quase
inteiramente. Há séculos não é mais possível uma vida efetivamente natural na Alemanha e na
Áustria, porque ela foi devorada e extinta pela mania de diplomas e títulos. Com meu irmão
Johannes eu tive um bom relacionamento na primeira infância, só um ano de diferença nos
separa, ele é, não, ele era o mais velho, até irmos para a escola e nossas irmãs nascerem fomos
bons amigos. Mas já na escola nossos caminhos se bifurcaram. Já com seis anos, penso, cada um
de nós tomou o rumo que determinaria então o restante de sua vida, cada um de nós, de fato, um
rumo exatamente oposto ao do outro. Enquanto Johannes se embrenhava cada vez mais em
campos e bosques e florestas, eu me distanciava com a mesma resolução justamente de campos e
bosques e florestas, ele portanto sempre penetrava mais a fundo em Wolfsegg, enquanto eu me
distanciava cada vez mais de Wolfsegg, finalmente ele não foi apenas impregnado por Wolfsegg,
senão logo dominado e, como creio, sorvido e devorado, eu o fui finalmente pelo mundo fora de
Wolfsegg. Enquanto as palavras prediletas de meu irmão pouco a pouco não eram outras senão
trigo, porcos, abetos e pinheiros, as minhas eram Paris, Londres, Cáucaso, Tolstoi, Ibsen
etcétera, e cedo de nada mais adiantou que sempre tentasse me entusiasmar com suas palavras
prediletas, como de nada me adiantou interessá-lo nas minhas. Enquanto eu, seguindo o exemplo
de nosso tio Georg, passava a maior parte do tempo em nossas bibliotecas, ele era encontrado a
maior parte do tempo nos estábulos, no estábulo ele aguardava que uma vaca finalmente parisse,
enquanto eu me ocupava em decifrar uma frase de Novalis na biblioteca, e exatamente como ele
aguardava o nascimento do bezerro no estábulo, eu aguardava com a mesma impaciência o
nascimento da idéia de Novalis em minha cabeça. Ao concluir o colégio ele comprara um barco a
vela, enquanto eu empreguei a quantia por ter levado o curso a bom termo para fazer uma
viagem à Anatólia com meu tio Georg. Enquanto empreguei cada minuto livre para estar com
meu tio Georg quando ele ainda se encontrava em Wolfsegg, meu irmão mal se interessava pelo
meu tio, ele sempre se ligara a meu pai, acompanhava meu pai aos campos, aos bosques, às
minas, às repartições das cidadezinhas circunstantes. Desde o início eu vira em nosso tio Georg
meu professor, ele, Johannes, o seu em nosso pai. Eu também não ficava constantemente nas
proximidades de minha mãe, como meu irmão, e francamente odiava quando ele, criança
pequena, se pendurava sem descanso em sua saia. Eu jamais me pendurava na saia de minha mãe
e sempre virava a cabeça quando ela fazia menção de me beijar. Ele pedia com insistência para
ser beijado pela mãe. De noite, enquanto ele dormia, eu muitas vezes saía de nosso quarto para ir
até o quarto de nosso tio Georg e ouvir uma de suas histórias, que ele, para me agradar,
inventava e contava às centenas. Meu irmão não se atrevia a eludir os preceitos reinantes em
Wolfsegg, eu os eludia continuamente. Eu saía de casa quando quisesse, ele não, descia quando
quisesse ao vilarejo para poder observar as pessoas que lá viviam, estar entre elas, ele não. Eu
falava com os aldeões quando quisesse, ele não falava com eles se não tivesse permissão. Enfim,
desde muito cedo arrumei meu próprio quarto segundo meu gosto, a ele nunca teria passado pela
cabeça fazer o mesmo. Seus livros escolares estavam sempre asseados, sua caligrafia nos
cadernos de escola era como que burilada, meus livros escolares eram sujos, minha caligrafia era
desleixada, quase ilegível. À mesa meu irmão sempre comparecia pontualmente, enquanto eu
sempre tive dificuldades com a pontualidade. Eu o instigava a aventuras, ele a mim,
inversamente, nunca. As aventuras a que eu o instigasse terminavam na maioria das vezes com
ele machucado e aos prantos, pois ele sempre foi o mais desajeitado dos dois, estava sempre a
cair num riacho, num lago, a tropeçar numa raiz, a escalavrar o rosto ou a perna nos arbustos, eu
nunca. Se eu dissesse, está vendo isso ou aquilo lá longe, ele não via, pois era míope, ao
contrário de mim, que sempre enxerguei muito bem. Foi brincando, como se diz, que aprendi de
um momento para outro a andar de bicicleta, ele precisou de muito tempo para sequer equilibrar-
se sobre duas rodas. Na corrida ele não era páreo para mim. Tivéssemos de atravessar um rio a
nado, a maioria das vezes ele fracassava e desistia. Assim, desde muito cedo arraigou-se nele,
não digo ódio, mas um forte sentimento de inferioridade em relação a mim, do qual ele sempre
padeceu e que degenerou afinal num ódio contra mim um tanto desenfreado, que de tempos em
tempos manifestava-se com toda a evidência. Em três minutos, por exemplo, eu descia ao
vilarejo, ele precisava de cinco. Na escola ele era o mais atento de todos, e caso fosse chamado
pelo professor, sempre se punha de pé num pulo, enquanto eu, como se diz, sempre fui o mais
distraído de todos, e caso o professor me chamasse, a maioria das vezes não ouvia, o que tinha
por resultado, como é natural, uma punição. Amigos nenhum de nós tínhamos nos primeiros
anos de escola, pois não nos era permitido levar colegas para casa. Depois das aulas, tínhamos de
subir diretamente do vilarejo para Wolfsegg. Mas anos mais tarde, quando nos foi permitido
levar amigos para Wolfsegg, cada um de nós teve amigos que correspondiam exatamente a sua
índole, amigos opostos, tal como éramos nós próprios. Meu irmão dormia sempre profundamente
e de manhã sempre estava revigorado, eu já de criança sofria de insônia. Eu tinha os mais
turbulentos, os mais instigantes sonhos, ele não. Para encontrar um determinado lugar no mapa,
ele demorava uma eternidade, eu não. Eu adorava mapas acima de tudo. Estendia-os a minha
frente e fazia grandes viagens, visitava as cidades mais famosas e singrava os mares em meus
navios imaginários. Meu irmão tinha interesses bem diversos: ele se acocorava num canto do
estábulo e observava os animais. Quando o circo Medrano ergueu suas tendas no vilarejo,
tínhamos cinco ou seis anos de idade, eu não perdia a ocasião de descer ao vilarejo e observar a
gente do circo, interessavam-me sobretudo os trapezistas. Sentava-me horas a fio num recanto
escondido e os admirava nos exercícios de sua arte instigante. Meu irmão não mostrou o menor
interesse pelo circo. No inverno eu observava os jogadores de curling no vilarejo até quase
congelar de frio, e bem cedo pedi um bastão de curling para poder participar das partidas, o que a
princípio me foi estritamente proibido, mas bem cedo eu burlei a proibição e desci ao vilarejo,
como se diz, por conta própria. Não perdia a ocasião de visitar o vilarejo, tão logo aprendera a
andar eu ficara fascinado por ele, pelas pessoas novas para mim, diferentes. Meu irmão não tinha
esse interesse, não havia meio de persuadi-lo a me acompanhar em minhas visitas ao vilarejo. Ele
teria de cometer uma transgressão, coisa que não ousava e já desde muito cedo recusava por
princípio. Eu entrava sem cerimônia em todas as casas do vilarejo e me apresentava e falava com
as pessoas. Fazia amizade com eles, observava seu dia-a-dia, tomava parte em seu lazer bem
como em suas ocupações, e quanto mais pessoas eu conhecia em minhas incursões pelo vilarejo,
que se estende por mais de quatro quilômetros, tanto melhor. Conheci sobretudo as pessoas
simples e como elas viviam e trabalhavam e celebravam suas festas. Até os meus quatro ou cinco
anos de idade, não sabia que houvesse outras pessoas além daquelas de Wolfsegg, muitas e
muitas outras, centenas, milhares, centenas de milhares, milhões, como em breve descobri. Eu
visitava os artesãos e os observava em seu trabalho, o torneiro, o sapateiro, o açougueiro, o
alfaiate. Ia ter com as pessoas pobres e me surpreendia como elas eram gentis comigo, pois
sempre pensara que fossem intolerantes, como os meus sempre as descreveram para mim,
bitoladas, inacessíveis, teimosas, pérfidas e insidiosas. Mas descobri que eram mais amáveis que
nós lá de cima em Wolfsegg, que elas eram amáveis e acessíveis, não nós, que elas eram alegres
e não nós, e fomos nós que me pareceram subitamente, ao contrário dos aldeões, inacessíveis,
teimosos, pérfidos e insidiosos. Os meus me haviam dito que a aldeia era perigosa para mim, e
eu descobrira que não havia o menor perigo para mim na aldeia. Eu entrava sem qualquer
cerimônia por todas as portas e olhava por todas as janelas e não tinha limites minha curiosidade.
Meu irmão nunca participou de minhas incursões, pelo contrário, delatava-me a meus pais, ele
desceu de novo à aldeia, dizia, e não se envergonhava de assistir com olhar impassível quando eu
era castigado pelo meu crime, minha mãe me batia com um vergalho que sempre tinha à mão,
meu pai me esbofeteava. Enquanto fui golpeado sem conta com o vergalho, não consigo lembrar
uma única vez que meu irmão tenha sido com ele golpeado, nem que tenha recebido uma
bofetada de meu pai. A mim interessou-me sempre o que é diverso, a meu irmão não, pensei ao
contemplar a foto que o mostra num barco a vela no Wolfgangsee. A Gambetti disse uma vez
que meu irmão sempre foi dedicado, eu nunca. Expliquei a Gambetti o que entendo por dedicado
nesse caso. À mesa meu irmão sempre teve um comportamento tranqüilo e nunca ousou fazer
uma pergunta, enquanto eu fazia perguntas a todo momento à mesa, as perguntas mais
descabidas, como meus pais sempre me censuravam. Eu queria saber de tudo, nada devia ficar
sem resposta. Meu irmão comia com muita calma, eu sempre comi depressa, até hoje. Meu passo
era ligeiro, que levasse sempre o mais rápido possível ao destino, o de meu irmão, lento, para
não dizer pachorrento. Mesmo quando eu escrevia, escrevia sempre depressa e portanto com
letra desleixada e, como disse, quase ilegível, ele escrevia sempre com vagar, com calma.
Quando íamos nos confessar, ele sempre se demorava no confessionário, enquanto eu, mal
entrasse, já saía. Os muitos pecados que acreditava ter, eu os enumerava com toda rapidez, ele
precisava para seus poucos de pelo menos o dobro do tempo. Também sempre me vesti com toda
a rapidez de manhã, lembro-me, quando ainda dividíamos um quarto, até cerca dos sete anos,
mal me levantasse já estava lavado e vestido, ele precisava sempre de pelo menos três vezes o
mesmo tanto. Em tudo ele era, de fato, mais semelhante a nosso pai que a nossa mãe, enquanto
eu, desde o princípio, fui mais parecido com nossa mãe, ao menos no tocante à rapidez, à
inquietação, no tocante à curiosidade e à perspicácia. Obviamente, já no primário, minhas
redações eram melhores que as suas, mas isso não significava que recebesse também as melhores
notas por elas, ao contrário, por minhas redações sem dúvida melhores eu sempre recebia notas
piores, o que não era de admirar, em vista os professores que tivemos, que em geral, no tocante a
redações, davam mais valor à forma externa que ao conteúdo. Eu escolhia sempre temas
interessantes, exóticos, como eu mesmo sempre dizia, quando estes eram livres, meu irmão os
mais simples, que também desenvolvia e expunha de forma bem simples, não somente simples,
mas também tediosa e prolixa, enquanto os meus de fato eram sempre compostos de forma
complicada e interessante, como atestam a todo momento os cadernos de escola espalhados a
esmo em caixas de papelão nos nossos sótãos de Wolfsegg. Meu irmão estava menos interessado
em absorver em sua cabeça um conhecimento sempre maior, para desse modo tornar-se cada vez
mais inteligente, ele aspirava sobretudo a cair nas graças do respectivo professor, coisa que
nunca fora minha intenção, pelo contrário, eu nunca me saí bem com meus professores, como se
diz. Os professores também não gostavam de mim, porque para eles o trato comigo era muito
difícil, enquanto de meu irmão sempre gostaram, de sua falta de complicação. E também porque
ele sempre, em qualquer caso, os obedecia sem pestanejar. Eu era muitas vezes impaciente e
renitente com os professores e sempre tinha uma resposta pronta, ele sempre se conformava a
todas as ordens e nunca se rebelava, enquanto eu me rebelava quase diariamente e incorria assim
na hostilidade dos professores. Tal como aos meus em casa, eu também sempre fiz todas as
perguntas possíveis aos professores e com isso os tirei do sério, como noto hoje, exigindo deles
acima da conta. Tratavam-me, como é natural, com a mesma desconfiança com que eu os
afrontava. À diferença de meu irmão, que na autoridade deles sempre acreditou, nunca acreditei
na autoridade deles, desde muito cedo meu tio Georg definiu-me os professores como eles de
fato eram na verdade, capachos recalcados que descarregam em seus alunos seu humor perverso,
que em casa não puderam descarregar em suas mulheres. Os professores, entre todas as ditas
pessoas cultas, são as mais perigosas e as mais abjetas, incutiu-me desde cedo meu tio Georg, no
tocante a sua sordidez eles estão em pé de igualdade com os juízes, que estão todos num nível
baixíssimo da sociedade humana. Os professores e os juízes são os servos mais sórdidos do
Estado, dizia meu tio Georg, tome nota disso. Ele tinha razão, muitas vezes eu senti isso na pele,
não centenas, mas milhares de vezes. Nenhum professor, tal como nenhum juiz, é digno de
confiança, por capricho torpe e pura sede de vingar sua triste vida arruinada eles aniquilam
diariamente, sem escrúpulos nem remorsos, muitas das existências que lhe são confiadas, e ainda
por cima são pagos para tanto. A objetividade do professor, tal como a objetividade do juiz, é
uma mentira deslavada e hipócrita, dizia meu tio Georg, e ele tinha razão. Quando falamos com
um professor, logo notamos que, por insatisfação consigo mesmo, ele tem um caráter destrutivo,
de que nem as pessoas nem em última análise o mundo estão a salvo, e assim também quando
falamos com um juiz. Meu irmão primeiro sempre dava confiança a todas as pessoas e depois
sempre se machucava quando em quase todos os casos sua confiança era desapontada, eu, pelo
contrário, não dava confiança primeiro a quase ninguém e assim raras vezes fui desapontado em
minha confiança. De tanto ter a confiança desapontada, já cedo seus sentimentos se amarguraram
e logo ele assumiu as feições de seu pai amargurado e de um modo geral desapontado com a
vida, ou antes adquiriu-as, devo dizer, como quando alguém adquire uma propriedade. Por sinal,
bem rápido ele passou a assemelhar-se em todos os detalhes a seu pai. Quantas vezes pensei, seu
irmão caminha como seu pai, senta-se como seu pai, fica de pé como seu pai, come como seu pai
e também encadeia as palavras em suas frases longas, prolixas, exatamente como seu pai. Daqui
a trinta anos, pensei muitas vezes, ele será como seu pai. Ele assumira todos os hábitos de seu e
portanto também meu pai. Tal como seu e meu pai, ele logo se tornou uma pessoa indolente, que
sempre fingia fosse ativa, quando na verdade era a inércia em pessoa, ostentava ser uma pessoa
de quem só se podia dizer que fosse ininterruptamente ativa, trabalhasse sem descanso, não se
permitisse um instante de folga, e tudo isso, naturalmente, senão para a família, que sempre
desejava vê-lo tal como ele se representava, mas a família tomou a sério o que ele representava e
não reconheceu, ou simplesmente não quis reconhecer, que assistia apenas a um ator, e nem por
um instante a quem se entrincheirava por trás do ator em sua indolência congênita; na verdade
meu irmão trabalhava tão pouco quanto meu pai, não fazia mais que representar esse trabalho
ininterrupto por todos admirado e esse fervor ininterrupto pelo trabalho, que os contentava e que
por fim também o contentou, porque de súbito ele próprio não estava mais em condições de
atinar que esse seu fervor pelo trabalho só era jogo de cena para a família, mas não a realidade.
Meu pai representou a vida inteira o papel do fazendeiro tremendamente trabalhador, se não
fanático pelo trabalho, que nunca tem descanso, porque não pode permitir se um tal descanso por
puro senso de família, e assim também meu irmão, que adotou essa encenação de meu pai,
absolutamente fiel ao original, e ambos logo compreenderam que bastava fingir trabalhar, sem
trabalhar deveras. No fundo eles não faziam mais que aprimorar ao máximo sua encenação do
trabalho, a vida inteira, e atingiram um grau elevado de maestria nesse assunto, para não dizer
nessa arte. Grande parte da humanidade, sobretudo na Europa central, finge trabalhar, simula
ininterruptamente o trabalho e aprimora velhice adentro esse trabalho simulado, que tem tão
pouco a ver com o trabalho real quanto o espetáculo real e efetivo tem a ver com a vida real e
efetiva. Mas como as pessoas sempre preferem ver a vida como espetáculo, e não como a própria
vida, que lhes parece em última análise muito árida e custosa, como uma descarada humilhação
preferem elas encenar a viver, preferem encenar a trabalhar. Assim nunca tive em alta conta o
trabalho de meu pai, que sempre foi tido em alta conta por todo mundo, pois a maioria das vezes
nada mais era que encenação, tal como o trabalho de meu irmão, que com o maior refinamento
aprendeu de seu pai essa encenação para exibi-la com apuro ainda maior aos admiradores. Mas
não é somente nas ditas classes altas que hoje o trabalho é mais encenado do que realmente feito,
também entre a dita gente simples essa encenação é largamente difundida, as pessoas simulam
trabalho a torto e a direito, simulam atividade, quando na realidade só vagabundeiam e não
fazem nada e a maioria das vezes causam ainda por cima os maiores danos, em vez de se fazerem
úteis. A maioria dos operários e artesãos acredita hoje que seja suficiente vestir os macacões
azuis, sem fazer, não digo uma atividade útil, mas o mínimo que seja, eles simulam trabalho e
seu figurino é o macacão azul que vestem o dia inteiro com ostentação, com ele correm
ininterruptamente de lá para cá e muitas vezes chegam de fato a suá-lo, mas tal suor é falso e por
isso perverso e consiste somente de trabalho simulado, não real. Mesmo o povo há muito se deu
conta de que o trabalho simulado é mais rentável do que o realmente feito, ainda que de longe
não mais saudável, pelo contrário, e agora só simula trabalho em vez de executá-lo efetivamente,
com o que os Estados, como vemos, se acham subitamente à beira da ruína. Na verdade e na
realidade só restaram no mundo atores que simulam trabalhar, não trabalhadores. Tudo é
encenado, nada mais é realmente feito. Quando observava meu pai trabalhando, pensava muitas
vezes, isso é pura encenação, ele não trabalha nada, e assim também com meu irmão. Não os
censuro por eles, na realidade, só fingirem trabalhar e levarem o público no bico, tal como o
resto da humanidade também faz com seu público, mas eles não deveriam, sempre dizia comigo,
afirmar a toda hora que trabalhavam até morrer. E ainda por cima logo para a família e, em dadas
ocasiões, para a pátria. Posso dizer com tranqüilidade, nosso pai sempre fez o trabalho de
Wolfsegg com os pés nas costas, e assim também meu irmão. Não ficavam assoberbados. Em
suas mãos Wolfsegg tornou-se na verdade uma Wolfsegg sob todos os aspectos decadente. Meu
tio Georg tinha razão quando me disse uma vez: seu pai e seu irmão são bem sabidos; eles
fingem para o mundo que são os robôs da família, quando na realidade ergueram em Wolfsegg
seu confortável palco rural, sobre o qual nos fazem de bobos. Não somos nós que nos
aproveitamos deles, são eles que se aproveitam de nós. E ainda por cima nos deixamos iludir por
sua mentira. Ao fazendeiro basta muitas vezes abrir sua porteira e por assim dizer aumentar um
pouco os grunhidos dos porcos como quem aumenta o rádio, e por essa porteira aberta deixá-los
sair do mundo da consciência pesada, e passará ele por honesto e trabalhador. E a humanidade é
de fato tão estúpida que se deixa iludir por esses métodos. Milhões enfiam de manhã seus
macacões e são tidos por gente íntegra, quer dizer, trabalhadeira, enquanto não passam de um
exército de requintados preguiçosos, que só causam danos e arruínam o mundo, e que só têm
olhos para sua barriga, nada mais. Mas os intelectuais são realmente muito estúpidos para
enxergar isso, dizia meu tio Georg. Para eles a atuação mais mambembe de um operário ou
artesão preguiçoso, contanto que vista seu figurino azul sobre o palco do trabalho, forjado de alto
a baixo, já é um motivo de consciência pesada. Os intelectuais são os figurantes inexpressivos,
insignificantes, nesse palco do trabalho infecto e inescrupuloso, sobre o qual há mais de meio
século, da maneira mais refinada, trabalho e diligência são de tal modo levados a cartaz, de
forma ininterrupta e arrogante, que só se pode sentir um frio na espinha. Mas não tenho nada
contra, dizia meu tio Georg, que as pessoas não queiram trabalhar, que a humanidade não queira
trabalhar, só que ela devia admitir abertamente sua preguiça e não encenar dia após dia sua
repulsiva farsa do trabalho. Seu pai e seu irmão, nesse palco do trabalho, são protagonistas de
primeira grandeza. E sua mãe, no que respeita a Wolfsegg, é a diretora do espetáculo. Minhas
irmãs, penso, já de pequenas se habituaram a esse saltitar histérico que afinal se tornou uma de
suas características mais marcantes quando adultas, elas saltitam o dia inteiro, não andam,
saltitam da cozinha ao corredor e voltam ao chamado salão e tornam a voltar, de fato não andam,
saltitam, vejo que saltitam e que permaneceram as crianças que eram trinta anos atrás, quando na
realidade andam naturalmente, mas as vejo sempre saltitar quando andam, não posso vê-las
andar sem ver que, no fundo, continuam a saltitar da mesma maneira histérica que tinham
quando bem pequenas, quando meninas que saltitavam o dia inteiro por Wolfsegg com suas
longas tranças. Elas têm quarenta anos e criaram cãs e continuo a vê-las saltitar. Quando
finalmente lhes escapulia, de repente elas me surpreendiam saltitando e não me deixavam em
paz, soltavam risinhos que me verrumavam e com seus risinhos me deixavam meio doido. Não
só cantavam o dia inteiro as canções que eu odiasse, sempre faziam tudo contra mim, fosse o que
fosse. Como se tivessem sido geradas pelos meus pais com plena consciência contra mim,
sempre dançavam a minha volta, cercavam-me, pulavam em cima de mim mesmo em meus
sonhos. Era comum eu acordar de um sonho em que elas quisessem me matar. Meu irmão elas
deixavam em paz, não as instigava atormentá-lo, enquanto não conheciam maior prazer do que
me levar ao desespero. Sua atitude comigo sempre foi maldosa e dessa atitude maldosa contra
mim elas fizeram um método. Por muito tempo estive irremediavelmente a sua mercê. Elas
também me espiavam ininterruptamente e se deliciavam com os castigos que, por suas delações a
meus pais, estes me infligiam, observavam sádicas quando minha mãe me golpeava na cabeça
com o vergalho, quando meu pai me esbofeteava, durante esses corretivos não conseguiam
reprimir seu risinho canalha. Sou incapaz de dizer qual das minhas irmãs foi a mais diabólica,
pois uma hora era Amalia que incitava Caecilia, outra hora Caecilia que incitava Amalia contra
mim. O chamado sexo frágil já então se revelara a mim como na verdade muito mais forte e
impiedoso, uma vez que tinha o máximo prazer em torturar-me com maior ou menor contenção.
A inventividade de minhas irmãs para torturar-me era inesgotável, capaz de produzir a cada dia
novas modalidades de tortura com requinte cada vez maior, com infâmia cada vez maior. Desde
muito cedo minhas irmãs uniram se em conspiração contra mim. Nelas se acreditava, em mim
não, contava a sua palavra, a minha não. Passei assim a meditar vingança. Trancava-as na
despensa escura e sem ar, atirava-as no lago, dava-lhes um empurrão, de maneira que caíssem
estateladas em seus alvos vestidos dominicais e ficassem cobertas de sujeira e sangue da cabeça
aos pés. A perspectiva de castigos terríveis não me impedia de vingar-me de sua sordidez com
esta ou aquela crueldade. Levava-as ao bosque e saía correndo, deixando-as sozinhas, mortas de
medo, sem ligar para seus gritos. Mas as crueldades que elas me infligiam eram prévias e desde o
início mais monstruosas que as minhas. Na foto vejo todas essas crueldades com bastante nitidez,
em seus rostos está sua história, está tudo o que elas são. As crianças cruéis tornaram-se pouco a
pouco adultas igualmente cruéis. As crianças já não eram bonitas, como adultas são
positivamente feias. É difícil dizer qual das duas se parece mais ao pai, qual mais à mãe, ambas,
como é natural, têm tudo dos pais, piorado. À mesa elas se sentam como bonecas, dominadas por
sua tagarelice há décadas sempre igual. Sentam-se ao mesmo tempo e ao mesmo tempo se
levantam, e se uma vai ao banheiro, a outra corre atrás. Não conseguem ficar sozinhas, essas
mulheres, nem no banheiro. No inverno passam a maior parte do tempo sentadas no sofá de seus
quartos e tricotam para nós aqueles coletes que não servem em ninguém e são sempre um
desastre e que também foram sempre os mais feios que já vi. Ou bem as mangas eram de
tamanho desigual, ou as costas muito largas, a cintura muito estreita, a exemplo da gola, e o todo,
ainda por cima, tricotado com desleixo, com pontos grandes demais, pois naturalmente elas
nunca foram capazes de se concentrar. A cor da lã que escolhiam para suas malhas era sempre de
extremo mau gosto. Elas obrigavam meu irmão e eu a provar esses pulôveres feitos pela metade
e puxavam e esticavam em todas as direções e afirmavam que sua malha era um sucesso,
enquanto fora manifestamente arruinada desde o princípio por um indescritível diletantismo. No
Natal todos tínhamos então debaixo da árvore sua malha pavorosa e éramos forçados a prová-las,
sob as mais incríveis contorções de nossos corpos renitentes, e ainda por cima admirá-las. Na
noite de Natal em Wolfsegg todos sempre se sentavam à roda com essas malhas arruinadas de
nossas irmãs, feito um bando de mutilados. Como se minhas irmãs, loucas por suas malhas, com
essas suas malhas de mau gosto estivessem dispostas a nos tornar ridículos. Como se tivessem
fornicado com a lã semanas, meses a fio. Meses a fio, no inverno que precedia ao Natal,
Wolfsegg caía sob o domínio absoluto da lã. Na véspera de Natal todos éramos metidos por
minhas irmãs em sua lã abominável, e ainda por cima tínhamos de lhes agradecer de coração.
Sempre odiei as malhas feitas em casa, como a comida feita em casa, como em geral tudo feito
em casa. Vidros de conserva são um pesadelo para mim, e em Wolfsegg sempre houve centenas
de vidros de conserva, não somente na despensa, mas também nos quartos, sobre os armários. A
perspectiva de ser obrigado a comer nas décadas seguintes toda a geléia estocada naqueles
vidros, etiquetados por minha mãe e minhas irmãs, desde muito cedo me encheu de um ódio
permanente a todas as conservas e em especial a todo tipo de geléia. Nas despensas também
sempre tínhamos centenas de vidros com coxas de frango, faisão e pombo, cujo amarelo turvo
me dava náuseas cada vez que lhes punha os olhos. Embora com o tempo se consumisse cada
vez menos geléia e se comesse cada vez menos das ditas conservas, minha mãe e minhas irmãs
faziam cada vez mais conservas e compotas; elas eram de fato possuídas, até onde consigo
lembrar, por uma mania de fazer conservas e compotas, e dessa mania de fazer conservas e
compotas não podiam mais ser curadas. Toda a semana faziam farinha de rosca com pão
amanhecido e conservavam prateleiras inteiras de vasilhas com farinha de rosca, que nunca era
utilizada porque em Wolfsegg quase não se empanava mais, porque simplesmente não comíamos
mais schnitzel, enjoado que estávamos da cozinha vienense. Em alta estava a cozinha parisiense,
segundo o gosto de minha mãe, que em Wolfsegg impôs seu gosto a exatamente tudo.
Examinando Wolfsegg com atenção, era nítida a prevalência do gosto de minha mãe. Assim que
se mudara para Wolfsegg, ela se livrara de todas as coisas de meu pai e as substituíra pelas suas,
de modo que o lar paterno, devo dizer, tornou-se bem cedo um lar materno, não para seu
proveito, como demonstram as inúmeras aberrações em todos os cômodos de Wolfsegg, e não
apenas nos cômodos, tudo em Wolfsegg, incluindo os jardins, caíram aos poucos sob a influência
de minha mãe e em última análise deterioram há tempos sob a ação de seu gosto. Havia séculos
os jardins de Wolfsegg eram um parque cultivado segundo planos seguidos à risca, até que
minha mãe os alterou pela raiz, a natureza ampla e generosa ao redor de Wolfsegg, como sei e
como atestam antigas gravuras, foi transformada num parque um tanto convencional, tedioso de
tão estúpido, para não dizer pequeno-burguês. Tudo carrega, por assim dizer, o selo de minha
mãe. Sua megalomania, devo dizer, aos poucos diminuiu tudo. Nem sempre uma mulher que
vem do nada é forçosamente uma catástrofe para uma propriedade como Wolfsegg, minha mãe o
foi, porém. Meu pai, fraco que era, jamais teve a força ou o caráter necessários para pôr termo à
megalomania e à insensatez de sua mulher. Pelo contrário, ele sempre endossara e considerara
como expressão máxima do bom senso tudo o que essa mulher, nossa mãe, desejasse, saudara e
festejara cada uma das aberrações de seu gosto como algo bom, marcante, quando não
magnificente, e assim a legitimara cada vez mais a acreditar-se a salvadora de Wolfsegg, no que
ela sempre se arvorou desde então. Quando na verdade nossa mãe sempre foi para Wolfsegg o
pior dos flagelos. E minhas irmãs, minha mãe converteu-as desde muito cedo em suas ajudantes
incondicionalmente submissas, que difundiam e impunham o mau gosto de sua mãe sempre que
tinham ocasião. Minhas irmãs transformaram-se com o tempo nas duas porta-vozes mais
perigosas de nossa mãe. Essas porta-vozes estavam ininterruptamente à espreita, estivessem de
pé, deitadas ou sentadas. Irmãs como essas são capazes de turvar completamente uma cena feliz,
disse uma vez a Gambetti. Numa propriedade como Wolfsegg, uma mãe como essa e irmãs tão
sem caráter como essas podem transformar todos os dias em noite, caso desejem. E, juntas, elas
turvaram tantos dias, tantos anos em Wolfsegg. A todos nós apagaram a luz, simplesmente
porque lhes deu na telha. Um homem como meu pai, disse a Gambetti, casa-se com uma mulher
e com isso apaga a luz a si mesmo. Não vive mais como antes, agora só faz tatear às cegas um
tanto desajeitado, para delícia dos autores dessas trevas. Homens como meu pai primeiro adiam
um namoro, e com maior razão um casamento, adiam sempre mais e mais, até que de repente,
por acreditarem que de outro modo estarão perdidos e serão alvo de chacota, caem na armadilha
de uma mulher ardilosa, que se fecha de estalo, revelando-se uma armadilha fatal, disse a
Gambetti. Meu pai, à diferença de meu tio Georg, nasceu para o casamento, disse, mas nunca
com uma mulher como minha mãe. Casou-se com sua destruidora e traidora. É claro que
amamos nossa mãe, disse a Gambetti, mas não somos cegos a sua sordidez e a sua vontade
destruidora. Entra em ação o elemento infame, disse a Gambetti, a moralidade se torna ridícula.
Mas é claro que há também o exemplo inverso: uma mulher entra em cena e salva efetivamente
tudo. Mas esta mulher, nossa mãe, não foi mais que a destruidora. Por outro lado, disse a
Gambetti, é possível que este seja meu modo de ver, quando na verdade as coisas são totalmente
diferentes, quem sabe inversas, que sem esta mulher, minha mãe, a desgraça que se abateu sobre
Wolfsegg seria ainda maior. Mas era freqüente meu tio Georg descrever a situação que se
instalou em Wolfsegg com minha mãe como o seu maior golpe de sorte. Meus cálculos deram
certo, dizia muitas vezes. E eu próprio tenho de admitir que meus cálculos também deram certo.
Afinal, é provável que eu também tivesse tido uma evolução completamente diversa se diversa
tivesse sido a evolução de Wolfsegg, sem minha mãe portanto, com uma outra mulher de meu
pai. Eu não seria quem eu sou se Wolfsegg fosse outra. Como de modo geral, sobretudo com a
possibilidade de viver em Roma, posso me definir como um homem perfeitamente feliz, disse a
Gambetti, não tenho nenhum motivo para falar constantemente de Wolfsegg como de uma
catástrofe. É provável, disse então a Gambetti, que o faça todavia por um sentimento de culpa,
pela simples razão de ser independente de Wolfsegg como ela é, com uma impiedade, tenho de
admitir, um tanto inveterada. Odiamos, como sabemos, quem nos sustenta, e portanto odeio
Wolfsegg mais ou menos por essa razão, disse a Gambetti, pois é Wolfsegg que me sustenta,
tenha direito a isso ou não, pouco importa. É que só odiamos quando e porque não temos razão.
Adquiri o hábito de pensar constantemente (e de dizer!), minha mãe é repulsiva, minhas irmãs
também são, e estúpidas, meu pai é fraco, meu irmão é um pobre idiota, todos eles são uns
imbecis. Esse hábito é uma arma, que no fundo é a infâmia, com a qual provavelmente só se quer
aplacar uma consciência pesada. Do mesmo modo, disse a Gambetti, eles poderiam falar mal de
mim, me pôr constantemente no pelourinho, fazer de mim o malvado, tal como fiz com eles no
correr do tempo. Com muita facilidade e muita rapidez nos habituamos a odiar, a condenar, sem
perguntar se nosso ódio e nossa condenação têm com o tempo a menor justificativa. Afinal de
contas, é sobretudo pelas pobres pessoas, porque conhecemos a nós mesmos, que teríamos de
sentir compaixão, porque elas, como nós, vivem de maneira miserável, têm de levar adiante sua
miserável existência, quer queiram ou não. Têm de fazer frente a ela, disse a Gambetti. Por que
será que nos aferramos, digamos assim, com unhas e dentes às insuficiências, aos erros, e não
aos méritos, quando se trata dos outros, dissera a Gambetti. Mas ao contemplar as fotos logo
reverti à posição antiga, minhas irmãs me apareceram simplesmente como as ridículas que são.
Não duvidava de seu ridículo. Mas será que merecem ser chamadas repulsivas? disse comigo.
Numa hora como essa? Senti-me envergonhado, mas logo em seguida fui forçado a dizer comigo
que não podemos sair de nossas próprias cabeças, e persisti em que minhas irmãs eram ridículas
e repulsivas. Uma chamada tragédia familiar, disse comigo, não justifica afinal que falsifiquemos
de alto a baixo a imagem dessa família. Que cedamos a uma repentina atitude sentimental e mais
ou menos até nos abandonemos a ela, de fato novamente por puro egoísmo. Um infortúnio, por
mais terrível que seja, não nos autoriza a falsificar a memória, a falsificar o mundo, a falsificar
tudo, a fazer, em suma, causa comum com a hipocrisia. Constatei muitas vezes que, de falecidos
tomados a vida inteira como repulsivos e repugnantes, falava-se de repente como se nunca
houvessem sido repulsivos ou repugnantes em sua vida. Isso sempre me pareceu de um mau
gosto constrangedor. Afinal a morte de uma pessoa não a torna outra, não a torna um bom
caráter, não a torna um gênio se era um imbecil, um santo se a vida inteira foi um monstro.
Temos de suportar um tal acidente como natural, aturá-lo com todos seus horrores, mesmo com a
certeza de que ele não altera, em sua verdadeira imagem, as pessoas mortalmente acidentadas.
Sobre um morto não se deve falar mal, dizem as pessoas, uma opinião hipócrita e falsa. Como é
que posso afirmar de repente, depois da morte de alguém que a vida inteira foi sempre uma
pessoa ignóbil, um caráter de todo abjeto, que ele não terá sido uma pessoa ignóbil, um caráter
abjeto, mas de súbito uma pessoa boa? Esse mau gosto constatamos todos os dias, quando
alguém morre. Assim como não devíamos hesitar em dizer, quando de sua morte, tal pessoa boa
morreu, também não devíamos hesitar em dizer, tal pessoa sórdida, abjeta, morreu. Morreu com
todos seus erros, devíamos dizer, e com tudo o que tinha de encantador, com tudo o que tinha de
admirável, em todo caso. Sua morte não deve de maneira alguma corrigir a imagem que temos de
uma pessoa. Para nós ela continua o que era, devíamos dizer conosco, e deixá-la em paz. A
Gambetti eu disse, não irei a Wolfsegg por um bom tempo, e agora tenho de regressar de
imediato. Não consigo mais botar os olhos em Wolfsegg, disse, não suporto mais as paredes, e as
pessoas tampouco como as paredes, e o clima se tornou definitivamente impossível para mim.
Não pensara que ele se tornaria impossível para mim tão rápido, disse-lhe. Meus pais não os
suporto mais, e nem a meus irmãos, sobretudo minhas irmãs me dão nos nervos, disse. Estou há
muito tempo em Roma, no exterior em geral, tornei-me um estrangeiro, me é insuportável passar
uma hora que seja em Wolfsegg sem relutância. Não podia imaginar que voltasse um dia a passar
mais tempo em Wolfsegg. Não tenho mais relação alguma com Wolfsegg. Execro tudo o que
diga respeito a Wolfsegg. A história de Wolfsegg me pesa de um modo aniquilador, a que não
me exporei mais. E agora tenho de regressar de imediato a Wolfsegg. E em que circunstâncias!
Em que circunstâncias terríveis! disse comigo. Não faz nem quatro horas que disse a Gambetti
preferir nunca mais ir a Wolfsegg. Ela se tornou impossível para mim. Lá tudo é mentira,
Gambetti, disse, lá impera um insuportável artificialismo que você não pode imaginar, Gambetti.
Essas pessoas são surdas a tudo o que significa tanto para mim, à natureza, à arte, a todo o
essencial. Não lêem livros, não ouvem música, falam o dia inteiro só das coisas mais supérfluas,
mais banais. Com eles não é possível a mínima conversa que preste, só a mais deprimente. Se
digo alguma coisa, não entendem o que digo. Explico-lhes alguma coisa e me fitam com total
indiferença. Não têm o menor gosto. Quando falo de Roma, que afinal é um dos centros do
mundo, disse a Gambetti, ficam enfastiados. Quando falo de Paris, quando falo de literatura, de
pintura. Não posso mencionar um nome que seja importante para mim sem recear que nunca
tenham ouvido falar. Lá tudo é paralisante e o frio é tal, mesmo no verão, que me sinto
continuamente gelado. Você nem sabe, essas pessoas não têm nada na cabeça a não ser as coisas
mais primitivas. Dinheiro, caça, Gambetti, verduras, cereais, batatas, lenha, carvão, mais nada.
Minha mãe fala sem parar de suas ações, que ela, como diz constantemente, aplicou da maneira
mais desastrosa, meu pai tem ininterruptamente nos lábios a palavra armazém, meu irmão
acredita que o centro do mundo seja seu barco a vela e seu Jaguar. Imagine que lá entra e sai
somente a gente mais repulsiva, gente estúpida, ridícula e desinteressante daquelas cidadezinhas
abomináveis, com quem não se pode entabular a menor conversa, não se pode abordar nenhum
assunto com essa gente sem que se caia desde o início no vazio. Se puder, não volto a Wolfsegg
antes de um ano, disse a Gambetti, nem para o Natal, também esse hábito se tornou repulsivo
para mim, pois no Natal a hipocrisia chega ao cúmulo em Wolfsegg. Ao menos por um ano não
irei a Wolfsegg, no máximo para o aniversário de meu pai!, dissera quando paramos em frente ao
Hotel Hassler. Também dessa vez deixei Wolfsegg furtivamente e ofendi os meus, disse, se bem
que não se possa absolutamente ofender essa gente, pois ela nem sequer se dá conta, a
insensibilidade que lá impera é indescritível, Gambetti. Nesse meio tempo tudo o que é austríaco,
bem como tudo o que é alemão, tornou-se insuportável para mim. Roma me estragou para
Wolfsegg. Roma tornou Wolfsegg impossível para mim. Londres já tornara impossível meu
gosto por Wolfsegg, depois Oxford, depois Paris, depois definitivamente Roma. Não entendo
como possa haver ficado de consciência pesada por não ter ido de trem a Wolfsegg, porque eles
assim o quisessem, pois afinal não mereciam que eu tornasse a pôr os pés em Wolfsegg. Fui de
avião, disse, de avião, para ser exposto ao vexame por eles. O simples fato de aparecer em
Wolfsegg sempre foi expor-me ao vexame. Eu chegava e eles me expunham ao vexame. Punha
os pés em Wolfsegg e era exposto ao vexame. Lá tudo é abjeto, disse, e sórdido, descontados os
poucos momentos que posso definir como suportáveis. Diante de Gambetti deixara-me inflamar
por uma tremenda excitação contra Wolfsegg, súbito essa excitação pelos impropérios contra
Wolfsegg pareceu-me de fato francamente perversa, insuportável, mas não podia mais furtar-me
a ela e tive de lhe dar vazão, de tão feliz que estava pelo regresso a Roma, feliz como nunca
estive antes de maneira tão exaltada, não pude me conter e fiz de Gambetti uma vítima indefesa
de meus impropérios contra Wolfsegg, que se tornaram, de fato, impropérios contra tudo o que é
austríaco e por fim contra tudo o que é alemão, e em última análise até contra tudo o que é
centro-europeu. O norte se tornou totalmente insuportável para mim, Gambetti, disse, quanto
mais vou para o norte, mais insuportável se torna para mim, e Wolfsegg está para mim no
extremo norte, nos confins do insuportável. Aquelas noites intermináveis, tediosas, disse, aquela
comida insossa, aqueles vinhos intragáveis e aquelas conversas custosas, cujo tormento é
impossível lhe descrever, para tanto não sou minimamente capaz, meu caro Gambetti. Estar de
volta a Roma, você não sabe o que isso significa para mim, estar de volta ao Pincio, aos jardins
da Villa Borghese, à vista que se abre aqui de cima de minha querida Roma. De minha venerada
Roma. De minha maravilhosa Roma! Quem como eu está faz tanto tempo em Roma,
simplesmente bloqueou o acesso a um lugar como Wolfsegg, não pode mais voltar atrás, isso já
lhe é impossível. Dias a fio eu caminho pelos edifícios para me acalmar, e não consigo, dias a fio
ando de lá para cá em meus quartos para ver se consigo resistir e, como é natural, resisto cada
vez menos, dias a fio procuro um expediente para suportar Wolfsegg, sem ter a todo instante a
sensação de que endoideço, e não encontro. Cinco bibliotecas, disse a Gambetti, e uma tal
animosidade ao intelecto. Nos países latinos, a gente mais humilde tem gosto, cultura, disse, em
Wolfsegg ninguém tem o menor gosto, por menor que seja. Os austríacos não têm o menor
gosto, pelo menos faz muito tempo que não têm mais, para onde quer que se olhe impera a
suprema falta de gosto. E que falta de interesse generalizada! Como se o centro fosse somente o
estômago, disse, e a cabeça estivesse completamente fora de uso. Um povo tão estúpido, disse, e
um país tão magnífico, cuja beleza é por outro lado insuperável. Uma natureza sem par e pessoas
tão desinteressadas nessa natureza. Uma cultura outrora tão elevada, disse, e hoje uma falta de
cultura tão bárbara, uma incultura avassaladora. Para não falar da deprimente situação política.
Que criaturas abomináveis hoje detêm o poder nessa Áustria! Os mais baixos agora estão por
cima. Os mais repulsivos e os mais sórdidos têm tudo nas mãos e estão prestes a destruir tudo o
que seja de valia. Destruidores apaixonados estão em ação, exploradores implacáveis, envoltos
no manto do socialismo. O governo opera uma monstruosa máquina destruidora, na qual dia após
dia se destrói tudo o que me seja caro. Nossas cidades se tornaram irreconhecíveis, disse, nossa
paisagem, em longas extensões, deixaram de ser atraentes. As mais belas regiões caíram vítimas
da cobiça e da ganância pelo poder dos novos bárbaros, onde quer que se erga uma bela árvore,
ela é cortada, onde quer que se erga um magnífico edifício antigo, ele é demolido, onde quer que
um riacho aprazível corra para o vale, ele é poluído. Como em geral é espezinhado tudo o que há
de belo. E tudo em nome do socialismo, com a hipocrisia mais repugnante que se possa
imaginar. Tudo o que tenha a mais remota ligação com a cultura é visto com suspeita e posto em
dúvida, até que se extinga. Estão em ação os assassinos, os agentes da extinção. Estamos às
voltas com agentes da extinção e assassinos, por todo canto eles levam a cabo sua empresa
assassina. Os agentes da extinção e os assassinos assassinam as cidades e extinguem-nas,
assassinam a paisagem e extinguem-na. Sentados em seus traseiros balofos nas milhares e
centenas de milhares de repartições em todos os recantos do Estado, eles não têm nada na cabeça
a não ser a extinção e o assassinato, não pensam em outra coisa a não ser como extinguir e
assassinar metodicamente tudo o que se acha entre o lago de Neusiedl e o lago de Constança.
Viena já está quase assassinada, Salzburgo, todas essas cidades magníficas, disse a Gambetti,
que você não conhece, mas que de fato contam como as mais belas do mundo. A paisagem que
vemos ao cruzar a Áustria a partir de Viena, disse, também já está quase completamente
assassinada e extinta, uma atrocidade alterna-se a outra, uma feiúra depois da outra impõe-se a
nossos olhos durante a viagem, e é até uma mentira perversa falar ainda hoje da Áustria como de
um país bonito, há muito ela não passa na verdade de um país destruído, deliberadamente
devastado e desfigurado, vítima de negócios pérfidos, no qual de fato a coisa mais difícil é
encontrar um recanto intacto. É uma mentira dizer que esse país é um país bonito, pois na
verdade é um país assassinado. Era necessário, perguntei a Gambetti, que a humanidade atacasse
esse mais belo de todos os mundos, para assassiná-lo e extingui-lo? As aldeias, Gambetti, disse,
elas estão irreconhecíveis quando as visitamos depois de anos, exatamente como as pessoas que
moram nessas aldeias. Que tipo de pessoas elas eram, ainda faz poucos anos, e que tipo de
pessoas são hoje! Em cada um a falta de caráter arraigou-se como uma doença fatal, a cobiça, a
impiedade, a infâmia, a mentira, a hipocrisia, a abjeção. Hoje essas pessoas fazem de tudo para
impor sua abjeção com a maior impiedade. Você entra nessas aldeias com a maior alegria de
revê-los e logo lhes vira as costas, enojado de tanta sordidez. Você visita todas essas belas
cidades de então e quando as deixa está prostrado, cabisbaixo, na certeza de que todas essas
cidades estão perdidas. A desrazão de hoje as desfigurou, as destruiu, você tem de procurar nos
livros antigos, nas antigas gravuras, para encontrá-las, a realidade há muito as extinguiu. Todas
essas casas magníficas na Alta Áustria, por exemplo, em Salzburgo, na Baixa Áustria, perderam
sua fisionomia, na fúria cega da moda foram mutiladas essas magníficas fisionomias centenárias,
tudo o que nelas havia de belo lhes foi arrancado, totalmente estropiadas elas se revelam em
maior ou menor medida irônicas a quem, estarrecido, ainda trazia na memória sua fisionomia
original. Nada além de fachadas em ruínas, disse a Gambetti, como se todas essas cidades
houvessem sido atacadas por uma terrível lepra, uma lepra mortal, que até agora se
desconhecera. E o que é mais, disse a Gambetti, bairros inteiros foram simplesmente
eviscerados, e dessa maneira para sempre mutilados, arruinados. Os arquitetos desfiguraram a
superfície da Terra, disse, os arquitetos, que foram instigados e incitados a essa desfiguração por
políticos impiedosos. Primeiro parecia que as guerras houvessem arruinado nossas cidades e
nossas paisagens, mas com uma inconsciência muito maior elas foram arruinadas nas últimas
décadas por essa paz perversa, pelas negociatas inescrupulosas dos poderosos, que deram carta
branca aos arquitetos, seus capangas. E que estrago causaram os arquitetos nessas décadas! A
destruição sofrida nas guerras é inofensiva em comparação, disse a Gambetti. E em país algum a
destruição se deu de maneira tão assombrosa como na Áustria. Em nenhum outro país da Europa
com maior infâmia. Fizeram o povo de besta e mutilaram e praticamente extinguiram seu país e
suas cidades, disse a Gambetti. Décadas a fio apregoaram e impuseram o supremo mau gosto.
Tivemos nas últimas décadas tantos ministros sórdidos, inescrupulosos negocistas, que
permaneceram em suas cadeiras de ministros o tempo bastante para impor e levar a efeito a
destruição e a aniquilação de nossas paisagens e nossas cidades, tantos agentes da extinção de
nosso Estado e portanto de nosso país, disse a Gambetti, que nem vem ao caso pensar no assunto.
Mas num país em que há décadas a sordidez e o mau gosto imperam com toda a contumácia, não
é de espantar que tenhamos agora um tal resultado acachapante em todos os campos. Isso
porque, ao mesmo tempo que essas pessoas destruíram e arruinaram e praticamente extinguiram
a paisagem e as cidades quando detentores do poder, destruíram também a alma desse povo, o
caráter, disse a Gambetti. A alma de meus conterrâneos está arruinada, disse, seu caráter se
tornou rasteiro e sórdido, agora reina por todo o lado somente uma atmosfera maligna, aonde
quer que você vá é confrontado com esse caráter maligno e sórdido. Você crê falar com uma
pessoa boa, como antes, e constata que se trata da mais sórdida, da mais baixa, pois a pessoa boa
de antes, segundo a viravolta geral de caráter, se tornou nesse meio tempo sórdida e baixa, que
em cada detalhe dá a entender sua sordidez e baixeza, nem sequer reprime essa sordidez e
baixeza, antes a ostenta abertamente. Você entra numa aldeia que guarda na lembrança como
amistosa e hospitaleira, mas logo vê que se trata agora de uma aldeia malevolente, que não
mostra hospitalidade alguma, apenas uma sórdida desconfiança. Toda a Áustria tornou-se um
negócio inescrupuloso, no qual tudo é regateado e no qual todos são trapaceados em tudo. Você
crê viajar por um belo país e viaja na verdade e na realidade por um estabelecimento comercial
perversamente gerido. Você crê viajar pelo país da cultura e leva um choque com o primitivismo
que o assalta por todo canto. Desde o início uma atmosfera estúpida só o deixa respirar com
dificuldade, disse a Gambetti. É como se, dissera a Gambetti, os monumentos que ainda no
século passado foram erguidos por toda parte mirassem do alto, chocados, o caos indescritível
criado pelos atuais detentores do poder. Como tudo se tornou abominável, Gambetti, dissera, e
de mau gosto, você nem imagina. Uma tal abominação e um tal mau gosto não seriam possíveis
na Itália, disse, nem na Espanha. Em nenhum outro país levaram tão duramente a sério o
estúpido lema do progresso quanto na Áustria, disse, e com isso arruinaram tudo. Como na
Áustria sempre levaram a sério tudo o que é estúpido, disse a Gambetti, mortalmente a sério, e
você sabe o que isso quer dizer. Até agora sempre pensara que esse dito socialismo fosse uma
inofensiva e passageira doença nervosa da política, dissera a Gambetti, mas na verdade e de fato
ele é letal. Refiro-me ao socialismo hoje imperante, que é uma impostura só, Gambetti, um
socialismo fingido, simulado com impertinência. Hoje não temos um socialismo verdadeiro, em
nenhum lugar no mundo, só esse socialismo fingido, hipócrita, simulado, você deve saber. Como
também os socialistas de hoje não são verdadeiros, mas hipócritas, fingidos, simulados. Esse
século conseguiu arrastar na lama a palavra de honra do socialismo de uma forma tal que chega a
dar engulhos, dissera a Gambetti. Aqueles que pensaram o verdadeiro socialismo e nele
acreditaram e acreditaram que o houvessem instituído para a eternidade se revolveriam no
túmulo se pudessem ver o que seus repugnantes sucessores fizeram dele. Se revolveriam no
túmulo se pudessem abrir novamente os olhos e ver isso tudo o que hoje, sob a palavra de honra
do socialismo, é mercadejado e difundido entre o povo. Se revolveriam no túmulo se pudessem
ver que tipo de tramóias são maquinadas na Europa e em todo o mundo sob o manto dessa
palavra de honra. Se revolveriam no túmulo com esse abuso político, o mais gigantesco de todos.
Se revolveriam no túmulo, se revolveriam no túmulo, dissera várias vezes a Gambetti. Não vou
voltar a esse país por um bom tempo, pelo menos um ano, dissera a Gambetti, e agora tenho de
retornar imediatamente. Na fotografia meu irmão tem uma postura abatida, está acanhado, disse
comigo, embora dê impressão de grande elegância, é um homem do campo, enquanto eu sou um
homem da cidade, sempre fui um homem da cidade grande, ele de pronto é reconhecido como
homem do campo, por mais que se vista à moda urbana. Tal como seu pai, que a maior parte do
tempo, como meu irmão, vestia-se à moda urbana, e contudo era de pronto sempre reconhecido
como homem do campo. Às vezes viajam, viajavam, porque assim desejasse minha mãe, a Viena
e iam à ópera, na Páscoa ao Parsifal, e ceavam no Sacher, não jantavam em Viena, ceavam, à
noite ceavam, ao meio-dia almoçavam, depois do café da manhã passeavam a três ou, estivessem
mais generosamente dispostos, a quatro com minha tia vienense Elisabeth no Graben e ao longo
da Kärntnerstrasse até o Ring. Trajados à moda metropolitana, mas de pronto reconhecíveis
como do campo. Freqüentavam as lojas mais famosas, nas quais minha mãe escolhia os melhores
vestidos, mas também os de pior gosto, modelos milaneses ou parisienses, com os quais ia então
ao teatro em Linz ou aos concertos em Salzburgo, dos quais havia décadas era assinante. Na foto
meu irmão parece mais saudável do que era na realidade, já tinha todas as doenças de seu pai em
germe, mas elas ainda não eram tão manifestas como em nosso pai, ainda aguardavam, ainda não
haviam eclodido, mas nessa foto já as via em seu rosto, em sua postura de maneira geral
tristonha. Uma vez disse a Gambetti que todos eles tinham uma postura tristonha, uma postura
corporal tristonha e uma postura intelectual tristonha. Tudo neles e dentro deles é tristonho, e
expliquei a Gambetti o conceito de tristonho, que na Itália é desconhecido, a língua italiana o
desconhece, além de ser impossível traduzi-lo. Iam à ópera ou ao teatro e no fundo se
entediavam tremendamente, embora ao final dos espetáculos aplaudissem sempre com grande
entusiasmo, sem cuidarem da elegância, por terem sempre pagado tanto pelos espetáculos, o
preço sem desconto, coisa que nunca passaria pela cabeça de um vienense, os vienenses não
pagam o preço sem desconto, quando muito pagam a metade, o preço sem desconto eles deixam
a estrangeiros e a provincianos, e esses aplaudem, sempre mais do que todos, por terem pagado
os salgados preços sem desconto. Sempre tínhamos de parar diante das vitrines das lojas mais
famosas, embora nem sempre as melhores, com nossa mãe. Ela entrava nessas lojas de cabeça
erguida, e nunca a vi sair de uma tal loja famosa sem ter comprado algo, depois de duas, três
lojas os meus e eu tínhamos de andar a seu lado arrastando sacolas enormes, e só quando as
sacolas ficavam de fato muito pesadas para nós é que ela cedia e desistia e, exausta, sentava-se
no Sacher, ou no Bristol, onde geralmente nos hospedávamos. Seu sonho era comprar tudo e
levar para Wolfsegg. Que diabos você vai fazer com toda essa tralha? sempre dizia então meu
pai, você não a usa, em Wolfsegg você não pode vesti-la porque seria ridículo, em Salzburgo
eles nem se dão conta de que se trata de tais preciosidades, nem em Linz e muito menos em
Wels, tudo fica dependurado nos armários e sai de moda e você joga fora e dá de presente. Mas
minha mãe era incorrigível. De Viena ela retornava sempre com no mínimo uma dúzia de
sacolas, e pelo menos meia dúzia ainda lhe era enviada pelas lojas, contendo peças de roupa que
ela comprava às escondidas em Viena, sem o testemunho dos meus. Nossa mãe sempre gastou
uma fortuna em vestidos, que ela porém nunca usava, ou usava umas duas ou três vezes, para
então jogá-los fora ou dá-los de presente. Mas ai de minhas irmãs se elas botassem os olhos,
como se dizia, nesses modelos, não lhes era permitido comprar um único vestido em Viena, nem
sequer aos quarenta, mesmo aos quarenta elas se arranjavam no máximo com um ou dois dos
chamados vestidos de liquidação em Wels, pois, tal como antes, nosso alfaiate de Lambach era o
principal fornecedor de seu guarda-roupa, que, como disse, consistia somente dos repugnantes
vestidos de tirolesa que, duas vezes por ano, sua mãe lhes fazia cortar sob medida e cujo tecido
não lhes era dado escolher por si mesmas, porque sua mãe achava que não teriam o bom gosto
necessário para tanto, embora nossa própria mãe nunca tenha tido o menor bom gosto para nada.
Os modelos desses vestidos de tirolesa resultavam ou muito grandes ou muito pequenos, ou bem
as cores destoavam, as golas eram muito largas ou muito estreitas, as mangas muito longas ou
muito curtas, as saias em todo caso sempre muito longas, com pelo menos vinte centímetros a
mais, e os aventais nunca combinando com os vestidos. Minha mãe sempre vestiu minhas irmãs
como bonecas, porque em última análise também sempre as tratou como bonecas, nunca viu suas
filhas senão como bonecas. A exemplo de tantas mães, desde o início ela considerou suas filhas
como bonecas e provavelmente, isso não é exagero, pusera suas filhas no mundo como bonecas,
não como seres humanos, mesmo quando adulta ela ainda quis ter uma ou várias bonecas. Suas
filhas nunca foram outra coisa senão bonecas para sua paixão lúdica, por isso ela nunca as
largara da mão e sempre elas tiveram de reagir e obedecer como bonecas e como bonecas ela as
vestira e alimentara e levara passear todo santo dia e à noite as pusera na cama. Ainda aos
quarenta essas bonecas, minhas irmãs, submetem-se a esse instinto lúdico de sua mãe, penso.
Mas também meu irmão a vida inteira só levou uma vida de boneco, ele foi por assim dizer o
polichinelo de minha mãe, desde o início ela o criou como uma espécie de marionete de reserva
para o dia em que seu marido, o marionete titular, lhe faltasse. Para minha mãe, com sua mania
por bonecas, minhas irmãs eram de fato bonecas falantes que ela, quando quisesse, podia fazer
rir ou chorar, que podia escorraçar quando quisesse, podia chamar de volta quando quisesse,
vestir e despir quando e como quisesse, e seu marido, meu pai, e meu irmão, seu filho, eram
marionetes cujos fios ela puxava a seu bel-prazer. Minha mãe estava possuída por um instinto
lúdico absolutamente perverso. Ela fizera de Wolfsegg um mundo de bonecas que funcionava à
perfeição, no qual tudo obedecia à risca a suas ordens. Wolfsegg era sua casa de bonecas, os
arredores seu mundo de bonecas. Como eu não queria ser uma boneca nessa casa de bonecas e
nesse mundo de bonecas, desde cedo me afastei dessa casa de bonecas e desse mundo de
bonecas. E, contemplado de fora e de bem longe, essa casa de bonecas e esse mundo de bonecas
parecem ainda mais opressivos, ainda mais atemorizantes. Wolfsegg é uma casa de bonecas,
disse a Gambetti, seus arredores não são mais que um mundo de bonecas, presidido por minha
mãe de modo impiedoso, desumano, cruel mesmo. Gambetti soltara uma gargalhada e chamara-
me de imenso exagerado, definira-me como um pessimista tipicamente austríaco, como grotesco
negativista. Ao que eu respondera que meus exageros eram na verdade e na realidade imensos
subentendidos, que Wolfsegg, da forma que eu lhe descrevia, era na realidade um idílio em
comparação com o que Wolfsegg realmente era. Gambetti, disse, você nem imagina o que é
Wolfsegg, você nunca teve oportunidade de pôr os pés numa casa de bonecas tão horripilante,
uma paisagem de bonecas tão horripilante não tem igual no mundo. Meu pai, disse, um boneco
que já passou dos setenta, cujos membros estão moribundos e cuja cabeça, de tantos puxões que
recebeu a vida inteira, tornou-se embotada e dura. Meu irmão, disse a Gambetti, um boneco de
quarenta anos que também não se defende dos puxões, que também já desistiu de armar defesa
contra essa infame mãe-boneca. Os alemães têm um complexo de mãe, disse, e assim também os
austríacos, não se permite bulir com as mães, disse a Gambetti, as mães são sagradas nesses
países, mas na verdade a maioria delas são perversas mães-bonecas, que puxam os fios a seus
filhos e a sua família como a bonecos, puxam até que esses filhos morram de tanto ser puxados,
mortos de tanto ser puxados igualmente como seus maridos. Na Alemanha e na Áustria não há
mães como nos países latinos, onde as mães são naturais e não mães-bonecas, disse, cá e lá
existem somente mães-bonecas, e essas mães-bonecas não fazem outra coisa, quando em vida,
senão puxar com a maior impiedade seus maridos-bonecos e seus filhos-bonecos até que esses
maridos-bonecos e esses filhos-bonecos morram de tanto ser puxados. Na Europa Central não há
mais mães naturais, só mães artificiais, por assim dizer mães de artifício, disse, mães-bonecas
que de cara dão à luz filhos artificiais, quer dizer, filhos mais ou menos de artifício, filhos
artificiais. Mesmo nos mais remotos vales alpestres você já não encontra uma mãe natural, só a
mãe artificial. E é óbvio que essa mãe artificial invariavelmente dá à luz um filho artificial, e esse
filho artificial, por sua vez, um outro filho artificial, e dessa maneira hoje não há mais que
pessoas artificiais, pessoas de artifício, não naturais, é um erro definir o homem como natural,
este não existe mais, é o homem artificial, de artifício, que hoje encontramos e com quem temos
de nos entender, por isso nos espantamos quando encontramos novamente um homem natural,
porque não esperávamos mais isso, porque há muito tempo nos deparamos somente com o
homem artificial, o homem de artifício, que há muito tempo domina o mundo, também este há
tempos não mais natural, mas somente de artifício, Gambetti, um mundo artificial. O mundo
artificial produziu o homem artificial, e vice-versa o homem artificial o mundo artificial, o
homem de artifício o mundo de artifício e vice-versa. Mais nada é natural, dissera a Gambetti,
nada, absolutamente mais nada. Mas sempre partimos do pressuposto, dissera a Gambetti, que
tudo seja natural, isso é um erro. Tudo é artificial, tudo é artifício. Não existe mais natureza.
Ainda partimos sempre da observação da natureza, quando na verdade há muito devíamos partir
somente da observação do artifício. É por isso, dissera a Gambetti, que tudo está tão caótico. Tão
falso. Tão infeliz. Tão tremendamente confuso. Onde não há mais natureza, também não pode
mais haver observação da natureza, Gambetti, isso é lógico, dissera a Gambetti. A foto que
retrata meu irmão no exato momento em que ele sobe em seu barco a vela no Wolfgangsee o
mostra na pose de homem feliz, mas nessa foto ele é o homem mais infeliz que se possa
imaginar. Minhas irmãs, na foto que as mostra na frente da vila de meu tio Georg em Cannes,
estão petrificadas numa expressão de felicidade e com isso parecem ainda mais infelizes do que
são na realidade. Meu pai e minha mãe, na foto que os mostra na estação Victoria de Londres,
aparecem tão infelizes quanto são, embora tenham se esforçado para parecer felizes. Por que as
pessoas que se deixam fotografar sempre têm a idéia de querer aparecer felizes nas fotografias
que as retrata, ou pelo menos não tão infelizes quanto são? penso. Cada qual quer ser retratado
como uma pessoa feliz, nunca como infeliz, sempre totalmente falsificada, nunca como é na
realidade, ou seja, sempre a mais infeliz de todas. Todos querem ser retratados ininterruptamente
como belos e felizes, quando na verdade são todos feios e infelizes. Refugiam-se na fotografia,
retraem-se deliberadamente na fotografia que, com total falsificação, os mostra como felizes e
belos, ou pelo menos como menos feios e menos infelizes do que são. Exigem da fotografia a
imagem sonhada e ideal deles próprios, e se valem de todos os meios, mesmo da mais horrorosa
das deformações, para produzir essa imagem sonhada e essa imagem ideal numa foto. Não
percebem o quanto é espantosa e terrível a maneira como em todo caso se comprometem. A
pessoa bela na fotografia é em todo caso a mais feia, a mais feliz em todo caso a mais infeliz. Em
suas casas penduram as fotografias que fazem tirar de si mesmos como um mundo belo e feliz,
que na verdade é o mais feio e o mais infeliz e o mais hipócrita. A vida inteira fitam suas
imagens belas e felizes nas paredes e sentem-se satisfeitos, quando só deviam sentir-se é
horrorizados. Mas eles não pensam, e isso os preserva da terrível descoberta de que são feios,
infelizes e hipócritas. Chegam a ponto de mostrar essas fotos, na qual acreditam estar retratados
como pessoas felizes e belas, às visitas de sua casa, que os reconhecem, a eles, os anfitriões,
como pessoas feias e infelizes e estúpidas e sórdidas, não se envergonham de mostrar essas
fotografias também àqueles que os conhecem na realidade e portanto obviamente os reconhecem
na foto como mentirosos e de fato como inteiramente hipócritas e perdidos. Vivemos em dois
mundos, disse a Gambetti, no real, que é triste e sórdido e em última análise mortal, e no
fotografado, que é inteiramente hipócrita, embora para a maioria da humanidade seja o desejado
e o ideal. Se privamos hoje a fotografia ao ser humano, se as arrancamos de suas paredes, dissera
a Gambetti, e a destruímos, de uma vez por todas, lhe privamos hoje mais ou menos de tudo.
Pode-se dizer assim, com coerência, que a humanidade não se prende a mais nada, não se agarra
a mais nada e finalmente também não depende de mais nada a não ser da fotografia. A fotografia
é sua salvação, Gambetti, disse, ao que Gambetti riu e me chamou sonhador matutino, uma
expressão que eu jamais ouvira, o que causou de minha parte uma gargalhada à qual Gambetti,
obviamente, só podia unir-se e que juntos saboreamos por um tempo, com o maior prazer. Se não
tivéssemos nossa arte do exagero, dissera a Gambetti, estaríamos condenados a uma vida
pavorosamente tediosa, a uma existência indigna de ser vivida. E eu desenvolvi minha arte do
exagero a um nível inacreditável, dissera a Gambetti. Para compreendermos algo, temos de
exagerar, dissera-lhe, só o exagero torna as coisas claras, mesmo o perigo de sermos tidos como
loucos não nos incomoda mais numa certa idade. Não há nada melhor que numa certa idade ser
declarado louco. A maior felicidade que conheço, dissera a Gambetti, é aquela do velho louco,
que pode entregar-se à sua loucura com perfeita independência. Se tivermos oportunidade,
devemos nos proclamar loucos no mais tardar aos quarenta e tentar levar nossa loucura a
extremos. A loucura é que nos faz felizes, dissera a Gambetti. Coloquei a fotografia que mostra
meu irmão Johannes em primeiro lugar e a que retrata meus pais na estação Victoria por baixo, o
que instantaneamente causou um efeito espantoso: meu irmão em cima e meus pais embaixo
achavam-se agora para mim numa relação toda diversa com minhas irmãs ao meio. Estas sempre
tiveram com meu irmão uma relação defensiva, mas não de forma tão aberta como comigo, com
meu irmão era uma relação encoberta. Precisavam de meu irmão, de mim elas não precisavam.
Meu irmão sempre fora quem as sustentaria diretamente no futuro, e portanto elas tinham sempre
de se portar com ele de maneira diversa que comigo, de quem em última análise elas nada tinham
a temer. Meus pais, que as sustentavam e mantinham diretamente, elas tinham de respeitar e
atender como tais, e mesmo lhes servir por tal motivo, meu irmão, que as sustentaria e manteria
indiretamente, elas não tinham de respeitar e atender ininterruptamente, mas só quando preciso, a
mim elas não tinham absolutamente de respeitar e atender, porque nunca fui cogitado como
quem as sustentasse e mantivesse. Comigo a coisa era bem fácil, pois também aos olhos de meus
pais sempre fui aquele que não deve ser respeitado, embora sempre devesse ser atendido, mas
por uma razão totalmente diversa, pela razão de terem sempre de se precaver contra mim, porque
sempre lhes pareci imprevisível e impenetrável, mas nunca fui a pessoa essencial de quem
dependessem ou fossem um dia depender, como pensavam. De meu irmão eles dependeriam um
dia, de mim não, de meus pais elas dependiam, com toda a espontaneidade resultava assim seu
respeito e sua atenção, sua subserviência etcétera. A mim elas não respeitavam, a mim não
atendiam, comigo só se punham sempre de sobreaviso. A foto de meu irmão por cima significava
agora que ele já era o mais importante da família, meus pais por baixo já muito menos
importantes. E minhas irmãs não se davam com meus pais, quem as sustentava e mantinha
atualmente, que logo sairiam de cena, nem com meu irmão, futuramente quem as sustentaria e
manteria, que em breve entraria em cena. A mim elas não atendiam nem respeitavam em
absoluto, de mim elas sempre tiveram medo, mas também só até o momento em que deixei
Wolfsegg praticamente para sempre. De Roma eu não lhes infundia medo algum, naturalmente
que não, já de Londres não, de Viena. Fazia tempo, como se diz, eu era carta fora do baralho. E
agora, pensei observando seus rostos sardônicos, a catástrofe se abateu sobre elas, pois agora é
de mim que elas dependem, sem dúvida. Com a morte de meus pais e de meu irmão, Wolfsegg
cabe a mim. Juridicamente, que eu saiba. Três semanas atrás dissera a Gambetti, quando voltar
do casamento de minha irmã Caecilia, não irei a Wolfsegg por um bom tempo. Wolfsegg é
assunto encerrado para mim. Não tenho mais motivo para ir a Wolfsegg, não preciso mais de
Wolfsegg, os wolfseggenses não precisam mais de mim. O que era um fabricante de rolhas para
garrafas de vinho, perguntara-me Gambetti, eu tentei lhe explicar, disse que Freiburg era uma
cidade pavorosa, pequeno-burguesa, católica, insuportável. O fabricante de rolhas para garrafas
de vinho de minha irmã Caecilia era igualmente pequeno-burguês, católico, insuportável. Mas
provavelmente, dissera a Gambetti, ele é um bom par para minha irmã Caecilia. Talvez esse
homem seja até a salvação para ela. Não imaginava que uma de minhas irmãs algum dia se
casasse, elas nunca se mostraram inclinadas a tanto, seus pais, sobretudo sua mãe, fizeram de
tudo para excluir um possível matrimônio de suas filhas. Minha tia do Titisee, dissera a
Gambetti, promovera esse casamento, essa união de todo ridícula. Imagine só, um fabricante de
rolhas para garrafas de vinho irrompendo subitamente em Wolfsegg! Um pequeno-burguês
católico, a quem minha mãe teve de notar que não se apresenta à mesa usando suspensórios. Um
alemão do mais alemão dos rincões, dissera a Gambetti. Da Floresta Negra, onde Judas perdeu as
botas e onde a estupidez alemã celebra seus triunfos. Do fabricante de rolhas para garrafas de
vinho eu agora não tinha medo, no fundo de minhas próprias irmãs também não, não as temia,
mas que naquela situação terrível elas me seriam irritantes até a náusea e até o desespero, isso era
claro para mim. Amalia provavelmente se casará um dia, pensara às vezes, mas Caecilia nunca,
assim declarara uma vez a Gambetti. Agora lá estão elas e dependem inteiramente de mim. Sua
expectativa e ao mesmo tempo sua desconfiança vão atingir agora o extremo da tensão. Talvez a
cova já esteja aberta, disse comigo. Das janelas de Wolfsegg pendem as bandeiras pretas. A
última vez que as penduraram foi na morte do tio Georg. E meia hora depois que tiveram notícia
de sua morte, já circulavam de preto. Tio Georg me fazia muita falta agora. Ele tornaria tudo
mais fácil para mim. A comicidade dos rostos sardônicos de minhas irmãs, congelada na foto,
pensei, é dupla. Esse riso sardônico em seus rostos é a conseqüência de décadas de domínio
exercido por sua mãe, disse comigo. Sua única arma são seus rostos sardônicos. Amalia
recolheu-se à casa dos jardineiros e agora odeia Caecilia, que se casou com o fabricante de rolhas
para garrafas de vinho provavelmente por despeito contra sua mãe, que sempre lhe proibira
mesmo se aproximar dos homens, odeia os que por assim dizer lhe escaparam. Amalia aliou-se
imediatamente a sua mãe, para com ela fazer total causa comum, sobretudo para destruir o
casamento de Caecilia. Está ela sentada, como bem a conheço, num tamborete na casa dos
jardineiros, matutando como romper o casamento inesperado e absolutamente indesejado de sua
irmã, por todos os meios. Mãe e filha armaram um complô contra o casamento de Caecilia com o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho. Isso não vai acabar bem, dissera a Gambetti antes de
minha viagem a Wolfsegg, minha irmã Caecilia e um fabricante de rolhas para garrafas de vinho
da Floresta Negra, cedo ou tarde isso vai gorar, pois todos são contra e Caecilia não está à altura
do fabricante de rolhas para garrafas de vinho, por estúpido que ele seja. O triunfo de minha
irmã, sua artimanha, dissera a Gambetti, terminará um dia em catástrofe. Ela não vai agüentar na
Floresta Negra, disso ela já suspeita agora, foi por esse motivo que não quis seguir com seu
marido para Freiburg logo após o casamento, acreditava poder ficar em Wolfsegg sem ele, coisa
mais absurda, ela vai ter de ir com ele, quer queira ou não, ele vai forçá-la a tanto, não se pode
contrair núpcias só pelas aparências e porque se quer atingir a própria mãe, e depois não
consumá-las. Esse homem, dissera a Gambetti, deve se sentir completamente deslocado em
Wolfsegg, completamente infeliz, e se seu objetivo foi especular com dinheiro e propriedade, a
meu ver foi uma especulação equivocada. Ele não tem nada a esperar, em todo caso, disso
cuidará minha mãe. Sua argúcia em questões jurídicas é conhecida e temida. Se ele não é um
especulador, o que o levou a se casar com Caecilia, eu me pergunto, dissera a Gambetti. Minha
irmã Caecilia é tudo menos atraente, tudo menos núbil. Aliás como Amalia. Mas o fato é que nos
perguntamos com freqüência o que atraiu duas pessoas que se casam, o que as moveu ao
casamento, e fazendo essa pergunta quase sempre levamos as mãos à cabeça, mas será possível,
justo essas duas? e não saímos da estaca zero. Conhecemos uma pessoa de quem estamos
convencidos que não se casará em hipótese alguma com esta ou aquela outra também nossa
conhecida, nos parece totalmente impossível, e justo esta se casa com aquela, e não digo que o
casamento seja infeliz, pelo contrário, porém no mais das vezes se trata, sim, do casamento
infeliz que havíamos previsto, contra o qual havíamos prevenido, sem sermos ouvidos. Talvez o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho tenha aproveitado, como pensa, o momento certo,
dissera a Gambetti, enquanto na verdade, como suponho, cometeu o maior erro de sua vida. Isso
porque minha irmã Caecilia também é manhosa, dissera a Gambetti. É macaco velho, como aliás
Amalia. Sua estupidez não exclui sua manha. E, como se sabe, os mais estúpidos são os mais
perigosos, sobretudo quando a estupidez, dissera sem cerimônia a Gambetti, esposa a sordidez.
Sobre os meus, pensei agora, sempre disse a Gambetti coisas negativas, relatei coisas repulsivas,
repugnantes, porque sempre tomei como natural lhe revelar meus sentimentos da forma como
eles se apresentavam a mim, e os sentimentos em relação aos meus nos últimos anos sempre
foram os mais negativos, os mais repulsivos, os mais repugnantes. Não tive ocasião de lhe dizer
mais do que estes sentimentos negativos de minha parte. O repulsivo. O repugnante. O absurdo,
no melhor dos casos. E nunca senti vergonha disso. A Gambetti você nunca deve se revelar
hipócrita, sempre pensei, deixar se surpreender por ele numa mentira, numa insinceridade, pois
você é seu professor e de um professor se devem esperar verdade e sinceridade como coisas
óbvias. Sua relação com Gambetti é de confiança absoluta. Com Gambetti você nunca deve usar
como escudo uma insinceridade ou mesmo uma mentira, sob o risco de ser qualificado
justamente por ele como impiedoso, e talvez sórdido. E que eu próprio seja com freqüência
impiedoso e sórdido, disso não há dúvida, desse perigo e desse mal não escapa o homem que
pensa, ele tem de levá-los em conta, resignar-se a eles, viver com eles. Tem de tomá-los como
lição e não pode contestá-los. Wolfsegg se tornou absolutamente impossível para mim, dissera a
Gambetti. É de sufocar, aquela atmosfera. De entrar em parafuso! lhe exclamara. Por outro lado,
Gambetti, lhe dissera, se você pudesse ver aqueles ambientes magníficos, aquelas abóbadas,
aqueles corredores, aquele chamado pórtico, ímpar, onde no inverno, quando ainda criança, eu
cuidava de corças, meu irmão Johannes e eu, nós cuidávamos todo inverno de duas corças no
pórtico, uma para cada um. Dávamos de comer a elas, conversávamos com elas, as tratávamos
com paparicos! A palavra paparicos, como é natural, ele não a compreendera, e tentei explicá-la,
coisa que só consegui a custo. Na primavera as soltávamos novamente. Tratava-se de corças com
ferimentos leves, dissera a Gambetti, que recolhíamos ao pórtico. Elas invernavam em nosso
pórtico e sobreviviam. Nós lhe inventávamos nomes, meu irmão e eu, as chamávamos por
exemplo Sarabande ou Locarnell. Na primavera, quando as soltávamos, como é natural elas
tinham se habituado a nós e só com relutância se afastavam do pórtico, nós, meu irmão Johannes
e eu, percorríamos os bosques para recolher e enterrar as corças mortas, que não houvessem
sobrevivido ao inverno. Os silvicultores nos davam uma mão. Sempre me entendi às maravilhas
com os silvicultores, eles eram meus melhores amigos, eu os amava como a ninguém mais,
conhecia a todos pelo nome, eles faziam brincadeiras comigo, mas também se dispunham a me
contar sobre si próprios, coisa que eu muitas vezes lhes pedia. Sempre me atraíram as pessoas
simples, dissera a Gambetti. Com eles e só com eles eu me sentia bem. Eles tinham toda minha
simpatia. Na conversa sempre eram calmos, nunca tagarelas. Seu discurso era simples, sem
afetação. Não fingiam nada, ao contrário dos outros, que ininterruptamente fingiam algo. Sem
dúvida, dissera muitas vezes a Gambetti, Wolfsegg foi em certa época um paraíso para mim, nos
primeiros anos de vida, e também algum tempo depois, quando passei a freqüentar a escola. E eu
percebera que se tratava do paraíso. Em breve, no entanto, esse paraíso escureceu, pouco a pouco
se transformou para mim primeiro num limbo, depois num inferno. Desse inferno eu queria sair,
esse inferno eu queria abandonar o mais rápido possível. Não via a hora, dissera a Gambetti, de ir
para o internato e enfim para Viena. Sem saber direito o que seria de mim, o que seria capaz de
fazer de mim, onde devia começar para seguir adiante da maneira que me fosse conveniente. Não
tinha a menor idéia. Gostava dos livros que já havia lido e daqueles que ainda havia por ler, esse
número infinito de livros, nos quais está escrito praticamente tudo, como pensava, desde
pequeno, posso dizer tranqüilamente, gostava da vida intelectual mais que da outra, mas não
tinha idéia do que tivesse de fazer, do que me possibilitaria tomar parte dessa vida intelectual tão
querida, participar dela e levar eu próprio semelhante vida intelectual. Não conhecia ninguém
que me desse uma indicação a respeito, até que meu tio Georg notou as minhas agruras e me deu
as primeiras indicações. Em primeiro lugar, você tem de se libertar completamente dos seus,
dissera meu tio Georg, tornar-se completamente autônomo, primeiro internamente, depois
também externamente. E segui aquilo que ele me aconselhara, primeiro me libertei internamente,
depois também externamente, primeiro me tornei internamente autônomo, depois também
externamente. E obviamente tem de sair de Wolfsegg, dissera. Tem de ignorar as idéias e
opiniões dos seus em Wolfsegg e sair de Wolfsegg contra a vontade deles, não seguir o conselho
deles, que só têm por objeto te acorrentar a Wolfsegg pelo resto da vida, te sacrificar a Wolfsegg,
tem de fazer exatamente o contrário do que te aconselham, praticamente nunca deve
compartilhar das idéias deles, pois as idéias deles são opostas às suas, e portanto contrárias a seu
desenvolvimento. O conselho deles não vale nada, a opinião deles não vale nada, dissera-me meu
tio Georg. É verdade que sempre dizem querer o melhor para você, como você sabe, mas estão
contra você, fazem de tudo para te acorrentar a eles e, se você não se deixa acorrentar a eles,
tentam de tudo para te aniquilar. É preciso um esforço supremo, não só imenso, para escapar
deles, para opor a inflexibilidade deles à sua inflexibilidade. Você está em condições de se tornar
autônomo deles, de se tornar independente, dissera meu tio Georg, mas note bem que o preço a
pagar é altíssimo. Esse preço altíssimo você tem de pagá-lo. De fato, paguei um preço altíssimo
por minha independência de Wolfsegg, disse comigo. Meu tio Georg tinha razão. Opusera minha
inflexibilidade à deles e a minha foi mais forte, por ser mais intransigente. Quanto me custou
escapar para Viena, essa cidade imprestável, como a chamavam. Quanto me custou ir para a
Inglaterra e finalmente para Paris. Quanto me custou conquistar a liberdade interior, para então
alcançar a exterior. Devo minha independência a meu tio Georg, dissera a Gambetti no Pincio,
enquanto lhe estendia O processo de Kafka, que, depois de lê-lo pela segunda vez na minha vida,
ficara ainda mais entusiasmado que na primeira. Há escritores, dissera a Gambetti, que
entusiasmam o leitor, quando os lê pela segunda vez, em medida muito maior que na primeira,
com Kafka toda vez isso acontece comigo. Tenho Kafka na memória como um grande escritor,
dissera a Gambetti, mas ao relê-lo tive absolutamente a impressão de ter lido um escritor ainda
maior. Não são muitos os autores que, na segunda leitura, tornam-se mais importantes, mais
grandiosos, a maioria, numa segunda leitura, nos envergonha de os termos lido sequer uma vez,
com centenas de escritores isso nos acontece, não com Kafka nem com os grandes russos,
Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev, Liermontov, nem com Proust, com Flaubert, com Sartre, que
conto como os maiores. Não considero de todo ruim o método de ler uma segunda vez os
escritores que lemos uma vez e que nos impressionaram, pois então ou serão ainda maiores,
ainda mais importantes, ou não valerá mais a pena falar sobre eles. Desse modo evitamos
carregar a vida inteira em nossa cabeça um imenso fardo de literatura, que acaba por tornar
enferma, mortalmente enferma, essa nossa cabeça, dissera a Gambetti no Pincio. Meu tio Georg
ensinou-me quase tudo aquilo que mais tarde seria importante na minha vida. Ele foi meu
professor, ninguém mais. Foi meu educador, ninguém mais. Com seu caráter obtuso, em vez de
me formarem, meus pais me deformaram completamente até os meus nove ou dez anos, e meu
tio Georg teve de intervir para reverter pouco a pouco a destruição quase total que meus pais
infligiram a mim, ele se esforçou como quê, dissera a Gambetti, para tornar de novo aceitável,
receptiva, minha cabeça completamente caótica. Crentes de que me educavam, meus pais na
verdade haviam me destruído, como destruíram meu irmão Johannes e minhas irmãs. Quando
diziam educação, melhor seria que dissessem destruição, com sua educação, que, como disse,
não era mais que uma destruição, eles mutilaram até tornar irreconhecível tudo o que eu tinha na
cabeça, como se costuma dizer em outro contexto. Sem a menor piedade por mim, remexeram
anos seguidos minha jovem cabeça à sua maneira católica e nacional-socialista e embaralharam
tudo, de modo que meu tio Georg precisou também de anos seguidos para restaurar a ordem
nessa minha cabeça. Em vez de educar, meus pais em última análise como que desfiguraram a
mim e a meus irmãos, em nossas cabeças só causaram desastre. Meus pais, católicos acima de
tudo, como é natural, dissera a Gambetti, arruinaram nossas cabeças com esses desastrosos
métodos católicos. A Igreja Católica causa nas cabeças jovens tanto desastre, sendo os pais
católicos e seguindo mais ou menos automaticamente a religião católica, que é quase impossível
imaginar. Termos recebido uma educação católica significou termos sido destruídos pela raiz,
Gambetti. O catolicismo é o grande destruidor da alma infantil, o grande inspirador de medo, o
grande aniquilador do caráter da criança. Essa é a verdade. Milhões e afinal bilhões de pessoas
devem à Igreja Católica que tenham sido destruídas pela raiz e arruinadas para o mundo, que sua
natureza tenha sido desnaturada. Pesa na consciência da Igreja Católica o homem destruído,
imerso no caos, em última análise infeliz até a medula, essa é a verdade, não o contrário. Isso
porque a Igreja Católica tolera apenas o homem católico, nenhum outro, essa é sua intenção e seu
invariável objetivo. A Igreja Católica converte os homens em católicos, criaturas obtusas, que
esqueceram o pensar independente e o traíram pela religião católica. Essa é a verdade, dissera a
Gambetti no Pincio. Ainda que levemos em conta que os costumes católicos sempre nos
fascinaram quando crianças, no início eles nada mais eram para nós, do campo, senão um conto
de fadas, Gambetti, sem dúvida o mais belo, para os adultos seu único espetáculo, o maior de
todos, a vida inteira, porém esse conto de fadas e esse espetáculo arruinaram tudo o que houvesse
de natural nos homens, com o tempo os reduziram a pó. Com esse seu conto de fadas para
crianças e esse seu espetáculo para adultos, a Igreja Católica não teve em mira senão a total
corrupção de suas presas, por meio desse conto de fadas e desse espetáculo tornou-as dóceis,
extinguiu-as como homens, para fazer deles católicos sem arbítrio e pensamento próprios, fiéis,
como ela diz com infâmia, dissera a Gambetti. A fé católica, como toda fé, é uma falsificação da
natureza, uma moléstia que milhões contraem com plena consciência, porque para eles ela é a
única salvação, para o homem fraco, dependente até a medula, que não tem cabeça própria, que
tem de deixar uma outra cabeça, por assim dizer superior, pensar por ele; os católicos deixam a
Igreja Católica pensar por eles e com isso também agir por eles, porque lhes é mais cômodo,
porque, como acham, não pode ser de outro modo. E a cabeça católica da Igreja Católica tem
uma forma terrível de pensar, dissera a Gambetti. Ela só pensa em benefício próprio e contra a
natureza humana, só pensa em vista de seus objetivos, de nenhum outro, pensa em sua glória,
Gambetti, em nenhuma outra. Nenhum outro Estado na Europa, dissera a Gambetti, denomina-se
Estado católico e deixa que a cabeça católica pense em seu lugar, e podemos ver a que isso
levou. Temos somente católicos na Áustria, não pessoas com um espírito livre, independente,
católicos, onde seriam precisos espíritos livres. Na Áustria pensa a cabeça católica, nenhuma
outra. Nem as diversas reviravoltas políticas das últimas décadas mudaram algo nesse quadro,
mesmo os socialistas deixam que seja a cabeça católica a pensar na Áustria, porque no fundo
nem sequer uma cabeça socialista eles têm. Em toda parte na Áustria topamos com o espírito
católico, que nos brindou com centenas e milhares de obras de arte católicas, é verdade, mas
aniquilou o espírito próprio, o espírito autônomo, independente, que é o único natural. De que
nos adiantam essas obras de arte, esses palácios e igrejas católicos, se há séculos não temos uma
cabeça própria? dissera a Gambetti. Mas nosso povo sempre padeceu dessa sua absoluta fraqueza
de espírito, dissera a Gambetti, que foi explorada pela Igreja Católica como em nenhum outro
país na Europa, nem mesmo na Alemanha, onde até hoje se preservou um certo espírito próprio
de liberdade, em meu país a Igreja Católica e o catolicismo desde o início não encontraram
dificuldades em exercer a devida pressão sobre o homem austríaco e afinal sujeitar inteiramente
a si povo e Estado, subjugá-los totalmente. Só nas últimas décadas notamos sinais de uma
emancipação do domínio católico, da infame pressão católica, da impiedosa tenaz centenária do
catolicismo, só nas últimas décadas notamos aqui e acolá, embora seu desenvolvimento seja
tímido, um pensamento, um filosofar independente do catolicismo, dissera a Gambetti, algumas
de nossas cabeças austríacas ousam pensar novamente de forma autônoma e com a própria
cabeça austríaca, não somente com a católica. É culpa do catolicismo se, por tantos séculos, não
houve na Áustria um filósofo, e portanto absolutamente nenhum pensamento filosófico e assim
nenhuma filosofia. A Igreja Católica nesse século, pode-se dizer com tranqüilidade, reprimiu
brutal e cabalmente o pensamento. E esse povo se acomodou sob a cabeça católica, que sempre
pensou tudo a seu modo no lugar desse povo, dissera a Gambetti. Nesse milênio o catolicismo e
os Habsburgo tiveram um efeito aniquilador na cabeça de nosso povo, um efeito letal, como bem
sabemos e como demonstra tudo o que tomamos em consideração na Áustria. Nesse milênio,
pode-se dizer, ele jugulou o pensamento de nosso povo e fez florescer a música, a menos
perigosa de todas as artes. Somos afinal o país da música só porque o espírito sempre foi
completamente reprimido durante séculos, dissera a Gambetti. Tornamo-nos um povo
inveteradamente musical porque nos séculos católicos nos tornamos um povo inveteradamente
sem espírito, dissera a Gambetti, na medida em que o espírito nos foi exorcizado pelo
catolicismo, deixamos que a música aflorasse, a essa circunstância devemos, seja como for,
Mozart, Haydn, Schubert, disse. Mas a meu ver não vale absolutamente nada, dissera a Gambetti,
que tenhamos Mozart, mas não mais uma cabeça própria, Haydn, mas tenhamos desaprendido e
quase inteiramente desistido de pensar, Schubert, mas tenhamos afinal de contas nos tornado
obtusos. Isso não ocorreu em nenhum outro país, dissera a Gambetti, que se deixasse arrebatar
inescrupulosamente o pensamento pela Igreja Católica, que se deixasse por assim dizer decapitar
pelo catolicismo. Não temos um Montaigne, um Descartes, um Voltaire, dissera a Gambetti, só
esses monges versejadores e esses aristocratas versejadores, com sua imbecilidade católica. Nos
últimos tempos teve início uma mudança, disse, mas levará não somente décadas, senão séculos,
para reparar os danos, a devastação e o mal que o catolicismo causou em nosso espírito. Se é que
se possa repará-los, dissera a Gambetti. Nosso povo foi explorado como nenhum outro pela
Igreja Católica. Quase um milênio inteiro! Só a custo ele vai poder se livrar da tenaz católica, de
suas garras. Revoluções superficiais, mais ou menos diletantes, dissera a Gambetti, de nada
adiantam, como vemos em outros países da Europa, só uma revolução efetivamente radical,
elementar, dissera a Gambetti, pode ser a salvação, uma que, para começo de conversa, destrua e
reduza tudo a pó, efetivamente tudo. Mas para uma tal revolução radical e elementar estamos
hoje ainda muito fracos, não estamos ainda maduros para tanto, ainda nem sequer nos atrevemos
a tomar uma tal revolução radical e elementar em consideração. Somos agora uma humanidade
austríaca enfraquecida, efetivamente sem espírito, dissera a Gambetti, a quem o radical e o
elementar é de todo impossível. Há muito mais de um século inteiro uma humanidade austríaca
totalmente enfraquecida, dissera a Gambetti. Meus pais, como é natural, haviam considerado
para mim só uma educação católica, não podiam absolutamente imaginar uma outra, dissera a
Gambetti. Até onde alcança a memória, todas as gerações de Wolfsegg tiveram uma educação
católica. Até que meu tio Georg interveio, sobretudo contra o catolicismo, o que não significava
outra coisa senão contra tudo. Meu tio Georg me aplainou o caminho, tornou-o possível para
mim. Primeiro me sugeriu a idéia, depois o caminho efetivo, o caminho contrário, dissera a
Gambetti. Em nossas bibliotecas, imagine só, disse a Gambetti, eles haviam mantido sob chave
os livros por assim dizer profanos, à diferença dos livros católicos, os armários com os livros
profanos haviam ficado trancados por décadas, se não por séculos, dissera a Gambetti, somente
os livros católicos eram de livre acesso, os profanos isolados, inacessíveis, não deviam ser lidos,
deviam ficar confinados, como se tivessem confinado o espírito livre nesses armários, Gambetti,
eles confinavam nesses armários os livros que não eram católicos. Voltaire, Montaigne, dissera a
Gambetti, confinados, a estupidez dos monges e condes não, reunida em centenas e milhares de
volumes encadernados em couro. Os Voltaires e Montaignes e Descartes deviam ser lacrados de
uma vez por todas nesses armários, imagine só, dissera a Gambetti. Esses armários nunca haviam
sido abertos, quando um dia, por insistência de meu tio Georg, alguém os abriu, para os meus foi
como se meu tio Georg houvesse aberto um frasco lacrado por séculos, que no momento da
abertura exalou um veneno terrível, do qual instantaneamente bateram em retirada, porque de
fato acreditavam que ele fosse letal. Os meus nunca perdoaram a meu tio Georg que ele houvesse
aberto esse frasco, dissera a Gambetti, que de súbito houvesse deixado sair o veneno do espírito.
De fato, eles sempre foram da opinião de que nosso tio Georg envenenara Wolfsegg ao abrir o
frasco do espírito lacrado por séculos, ao simplesmente escancarar os armários de livros por
séculos trancados a chave. Que em Wolfsegg de repente se pudesse respirar não só a estupidez
católica, mas também o espírito livre, isso eles não perdoaram a meu tio Georg, que também
Descartes e Voltaire estivessem no ar de Wolfsegg, não apenas o catolicismo e o nacional-
socialismo. Eles eram da opinião de que haviam por assim dizer confinado o espírito maligno
naqueles armários de livros mantidos sob chave, e agora meu tio Georg o deixara sair. Mas não
tardou muito para que eles voltassem a confinar esse espírito maligno nos armários, quando meu
tio Georg deixou Wolfsegg e lhes virou as costas e se fixou em Cannes, imagine só, na Riviera
francesa, nessa costa diabólica, que para os meus era equiparável ao inferno. No exato instante
em que meu tio Georg deixou Wolfsegg com duas malas, não lhes passou nada de mais urgente
pela cabeça senão confinar de novo em seus armários de livros o espírito maligno que, sem peias
e, como acreditavam, da maneira mais devastadora, envenenara Wolfsegg durante uns anos, e
para tanto não deram somente uma volta à chave, mas logo duas, três voltas. A mim próprio eles
não permitiram mais abrir esses armários de livros, negaram-me que o fizesse com a máxima
obstinação e, como sei hoje, mortos de medo. Mesmo quando já tinha vinte e tantos anos eles
não me permitiam abrir esses armários de livros, e com o tempo desisti de batalhar para abri-los,
porque odiava e temia as brigas diárias a respeito. Em Viena, dissera a Gambetti, a primeira coisa
que fiz foi montar uma biblioteca que devesse conter tudo aquilo que meu tio Georg havia
indicado como premente para o chamado homem de espírito; num piscar de olhos, gastando
quase todo o dinheiro a minha disposição, eu coligira os livros mais importantes, reunira eu
próprio uma biblioteca por assim dizer do espírito maligno e começara, como é óbvio, por
Montaigne e Descartes, por Voltaire e Kant. Ao fim reunira o que de mais importante havia para
a cabeça, como sempre repetia meu tio Georg, dissera a Gambetti, e o centro, como é natural,
não era outro senão Schopenhauer. Adquirira o que costumava chamar uma biblioteca portátil
com as obras mais importantes do espírito maligno, que a toda hora podia levar comigo aonde
quer que fosse, sem estorvo, de modo que nunca tivesse de ficar sem esses livros. Primeiro
adquirira os filósofos que me haviam sido proibidos em Wolfsegg, o veneno letal, portanto,
depois, pouco a pouco, também as obras de nossos escritores importantes. Nessas aquisições eu
seguira à risca o plano traçado por meu tio Georg, dissera a Gambetti. O primeiro volume que
comprei foi Heinrich von Ofterdingen de Novalis, dissera a Gambetti, o segundo, lembro
exatamente, as Histórias de almanaque de Johann Peter Hebel. Dali até Kropotkin e Bakunin
havia um bom caminho, dissera a Gambetti, até Dostoievski, Tolstoi, Liermontov, que amo
acima de tudo. A primeira coisa que vou fazer em Wolfsegg, disse agora comigo, é libertar o
espírito maligno confinado, condenado pelos meus por assim dizer à prisão perpétua, e não só
nunca mais vou trancar as portas dos armários de livros como vou deixá-las escancaradas para
sempre. Vou jogar as chaves desses armários de livros no poço, para que eles nunca mais possam
ser trancados, por mão alguma. Aliás, o primeiro giro que vou dar em Wolfsegg será com o
único propósito de abrir todas as janelas, uma após a outra, e deixar que entre ar fresco, imagine
só, dissera uma vez a Gambetti, várias janelas em Wolfsegg não são abertas faz décadas, é
aterrador. Então vou poder voltar a Roma e dizer a Gambetti: Gambetti, escancarei todas as
janelas em Wolfsegg e deixei entrar ar fresco. Vou abrir todas as janelas e portas, disse comigo.
Ao observar a foto que mostra meus pais na estação Victoria em Londres, disse agora comigo
que a minha vida inteira eles quiseram me amordaçar, à sua maneira católica, que só posso
definir como uma maneira obtusa. Assim como haviam querido confinar o espírito maligno nos
armários de livros, quiseram confinar a mim, a seus olhos um espírito igualmente maligno, em
Wolfsegg. Confinar o contestador, o inconformista. O renegado. Não consigo lembrar que meus
pais tenham me deixado em paz, uma única vez, com minhas afeições, que por tais afeições me
tenham elogiado, uma única vez. Seu elogio não me teria escapado, eles nunca o fizeram. Desde
criança pequena me consideraram com extrema desconfiança, penso, mesmo naqueles anos mais
tenros, nos quais para me olhar ainda tinham de baixar os olhos quase até o chão, ainda no berço,
ainda aprendendo a andar, já então tudo em mim lhes era suspeito e, no sentido próprio da
palavra, inquietante, como se provavelmente houvessem gerado alguém que um dia pudesse
emancipar-se deles e acusá-los e depois até mesmo destruí-los e aniquilá-los. Já nos primeiros
anos me observavam com a suspeita com que depois a vida inteira me perseguiram,
provavelmente já então com o ódio subliminar com que mais tarde me confrontaram
abertamente, que a princípio eu não sabia por que tivesse de se dirigir justo contra mim, por qual
razão, com que objetivo, por força de qual baixeza e maldade em minha pessoa. Com meu irmão
Johannes desde o início eles mostraram boa vontade, comigo nunca boa, sempre má, essa
verdade cumpre finalmente ser expressa, disse comigo observando a foto. Meu pai me gerou,
minha mãe me pôs no mundo, mas desde o princípio não me quis, ao me dar à luz ela teria
preferido me enfiar logo de volta em sua barriga, com todos os meios, se houvesse sido possível,
disse comigo. Primeiro sempre nos iludimos que, como é natural, somos amados por nossos pais,
mas de repente nos damos conta, de maneira igualmente natural, que somos apenas odiados, seja
lá qual for a razão, quando parecemos a eles, como eu pareci a meus pais, uma criança que não
correspondia a suas expectativas, que dera errado, como se diz. Eles não haviam contado com
meus olhos, que, mal os abrira pela primeira vez, provavelmente viram tudo o que nunca lhes
seria certo ver. Primeiro os olhara incrédulo, como se diz, depois os fitara, um dia finalmente os
desmascarara, isso eles não me perdoam, não podiam me perdoar. Desmascarara-os, como se diz,
e os submetera a um juízo incorruptível, que não lhes podia agradar. A rigor, eles deram à luz
quem os dissecaria e os desmembraria ao me darem à luz. Desde o primeiríssimo instante, devo
dizer, fui contra eles, com toda minha resolução. Uma vez, num belo e ameno dia de outono,
tentara fazer a Gambetti uma descrição de Wolfsegg, voltávamos por assim dizer para casa,
vindos da Rocca di Papa, e tínhamos nos sentado na Piazza del Popolo, no terraço diante do café,
havia muito já passara das nove da noite, o sol ainda tinha força para aquecer a praça da maneira
mais agradável, vou tentar lhe fazer uma descrição precisa de Wolfsegg, dissera a Gambetti, a
quem na Rocca di Papa dissera coisas absolutamente infelizes, parece-me hoje, sobre o
Zaratustra de Nietzsche, com Nietzsche sempre tivera as maiores dificuldades, nesse dia também
não conseguira entretê-lo com algo pertinente sobre Nietzsche, veja só, Gambetti, dissera, me
debato há décadas com Nietzsche, mas não fiz progressos, Nietzsche sempre me fascinou, mas
ao mesmo tempo o que compreendi dele foi sempre quase nada. Para ser sincero, com todos os
outros filósofos, dissera a Gambetti, me acontece o mesmo, com Schopenhauer, com Pascal, só
para citar esses dois além de Nietzsche, a vida inteira todos sempre difíceis para mim, nunca
consegui decifrá-los, o mínimo que fosse, sempre foram grego para mim, embora tenha sempre
sido atraído e entusiasmado por eles ao máximo do extremo. Quanto mais me ocupo com os
escritos dessa gente, dissera a Gambetti, mais me torno eu impotente, só num acesso de
megalomania posso dizer que os compreendi, como só num acesso de megalomania posso dizer
ter compreendido a mim mesmo, quando de fato nunca compreendi a mim mesmo até o dia de
hoje, quanto mais me ocupo de mim, mais me afasto daquilo que sou de fato, mais se turva tudo
quanto me diga respeito, dissera a Gambetti, e assim também com esses filósofos, quando creio
tê-los compreendido, dissera a Gambetti, não compreendi nada, é provavelmente assim com tudo
de que me ocupei até agora. Mas vez por outra tomo a liberdade, dissera a Gambetti, de afirmar
ter compreendido algo desses filósofos e de suas criações, em meu acesso de megalomania.
Todos esses nomes e suas obras não são de modo algum compreensíveis, dissera a Gambetti,
nem Pascal, nem Descartes, nem Kant, nem Schopenhauer, nem Schleiermacher, para citar
somente aqueles de que me ocupo no momento. Aos quais no momento me dedico. Com a maior
impiedade em relação a eles e em relação a mim mesmo, dissera a Gambetti. Com a maior
audácia e ao mesmo tempo o maior impudor. Pois quando nos ocupamos de um desses filósofos,
Gambetti, dissera-lhe, somos impudentes, quando ousamos nos aferrar a eles e por assim dizer
lhes estripar as vísceras filosóficas do corpo vivo. Somos sempre impudentes quando abordamos
uma obra filosófica, mas sem esse impudor não nos aproximamos dela, não fazemos progressos
filosóficos. De fato, temos de enfrentar da maneira mais grosseira e rude esses escritos
filosóficos e seus autores, que sempre temos de nos afigurar como nossos inimigos, como nossos
adversários mais temíveis, Gambetti. Tenho de me insurgir contra Schopenhauer se quiser
compreender, contra Kant, contra Montaigne, contra Descartes, contra Schleiermacher, está
entendendo. Tenho de estar contra Voltaire, se quiser discutir com ele da maneira mais franca,
com alguma perspectiva de sucesso. Mas até agora minhas discussões com os filósofos e suas
criações foram bastante malsucedidas. Em breve terá passado a vida, minha existência estará
extinta, dissera a Gambetti, e eu não alcancei nada, tudo se manteve bastante hermético para
mim. Tal como até hoje minhas discussões comigo mesmo foram bastante malsucedidas. Sou
meu inimigo e avanço filosoficamente contra mim, dissera a Gambetti, enfrento a mim mesmo
com todas as dúvidas possíveis e fracasso. Não alcanço o mínimo que seja. Tenho de considerar
o espírito como inimigo e avançar contra ele de maneira filosófica, dissera a Gambetti, para de
fato poder desfrutá-lo. Mas provavelmente meu tempo é curto demais para tanto, tal como eles
todos também tiveram um tempo curto demais, a maior desventura do homem, que seu tempo
seja sempre e em todo caso curto demais, sempre tornou impossível o conhecimento. Assim,
nunca houve mais que uma aproximação, um quase, todo o resto é bobagem. Quando pensamos e
não paramos de pensar, coisa que chamamos filosofar, descobrimos afinal que pensamos errado.
Todos eles até agora pensaram errado, seja qual for o nome que tenham tido, seja qual for os
escritos que tenham escrito, mas não desistiram por si mesmos, dissera a Gambetti, não por
vontade própria, só por vontade da natureza, por doença, loucura, morte afinal. Não queriam
parar, por mais cheia de privações, terrível, que lhes fosse a existência, por mais pavorosa, contra
todas as regras e contra todas as advertências. Mas sempre defendiam apenas conclusões erradas,
dissera a Gambetti, no fim para nada, seja lá o que for esse nada, dissera a Gambetti, do qual
sabemos que nada é, certo, porém ao mesmo tempo não pode ser existente, no qual tudo fracassa,
no qual tudo termina, no fim chega ao fim. Naquela tarde, em vez de fazer logo a anunciada
descrição de Wolfsegg, prometida a Gambetti para a Piazza del Popolo quando ainda estávamos
na Flaminia, enveredei por uma de minhas digressões, que ninguém teme mais que eu próprio, as
quais me habituei a chamar minhas digressões filosofantes, porque nos últimos anos elas se
repetem aos montes, pois são tão fluentes como a própria filosofia, como tudo o que é filosófico,
sem que de fato tenham outra coisa em comum com a filosofia senão sua motivação. Em vez de
fazer logo a anunciada descrição de Wolfsegg, dissera a Gambetti algo sobre Nietzsche, que
melhor seria não ter dito, algo sobre Kant, que foi mesmo completamente absurdo, algo sobre
Schopenhauer, que primeiro considerei como bastante pertinente, mas já depois de uns poucos
instantes tive de reconhecer como um tanto amalucado, algo sobre Montaigne, que eu próprio
não entendi já no momento em que o dizia a Gambetti; pois mal fizera a Gambetti essa asserção
sobre Montaigne, ele me pediu para lhe explicar a asserção que acabara de fazer, coisa de que
porém não fui capaz, porque naquele mesmo segundo não sabia mais o que dissera sobre
Montaigne. Dizemos algo e o vemos com toda clareza e no instante seguinte nem sabemos mais
o que acabamos de dizer, dissera a Gambetti, acabei de dizer algo sobre Montaigne, mas agora,
dois, três segundos depois, não sei mais o que realmente e efetivamente acabei de dizer sobre
Montaigne. Temos de ter a capacidade de dizer algo, de expressá-lo portanto, e ao mesmo tempo
registrar o que acabou de ser expresso em nossa cabeça, porém isso não é possível, dissera a
Gambetti. Eu nem sei mais por que disse algo sobre Montaigne nesse instante, dissera a
Gambetti, e muito menos, como é natural, o que disse sobre Montaigne. Acreditamos estar num
estágio tal que somos uma máquina pensante, mas não podemos confiar no pensamento dessa
nossa máquina pensante. No fundo ela trabalha ininterruptamente contra nossa cabeça, dissera a
Gambetti, ela produz constantemente pensamentos que não sabemos de onde vieram e para que
são pensados e em que contexto se inserem, dissera a Gambetti. De fato somos sobrecarregados
por essa máquina pensante, que trabalha ininterruptamente, ela nos sobrecarrega a cabeça, mas
esta não tem mais saída, está inevitavelmente confinada nessa nossa máquina pensante pelo resto
da vida. Até morrermos. Você diz Montaigne, Gambetti, e no mesmo momento eu não sei mais o
que é isso, dissera a Gambetti. Descartes? não sei. Schopenhauer? não sei. Você poderia dizer
igualmente botão-de-ouro e eu não saberia o que é, dissera a Gambetti. Acreditei que, se fosse a
Sils Maria, dissera a Gambetti, compreenderia Nietzsche melhor, se me alojasse nos arredores do
passo de Maloja, subindo de Sondrio, portanto de baixo, compreenderia Nietzsche melhor ou
passaria a compreendê-lo. Mas me enganei, depois que estive em Sils Maria, subindo de Sondrio,
portanto de baixo para cima, compreendo Nietzsche ainda menos que antes, afirmo agora
absolutamente não compreendê-lo mais, nada mais de Nietzsche. Indo a Sils Maria arruinei
Nietzsche por completo. Como também arruinei Goethe certa vez, dissera a Gambetti, só pela
infeliz burrada de visitar Weimar, Kant, ao ter estado em Königsberg. Por todos esses filósofos e
poetas e escritores, pouco importa qual, fui antes impelido a correr a Europa para visitar sua
terra, e desde então os compreendo muito menos que antes. Cuide-se, Gambetti, para não visitar
as terras de escritores e poetas e filósofos, depois você não irá compreendê-los em absoluto, você
de fato os terá tornado impossíveis em sua cabeça por ter visitado sua terra, os lugares em que
nasceram, os lugares em que viveram, os lugares em que morreram. Evite mais do que tudo os
lugares em que nasceram, viveram e morreram nossos grandes espíritos, dissera a Gambetti,
proíba-se de visitar a terra de Dante, Virgílio e Petrarca, você aniquilará tudo o que há desses
grandes espíritos em sua cabeça. Nietzsche, dissera a Gambetti, bato em minha cabeça e ela está
vazia, completamente vazia. Schopenhauer, digo-me, e bato em minha cabeça e ela está vazia.
Bato em minha cabeça e digo Kant e tenho a cabeça completamente vazia. Isso deprime
terrivelmente, dissera a Gambetti. Você pensa num conceito absolutamente trivial e sua cabeça
está vazia. Nada. Nada em sua cabeça quando você quer compreender um tal conceito
absolutamente trivial. Dias a fio você anda com uma tal cabeça vazia e bate nela e constata
sempre que ela está completamente vazia. É de deixar maluco, doido, infeliz, maluco e doido da
maneira mais infeliz e enfastiado da vida da maneira mais terrível, meu caro Gambetti. Apesar de
eu ser seu professor, a maior parte do tempo tenho a cabeça completamente vazia, dentro da qual
de fato não há nada. Porque provavelmente sobrecarreguei minha cabeça, dissera a Gambetti.
Porque com o tempo confiei nela demais da conta. Porque simplesmente a superestimei. Nós
superestimamos nossa cabeça e esperamos muito dela e nos admiramos quando, batendo, a
encontramos de repente completamente vazia, dissera a Gambetti. Nem sequer o mínimo há
então em nossa cabeça, dissera a Gambetti. Provavelmente por termos abusado dos filósofos que
significam para nós alguma coisa e em certas circunstâncias muito ou mesmo tudo, dissera a
Gambetti, de tempos em tempos eles se retiram de nossa cabeça com tudo o que são e deixam-na
sozinha. Simplesmente dão no pé e deixam-na completamente vazia, de modo que, em vez de
termos pensamentos em nossas cabeças e com esses pensamentos fazermos alguma coisa,
razoável ou não, filosófica ou não, dissera a Gambetti, sentimos apenas uma dor insuportável,
uma dor tão terrível que só nos restaria gritar continuamente. Mas naturalmente cuidamos para
não revelar, com tal gritaria terrível, que temos uma cabeça completamente vazia, pois num
mundo que só espera nossos gritos para revelar que temos uma cabeça vazia, isso significaria
inevitavelmente nosso fim. Com o tempo nos habituamos a ocultar tudo em nós, pelo menos
aquilo que pensamos, que nos atrevemos a pensar, para não sermos assassinados, pois, como
sabemos, é assassinado quem não consegue ocultar seu pensamento, seu pensamento efetivo, do
qual ninguém além dele próprio pode ter idéia, dissera a Gambetti. O que importa é o
pensamento oculto, dissera a Gambetti, não o expresso, não o apregoado, que tem muito pouco
em comum, a maioria das vezes absolutamente nada, e sempre lhe é muito inferior, com o
pensamento oculto, que por sua vez é tudo, enquanto o apregoado, como sabemos, é somente o
mínimo. Mas se tivéssemos oportunidade de apregoar, de expressar o pensamento oculto, ainda
que só por um instante, dissera a Gambetti, estaríamos acabados. Seria então subitamente o fim
de tudo. Na maior, na maior de todas as explosões tudo iria pelos ares. Nós nos aproximamos do
filosófico com cautela, dissera a Gambetti, com a maior precaução possível, e fracassamos.
Depois com resolução, dissera a Gambetti, e fracassamos. Ainda quando nos aproximamos dele
sem sombra de medo e nos desnudamos radicalmente, fracassamos. Como se não tivéssemos
direito algum a algo filosófico, dissera a Gambetti. O filosófico é sempre como o ar que
inspiramos e, sem poder retê-lo por muito tempo, temos de expirar novamente. Nós o inspiramos
e expiramos de contínuo e a vida inteira e não podemos retê-lo por mais aquele instante, aquele
instante que faria a diferença. Ah, Gambet ti, dissera a ele, queremos apreender e compreender
tudo e puxá-lo para nós e isso não nos é minimamente possível. Passamos a vida a tentar nos
compreender e não conseguimos, como podemos acreditar poder compreender algo que nem ao
menos seja nós? Em vez de descrever Wolfsegg a Gambetti, como anunciado, enervara-o com
essas frases proferidas seguidamente e além disso num tom de voz muito mais alto que lhe seria
conveniente, ao longo de toda a extensão da Flaminia e um trecho da Flaminia de volta e de novo
em sentido contrário e depois contrário de novo, até a Piazza del Popolo, e não o deixara falar
uma única vez, embora o tempo inteiro soubesse muito bem que uma vez ou outra ele teria tido
algo a dizer acerca de minha ladainha, que ele definira, num aparte súbito, como um de meus
característicos discursos filosofantes, e que teria sido melhor deixar que ele me interrompesse e
lhe deixar fazer um comentário, em vez de seguir ouvindo, desenfreado, meu próprio discurso e
entusiasmar-me com ele, ao menos naquele instante, enquanto ao mesmo tempo tinha
consciência de que em poucos minutos essa minha ladainha me daria terrivelmente nos nervos e
que levaria as mãos à cabeça por praticamente lhe ter dado livre curso, sem embaraço, e ainda
mais na presença de Gambetti, que afinal está autorizado, com razão, a esperar de seu professor
um pouco mais de disciplina do que me era possível naquela hora. Aliás, eu devia dar mais
atenção para não me deixar levar de tal maneira na presença de Gambetti, sobretudo em minhas
escapadas filosofantes, pensara ao caminharmos juntos na Piazza del Popolo, na qual às nove
horas da noite ainda havia tanto movimento quanto, em outras metrópoles, se vê no máximo
pouco antes do meio-dia. Mas não devemos nos envergonhar, dissera Gambetti, quando acontece
de sairmos fora dos trilhos porque assim o quer nossa cabeça, nossa cabeça de fato sempre
excitada quando a animamos a pensar. Gambetti não pudera conter o riso com esse pedido de
desculpa sem dúvida merecido. Como sempre ele nos pediu, muito hábil, muito elegante,
somente meia garrafa de vinho branco e eu pude dar início a minha descrição de Wolfsegg.
Minha observação, como sempre, partia de baixo, do vilarejo. Olhava para o alto. Lá em cima,
dissera a Gambetti, está Wolfsegg, a mais de oitocentos metros de altura, por séculos
inexpugnável, uma fortaleza composta de um chamado edifício principal e diversas
dependências, a casa dos jardineiros, o pavilhão dos caçadores, a feitoria, a chamada orangerie, a
vila das crianças, também um edifício magnífico, que provavelmente foi construído para as
crianças de Wolfsegg trezentos anos atrás, dissera a Gambetti, situado um pouco à parte, na
vertente oriental, mas de onde se abre a mais ampla vista sobre os Alpes. De Wolfsegg se tem,
por sinal, dissera a Gambetti, a mais ampla de todas as vistas sobre os Alpes, de um só golpe se
pode abarcar toda a região entre as montanhas tirolesas e as orientais da Baixa Áustria. Isso não é
possível de nenhum outro ponto na Áustria, dissera a Gambetti. Em Gambetti sempre tive um
ouvinte atento, que com paciência deixava-me desenvolver aquilo que tentava dizer, sem nunca
me importunar, em nossas histórias e relatos somos a maioria das vezes importunados logo no
início, interrompidos, quando menos refreados, com Gambetti não, educado por seus pais a
ouvir, por sua família sempre cheia de tato. Wolfsegg está situada cerca de cem metros acima do
vilarejo, e do vilarejo parte uma única estrada montanha acima, que a todo momento pode ser
bloqueada por uma ponte levadiça, onde uma fenda na rocha separa o vilarejo de Wolfsegg.
Wolfsegg mesma não é visível do vilarejo, um bosque alto e denso a protege há séculos do olhar
daqueles que não devem vê-la. A estrada é uma estrada de cascalho, dissera a Gambetti, subindo
a pique até um muro de três metros de altura, atrás do qual o edifício principal e as dependências
continuam ainda escondidas. Chegando pelo portão aberto, o visitante primeiro vê, à esquerda, a
orangerie com suas vidraças altas, nessa orangerie ainda hoje são cultivadas laranjeiras, dissera a
Gambetti, elas crescem com exuberância graças à localização propícia da orangerie, que recebe
sol o dia inteiro, nela também florescem limoeiros e, como na famosa Casa Imperial das
Palmeiras em Viena, todas as espécies possíveis de plantas tropicais e subtropicais, já de criança
gostava acima de tudo das camélias, dissera a Gambetti, as flores prediletas de minha avó
paterna. A orangerie era para nós o lugar que mais gostávamos de ficar quando crianças, muitas
vezes nela passava metade do dia, sobretudo com meu tio Georg, para que ele me explicasse a
procedência das plantas, o que sempre foi um grande prazer para mim, na orangerie ouvi as
primeiras palavras em latim, dissera a Gambetti, as denominações latinas das várias flores,
cultivadas e criadas em todas as espécies possíveis de vasos pequenos e grandes, cuidados pelos
três jardineiros que sempre tivemos em Wolfsegg. E que ainda hoje eles têm, o que, como você
pode imaginar, Gambetti, dissera, nos tempos atuais é um grande luxo na Europa Central. Meu
primeiro contato com as chamadas outras pessoas fora o contato com os jardineiros, eles eu
observava assim que pudesse e sempre que pudesse e o quanto pudesse. Mas desde o início não
me dava por satisfeito só com as cores suntuosas das plantas, dissera a Gambetti, sempre queria
logo saber também de onde vinham essas cores suntuosas, como elas surgiam e qual era sua
denominação precisa. Os jardineiros de Wolfsegg sempre foram as pessoas mais pacientes,
manavam uma tranqüilidade imensa e viviam com a regularidade e a simplicidade que admirei
como nenhum outro. Pelos jardineiros sempre fui atraído mais que por todos, seus movimentos
eram os rigorosamente necessários, serenos, sempre úteis, sua linguagem era a mais simples, a
mais clara. Maria e Spadolini também sempre foram para mim grandes professores, Gambetti.
Sem que eu jamais lhes tenha dito. Conheci Maria por intermédio de Zacchi, o mediador de
pessoas, o ermitão filosofante, muito viajado, cidadão do mundo, que antes porém já conhecia
Eisenberg, que por seu turno me apresentou a Zacchi. Eisenberg viveu em Roma por três anos
antes de seu período vienense, fugiu da casa de seus pais na Suíça para ir a Viena, onde se tornou
meu amigo íntimo. O período vienense com Eisenberg, pensei agora, depois de minha fuga de
Wolfsegg, que por sua vez devo ao tio Georg, foi decisivo para todo meu desenvolvimento
intelectual posterior, ele tomou uma orientação de todo eisenberguiana, estudar o mundo e, nesse
estudo, decifrá-lo e analisá-lo pouco a pouco. Eisenberg, o coetâneo, foi depois do meu tio Georg
a cabeça decisiva para mim, que deu às minhas idéias a orientação correta. Quando estive com
Maria em Viena, pensei de pé defronte da janela, observando na Piazza Minerva as poucas
pessoas que transitavam agora lá embaixo, serenas, sem nenhuma pressa, passamos nossos dias
praticamente só com e graças a Eisenberg, fomos com ele a Kahlenberg, a Kobenzl, esticamos
até Heiligenstadt. Ele mostrou a Maria as belezas de Viena, introduziu-a à cidade que também
para a existência dela foi decisiva. Com Eisenberg jamais nos entediávamos e estávamos sempre
felizes, disse comigo, desde o começo Eisenberg e Maria haviam tido um relacionamento
filosófico, do qual emanava para mim, que podia observá-lo tranqüilo, sem o menor transtorno
emocional, um grande fascínio, pude estudar nos dois, pela primeira vez, como pessoas de
espírito se compreendem de maneira ideal, e sempre pensei, isso é raro acontecer com os outros.
Maria, que vinha da pequena e ridícula cidade provinciana do sul da Áustria onde nasceu Musil,
com a qual Musil porém, salvo essa circunstância, não teve a vida inteira absolutamente nada a
ver, mas que explorou essa circunstância do nascimento de Musil até às raias do mau gosto, da
cidade funestamente vizinha à fronteira, na qual o nacionalismo e o nacional-socialismo e a
estupidez provinciana sempre deram frutos vulgares, dessa cidadezinha na qual, como demonstra
a experiência, a pequena burguesia bolorenta dava o tom, entregue à estupidez e à megalomania
entre suas fileiras de casas deprimentes, erguidas com inépcia, cravada entre colinas sem
interesse e num clima mais viciado que revigorante, com todo o ridículo de uma cidade habitada
por cerca de cinqüenta mil habitantes que não fazem a menor idéia do mundo, embora como o
centro do mundo se sintam, Maria, de vontade própria, em tudo comparável à minha, que afinal
me afastou de Wolfsegg, partiu de sua cidade de infância, a ela sempre igualmente prejudicial,
rumo a Viena, para lá fixar raízes, como se diz, mas onde as coisas sempre foram dificílimas, já
com todos os poemas futuros na cabeça, como agora pensei de novo, a garota só com uma
malinha de mão e com todas as ilusões dos rebeldes, dos fugitivos, dos que não apenas buscam
uma saída, mas também logo a põem em prática, como eu. Rumo a Viena, da qual após a guerra
todas as cabeças pensantes na província haviam esperado mais do que ela pudesse então cumprir,
pois na época Viena não cumpriu com ninguém o que dela se esperava, nem com Maria,
naturalmente, nem com todos os outros. Viena primeiro se revelou uma tábua de salvação, certo,
mas só por pouco tempo, depois disso paralisou, ontem como hoje, aqueles que nela buscavam e
buscam salvação. Só por brevíssimo tempo Viena é a salvação para os filosofantes, para os
meditativos, para os que encontram estímulo em sua própria cabeça, como sei, como nesse meio
restou milhões de vezes demonstrado. Ir para Viena é estar salvo por brevíssimo tempo, não
mais, o que significa que quem foge para Viena tem de sair de Viena o mais breve possível, pois
se não virar as costas o mais breve possível a essa cidade implacável, completamente
corrompida, sucumbirá, Maria logo compreendeu isso, eu também, Eisenberg é o único de nós
que ainda hoje resiste a Viena, mas Eisenberg é uma pessoa mais rija, com uma cabeça muito
mais lúcida que Maria e eu, pensei, de pé defronte da janela. Uma alma como a de Maria, essas
as palavras de Eisenberg, logo é esmagada em Viena, pensei, de pé defronte da janela, olhando a
Piazza Minerva lá embaixo e, depois, por sobre o Panteão, a janela do apartamento de Zacchi,
que não está em casa, segundo pensei. Maria conseguiu escapulir, primeiro para a Alemanha,
depois para Paris, depois para Roma, ao sabor de seus versos, pensei. Mas ela fez seguidas
tentativas de estabelecer-se em Viena, meteu-se com todo tipo de gente, animou-as para que
tornassem sua volta a Viena possível, mas sempre que chegava efetivamente a hora de voltar a
Viena, tudo ia por água abaixo, então todos esses planos relativos a Viena se frustravam, com as
pessoas que por exemplo lhe haviam arranjado um apartamento ela era grossa, vários desses
apartamentos de uso vitalício, como sempre dizia, ela os descartou antes mesmo de se mudar. Ela
se deixou atrair a Viena por muita gente horrível, sobretudo do Ministério da Cultura, e por essa
gente de natureza imunda, sou obrigado a dizer, deixou-se mesmo enganar, porque ela nunca
quisera acreditar que, como eu sempre lhe dizia, toda essa gente que a atraía a Viena tinha uma
natureza imunda, não um verdadeiro interesse por ela, mas só pelos seus próprios objetivos de
todo sórdidos e baixos, que essa gente tomava Maria, sem mais, como pretexto para se tratar com
regalo, para ser útil a si própria valendo-se do nome de Maria, que nesse meio tempo se tornou
famoso; conhecia muito bem essa gente, pensei agora, mas ela, em razão de um falso
sentimentalismo por Viena, uma cidade absolutamente fria e de fato, ao contrário da opinião
comum, brutal e sem sentimentos, foi enganada por toda essa gente, porém só até o momento
decisivo em que os rejeitou, em que, como se diz, mandou-os plantar batatas, de Roma, onde
afinal ela se sentiu melhor do que nunca em seu apartamento. Uma hora ela me dizia, no fundo
quero voltar para Viena, mas depois, muitas vezes nem dois minutos mais tarde, exatamente o
contrário, com a mesma convicção me dizia, no fundo não quero voltar para Viena, no fundo
quero ficar em Roma e quero mesmo morrer em Roma. Maria dizia muitas vezes que queria
morrer em Roma, pensei. Ela era obrigada por seu bom senso a ficar em Roma, na verdade a
amar Viena mas a ficar em Roma, pensei. Mas passadas algumas semanas depois de ter sido
grossa, como se diz, com toda a gente em Viena que lhe arranjara apartamentos, que de fato lhe
abrira todas as chamadas portas importantes de Viena, ela começava de novo a falar em retornar
a Viena em definitivo, que era sua pátria, coisa que eu próprio só rebatia sempre com uma
risada, pois a palavra pátria em sua boca sempre foi tão grotesca quanto na minha, só que eu
nunca a pronuncio, porque ela me é repulsiva demais para ser usada, enquanto Maria continuava
a buscar refúgio nessa palavra, ela também sempre dizia da palavra pátria que era a mais
sedutora. Então voltava ela a escrever para essa gente de Viena nos diversos ministérios, fazia
visitas à embaixada austríaca ou ao Instituto Austríaco de Cultura na Bruno Buozzi, esse palácio
pomposo perto da Flaminia, na qual a desrazão austríaca, com todas as suas nuanças, tem sua
sucursal romana desde quando esse edifício existe, ia às chamadas tertúlias dos chamados poetas
austríacos e a todas as palestras pseudocientíficas possíveis que são proferidas por todos os
pseudocientistas austríacos possíveis na Bruno Buozzi, até mesmo aos chamados recitais de
canto, que lá são regularmente organizados com antigos cantores austríacos afamados, que faz
anos não têm mais voz, só um grasnido senil cujos efeitos ao ouvido italiano só podem ser
atrozes, irreparáveis. Maria, que quer ser romana e ao mesmo tempo vienense e a partir desse
perigoso estado emocional e intelectual escreve seus grandes versos, pensei. O sonho do Ao
Ermitério, que de sua parte causou nela grande impressão, me trouxe Maria à lembrança e eu me
regalei pensando nela, de pé defronte da janela, olhando a Piazza Minerva lá embaixo. O que
seria Roma para mim sem ela, pensei. Uma sorte que eu só tenha de dar alguns passos para me
revigorar com sua presença, uma sorte que ela exista. As conversas com ela são sempre as de
maior efeito, ao mesmo tempo as mais agradáveis de todas. Estar com Maria é sempre
estimulante, sempre excitante mesmo, quase sempre uma felicidade, pensei. Maria tem sempre as
melhores idéias e de fato também para Gambetti ela é sempre, como ele diz, um acontecimento.
Ela não poupa nada em seus pensamentos, pensei. Em seus poemas ela é cem por cento, pensei,
enquanto esse jamais é o caso nas criações de suas colegas, rivais que, como sei, intrigam sem
parar contra ela, sejam tão famosas quanto queiram. Em cada verso que escreve ela é por inteiro,
tudo é dela. Só com Spadolini aprendi a ver e a observar devidamente, disse a Gambetti, com
Maria a ouvir. Os dois me instruíram a ser quem sou agora. Depois falei com Gambetti sobre o
fato de que Spadolini nunca hesitou em aceitar dinheiro de minha mãe, mesmo para seus
objetivos mais pessoais, com esse dinheiro ele pôde satisfazer sua vaidade, disse a Gambetti,
minha mãe lhe enviava todo ano quantias polpudas, que sem dúvida provinham do capital de
Wolfsegg. Provavelmente, disse a Gambetti, até com a conivência de meu pai, que fazia de tudo
para sossegar minha mãe, que da parte dele não hesitava em viajar à Itália por assim dizer a três,
portanto junto com minha mãe e Spadolini, por assim dizer como testemunha-chave dessa
relação insólita, na qual, o que teria sido mais fácil de entender, não Spadolini, senão meu pai
fazia o papel de espectador. Mas meu pai sempre foi tão fascinado por Spadolini quanto eu, ele
não quis abrir mão dele, em hipótese alguma, disse a Gambetti. Spadolini não é uma pessoa de
quem se possa abrir mão, seja lá como vejamos uma tal pessoa, dela não abrimos mão, por maior
estrago que ela cause, disse a Gambetti. De súbito me passou então pela cabeça que era
extremamente peculiar que eu ensinasse a Gambetti justo a literatura alemã, justo a literatura
alemã e a austríaca e a suíça, a dita literatura de língua alemã, como todos sempre formulam de
modo terrivelmente infeliz, que no fundo eu não posso amar, que sempre julguei inferior à russa,
à francesa, mesmo à italiana, e se não era um erro ensinar justo a literatura não amada, só
porque acredito poder falar sobre ela melhor que de uma outra. A literatura alemã, disse a
Gambetti, mesmo em seus vértices absolutos, nunca é equiparável às literaturas que amo, como a
russa ou a francesa e a espanhola, à italiana também não. A bem dizer a própria língua alemã é
feia, uma língua, como disse, que não só pressiona contra o chão tudo o que se pensa, mas que,
com seu peso, falsifica tudo de maneira efetivamente sórdida, ela não tem condição alguma de
refletir efetivamente uma verdade como verdade efetiva, falsifica tudo por natureza, é uma língua
crua, sem nenhuma musicalidade, e não fosse ela minha língua materna, não a falaria, disse a
Gambetti, com que precisão o francês capta tudo, mesmo o russo, até mesmo o inglês, disse, para
não falar do italiano e do espanhol, tão agradáveis ao ouvido, enquanto o alemão, embora seja
nossa língua materna, soa sempre estranho e devastador aos ouvidos. Para uma pessoa musical e
matemática como eu e como você, Gambetti, disse a ele, a língua alemã é um verdadeiro
suplício. Quando a ouvimos, ela é irritante, nunca bela, canhestra, pesadona mesmo quando
achamos tê-la assimilado como grande arte. A língua alemã é completamente antimusical, disse a
Gambetti, é sórdida e ordinária como o diabo, e, por essa razão, assim também sentimos nossas
obras literárias. Os poetas alemães sempre tiveram à disposição somente um instrumental bem
primitivo, disse a Gambetti, com isso eles têm cem vezes mais dificuldade que todos os outros.
Fazemos um cálculo e ele não dá certo, disse agora comigo ao observar as fotografias da família,
um acidente o manda pelos ares. Os rostos sardônicos de minhas irmãs na foto que as mostra em
Cannes são minhas irmãs, sempre as vejo somente como esses rostos sardônicos que elas têm,
não importa quando e onde e em qual relação com elas eu as veja, sempre vejo somente seus
rostos sardônicos, são eles que tenho na cabeça quando quer que pense em minhas irmãs, são
esses rostos sardônicos que guardei para mim na gaveta de minha escrivaninha romana, não os
outros, que afinal elas também sempre tiveram, os rostos tristes, os orgulhosos, os presunçosos,
os arrogantes como o diabo, não, esses sardônicos, e quando falo de minhas irmãs, não falo
sobre minhas irmãs como de fato são na realidade, dissera uma vez a Gambetti, mas sobre esses
rostos sardônicos de minhas irmãs, tal como o acaso, como se diz, as captou nessas fotografias.
Estivessem mortas, disse comigo, delas não teria conservado nada mais que seus rostos
sardônicos. Eu as ouço rir em sonho, mas várias vezes também, quando caminho por Roma, ouço
de total inopino sua risada peculiar, que conta com uma vida longa, e no mesmo instante só vejo
seus rostos sardônicos, delas nada mais. Elas dizem algo e eu reflito sobre o que elas disseram e
vejo seus rostos sardônicos e me digo, esses rostos sardônicos elas têm de nossa mãe, que
também tem esse rosto sardônico, porém duplicado em minhas irmãs, disse comigo, o efeito é
grotesco, pavoroso mesmo. Fiz muitas vezes a tentativa de me separar desses rostos sardônicos
de minhas irmãs, dissolvê-los em outros rostos, não sardônicos, mas nunca tive sucesso. Não
tenho irmãs, disse comigo, tenho só seus rostos sardônicos, não tenho nem Caecilia nem Amalia,
tenho só dois rostos sardônicos em sua pavorosa rigidez fotográfica. Elas queriam estar belas,
jovens, causar uma impressão de felicidade, disse comigo ao observar a foto, e nela só estão feias
e de fato não mais jovens, se bem que ainda muito jovens, já bem velhas e no fundo
profundamente infelizes para a chamada posteridade da foto. Se tivessem sabido que só restariam
seus rostos sardônicos e a impressão de fato infeliz que sem dúvida causam na foto ao
observador, elas não se teriam deixado fotografar, mas elas se meteram à força nessa fotografia,
disse comigo, lembro exatamente, queriam porque queriam, fizeram então essa pose, apertadas
uma contra a outra, fingindo alegria e espontaneidade, uma naturalidade que elas, no momento
em que a foto foi tirada, pensavam lhes ser inata, quando na verdade foi um artificialismo
pavoroso, despido de toda naturalidade, que as deformou de modo tão cruel. Como me lembro,
só tirei essa foto a contragosto. Mas não cabe a mim a culpa por essa foto inclemente, disse
comigo, cabe a elas, a minhas irmãs, pois elas me obrigaram a essa foto e com isso, coisa que
nem elas nem eu teríamos podido saber, impingiram-me por assim dizer seus rostos sardônicos
pelo resto da vida. Não consegui mais me livrar de seus rostos sardônicos, todas minhas
tentativas nesse sentido sempre fracassaram, uma vez tive a idéia de destruir a foto, rasgá-la,
queimá-la, isso no entanto eu nunca chegava a fazer, porque me parecia ridículo recorrer à
destruição nesse caso, que representa como que o exemplo típico de um ridículo insignificante,
dizia comigo, e repunha a foto junto com as outras fotos na gaveta da escrivaninha. Não são as
minhas irmãs que me perseguem dia e noite, disse comigo, são seus rostos sardônicos que dia e
noite não me deixam em paz, que muitas vezes dias a fio, semanas a fio me torturam. Captamos
só um entre milhões e bilhões de momentos de duas pessoas com o meio diabólico da fotografia,
disse comigo, e a vida inteira culpamos essas duas pessoas fotografadas por causa desse único
momento, que mostra seus rostos sardônicos. Tenho porém irmãs, não só seus rostos sardônicos,
disse comigo, e com esse pensamento absurdo levei as mãos à cabeça. Tenho irmãs em
Wolfsegg, não só dois rostos sardônicos, que, como sempre acho, estão contra mim em todos os
sentidos. Agora um dos rostos sardônicos casou, tive de dizer comigo coerentemente, com esse
fabricante de rolhas para garrafas de vinho de Freiburg im Breisgau, esse tipo esquisito que, na
minha opinião, tem sobre os ombros uma cabeça pequena demais para seu corpo crescido à beça
para os lados, balofo. Um dos rostos sardônicos tem um marido, um esposo, o outro rosto
sardônico não, e porque o outro tenha, retirou-se por esse motivo à casa dos jardineiros, odiando
por assim dizer o contra-rosto sardônico que se casou subitamente, da noite para o dia. Mas
nunca consegui ver os dois rostos sardônicos de minhas irmãs separados, por mais que me
esforçasse nesse sentido não conseguia, logo voltava a ver sempre só os dois rostos sardônicos de
minhas irmãs juntos. A foto mostra dois rostos sardônicos, disse comigo, mas será que minhas
irmãs têm de fato esses rostos sardônicos? perguntei comigo. Será que têm esses rostos
sardônicos na realidade? Será que não os tiveram, esses rostos sardônicos, só no momento em
que a chamada foto de Cannes foi tirada? Talvez só tenham tido de fato esses rostos sardônicos
naquele único momento em Cannes, disse comigo, e nunca mais, e agora eu acho que sempre
tenham tido, que sempre só tenham tido esses rostos sardônicos como na foto de Cannes. A
fotografia é de fato a arte diabólica de nosso tempo, disse comigo, anos a fio e décadas a fio e a
vida inteira nos faz ver rostos sardônicos, quando na verdade tais rostos sardônicos só existiram
uma única vez, só por um único momento numa foto que tiramos de maneira absolutamente
impensada, cedendo a um capricho repentino. E esse capricho repentino tem depois um efeito
devastador, terrível mesmo, que dura a vida inteira. Um efeito não mais suprimível, no qual por
vezes somos levados às raias do desespero. Não posso mais suprimir esses rostos sardônicos de
minhas irmãs, dissera uma vez a Gambetti, a quem falei com muita freqüência, provavelmente de
maneira repulsiva, dos rostos sardônicos de minhas irmãs, que de fato sempre desempenharam
um papel importante em minha existência, desde que a foto foi por mim tirada. Essa foto
devastadora, dissera muitas vezes a Gambetti. Nesse caso se trata dos rostos sardônicos de
minhas irmãs, que não posso mais suprimir, não posso mais tirar de minha cabeça, dissera a
Gambetti, mas o mesmo nos acontece com outras fotos, ainda que com um efeito não tão brutal,
por exemplo com fotos de conhecidos e celebridades que classificamos como importantes, pense
só na foto que mostra Einstein com a língua de fora. Não posso mais visualizar Einstein sem que
ele esteja de língua de fora, Gambetti, dissera a ele. Não posso pensar em Einstein sem que veja
sua língua, essa língua maligna, velhaca, Gambetti, que ele mostra ao mundo inteiro, ao universo
inteiro. E não posso visualizar Churchill sem seu lábio inferior espichado em sinal de
desconfiança. Embora a probabilidade seja enorme de que Einstein só tenha mostrado sua língua
uma única vez, pelo menos dessa maneira maligna e velhaca, de que Churchill só nesse único
momento no qual essa foto foi tirada tenha espichado seu lábio inferior dessa maneira
desconfiada. Eu leio os escritos de Churchill, dissera a Gambetti, e só vejo continuamente o lábio
inferior de Churchill espichado em sinal de desconfiança, eu leio algo de Einstein e fico
completamente obcecado pela língua de fora que ele mostra ao mundo inteiro e, como disse, ao
universo inteiro. E chego até a acreditar que não foi Churchill que escreveu essas memórias, mas
seu lábio inferior espichado em sinal de desconfiança, não foi Einstein que disse essas frases
sensacionais, mas sua língua de fora. Já pensei uma vez, dissera a Gambetti, se me seria possível,
com a redação de um escrito sobre os rostos sardônicos de minhas irmãs Amalia e Caecilia, me
livrar de seus rostos sardônicos, mas esse pensamento foi naturalmente abandonado por mim,
porque logo se revelou um dos mais absurdos de todos. Nunca vou poder me livrar dos rostos
sardônicos de minhas irmãs, dissera então a Gambetti, com esses rostos vou ter de conviver,
levar minha existência enquanto dure. Embora pudesse ser incrivelmente útil redigir um escrito
com o título: Os rostos sardônicos de minhas irmãs. Mas para quê? dissera então a Gambetti. Já
teria mesmo de sofrer do mais extremo tédio para redigir um tal escrito, Gambetti. Disso sempre
me impediram os próprios rostos sardônicos de minhas irmãs, dissera a ele, que não me
deixavam em paz, até onde consigo lembrar. Naturalmente é absurdo achar que, se rasgo a
fotografia com os rostos sardônicos de minhas irmãs, estou livre de seus rostos sardônicos. Se
destruo a fotografia simplesmente lhe tocando fogo. Retalhando-a com a tesoura em milhares de
minúsculos retalhos. Isso só faria então com que me atormentassem com intensidade tanto maior,
Gambetti. E meus pais na segunda foto, disse comigo, dão somente uma impressão lamentável,
tudo menos boa, uma impressão ridícula, cômica, ao subirem no trem para Dover na estação
Victoria de Londres. Sem bagagem, só com seus guarda-chuvas da Burberry nos braços, meu pai
em suas bombachas de trinta anos, que ele comprara antes da guerra em Viena, no elegante
estabelecimento do senhor Habig na Kärntnerstrasse, e nas quais ele circulou durante todo o
período nazista. Ainda o vejo sempre nessas bombachas, disse comigo, até onde consigo
lembrar. Mesmo quando usa outra calça bem diferente, para mim ele veste essas bombachas do
senhor Habig. Ele diz sem parar Heil Hitler nessas bombachas de Habig, que provavelmente
custaram muito caro, pois não ficam puídas. De fato elas são elegantes, disse comigo, mas não
em meu pai, nele elas parecem ridículas. Nessas bombachas de Habig ele recebeu já na entrada
do pátio o gauleiter de Salzburgo e logo o conduziu às cavalariças, porque pensava que isso
causaria no gauleiter a melhor das impressões, demonstraria de imediato a magnificência de
Wolfsegg e sua própria magnificência como nada mais. E recebia o arcebispo nessas bombachas,
o que era de mau gosto, mas bem condizente ao período nazista. Lá estavam eles, subindo no
trem em Londres, e minha mãe estica o pescoço e seu chapéu assim, de maneira grotesca, só se
equilibra muito precariamente em sua cabeça, disse agora comigo, provavelmente só por um
alfinete. Por que tenho justo essa foto de meus pais em minha escrivaninha, não outra, essa foto
ridícula, cômica, que mostra meus pais de maneira ridícula e cômica e não outra, quando na
verdade eles nem sempre foram ridículos e cômicos, disse comigo, a maior parte do tempo eram
absolutamente diferentes, em nada ridículos e cômicos, antes severos e distantes e
calculadamente frios. Enquanto seus guarda-chuvas da Burberry pendurados nos braços pendiam
verticalmente ao solo, eles próprios tinham a postura inclinada de quem embarca num trem. Na
foto eles também parecem tão cômicos e ridículos sobretudo porque têm essa postura inclinada
em contraste com os guarda-chuvas da Burberry verticalmente pendentes ao solo, a lei da
gravidade os torna nesse momento cômicos e ridículos, disso eles naturalmente não sabem nesse
momento em que são fotografados. Eles não queriam então ser fotografados e foram
fotografados por mim. Havia centenas de fotos de meus pais que me pertenciam, mas que eu
destruí todas, joguei fora, só essa única guardei para mim e depositei em minha escrivaninha,
esta, na qual eles estão ridículos e cômicos, por quê? perguntei comigo. Provavelmente eu queria
ter pais ridículos e cômicos na foto que guardo para mim, disse comigo. Queria também ter uma
foto de meu irmão na qual ele não fosse retratado tal como é de fato, senão uma que o mostrasse
ridículo, como eu quero vê-lo, numa pose ridícula em seu barco a vela no Wolfgangsee, aquele
homem sem dúvida bem-apessoado, de súbito ridículo, insignificante, perverso, estúpido mesmo,
indefeso, a não ser levado a sério. Sempre quisera ter só essa única foto de meu irmão, que o
representa de modo ridículo, dissera uma vez a Gambetti, quisera ter um irmão ridículo, um
irmão cômico, assim como pais ridículos, cômicos, não irmãs, só seus rostos sardônicos,
Gambetti, essa é a verdade. Todos nós temos uma natureza diabólica, que se mostra até mesmo
em tais ninharias, como dizemos, tais trivialidades como as fotografias que colecionamos. Nossa
baixeza é assim demonstrada, nossa sordidez, nosso descaro. E isso por nenhum outro motivo
senão nossa fraqueza, pois, para sermos honestos, temos de admitir que nós próprios somos
muito mais fracos do que aqueles a quem queremos ver como fracos, muito mais ridículos do
que aqueles a quem queremos ver como ridículos, cômicos, sem caráter. Somos nós antes de
tudo os sem caráter, os ridículos, os cômicos, os perversos, Gambetti, não o inverso. Ao
conservar essas fotos dos meus, e não outras, ainda mais em minha escrivaninha, para que possa
a todo instante observá-las, eu por assim dizer documento minha sordidez, meu descaro, minha
falta de caráter. Basta sempre apenas abrir a gaveta da escrivaninha para me deliciar à vista de
minhas irmãs impossíveis com seus rostos sardônicos, dissera uma vez a Gambetti, para me
deliciar com o ridículo de meus pais, com a postura infeliz de meu irmão, para assim me
fortalecer num acesso de fraqueza, ao retirar as fotos da gaveta da escrivaninha e observá-las e,
devo dizer, tranqüilizar-me com essa sordidez. Como o homem é baixo, é o que vemos nesse
exemplo. Descrevemos os outros como sórdidos e baixos e procuramos para isso todo o tipo de
argumento e nós próprios o somos, numa proporção muito mais grave. Quando deveríamos
esconder nós mesmos em forma de foto ridícula e cômica na gaveta da escrivaninha, escondemos
os nossos, para se preciso deles nos servir em benefício de nossos objetivos bem sórdidos,
dissera a Gambetti. Naturalmente, dissera a ele, existem pessoas que guardam fotos dos seus
retratados numa luz amena, mas eu não sou desses, guardo para mim as fotos cômicas, as
ridículas, porque no fundo sou uma pessoa fraca até a medula e portanto também um caráter
fraco até a medula. Sem contar o fato de que toda foto seja uma falsificação sórdida, existem
porém aquelas que guardamos por assim dizer em honra dos nelas retratados, por amor a eles, e
aquelas que por sordidez e ódio aos nela retratados colocamos em nossa escrivaninha ou
penduramos na parede. Infelizmente devo dizer que faço parte incondicional dessa última
categoria, dita abjeta. Numa certa idade, dissera a Gambetti, lá pelos quarenta, conseguimos
muitas vezes nos apresentar como realmente somos, com todas nossas baixezas, coisa que antes
dessa idade nunca nos passaria pela cabeça. A partir dessa idade deixamos às vezes que se olhe
dentro de nós de maneira aterradora. Em minha idade, Gambetti, já abrimos bem as cortinas por
trás das quais, de tão hermeticamente cerradas durante décadas, quase sufocamos. Um dia elas
estarão abertas de par em par, dissera a Gambetti. Como será que vão reagir minhas irmãs,
pensara, quando me deparar agora com elas, por assim dizer como executor testamentário e
herdeiro? Será que agora também vão me receber daquela maneira insolente, como sempre me
pareceu? Não me atrevi a estender esse pensamento, cuidei para não fazê-lo. Os sobreviventes,
minhas irmãs e eu, disse comigo. Sobreviveram justamente aqueles que nunca se pensou
pudessem sobreviver. Pois de mim sempre pensaram que sucumbiria rápido ao que sempre
chamaram minha falta de ar, num lugar ou noutro, só não em Wolfsegg, é possível e provável,
pensei agora, que fossem eles que sempre esperassem um telegrama com a notícia de que eu
estivesse morto. E sobreviveram minhas irmãs, aquelas que, por sua absoluta irrelevância, como
dizia sempre minha mãe, não entravam em consideração em nenhum pensamento realmente
fundamental e existencial. Mas eu nunca esperei um telegrama com a notícia de que meus pais
estivessem mortos. Muitos sempre temem um tal telegrama, um tal telegrama eu jamais temi.
Milhões, entra dia, sai dia, vivem constantemente na angústia de um tal telegrama, dissera muitas
vezes a Gambetti, que lhes participe a morte daqueles que amam ou respeitam. Eu jamais temi
um tal telegrama. Quando vemos fotografias como essas que colocara agora sobre minha
escrivaninha, pensamos que os retratados nessas fotografias, ao menos nessas fotografias, não
são perigosos para nós, enquanto na realidade os perigosos são provavelmente eles. Os letais. Os
retratados nas fotografias têm no máximo dez centímetros de altura e não nos contradizem nem
sequer uma vez. Nós lhes dizemos na cara as maiores barbaridades e eles não nos contradizem
nem sequer uma vez, avançamos contra eles e eles não se defendem, podemos lhes dizer na cara
o que quisermos, eles não se mexem. Mas é justamente isso que nos põe em fúria e nos deixa
ainda mais raivosos. Maldizemos os das fotografias porque eles não nos objetam o mínimo que
seja, quando porém não há nada que esperamos tanto, nada de que dependemos tanto, como sua
objeção. Lutamos por assim dizer com anões reduzidos a escalas microscópicas e ficamos
doidos, dissera uma vez a Gambetti. Esbofeteamos anões reduzidos a escalas microscópicas e
fazemos assim tudo ficar maluco dentro de nós. Deixamos até mesmo nos arrebatar, dissera a
Gambetti, a ponto de insultar cabeças que têm apenas um centímetro de diâmetro, Gambetti, e
nos expomos assim completamente ao ridículo. Observo meus pais na foto em que eles, nem dez
centímetros de altura, sobem no trem para Dover na estação Victoria e os insulto, eu digo, que
criaturas ridículas vocês sempre foram, e nem percebo nesse instante como assim me torno
ridículo a mim mesmo, muito, muito mais ridículo que meus pais jamais puderam ser, como eles
nunca foram, Gambetti. Seu idiota, digo a meu irmão de nem dez centímetros de altura, irmãs
perversas, a elas, que não têm nem oito centímetros de altura no terra ço em Cannes. Tirar uma
fotografia é zombar de uma pessoa, Gambetti, dissera, nesse sentido todos os que fotografam,
mesmo se fizerem disso uma profissão e provavelmente até uma grande arte, nada mais são que
zombeteiros da humanidade. A fotografia em si é a maior zombaria que existe, por assim dizer a
maior de todas as zombarias do mundo. Mas hoje, dissera a Gambetti, já existem cem vezes mais
pessoas fotografadas do que reais, vale dizer naturais, isso deveria dar o que pensar. Estou
contente, dissera a Gambetti dois dias atrás, após meu regresso de Wolfsegg, de estar novamente
aqui, de ter escapado por algum tempo ao norte e a suas imbecilidades. Às garras de minha
família, sobretudo às exaltações de minha mãe, aos eternos resmungos de meu pai, ao mau tempo
daquele país. Três quartos do ano temos tempo ruim, e quando achamos que chegou a primavera,
ainda leva meses até que ela se torne realidade, para logo após se fundir com o verão, que está
cada vez mais curto. E o outono, em princípio a estação mais bela, dá o que fazer a todas as
pessoas nesse país dominado pelo clima ruim, ora elas têm gota ora têm reumatismo, já em
outubro ele as lembra, com suas freqüentes tempestades e seu frio gélido, que sua existência está
constantemente ameaçada. Para não falar dos invernos, que tornam tudo insuportável se o sujeito
passou dos trinta. Mas a gente daqui não sabe em que região climática ímpar ela vive, toda ela só
suspira sempre pelo frio do norte, pelos pinheiros, pelos lagos de montanha, pelas revigorantes
montanhas alpinas. Veja você, Gambetti, uns suspiram pelo sul, outros pelo norte, assim estão
todos sempre, ao menos em grande medida, igualmente infelizes. No momento eu desfruto
porém esse ar refrescante mas quente, essas pessoas barulhentas mas agradáveis, sua
despreocupação, dissera. Em Wolfsegg usei o sobretudo de inverno, aqui ando de camisa aberta
com o pulôver nas costas. Eis a diferença. A gente aqui não é oprimida com quilos de peças de
roupa, com sapatos pesados, com casacos pesados, com grossos chapéus de feltro, ela anda pelas
ruas e senta para comer ao ar livre quase o ano inteiro. Ainda ouço meu Por um bom tempo!
pensei, com o que quisera dizer, por um bom tempo não voltarei a Wolfsegg, ao passo que agora
sou obrigado pelo telegrama a retornar a Wolfsegg o mais breve possível. Porém agora
acreditava poder adiar essa coisa óbvia pela inércia absoluta, ao simplesmente permanecer
sentado à escrivaninha e observar as fotografias, submetendo-as a uma observação mais
profunda e não apenas minuciosa, o tempo inteiro não as tirara dos olhos, o telegrama eu pusera
ao lado delas, aberto, o texto lacônico com a notícia das mortes constantemente diante de mim,
soletrando-o seguidas vezes, assim me pareceu, até às raias da loucura. Ao contrário de mim,
meu irmão era uma pessoa quieta, em Wolfsegg eu sempre fui o espírito inquieto, ele a quietude
em pessoa. Ele sempre foi definido como o contente pelos meus pais, eu sempre como o
descontente. Se aprontávamos algo juntos, eles punham toda a culpa nas minhas costas, como se
diz, não nas dele, nele eles acreditavam quando se justificava, em mim não. Se por exemplo eu
perdesse o dinheiro que por alguma razão me fosse confiado, eles não acreditavam que o tivesse
perdido, por mais que eu jurasse, pensavam antes que eu só fingia ter perdido o dinheiro e metera
o dinheiro no bolso, enquanto no meu irmão acreditavam de imediato que ele tivesse perdido o
dinheiro. Havia se perdido na floresta, lhes dizia ele por exemplo, e na hora acreditavam nele,
dissesse eu a mesma coisa, não acreditavam em mim, em hipótese alguma, eu tinha sempre de
me justificar longa e energicamente. Uma vez meu irmão me jogou na lagoa que fica atrás da
vila das crianças, involuntariamente ou não ele me empurrou ao passar a meu lado, pois nós dois
brincávamos sobre a mureta da lagoa, que não é larga, e sobre essa mureta da lagoa dois não
podem passar. Fiz um esforço tremendo para me manter à superfície da água e não afundar, de
fato achei que me afogaria e ao mesmo tempo achei também que provavelmente meu irmão me
jogara no lago de propósito, e não sem querer ou por falta de jeito, esse pensamento me
verrumou enquanto lutava pela minha vida na lagoa. Meu irmão não tinha condições de me
salvar sem pôr a si mesmo em risco, de fato sem pôr em risco a sua vida. Como é natural, ele fez
várias tentativas para me ajudar, mas essas tentativas foram inúteis. A lagoa é funda, e é
inevitável que uma criança submerja e se afogue, caso não consiga se manter à superfície, dissera
a Gambetti. No instante em que tive certeza de que me afogaria, consegui me segurar a uma
argola de ferro fixada ao muro sob a água, destinada a amarrar os pequenos botes que tínhamos
na lagoa, e pude me alçar para fora. Chegando em casa, quando meus pais quiseram saber por
que eu estava molhado da cabeça aos pés, e eu lhes disse não a verdade, mas de fato uma
mentira, dizendo, para proteger meu irmão, que eu caíra na lagoa por uma infelicidade, eles
disseram na hora que eu me atirara deliberadamente na lagoa, para pôr meu irmão em maus
lençóis. Quando disse, não, eu caíra por puro acidente, eles me insultaram, me chamaram de
mentiroso, puxaram meu irmão contra si, como se quisessem protegê-lo, e me escorraçaram com
as roupas ainda molhadas para a cozinha, a fim de que lá pudessem me vestir com roupas limpas
e secas. Meu irmão ficara o tempo inteiro calado e não dissera uma só palavra, não dissera a
verdade e nem ao menos que eu caíra na lagoa sem nenhuma culpa, ele observou a triste cena e
não fez menção de esclarecer algo ou de livrar minha cara, pelo contrário, pressionava sua
cabeça, como se buscasse proteção, contra a saia de minha mãe, o que só fazia piorar ainda mais
as coisas para mim. Se eu caísse e rasgasse as meias, eles logo me insultavam por causa das
meias rasgadas, mas não pensavam em me consolar porque também esfolara o joelho e sangrava
e estava com muita dor, insultavam-me horas a fio e à noite, quando eu próprio já esquecera
minha desventura, lá se punham eles de novo a me insultar, como se tivessem prazer em me
insultar e me levar às lágrimas. Meu irmão eles consolavam quando ele tinha machucados à-toa,
a mim nem sequer se chegasse com machucados feios. Porque para eles eu freqüentasse demais
os jardineiros e lá passasse sempre muito tempo, ralhavam comigo seguidas vezes, porque não
queriam que eu freqüentasse os jardineiros, que, como achavam, exerciam má influência sobre
mim, queriam que eu freqüentasse os caçadores, a quem atribuíam sobre mim uma boa
influência, porém eu odiava os caçadores, como disse, e freqüentava sempre os jardineiros, que
eu amava, e eles me insultavam toda vez que vinham a saber que eu estivera com os jardineiros e
ao mesmo tempo insultavam também os jardineiros, porque, como diziam, haviam me dado
atenção, os jardineiros, que a eles sempre pareceram extremamente prejudiciais a mim, palavras
de minha mãe. Freqüentasse meu irmão os caçadores, toda vez eles lhe diziam, bom que você
tenha estado com os caçadores, gostamos de ver, e isso sempre de modo que eu fosse obrigado a
ouvir e quando estivessem certos de que me magoariam. Quando estive uma vez com os
caçadores, porque por uma razão qualquer não quisera ir ter com os jardineiros, não sei mais ao
certo a razão, e ao ser perguntado por eles onde estivera, respondi, com os caçadores, eles não
acreditaram em mim e me estapearam na presença de meu irmão, que sabia exatamente que eu
estivera com os caçadores, pois ele estivera com os caçadores comigo, e meu irmão se calou, não
disse, para vir em meu auxílio, a verdade. Sem mais ele também permaneceu calado quando
minha mãe me deu um tapa pela mentira, como ela supunha, embora eu tivesse dito a verdade.
Mesmo quando já era adulto não havia jeito de meus pais acreditarem em mim, como me lembro.
Quando eu tinha visita e eles me perguntavam o nome da visita, quem tinha afinal me visitado, e
eu lhes dizia o nome da visita e, precisamente, quem tinha me visitado, eles não acreditavam em
mim, diziam sempre que bem sabiam quem tinha me visitado, em todo caso não a pessoa de
quem eu afirmasse ter me visitado. Fosse eu a Wels e eles perguntassem aonde tinha ido e eu
lhes respondesse, a Wels, eles diziam que eu não tinha ido a Wels, que sabiam aonde de fato
tinha ido, a Vöcklabruck, a Linz, a Steyr, só não a Wels, e não havia Cristo que os convencesse
do contrário. Nunca acreditavam em nada do que lhes dissesse, sempre que tinham somente
diante de si, na minha pessoa, não apenas um mentiroso típico, mas, como sempre dissera a
minha mãe, um mentiroso nato. Afinal o que você faz o tempo inteiro na biblioteca?
perguntavam quando eu saía da biblioteca, seja lá de qual de nossas cinco bibliotecas, que no
fundo lhes eram suspeitas, e de fato eu era entre eles o único que ia repetidas vezes a uma de
nossas bibliotecas. Para ler é que não é! eles diziam e me pediam explicações. De nada adiantava
que eu lhes jurasse ter de fato ido à biblioteca com o único propósito de ler. Você vai à biblioteca
para poder cultivar teus pensamentos aberrantes, dizia sempre minha mãe, e não levava em
consideração que eu dissesse continuamente, não, fui à biblioteca para ler, por mais nenhum
motivo, e lá não fiz nada além disso. Continuamente eu jurava ter estado na biblioteca só para
fins de leitura, lá ter permanecido para fins de leitura. Porém ela não dava descanso, me
qualificava de mentiroso e afirmava ininterruptamente que eu estivera na biblioteca para cultivar
meus pensamentos aberrantes. Quando lhe perguntei o que ela entendia por pensamentos
aberrantes, chamou-me, como tantas vezes nos primeiros anos de minha infância, de criador de
caso, sem responder a minha pergunta, eu era insolente e mentiroso, dissera ela ainda, e me
deixara simplesmente falando sozinho. A todo momento ela suspeitava que eu cultivasse esses
pensamentos aberrantes, sem que provavelmente ela própria jamais soubesse o que fossem esses
pensamentos aberrantes, mas ela se acostumara a repreendê-los a mim, mesmo em público eu
não estava seguro, também na presença de gente de fora que estava à mesa ela dizia, a maioria
das vezes até diante daqueles que sempre me foram mais repulsivos, aqueles sujeitos da chamada
classe média das cidadezinhas circunstantes, que ela conhecia da infância e com os quais sempre
manteve contato regular, que eu cultivava meus pensamentos aberrantes. Devo dizer que minha
mãe amava meu irmão Johannes sobretudo porque ele nunca sentiu necessidade de ir a uma das
bibliotecas, a todo momento ela dizia também, Johannes não vai à biblioteca para cultivar
pensamentos aberrantes, ele vai ao pavilhão dos caçadores, onde é divertido. Mas a diversão no
pavilhão dos caçadores, para meus princípios e segundo minha experiência, sempre foi bastante
sórdida e infame, os caçadores tinham uma diversão sórdida e infame que consistia em contar
incessantemente piadas sem graça e de todo vulgares, que eu nunca pude achar divertidas sem ter
a sensação de me emporcalhar, esse também foi sempre o principal motivo pelo qual eu execrava
o pavilhão dos caçadores, enquanto essas piadas sem graça e de todo vulgares e abissalmente
primitivas no pavilhão dos caçadores sempre agradaram a minha mãe, nada a deliciava mais que
essas piadas, toda vez ela saía do pavilhão dos caçadores com lágrimas nos olhos de tanto rir, o
que até meu pai qualificou uma vez de perverso. Você vai à casa dos jardineiros, ela sempre me
dizia, onde tudo é tão chocho, isso é típico. Ela nunca achava maçante cantar metade da noite
com os caçadores suas canções estúpidas, sentar com os caçadores e espremer-se a eles num
mesmo banco e deixar que estes não só lhe dirigissem a palavra de maneira inequívoca, mas,
com o avançado das horas, também lhe dirigissem as mãos e lhe beliscassem os fundilhos, como
devo dizer. Terminasse meu irmão sua lição de casa e lhes mostrasse, diziam sempre que ele
fizera um bom trabalho, fizesse eu o mesmo, sempre tinham pelo menos algo a criticar em meu
trabalho, notavam ali um erro, aqui uma irregularidade e me passavam um eterno sermão por
causa da letra ilegível, como sempre diziam. Trouxesse meu irmão uma nota boa para casa, eles
naturalmente o elogiavam, enquanto no meu caso o mesmo fato só era reconhecido com um
aceno de cabeça amigável, se bem que um tanto relutante. Lembro que a meu irmão, ao contrário
de mim, a quem davam sempre roupas de cama algo surradas, eles davam as melhores roupas de
cama, travesseiros de primeira classe, não os remendados, como a mim. Eu tinha de usar as
meias por mais tempo do que ele, os sobretudos, os casacos, de nada adiantava que eu lhes
pedisse para poder usar os novos como meu irmão, a quem eles permitiam-no quando suas
meias, seus sobretudos, seus casacos etcétera tivessem se tornado um nadinha puídos ou sujos, a
mim eles não o permitiam. Sempre se dizia então que eu era um esbanjador, a meu irmão eles
nunca pespegaram o epíteto de esbanjador. Meus pais, creio, nunca foram justos comigo, pois já
na primeira infância haviam tido a sensação de que eu provavelmente lhes fosse superior, não sei
dizer ao certo o que lhes inspirou esse receio. Só meus avós foram justos comigo, tratavam-me
da mesma maneira que a Johannes, para eles não havia diferença entre um e outro neto, pelo
menos não faziam diferença entre nós dois. Enquanto meus avós eram vivos, nós tivemos
também, Johannes e eu, nossa época mais feliz em Wolfsegg. Nada mais natural, dissera uma
vez a Gambetti, pois meus avós por natureza não conheciam nenhum favoritismo. Quando eles
morreram, logo notei que meus pais queriam me punir pelo fato de, como supunham, ter sido
mais bem tratado pelos meus avós do que meu irmão, o que porém não é verdade, isso só foi
sempre o que meus pais, principalmente minha mãe, haviam sempre imaginado. Era como se,
após a morte de meus avós, meus pais tivessem pensado, agora temos de nos dedicar a Johannes,
sempre discriminado pelos avós, e tratá-lo particularmente bem, sempre preterido pelos avós,
que teve sempre de padecer sob a preferência dada a seu irmão, portanto à minha pessoa, mas
meu irmão nunca fora discriminado pelos meus avós, assim como eu não fora preferido por eles,
essa é a verdade, meus pais haviam apenas se posto de acordo que eu fora o preferido pelos avós,
meu irmão o discriminado, para dali em diante fazer com que eu pagasse exatamente aquilo que
haviam imaginado, mas que nunca correspondeu à verdade. Assim, desde a morte de meus avós
eles sempre trataram meu irmão Johannes com benevolência, mas a mim, ao contrário, sempre
com sua aversão, e sua preferência por Johannes evoluiu com o tempo a uma preferência, como
creio, que me era de fato insuportável, e assim também sua aversão por mim, com os mesmos
efeitos. Eles haviam se habituado, em suma, a amar meu irmão e a me odiar. É absurdo, dissera a
Gambetti no Pincio, que justo numa casa com cinco bibliotecas o pensamento e o espírito como
um todo não só sejam pouco estimados, mas de fato desprezados. Aos primeiros que construíram
e habitaram Wolfsegg, uma única biblioteca, como sou obrigado a supor, não bastara, eles
tinham uma necessidade natural pelo espírito e pelo pensamento, eram certamente pensadores
apaixonados e portanto trabalhadores do pensamento, fizeram do pensamento, como creio, sua
principal tarefa, como demonstram tantos de seus testemunhos que ainda possuímos, estavam
convencidos de que é o ápice da existência humana levar uma vida no pensamento, uma vida no
espírito, Gambetti, não no cotidiano e na estupidez cotidiana, como os meus. Que tempos,
aqueles, nos quais o senso comum foi elevado a pensamento, do pensamento se fez mandamento
supremo, como sabemos. Hoje tudo aquilo que um dia distinguiu Wolfsegg atrofiou-se, porque
foi achincalhado com plena consciência pelos descendentes; no último século e sobretudo nas
últimas décadas eles de fato o arrastaram na lama. Eles se deram ao luxo não somente de uma
biblioteca, dissera a Gambetti, mas de cinco bibliotecas, a superior esquerda e a superior direita,
a inferior esquerda e a inferior direita e a biblioteca da vila das crianças, todas as ciências
humanas nelas tiveram assento durante séculos, todas as escolas de pensamento, todas as artes.
Uma vez eu me asilei na biblioteca superior esquerda, Gambetti, para ler o Siebenkäs de Jean
Paul, um livro, aliás, que meu tio Georg amava em particular. Li o livro horas a fio e pouco a
pouco esqueci tudo a meu redor, até mesmo que nesse mesmo tempo em que estive absorto no
Siebenkäs deveria ter ajudado minha mãe a ordenar a correspondência. Eu esquecera sua ordem
de aparecer às seis no seu chamado escritório, como todo sábado à tarde, para ordenar a
correspondência, o Siebenkäs de fato me fizera esquecer tudo na biblioteca superior esquerda,
portanto também a ordem de minha mãe. Todo sábado, entre seis e sete da noite, ela se sentava
em seu escritório e fazia com que eu ou Johannes, alternadamente, ordenasse exatamente as
cartas que lhe haviam sido escritas na semana anterior, exatamente na seqüência de sua chegada.
Acabasse de ordenar as cartas, eu tinha de depositá-las num ponto preciso de sua escrivaninha.
Enquanto lhe ordenava as cartas, tinha ocasião de conversar em paz com minha mãe, o que de
outro modo nunca era possível. Ela despachava sua correspondência enquanto eu ordenava essas
cartas e me dava ocasião de consultá-la sobre os mais variados assuntos. Ocasião que de outro
modo eu não tinha. Embora ela jamais gostasse que eu fizesse perguntas, pois sempre achava
minhas perguntas inoportunas, ao ordenar a correspondência eu tinha permissão, ainda, de lhe
fazer perguntas e a minhas perguntas ela dava resposta. No fundo, ordenar a correspondência no
escritório de minha mãe era a única ocasião para sequer me aproximar dela, nessa hora fugaz
antes do jantar. Ocorria mesmo de ela própria me dizer uma palavra afável, de vez em quando até
afetuosa. Que eu também amasse minha mãe, que de fato a amasse com grande fervor, era o que
muitas vezes me ocorria enquanto ordenava a correspondência, quando a observava de perfil
achava belo seu rosto, que do contrário sempre me irritara devido a sua trivialidade. A luz da
escrivaninha, que ela mantinha acesa e que lançava uma luz muito tênue em seu rosto, fazia bem
ao rosto de minha mãe, dissera a Gambetti no Pincio, nessa hora era para minha mãe uma luz
muito benévola. Quando eu lhe depositava as cartas ordenadas sobre a escrivaninha, ocorria de
ela erguer a vista de sua correspondência e, como numa espécie de terna simpatia, pousar a mão
nos meus cabelos. Como se porém no instante em que lhe fosse possível esse gesto ela
prontamente se envergonhasse dele, logo ela retirava sempre sua mão e mandava-me embora.
Como se nessa ocasião tivesse pensado, opa, este não é Johannes, ela retirava sua mão de cima
de mim e tornava abruptamente a sua correspondência. Mas eu queria dizer era outra coisa,
Gambetti, dissera a ele no Pincio. Eu me recolhera à biblioteca superior esquerda com o
Siebenkäs e esquecera do ordenamento da correspondência. Eram nove horas quando de repente,
mais ou menos sobressaltado, despertei do Siebenkäs e pus o livro de lado e saí da biblioteca que
no fundo me era proibida, como você sabe, e desci até os meus, que nesse meio tempo já tinham
jantado fazia muito. O Siebenkäs me havia atado por cinco horas à poltrona da biblioteca e eu
não me esquecera somente de ordenar a correspondência, mas também do jantar. Eu desci,
Gambetti, e eles todos estavam sentados no chamado salão verde e, como logo vi, só aguardavam
por mim. Eles me receberam sem dizer palavra. Depois de algum tempo, durante o qual meu
irmão Johannes, como me pareceu, ficou à espera com um sadismo perverso, minha mãe, sem
me dirigir o olhar, me pediu explicações de onde afinal eu estivera, por que não aparecera para
ordenar as cartas, quem me dera o direito de coroar minha habitual insolência com essa má-
criação de simplesmente ignorar o ordenamento da correspondência e o jantar, pois afinal não
havia razão alguma, pelo menos nenhuma que ela imaginasse, para ignorar o ordenamento da
correspondência, deixá-los plantados sozinhos durante o jantar, botá-los na maior aflição sem
saber onde afinal eu estivesse, eles pensaram em todas as desgraças possíveis de que eu houvesse
sido vítima, em todos os horrores possíveis. Se eu tinha consciência de que pusera sobretudo ela,
minha mãe, numa aflição dos diabos. Não há absolutamente nenhum motivo que lhe permita não
aparecer para ordenar a correspondência, e tampouco um motivo para ignorar o jantar. Tudo sem
que minha mãe tivesse ainda se dignado me dirigir um olhar. Súbito ela me fitou nos olhos e
disse: você é um monstro! Ou muito me engano, ou você esteve na biblioteca! E o que andou
fazendo por lá? Ficou de novo cultivando seus pensamentos aberrantes, ela disse. Meu pai e
meus irmãos aguardavam tensos o clímax da acusação, concentravam toda sua atenção em mim,
que ficara sob o vão da porta, transido de medo. Tinha então talvez nove ou dez anos, não sei
mais ao certo, dissera a Gambetti. Tremia da cabeça aos pés. Por pequenas que fossem minhas
irmãs, nelas não se reconhecia nada além de uma excitação infame contra mim, a sede de uma
punição sensacional a mim infligida por minha mãe, que comigo só procedia sempre de maneira
implacável. Pois bem, o que você fez realmente na biblioteca? disse minha mãe, ao que lhe
respondi: estive lendo o Siebenkäs. A essa alegação minha, ela levantou num pulo e me deu um
tapa e me mandou para cama. A verdadeira punição consistiu em que eu não pudesse mais sair
de meu quarto por três dias, minha mãe o trancara e me deixara os três dias inteiros sem comida
alguma. Eu me sentei à minha mesa e durante os três dias inteiros nada mais fiz senão berrar. Lá
fora, minhas duas irmãs corriam o tempo inteiro de lá para cá e gritavam ininterruptamente, com
extremo sadismo, Siebenkäs, Siebenkäs, Siebenkäs. Se um dia você ler o Siebenkäs, caro
Gambetti, dissera a ele no Pincio, não esqueça essa historieta. Será que Gambetti hoje, depois de
tanto tempo que lhe dei de fato o Siebenkäs para ler, ainda se lembra desse história? perguntei
comigo. Todos os livros que li em Wolfsegg têm uma história ulterior desse tipo, estão ligados a
uma tal história ulterior (ou história pregressa!) pelo resto de minha vida, pensei, se bem que
nem sempre a uma tão triste quanto a que se liga para mim ao Siebenkäs de Jean Paul. Minha
mãe, Gambetti, não tinha idéia do que fosse Siebenkäs e achara que eu estivesse caçoando dela,
dissera a Gambetti. Quando minha mãe esteve em Roma, dissera a Gambetti, no outono três anos
atrás, você se lembra, eu a levei passear pela cidade, como é natural. Mas ela se entediava até a
morte, queria sempre só ver as lojas famosas, sobretudo as do Corso e as da Via Condotti, ela
tinha uma lista, comprida, com os nomes das lojas famosas e só procedia a suas caminhadas de
acordo com essa lista, ela fizera o rol das lojas famosas em ordem alfabética, o que foi um erro,
como ela própria logo foi forçada a constatar, pois as lojas naturalmente não se situavam uma ao
lado da outra em ordem alfabética como em sua lista, mas com muita freqüência bem afastadas
entre si. Visitamos uma loja famosa atrás da outra, principalmente aquelas na vizinhança da
Piazza di Spagna, e em nenhuma delas ficamos menos de meia hora, na maioria ela passava
quase uma hora, o que me deixou quase maluco. Minha mãe é também uma fanática, dessas bem
primitivas, por jóias, dissera a Gambetti, e por essa razão corria de um joalheiro a outro em busca
não só de um, mas de pilhas inteiras de anéis e colares do seu gosto. Eu a acompanhava, como
você pode imaginar, a contragosto, mas não tinha escolha. Eu próprio, como você sabe, sou um
inimigo daqueles que só vêem as igrejas e os monumentos famosos, mas um tal desprezo
descaradamente aberto, devo dizer, por todos esses tesouros da cultura, sem dúvida imponentes,
eu nunca vi antes. Minha mãe foi à basílica de São Pedro, eu a levei, e como é natural ela se
entusiasmou justo pelo altar de Bernini, que eu abomino, mas de resto não viu mais nada durante
sua visita a Roma, a não ser a decoração interna das casas de moda e dos joalheiros romanos. Por
sugestão minha, ela se hospedou no Hassler, que porém era muito fora de moda para ela. Não
havia coisa que ela não criticasse, embora o Hassler seja sem dúvida o melhor hotel de Roma e
talvez mesmo um dos três ou quatro melhores do mundo. Para ela nada era bom o suficiente. No
fim ela havia comprado tantas coisas, dissera a Gambetti, que não sabia mais onde enfiá-las, os
pacotes se empilhavam em seu quarto. Havíamos sido convidados para cinco jantares na casa de
parentes, naturalmente também na casa de nosso amigo Zacchi, dissera a Gambetti, mas ela só
foi a um deles, mas não, como você talvez pense, ao do nosso amigo Zacchi, o venerável, senão
ao do embaixador austríaco, onde, como você pode imaginar, foi aquele tédio de sempre, só
porque para ela fosse o mais representativo, toda essa gente que esteve presente ao jantar na
embaixada eram os estúpidos e imbecis diplomatas de costume e suas mulheres ainda mais
estúpidas e imbecis, que por duas horas desfiaram sua lengalenga mundana. Mas com certeza
você estará se perguntando por que menciono tudo isso, dissera a Gambetti, e a razão é que, no
caminho do Hassler à embaixada austríaca, de súbito e absolutamente fora de propósito e após
tantos anos, minha mãe me perguntou num repente abrupto o que era afinal aquele Siebenkäs
com que eu caçoara dela décadas antes. Durante décadas ela não tirara da cabeça aquela cena do
Siebenkäs, dissera a Gambetti. Aquela cena do Siebenkäs tinha causado em mim uma impressão
tão forte quanto nela, como constatava agora. Tínhamos saído do Hassler, era uma dessas
magníficas noites romanas, Gambetti, nas quais se acredita de verdade no paraíso, e depois de
alguns passos ela perguntou: afinal o que é Siebenkäs, você pode me dizer? E eu lhe disse que
Siebenkäs era uma invenção de Jean Paul. Mas como ela também não soubesse o que era Jean
Paul, também tive de lhe dizer em seguida que Jean Paul fora um escritor, o escritor que
escrevera o Siebenkäs. Ah, ela disse então, se eu soubesse disso! Pensei que Siebenkäs fosse uma
invenção sua contra mim, uma tramóia sórdida. Mas enquanto eu gargalhava com tal revelação
no caminho do Hassler à embaixada austríaca, e tinha toda a razão de fazê-lo, minha mãe
permaneceu calada. Se era verdade mesmo que Jean Paul era um escritor e o Siebenkäs um livro
desse escritor, foi o que ela quis saber mais uma vez, porque de início não quisera acreditar
nisso, porque ela nunca queria acreditar em mim, Gambetti. Então Siebenkäs é um livro e Jean
Paul é um escritor, repetira ainda diversas vezes minha mãe a caminho da embaixada austríaca.
Fomos à embaixada austríaca a pé. Quando estávamos lá pela metade do caminho, quase sem
trocarmos palavra, ela disse subitamente: e Kafka, também é um escritor? É, Kafka também é um
escritor. Que pena, ela disse então, achava que fosse tudo invenções suas. Que pena. Ela não
podia se conformar que Jean Paul e Kafka fossem escritores que haviam escrito o Siebenkäs e O
processo, e não invenções minhas contra ela, minha mãe, naturalmente. Veja você, dissera a
Gambetti, em que condição de espírito se encontra minha família. Em que se encontra Wolfsegg.
Cinco bibliotecas, Gambetti, e nem idéia de nossos maiores escritores e poetas, para não falar
dos grandes filósofos que marcaram época, cujos nomes minha mãe nunca ouviu falar, pelo
menos nunca conscientemente. Meu pai conhece os nomes, é verdade, mas aquilo que essa gente
pensou e escreveu, também não, no fundo o fazendeiro também nutriu sempre só um desprezo
primitivo pelo espírito, para ele as vacas e os porcos significavam tudo, o espírito praticamente
nada. Se meu pai tivesse a alternativa entre a companhia de Kant e a de um leitão cevado
premiado em Ried im Innkreis, uma famosa feira de gado, dissera a Gambetti, ele decidiria sem
pestanejar pela última. Não lhe apresentei minha mãe quando ela esteve em Roma, Gambetti,
dissera a ele, porque minha mãe não teria demonstrado a menor compreensão por você. Ela só o
criticaria à toa, que você por exemplo não usa gravata e, em vez da tabela do imposto de renda,
anda debaixo do braço com um livro de filosofia. Embora de fato você tenha perdido algo,
dissera a Gambetti. Chegamos naturalmente com grande atraso a esse jantar na embaixada, todos
já estavam lá e aguardavam por nós. Essas pessoas ficam ali e falam mal umas das outras e
fazem praça de sua ascendência e suas condecorações, dizem a todo momento que estiveram
acreditadas na China, no Japão, na Pérsia e no Peru, e revolvem ininterruptamente seu caldo
diplomático que há muito juntou ranço. Dizem sem parar que conhecem Deus e o mundo e que
em seus apartamentos na cidade ficam igualmente entediadas como em suas casas de campo.
Falam de livros como se se tratara de uma crosta de pão um tanto insulsa e entendem da regência
de uma orquestra sinfônica tanto quanto de Spinoza, de Heidegger tanto quanto de Dante, e para
o observador arguto sempre parece que elas viram tudo e não viram nada. Em geral minha mãe
não faz má figura nessas recepções, pois não destoa nem comete gafes, e seu despreocupado
lero-lero caipira, no qual triunfa todo o absurdo de sua ridícula existência, diverte os
metropolitanos. Como seu acompanhante sou condenado ao silêncio, e em última análise ela me
faz bancar o bobo. Voltando da embaixada para casa, por volta da meia-noite, ela me perguntou
mais uma vez se eu falara a verdade quando afirmei que Jean Paul era um escritor e Siebenkäs
um livro do mesmo. Como ela jamais acreditava em mim, Gambetti, não acreditou em mim
também nesse ponto. Minha mãe só veio a Roma para satisfazer sua curiosidade, dissera a
Gambetti, porque queria saber sem falta onde e como eu morava. Possuída por essa curiosidade,
um dia ela tomou o trem e veio a Roma, para assuntar, como teria definido meu tio Georg, tudo o
que se referisse a mim. A Piazza Minerva não lhe dissera nada, o Panteão era para ela só uma
palavra monstruosa que conhecia de ouvido, Gambetti. Que eu houvesse escolhido um dos mais
belos apartamentos de toda Roma e de fato o habitasse, pelo menos isso causara nela a princípio
uma grande impressão, num autêntico palazzo, ela exclamara logo à entrada do edifício onde
tenho meu apartamento no terceiro andar, com vista para o Panteão, eu dissera a ela, você logo
vai ver. Ela mal podia esperar. Você vive de fato como um príncipe, ela dissera antes mesmo de
pôr os pés em meu apartamento, o que logo soou como uma reprovação. Mas que portal imenso!
ela exclamara, parada diante do palazzo de meu apartamento, e erguera a vista para a fachada de
mármore. Eu imaginava tudo bem diferente, essas suas palavras quando lhe disse para entrar e
subir comigo os três andares, pois aqui não tem elevador, dissera a ela, não seria coisa para você,
então ela subiu e a todo instante parava, virando-se, e dizia: de fato como um príncipe! Que o
prédio, eu não dissera que o palácio, não tivesse elevador tornava o apartamento relativamente
barato, dissera a ela, mas o aluguel que tenho de pagar aqui é um dos mais caros, isso eu não
hesitara em dizer enquanto subia com ela a meu apartamento, ora três passos a sua frente, ora de
novo atrás dela, com uma certa solenidade, como você pode imaginar, Gambetti. Finalmente
chegamos ao terceiro andar lá em cima e paramos diante da porta de meu apartamento. Que eu
não houvesse afixado uma plaqueta com meu nome a pusera irritada. Sem a plaqueta, dissera ela,
nem mesmo o carteiro sabe que você mora aqui. Você sempre adorou ser anônimo, ela dissera
antes de entrarmos, e eu em seguida, que sempre me pareceu o mais agradável preservar meu
anonimato na sociedade humana, bem ao contrário dela, que sempre cuidou em dar-se a conhecer
como alguém especial, ainda que ela própria jamais soubesse o que na verdade fosse especial
nela. Observando a fotografia na qual meus pais sobem no trem para Dover na estação Victoria
em Londres, lembrei como minha mãe entrou em meu apartamento na Piazza Minerva: pasma,
ao mesmo tempo assombrada, ela teve uma dificuldade enorme de encontrar sequer uma palavra
a respeito, depois de nele ter ingressado. Primeiro ela ficou sem fôlego. Enquanto isso, porém, e
já ao destrancar a porta do apartamento, e quem sabe por essa razão enquanto entrava, não pude
deixar de pensar em algo completamente absurdo, Gambetti: uma vez, anos atrás, minha mãe
perdera e não encontrara mais uma de suas chaves da caixa-forte, ela não só revistara e fizera
revistar seu próprio quarto, mas também todos os outros quartos à cata da chave perdida da
caixa-forte, a chave porém não foi encontrada. Assim ela suspeitou de repente de mim, que eu
tivesse furtado a chave da caixa-forte, por um motivo vil, como ela se expressara então, com que
ela não atinava, mas que lhe era bastante óbvio. E ela me acusou, sem fundamento algum,
Gambetti, que eu havia dado sumiço à chave da caixa-forte no instante em que a suspeita recaíra
sobre mim, quando por assim dizer estava com as costas contra a parede, com o detalhe de que,
no momento derradeiro, eu havia jogado a chave da caixa-forte no poço localizado atrás de seu
quarto, no poço seco há décadas, Gambetti, para não ser pilhado como ladrão ordinário. E
imagine só, Gambetti, dissera a ele, minha mãe deu ordens para vasculhar o poço, um dos
jardineiros foi baixado ao poço por seus colegas de trabalho sob os olhos de minha mãe, para
recuperar a chave da caixa-forte que eu, cria de Satanás, teria jogado no poço ao me ver em
apuros. Naturalmente o jardineiro baixado ao poço não encontrou a chave da caixa-forte, pois ela
não podia estar no poço, porque na realidade eu não a jogara ali, a não ser na pavorosa
imaginação de minha mãe, sempre dirigida contra mim. O jardineiro saíra do poço e alegava
repetidas vezes que no poço a chave da caixa-forte não estava, não havia nada no poço além de
um sapato velho, já meio apodrecido. O fato de que no poço não estivesse sua chave da caixa-
forte, mas apenas um sapato meio apodrecido, enfureceu tanto minha mãe que ela insultou o
jardineiro. Insultou também a mim, obscenamente, como devo dizer, Gambetti, e não parou com
seus insultos até altas horas da noite. Eu sei, ela me dissera ainda muitos dias depois desse
episódio e depois que o jardineiro descera no poço em vão, que foi você quem furtou a chave da
caixa-forte, e mesmo que não a tenha jogado no poço, você deu cabo dela de maneira sórdida,
sabe-se lá como. Até hoje, Gambetti, não me livrei da suspeita, ela por assim dizer ainda pesa
sobre mim, ainda depois de tantos anos minha mãe está convencida de que eu tenha dado sumiço
à chave. Mas nunca a furtei, Gambetti, dissera a ele, não saberia por qual razão o faria, com que
objetivo. Nem me passaria pela cabeça, dissera a Gambetti. Mal acabara de destrancar a porta de
meu apartamento e entrara então em meu apartamento com minha mãe, quando ela esteve em
Roma, não pude deixar de pensar nesse episódio típico, que revela como nenhum outro a relação
entre mim e minha mãe. Esse é um dos episódios mais característicos de nossa relação, dissera a
Gambetti, talvez até mesmo o mais característico de todos. O tempo inteiro, enquanto minha mãe
entrava em meu apartamento, não pensei em outra coisa senão que ela fizera vasculhar o poço
porque acreditava que eu tivesse jogado no poço a chave de sua caixa-forte, de caso pensado,
com propósito vil. Ao destrancar meu apartamento me ocorreu esse episódio tão remoto, e o
tempo inteiro fui incapaz de tirá-lo da cabeça, mas não disse a minha mãe com que pensamento
me ocupava além de seu ingresso em meu apartamento, nem mesmo quando ela, já inquieta,
irritada com meu comportamento insólito, perguntou o que havia comigo. Nada, eu lhe dei em
resposta. Eu me guardara de lhe revelar a questão da chave da caixa-forte no poço, com que me
ocupava além de seu ingresso, pela primeira vez, em meu apartamento na Piazza Minerva,
provavelmente teria provocado uma discussão repulsiva sobre o assunto, após tantos anos,
Gambetti, dissera a ele. E discussões com minha mãe era algo que eu temia, que temo ainda hoje,
Gambetti. Meu pai, ela o deixara daquela vez sozinho em Wolfsegg, embora ele, como sei, a
tivesse acompanhado com prazer a Roma. Ela o persuadira de que ele era absolutamente
indispensável. De jeito nenhum você pode deixar Wolfsegg nessa época insegura, eram suas
palavras de repreensão, sempre iguais, que ela dirigia a meu pai, pensei observando a fotografia.
De jeito nenhum você pode deixar agora, na estação de caça, os caçadores sozinhos, ela dissera
a meu pai e lhe certificara ainda que para ela não seria tão divertido fazer a viagem a Roma
sozinha, sem meu pai, habituada que estava a viajar com ele, seu protetor, a Roma; seu protetor,
como de caçoada ela chamava muitas vezes meu pai, para bajulá-lo, não porque de fato ela fosse
da opinião que seu marido, meu pai, era realmente seu protetor, isso ele não era mesmo, nunca
pôde sê-lo. Portanto ela viajou a Roma sozinha, para ficar de olho em mim, disse a meu pai e
também a Johannes, como sei, e em Roma só andava então com seu amigo Spadolini, que já na
época era um alto funcionário do Vaticano, alçado bem jovem a arcebispo, dissera a Gambetti, as
noites ela passava só com Spadolini, quando eu telefonava para o Hassler, dissera a Gambetti,
me diziam sempre que a signora não estava, nem às onze, nem à meia-noite, nem à uma e meia,
nem às três, essa é a verdade sobre minha mãe, sobre a viagem a Roma, para a qual em última
análise eu fui só o pretexto, Gambetti. Fui apenas a desculpa que ela deu a seu marido, meu pai,
para essa viagem a Roma. Spadolini, ela o conhecia da época em que ele ainda era um pequeno
conselheiro na nunciatura de Viena. Não posso dizer que esse Spadolini não tenha sempre me
agradado, pelo contrário, ele é uma figura absolutamente fascinante, e também não tenho nada
contra que minha mãe tenha mantido as relações com ele, ou antes a amizade, durante décadas,
que durante décadas a tenha mais ou menos cultivado, mas sou contra o segredo dessa ligação,
que na realidade é um caso, Gambetti. E sei também que essa não foi a única vez, nem a última,
que minha mãe esteve em Roma, ela se encontrou várias vezes com Spadolini, de trem ou avião
ela viajou muitas vezes a Roma, fingindo uma viagem urgente a Viena, só para passar uma ou
duas noites com Spadolini. Spadolini também esteve muitas vezes em Wolfsegg, não sem que lá
fosse obrigado, o que a ele próprio era muito constrangedor, a celebrar para nós, em nossa cape
la, missas por assim dizer em gala máxima, como se celebrasse uma missa na basílica de São
Pedro. Minha mãe é maníaca por cerimônias e adora a pompa, e mais que nenhuma outra a
pompa eclesiástica cristã, ela é católica, creio, pela simples razão de que adora essa pompa da
Igreja Católica e sobretudo as cerimônias dos funerais católicos-cristãos, disse a Gambetti. Um
arcebispo em casa, e ainda por cima um dos mais altos funcionários do Vaticano, por assim
dizer, isso a tinha fascinado e a esse fascínio ela sempre cedera em todas as ocasiões mais ou
menos inconvenientes, por muito tempo meu pai não atinou com essas manobras de minha mãe,
quando atinou com elas, era tarde demais, os dois já haviam aperfeiçoado em muito o seu
complô, Gambetti. Mas Spadolini é uma personalidade extraordinária, como é natural, do
contrário não haveria subido tão alto na hierarquia vaticana, dissera a Gambetti. À parte essa
relação asquerosa entre ele e minha mãe, eu o estimo muito, ele é uma das pessoas mais
inteligentes e cultivadas que conheço. Núncio em Lima, em Copenhague, enfim em Paris, em
Nova York e Madri, Gambetti, isso não é pouco, todas essas línguas que ele fala, milhares de
livros que o homem leu, o que já não viu e ouviu, isso é que é impressionante, que justo alguém
assim tenha feito amizade com minha mãe e a ela se tenha apegado, a uma mulher assim,
superficial até a medula. Ela se encontrava com ele e me usava como desculpa, dissera a
Gambetti, tinha por assim dizer de visitar o filho na superfície, para no fundo poder se encontrar
com o arcebispo em segredo, segredo que só pode ser definido como vil. E, imagine só, com
Spadolini ela foi de avião a Palermo por dois dias, e ainda por cima passou duas noites com ele
em Cefalù. Não tenho nada contra, Gambetti, mas esse segredo me dá nojo. Na verdade não
conheço pessoa mais cultivada e de mais valor que Spadolini, exceto você mesmo e Zacchi,
dissera a Gambetti. Um caráter de sensibilidade tão elevada, uma cabeça tão cheia de espírito, e
ligado em segredo a minha mãe, em segredo repulsivo, durante anos, durante décadas. Mas
minha mãe não aprendeu nada com Spadolini. Talvez justamente a despreocupação, a estupidez
de minha mãe, fascine Spadolini, dissera a Gambetti. De dia ela fazia comigo o circuito das lojas
romanas, de noite se encontrava com Spadolini no Trastevere, como sei. Mas não só, como nós,
para comer peixe, beber vinho, esticar as pernas e assim ganhar o dia, Gambetti, não só isso. Os
dois freqüentavam diversas espeluncas nos arredores do chamado canil municipal, que você
conhece, e não se deixavam perturbar pelos uivos aterrorizados dos cães romanos sem dono,
como dizem, lá entregues para serem sacrificados. Porém não revelo a fonte de que tenho minha
informação, dissera a Gambetti, nem mesmo a você. Spadolini, essa inteligência, esse eminente
erudito, autor de escritos tão primorosos, o gênio da arte de falar e de calar, que sempre exerceu
sobre mim um enorme fascínio. Quando ele veio pela primeira vez a Wolfsegg, eu pensei,
Wolfsegg não viu até agora uma pessoa e um homem de tal envergadura. Quando ele rezou entre
nós a primeira missa em paramentos pentecostais, Gambetti, você não pode imaginar meu
secreto entusiasmo, estive a ponto de largar minhas dúvidas sobre a Igreja Católica quando o vi
pela primeira vez. Um homem de tal beleza, devo dizer, de tais maneiras, de tal naturalidade sem
igual, e outro tanto de artificialismo, também sem igual. Eu me apaixonara de imediato, essa é a
verdade, por Spadolini. Mas para meu pai Spadolini sempre fora uma pedra no sapato, não
pudera fazer nada contra ele, minha mãe decidia quando Spadolini nos visitava, minha mãe
decidia quando ela visitava Spadolini, seu amante, em Viena ou em Paris, e finalmente em
Roma. Vou ver Spadolini, ela pensava enquanto dizia a meu pai que ia me ver. Provavelmente
ela só fingira para mim ter acabado de chegar a Roma, Gambetti, quando chegou à tarde ao
Hassler, e já estivesse havia dias em Roma com Spadolini, quem sabe. Minha mãe é capaz de
tudo. Spadolini a levou à ópera, Spadolini foi com ela a Nápoles, Spadolini alugou um táxi para
eles dois irem a Bari, visitar um amigo comum, como sei. É que Spadolini, como você sabe, é
quem mais fascina todas as mulheres, diante de quem se prostram as embaixatrizes, elas se
acotovelam para lhe beijar a mão e erguem os olhos para encontrar os seus, com os joelhos
tiritando. E seria mesmo absolutamente contra a natureza que um homem como esse se perdesse
para as coisas mundanas, dissera a Gambetti, mas que devesse ser justo minha mãe que ele tenha
escolhido entre centenas de pretendentes a seu charme inimitável, é uma desgraça. Eu sou a
mentira, Gambetti, dissera a Gambetti, que torna Spadolini possível. Meu pai, naturalmente, não
tem só uma vaga noção desse caso, dissera a Gambetti, tem perfeito conhecimento dele, só que
para ele não teria sentido algum se rebelar, minha mãe pode fazer o que quiser com meu pai. Mas
viajar a Roma às claras para ver Spadolini, isso ela ainda não se atrevera, e teve então, com pleno
desembaraço, de usar a mim como desculpa, o filho maluco, megalomaníaco, que esteve por
meses hospedado no Hassler e que, contra toda regra do decoro, alugou um dos apartamentos
mais caros na Piazza Minerva, por anos, provavelmente por décadas, porque quer ter a vista do
Panteão no café da manhã. E minha mãe não sabe que eu sei que é antes de tudo com Spadolini
que ela se encontra em Roma, dissera então a Gambetti. Sua comédia é perfeita quando se trata
de mentir para meu pai, dissera a Gambetti. Aí ela atinge uma maestria insuperável, digna dos
mais consumados artistas. Como então ela tivesse vindo a Roma só por causa de Spadolini,
pensei agora observando a foto que a mostra com meu pai na estação Victoria de Londres,
comigo ela se entediava o tempo inteiro, pois o tempo inteiro não tinha outra coisa na cabeça
senão Spadolini. Mas a relação entre os dois não deve ser creditada a Spadolini, dissera a
Gambetti, deve ser creditada única e exclusivamente a minha mãe. De jeito nenhum você pode
deixar agora, na estação de caça, os caçadores sozinhos, essa frase dita a meu pai me parece
agora, tanto tempo depois dessa sua visita a Roma, ainda mais sórdida que antes. Mesmo os
caçadores e finalmente eu tivemos de servir para lhe tornar possível Spadolini em Roma.
Enquanto só pensava em se juntar novamente a Spadolini o mais rápido possível, ela não se
envergonhava e tinha o desplante, como se diz, de enviar diariamente a meu pai um cartão-postal
com o Castel Sant’Angelo e o Panteão e a basílica de São Pedro, ou seja, os mais sem graça
possíveis, com frases como: nós (ou seja, eu e ela!) temos passado dias muito bonitos em Roma
etcétera, e fazer com que eu assinasse esses cartões, assim ela teria, como supunha, um álibi e
uma prova de haver estado todos os dias comigo, e com mais ninguém. Spadolini era o
protagonista de sua visita a Roma, de todas as suas visitas a Roma, Gambetti, não eu. No entanto,
Gambetti, dissera a Gambetti, não ligo a mínima para ser o protagonista de suas visitas a Roma.
A mendacidade de minha mãe alcançara então um alto grau de descaramento, dissera a Gambetti,
e no mesmo instante, confesso, me envergonhei dessa frase, senti que com esse comentário fora
longe demais, pelo menos em relação a Gambetti, como pude deduzir de sua reação a meu
comentário. Ele é muito sensível, pensara agora, para não achar fora de propósito, francamente
repulsivo mesmo, esse meu comentário, e não só esse. O professor não deve se abrir dessa
maneira repulsiva ao aluno, pensara, mas essa conclusão chegara já tarde demais. Por outro lado
eu pensara, tenho de ser aberto com meu aluno Gambetti. Aberto sim, mas não baixo, logo me
corrigi, aberto sim, mas não sórdido, aberto sim, mas não vulgar, aberto sim, mas não infame.
Mas Gambetti me conhece há muito tempo para não me compreender, pensei então novamente, e
me conhece há tanto tempo e me aceita, ele há de ter suas razões, pensei. É um assunto perigoso,
esse de Spadolini e minha mãe, dissera a Gambetti, tornando mais uma vez a encerrar o assunto,
estávamos então caminhando de lá para cá sob a casa de De Chirico, sem decidir se queríamos
tomar um chá no salão de chá na Spagna ou nos sentar no Greco. Uma chuva repentina nos fez
então, como tantas vezes, buscar abrigo no Greco para dar seguimento a nossa conversa, que teve
de fato Pavese como tema, não Spadolini nem minha mãe, nos quais me fizera pensar um
comentário de Pavese em seu famoso Ofício de viver, um dos meus livros mais prediletos, com o
qual entretivera Gambetti nesse dia. Eu comparei Pavese a Heine e expliquei a Gambetti minha
intenção. Não sei mais como de Pavese e Heine, os amados, cheguei subitamente a Spadolini e
minha mãe. O próprio Spadolini, como é natural, sempre me ocultou seus encontros com minha
mãe em Roma, embora eu encontre Spadolini com muita freqüência, e o encontro com prazer e o
visito quase toda semana em seu apartamento ou em seus escritórios, ele jamais fez a menor
alusão ao fato de ter encontrado minha mãe, o clérigo sabe ficar de bico calado. Não estou certo
se ele não sabe, afinal, que estou informado sobre seus encontros com minha mãe. Uma vez nos
encontramos, Spadolini, minha mãe e eu, e fomos a Rocca di Papa, onde Spadolini nos convidou
para almoçar, como sempre a seu modo generoso. Ele é um dos melhores anfitriões que conheço.
Nessa ocasião em Rocca di Papa minha mãe e Spadolini se revelaram a mim atores consumados,
nada deixava transparecer durante esse almoço que eles haviam se encontrado na tarde anterior e
passado uma noite inteira juntos, nem que já haviam combinado um novo encontro para a noite
seguinte. Minha posição entre os dois mentirosos e hipócritas, entre a mãe mentirosa e o clérigo
hipócrita, não era agradável, como se pode imaginar. Mas me saí bem, não deixara transparecer
absolutamente nada, fiz como se fosse quem menos no mundo suspeitasse dos dois. Minha mãe
se despediu de Spadolini em Rocca di Papa como se o visse pela última vez, quando na verdade
já ajustara com ele um encontro para a noite. Spadolini voltou de táxi para Roma, assim também
eu e minha mãe, essa viagem separada, uma atrás da outra, não me pareceu mais que um
grotesco constrangedor, que me tornou evidente toda a situação pelo fato mesmo de ser tão
perfeitamente encenado, não sei dizer por qual dos dois com maior destreza, se por Spadolini ou
por minha mãe. Mas é lícito supor que, como sempre em situações análogas, minha mãe fosse a
mais refinada. Spadolini é somente quem executa, guiado por ela, sua arte da dissimulação,
pensara, dissera a Gambetti. Não posso imaginar coisa mais constrangedora, Gambetti, que ser
obrigado a admitir que o príncipe da Igreja é o bocó a serviço de minha mãe, como você pode
imaginar. Como é natural, minha relação com Spadolini, por via dessa ligação com minha mãe, é
delicada, mas naturalmente nunca vou desistir dessa relação, mesmo que ela se exponha a uma
provação ainda maior, pois não quero prescindir de uma pessoa como Spadolini. Eu o visito com
prazer e fico feliz com sua presença em Roma. Não conhecemos muitas pessoas que podemos
encontrar com maior interesse e maior fascínio, quando delas precisamos. Isso porque Spadolini
é sem dúvida uma das poucas pessoas de espírito que tenho em Roma. Não se prescinde de uma
tal pessoa de intelecto. Realmente não, Gambetti, dissera a ele, com respeito a Spadolini não
tenho o menor escrúpulo. Só não engulo minha mãe com ele, Gambetti, ela não merece alguém
como Spadolini. Os dois chamam de amizade, disse rindo, o que não passa de uma relação
abjeta, mas ao mesmo tempo também demasiado ridícula, dissera a Gambetti. De fato as
fotografias não velam nada, não encobrem nada, tornam manifesto, implacável, aquilo que os
nela retratados querem a vida inteira velar e encobrir, pensei continuando a observar as fotos.
Aquilo que nelas é deformado, hipócrita, é a verdade, pensei. A absoluta calúnia é nelas a
verdade. Se os retratados, os fotografados, como se diz, estão mortos, nem por isso eles são
melhores. Londres, 1931, disse comigo, na época meus pais ainda eram jovens, como se diz.
Estavam de viagem. Ainda não tinham filhos. Durante anos minha mãe guardou-se de ter filhos,
até que foi obrigada a ter filhos por seu marido. Ele exigiu dela pelo menos um herdeiro.
Wolfsegg tinha de ter um herdeiro. Quando ela deu à luz Johannes, dizem que jurou: basta de
filhos. Mas já um ano mais tarde eu vim ao mundo, o intratável, o demoníaco, o funesto. Ela não
queria me ter, como sempre ouvi falar, guardava-se de mim. Mas ela teve de me parir. Sua fonte
de desgraça, como ela dizia com tanta freqüência, e ainda na minha cara, em todas as ocasiões
possíveis, a perder de conta. Mas também com minhas irmãs, que vieram depois de mim, ela não
foi feliz, nunca foi o que se define em geral como mãe feliz, se é que essa mãe feliz sequer
exista. O herdeiro foi aceito, eu nunca fui aceito realmente, como seu suplente fui reconhecido,
mais do que isso não, a vida inteira tive de me sentir como o substituto de Johannes, e me foi
dado a entender que eu era somente o herdeiro substituto, gerado por assim dizer em caso de
necessidade extrema, como sei, numa tarde de verão na vila das crianças. A contragosto, como
me disse muitas vezes minha mãe. No calor da batalha, por assim dizer, em meados de agosto.
Parece que minha mãe consultou um clínico em Wels na intenção de se livrar de mim por seu
intermédio, mas o clínico se recusou a tanto, por ser arriscado à vida de minha mãe. O chamado
aborto ainda não era tão fácil, de fato envolvia sempre um risco de vida. Assim ela se resignou a
seu destino. A vida inteira ela me considerou como indesejado e também só me apresentou
sempre como indesejado, seja lá qual fosse a ocasião, muitas vezes me definiu também como a
criança mais supérflua que se pode imaginar. Busquei, é verdade, refúgio na casa de meus avós,
os maternos em Wels, os paternos em Wolfsegg mesmo, mas permaneci sempre um peixe fora
d’água. Isso tornou minha educação de fato impossível, quase me arruinou nos primeiros anos de
minha vida, quase me destruiu por volta dos dezoito ou dezenove anos. Posso dizer que afinal
ninguém mais me salvou senão meu tio Georg, que tomou conta de mim no momento em que me
sentia completamente abandonado por todos. O herdeiro substituto sempre foi a todos bastante
indiferente. Eles tinham os olhos postos em Johannes, comigo não se importavam. Nosso
Johannes! se dizia sempre nas circunstâncias felizes, meu nome eu só os ouvia pronunciar
sempre nas desagradáveis. Para cúmulo da desgraça, dissera uma vez a Gambetti, sobreveio
então o nacional-socialismo, a que os meus foram extremamente suscetíveis. O nacional-
socialismo lhes caiu feito uma luva, nele por assim dizer descobriram a si próprios. Ao lado de
seu grande Deus, que em grande parte só era porém seu bom Deus, eles de súbito tiveram ainda o
grande Führer. Embora ele havia muito fizesse parte do passado quando eu por assim dizer
cheguei à idade da razão, ainda senti na pele o nacional-socialismo da maneira mais perniciosa.
Isso porque o nacional-socialismo de meus pais não terminou com o fim do nacional-socialismo,
após o término da era nacional-socialista, porque ele lhes fosse congênito, continuaram eles a
cultivá-lo, ele, tal como seu catolicismo, de fato nada mais era que sua seiva, sem a qual eles não
podiam de modo algum se arranjar e de modo algum existir. Assim, embora a era nacional-
socialista havia muito tivesse acabado, fui educado segundo os preceitos nacional-socialistas, e
católicos também, portanto com um método austríaco híbrido e autoritário que teve efeitos cruéis
e pavorosos sobre o adolescente. O elemento católico e nacional-socialista, os métodos
pedagógicos católicos e nacional-socialistas são porém os normais na Áustria, os corriqueiros, os
mais largamente difundidos, e com isso exercem por toda parte, sem obstáculo, efeitos cruéis e
devastadores em todo esse povo em última análise nacional-socialista e católico. Na Áustria os
métodos pedagógicos nacional-socialistas e católicos imperam de forma irrestrita, quem afirma
algo diverso é um mentiroso além de um ignorante, e também as leis desse país nada mais são
que leis nacional-socialistas e católicas, com seu mecanismo de efeitos devastadores e
destrutivos. Essa é a verdade austríaca. O homem austríaco é por natureza um homem nacional-
socialista e católico até a medula, faça o que quiser para evitá-lo. Catolicismo e nacional-
socialismo sempre se equivaleram nesse povo e nesse país, uma hora ele foi mais nacional-
socialista, outra hora mais católico, mas nunca só um deles. A cabeça austríaca só pensa sempre
de maneira nacional-socialista e católica. Os pensadores austríacos também só pensaram sempre
assim, com essa asquerosa cabeça nacional-socialista e católica. Se saímos às ruas em Viena, em
última análise só vemos nacional-socialistas e católicos, que uma hora se mostram mais
nacional-socialistas, outra hora mais católicos, a maioria das vezes porém os dois ao mesmo
tempo, o que em última análise os torna tão repulsivos num contato mais próximo e numa
observação mais detida, queiramos admiti-lo ou não, dissera a Gambetti. Se lemos algo num
jornal austríaco, ou é algo católico ou nacional-socialista, esta, temos de dizer, é a essência
austríaca, dissera a Gambetti, duplamente hipócrita, duplamente vulgar, duplamente contra o
espírito, Gambetti, dissera a ele. Se trocamos duas palavras com um austríaco, logo temos a
impressão de falar com um católico, não com uma pessoa livre, independente, Gambetti, ou
temos a impressão de falar com um nacional-socialista e finalmente a impressão de que falamos
com uma pessoa nacional-socialista e católica até a medula, que logo se torna para nós repulsiva.
Esse espírito católico e nacional-socialista, se sou obrigado nesse contexto a expor a palavra
espírito a uma tal mácula, dissera a Gambetti, é porque não tenho alternativa, sempre reinou em
Wolfsegg e lá sempre irá reinar. Meu irmão Johannes está imbuído do mesmo espírito, como
aliás minhas irmãs também, mas estas naturalmente sob a forma de impertinência, ao contrário
de meu irmão Johannes, que, como nosso pai, cultivou praticamente a vida inteira o espírito
católico e nacional-socialista, o qual de fato, como já disse várias vezes, é o antiespírito, a
desrazão austríacos. Eu, de minha parte, escapei desse espírito, Gambetti, embora tenha de travar
essa luta pelo resto da vida, porque esse espírito é congênito, e dos espíritos congênitos ou
absolutamente não se livra mais, ou se livra somente aos trancos e barrancos por um tempo, mas
nunca em definitivo. Minha existência é um perpétuo libertar-me desse antiespírito austríaco,
dissera a Gambetti. Esse espírito, esse antiespírito, continua a minar minhas forças, dissera a
Gambetti. Mas mal noto em mim ou sobre mim esse antiespírito primordialmente austríaco,
defendo-me dele com unhas e dentes. Em 1931, pensei observando a fotografia de 1960 que
mostra meus pais na estação Victoria em Londres, meus pais tinham acabado de se casar e minha
mãe triunfara, alcançara por assim dizer seu auge. Porém meu pai ainda não alcançara o que
queria: o herdeiro. Homens como meu pai não querem um filho, querem um herdeiro, e se casam
só muito tarde com esse único objetivo que realmente os cativa, na sua sofreguidão por um
herdeiro eles precipitam o casamento com uma mulher que só conheceram faz pouco tempo e
sobre a qual não sabem quase nada. Quando o herdeiro vem ao mundo, eles já estão um tanto
combalidos e podem ser definidos como velhos. A mãe diz a um homem assim, te dou um
herdeiro de presente, e ao mesmo tempo e de fato lhe tira praticamente tudo. Por outro lado, o
novo pai tem a sensação de ter cumprido com o dever que lhe cabia. Em estando ali o herdeiro, a
mulher não lhe interessa mais. Ele a castiga a maioria do tempo com seu desdém e a reprova,
conforme seu humor e se ela lhe der motivo, por sua sordidez, que ela se aproveitara de sua
generosidade e se casara com ele apenas para meter as mãos em seu patrimônio. Com o tempo os
dois se acusam mutuamente por tudo e fazem da vida um inferno. Não convertem o casamento
em estima e conforto recíprocos e numa convivência sempre aberta à compreensão e afinal
compreensiva, mas pouco a pouco num inferno. Os dois se acomodam nesse inferno e acabam
por se odiar. Logo reconhecem esse ódio recíproco como necessário e convivem muito bem com
ele pelo resto de suas vidas. Mas enquanto meu pai com o tempo se retraiu em si mesmo contra
minha mãe, ela passou a olhar ao redor em busca de um campo de ação para suas idéias e
paixões de fêmea, que estavam longe de apagadas, em busca justamente de um Spadolini, disse
comigo observando a foto. As circunstâncias mais ou menos infelizes lhe renderam então, num
feliz acaso, até mesmo um arcebispo. E ainda por cima um que, além de um corpo
invejavelmente bem talhado, tem uma das cabeças mais lúcidas. Quando ela rebenta de alegria
com Spadolini, lhe diz meu núncio, como sei. A cena é decerto comovente, de rasgar o coração,
dissera a Gambetti. Estava por conta, como sempre que falo do espinhoso Spadolini, por assim
dizer. É absurdo, disse comigo, ensinamos a literatura alemã e a poesia alemã e, porque somos
megalomaníacos, ainda por cima a filosofia alemã e pretendemos conhecer essa literatura e essa
poesia e essa filosofia, ou pelo menos ter familiaridade com ela, e na verdade não somos outra
coisa senão parte dessa corja de Wolfsegg, que só de pensar nos gela de pavor. Saímos daquele
inferno provinciano infame que é Wolfsegg e viemos para Roma e falamos com todo o mundo
sobre Schopenhauer e Goethe e não nos envergonhamos. Realmente perverso, disse comigo, esse
impulso que seguimos. Estou de fato retalhando e dissecando Wolfsegg e os meus, aniquilando-
os, extinguindo-os, e retalho dessa forma a mim mesmo, disseco-me, aniquilo-me, extingo-me.
Essa porém, dissera a Gambetti, é uma idéia que me agrada, minha autodissecação e auto-
extinção. Não pretendo mesmo outra coisa, pelo resto da vida. E se não me engano, ainda vou ter
êxito nessa autodissecação e autoextinção, Gambetti. Na verdade não faço mais nada a não ser
me dissecar e me extinguir, quando acordo de manhã, a primeira coisa que penso é nisso, pôr a
me dissecar e me extinguir com resolução. De criança os pais só nos conduziram sempre à beira
do abismo, sem realmente nos mostrar o abismo, não nos deixavam olhar para baixo, nos
puxavam sempre no momento decisivo, só pretenderam sempre nos conduzir à beira do abismo,
sem nos mostrá-lo, o que nos arruinou. Assim fazem bilhões de pais, dissera a Gambetti. Troquei
agora a ordem das fotos, coloquei aquela que retrata meu irmão no barco a vela sobre aquela que
retrata meus pais, e sob esta aquela com minhas irmãs. Elas tinham ido então a Cannes com
lábias de arrancar dinheiro de nosso tio Georg para uma planejada viagem à América, para a qual
meus pais não lhes haviam dado um único tostão, porque julgavam uma tal viagem de todo
supérflua para minhas irmãs. Em Cannes elas haviam feito de tudo para aliviar meu tio Georg da
quantia necessária a sua viagem. Mas depois de duas semanas elas desistiram, meu tio Georg não
lhes dera um único tostão, também ele era da opinião de que o dinheiro dado a minhas irmãs para
uma viagem à América era dinheiro jogado pela janela. Desde então minhas irmãs passaram a
odiar o tio Georg com um ódio ainda maior do que antes. E isso apesar de ele as ter tratado com
muita generosidade em Nice, como sei, de as ter levado aos mais caros restaurantes, de as ter
comprado várias roupas, pulseiras, colares etcétera. Mas meu tio Georg as desmascarara. E de
resto não foram elas próprias que tiveram a idéia de ir a Cannes ver seu tio Georg para levá-lo
no papo e lhe arrancar o dinheiro da viagem, mas, como sei, minha mãe. Foi ela que mandou
suas filhas a Cannes com intenção sórdida, inutilmente. A força motriz do mal, sou obrigado a
dizer comigo, sempre foi minha mãe, dissera a Gambetti. O mal em Wolfsegg, se remontarmos a
sua origem, remonta sempre a nossa mãe, era ela o ponto de partida. Por outro lado, dissera a
Gambetti, não teria sentido algum declará-la culpada, a culpa, por mais absurdo que isso pareça,
não era dela. Do mesmo modo que sempre foi a origem de todo mal, ela também sempre atraiu
todo o mal para si. Poderia se dizer que qualquer pessoa que entrasse em contato com ela se
tornava subitamente uma pessoa malvada, dissera a Gambetti, assim ela fez também de
Spadolini uma pessoa malvada, como de mim, como de meu irmão etcétera. E naturalmente de
meu pai, que na origem não era uma pessoa malvada, simplória sim, reconheço, mas não
malvada. Uma pessoa como minha mãe faz de uma família que nunca foi malvada, uma família
malvada, de uma casa que nunca foi malvada, uma casa malvada, Gambetti. Mas não teria
sentido algum lhe jogar nas costas a culpa desse mal, como nós fazemos, porque não temos outra
escolha, porque pensar de outra maneira seria muito difícil para nós, muito complicado,
simplesmente impossível; nós simplificamos a coisa e dizemos, ela é uma pessoa malvada,
nossa mãe, e tomamos isso como um pressuposto pelo resto da vida. Em contato com aquela
mulher nos tornamos todos malvados, dissera a Gambetti. O caráter sem dúvida tocante das fotos
a minha frente não me obstava, mesmo agora que eles estavam mortos, de acusar meus pais, de
investir contra eles da maneira mais grosseira. Súbito me veio até mesmo o pensamento de que
meus pais, à sua maneira sórdida, me haviam abandonado e me deixado de lado com plena
consciência. Mas no mesmo instante apaguei esse pensamento, porque nem mal o pensara, ele
me parecera um total absurdo. As mães são as responsáveis, dissera de repente a Gambetti, ao
caminhar com ele no Corso alguns dias antes de minha viagem a Wolfsegg, já então dominado
exclusivamente por Wolfsegg, pela situação que lá me aguardava, o chamado enlace de minha
irmã com um fabricante de rolhas para garrafas de vinho, pela Wolfsegg que sempre, antes
mesmo de eu sair de Roma, me apertava a garganta, as mães, somente elas, são as responsáveis e
justo elas, quando são mães, se furtam quase inteiramente a essa responsabilidade e jogam tudo
nas costas do mundo que as cerca. As mães são as responsáveis, mas nunca são chamadas a
prestar contas quando seria necessário, porque o mundo que as cerca há milênios tem pelas mães
uma estima tão alta que não pode ser erradicada. Por quê? perguntara a Gambetti, por quê? As
mães lançam seus filhos no mundo e sobre o mundo fazem recair a responsabilidade por isso e
por tudo o que sucede a esses filhos, quando elas próprias teriam de assumir a responsabilidade,
mas não assumem. As mães se esquivam de toda responsabilidade em relação aos filhos que elas
lançam no mundo, essa é a verdade, Gambetti. O que eu digo vale para grande parte, para a
maior parte das mães. Mas sou uma voz no deserto. Tais pensamentos podemos pensá-los em
segredo, mas não expressá-los, Gambetti, guardá-los para nós, mas não torná-los públicos, temos
mais ou menos de nos sufocar com eles num mundo que reage a sua maneira a tais pensamentos,
com repulsa. Um escrito, Gambetti, que eu publicasse sob o título As mães só teria como
conseqüência que me declarassem um mentiroso ou um maluco, ou os dois ao mesmo tempo. O
mundo não toleraria um tal escrito redigido e publicado por mim, habituado que está somente à
mentira e à hipocrisia, e não aos fatos. Na verdade os fatos são ignorados nesse mundo e os
ideais fantásticos, declarados como fatos, porque isso é politicamente mais útil e agradável do
que o contrário, Gambetti. O telegrama não me abalou, como se diz, pouco a pouco me fez
passar pela cabeça as conseqüências que acarretará, como é natural, mas ainda tinha a cabeça
lúcida de quando li pela primeira vez o telegrama. Mesmo depois de o ter lido pela segunda e
pela terceira vez, as minhas mãos não tremeram, o meu corpo não vacilou, depois de horas não
tremiam, as minhas mãos, não vacilava, o meu corpo. Com toda a calma eu observava meu
apartamento, que nos últimos anos decorei segundo meu gosto e inteiramente segundo meu
espírito. Habituei-me ao tamanho desse apartamento, tornei-o por assim dizer ideal para meus
objetivos. Esse apartamento você o deve a Zacchi, pensei, que mora defronte de meu
apartamento em seu próprio palácio. Aqui em seu apartamento está seu centro, e aqui
permanecerá. Você não vai mais abrir mão desse centro de si próprio, fará de tudo para nunca ter
de abrir mão dele. Nada o levará para longe de Roma e de volta para Wolfsegg. Levantei-me e
fui até a janela. A Piazza Minerva estava mais calma do que nunca, duas, três pessoas, nada
mais, a essa hora, às cinco da tarde, isso era incomum. Eu fechara as persianas, escurecendo
assim quase por completo meu apartamento, é assim, no escuro quase que completo desse
apartamento que mais gosto de ficar, que tenho as melhores idéias. Primeiro pensei, parto ainda
essa noite para Wolfsegg, com o trem noturno, viajo só de manhã cedo, pensei depois, parto
agora mesmo de trem, pensava uma hora, viajo só amanhã de manhã no primeiro avião, pensava
outra hora, mas, sempre andando com calma de lá para cá, só pensava e repensava sempre como
regressar a Wolfsegg. Eu imaginava como e de que maneira minhas irmãs já me esperavam, não
vou lhes dizer a hora de minha chegada, pensei. Pensei, vou descer e telefonar, e de fato fui
mesmo até a porta para descer, mas ao chegar à porta voltei até a janela e vice-versa, dúzias de
vezes, talvez mil vezes fui até a porta e voltei, não sei mais quantas vezes ao certo, mas fui até a
janela e voltei até a porta mais do que só algumas vezes, do que só algumas dúzias de vezes.
Sentei-me de novo à escrivaninha como de costume, mas não para me dedicar ao trabalho, para
tomar minhas notas, sobretudo para preparar minhas aulas a Gambetti, senão para observar
novamente as fotografias que ainda se achavam sobre minha escrivaninha. Não tinha a menor
necessidade de me pôr em contato com ninguém, queria ficar absolutamente sozinho,
simplesmente não tinha necessidade de me comunicar, agora tinha também de ficar a sós com
essa notícia fúnebre; a quem, pensara, eu deveria informar afinal a morte de meus pais, e como e
de que maneira, pensei num e noutro, tomei em consideração também um e outro nome, um e
outro número de telefone me vieram de súbito à cabeça, mas sempre abandonava a idéia de
participar a notícia fúnebre a alguém, talvez a Gambetti, pensei, talvez a Zacchi, talvez a Maria,
minha poetisa que mora perto da Via Condotti e com quem eu havia marcado um jantar para
aquela mesma noite. Desde que estou em Roma me encontro regularmente com Maria, a única
mulher com quem realmente mantenho contato, à casa de quem toda semana sinto necessidade
de ir o tempo inteiro, você está indo visitar a inteligente, sempre pensava, a imaginativa, a
grande, pois nem por um instante duvidei de que aquilo que ela escreve também seja grande,
sempre muito maior que qualquer outra obra de quaisquer outras poetisas. Devo telefonar antes
de tudo a ela e lhe dizer por que nosso encontro está cancelado, por que tenho de retornar a
Wolfsegg, que eu sempre só descrevi como a Wolfsegg maldita, como a Wolfsegg letal para
mim. Maria não conhece outra Wolfsegg senão minha Wolfsegg letal, minha Wolfsegg maldita,
assim como Gambetti não conhece outra, também Zacchi outra não conhece, todos os demais
com quem me encontro em Roma também não, a eles todos sempre só falei de uma Wolfsegg
maldita e letal para mim, do inferno provinciano de Wolfsegg. Telefonar a Maria, telefonar a
Gambetti, telefonar a Zacchi, pensei, e sentei-me de novo à escrivaninha. Não levar nada comigo
para Wolfsegg, pensei. Manter a calma. Telefonar a minhas irmãs, pensei. Comunicar-lhes a hora
da minha chegada. Mas antes eu próprio preciso saber quando parto, e ainda não sei. Não
conseguia me resolver, porém, não chegava a uma decisão definitiva. Se houver greve dos
ferroviários, vou de avião, disse comigo, se houver greve dos aeronautas, vou de trem, mas de
trem preciso ir ainda hoje à noite, de avião tem de ser amanhã de manhã às cinco. Nunca antes,
após meus regressos de Wolfsegg, pensara em Wolfsegg com tamanha aversão e me prometera
não retornar a Wolfsegg por um bom tempo. Agora tinha de retornar instantaneamente. Nosso
advogado de Wels me veio à cabeça, o advogado de meu pai, que tem seu escritório na praça
Franz Josef, escritório que me foi repulsivo toda vez que nele pus os pés. Vi de repente a mulher
do advogado, igualmente repulsiva. Vi nosso médico de Wels, repulsivo. Sua mulher, repulsiva.
Vi a cidade de Wels e, em seguida, todas as cidadezinhas circunstantes sob uma luz repulsiva. Vi
Vöcklabruck, repulsiva, vi Gmunden, repulsiva. Essas pessoas terríveis, em seus casacos de
inverno pesados, nauseantes, pensei, com seus chapéus de mau gosto na cabeça, os sapatões
massudos nos pés. Vi a praça do mercado de Wels e pensei, que pavorosa, que repugnante, a
praça central de Gmunden e pensei, que repulsiva. Quando falamos com a gente desses lugarejos
repulsivos, para nós o mundo inteiro nada mais é senão repulsivo. Mas se vivemos nessa região,
temos de lidar continuamente com essa gente repulsiva, pensei, não escapamos dela, ela é a
regra. Não suporto seu modo de falar e tampouco sua roupa, o que ela pensa eu não suporto, o
que ela ostenta, o que ela fez e o que pretende fazer. O que ela diz me é adverso, o que ela faz me
é adverso. Simplesmente não suporto seu modo de vida católico e nacional-socialista, não
suporto sua entonação, não somente o que ela diz, mas também como diz o que diz eu não
suporto. Quando a observo, não consigo provar por ela os sentimentos que lhe cabem, mas
somente os mais injustos, disse comigo, provavelmente sofro de uma aversão doentia a
Wolfsegg, sou injusto com ela, sou implacavelmente injusto com ela e com tudo o que se refere a
ela em meu modo de observar, simplesmente a execro quando a observo, me sinto mal. De que
servem as belas ruas nessas cidadezinhas, se estão povoadas dessas pessoas repugnantes, pensei,
de que me servem essas belas praças, se nelas batem pernas essas pessoas mais ou menos
medonhas? Há séculos não consigo mais ter simpatia por elas. Eu as desprezo, eu as odeio, ao
mesmo tempo tenho consciência da minha pavorosa injustiça em relação a elas. Mas não posso e
não quero me fazer benquisto de toda essa gente, não quero me fazer habituado e portanto
benquisto desse povo, disse comigo, não posso mais voltar a elas e a seu povo. Não posso mais
pôr os pés em suas lojas ridículas, não posso mais visitar seus escritórios fedorentos, não posso
mais entrar em suas igrejas gélidas ornadas hipocritamente. Esses médicos me arruinaram, esses
advogados me iludiram, esses padres me enganaram, todas essas pessoas me decepcionaram da
maneira mais repugnante e me humilharam na fé que nelas depositava, não posso mais tê-las sob
a vista, pensei, elas não são mais toleráveis para mim e nada mais as fará toleráveis. Toda essa
gente odeia o que eu amo, despreza o que eu prezo, gostam do que eu não gosto. Mesmo o ar que
respiram agora só me embrulha o estômago. No mundo inteiro tenho amigos, disse comigo, só
lá, onde na verdade devia me sentir em casa, nunca tive amigos, salvo entre os mais simples dos
simples trabalhadores e mineradores. No mundo inteiro sempre estive, pelo menos por um
tempo, radiante de felicidade, em muitos lugares fui a pessoa mais contente e a mais feliz, a mais
grata mesmo, lá, onde deveria sê-lo, nunca jamais. Eles não te compreendem, não compreendem
nada, não compreendem absolutamente nada, disse comigo. Não sabem como levar a vida.
Vivem para trabalhar, mas não trabalham para viver. São sórdidos, são baixos, e ao mesmo
tempo megalomaníacos. Dizem bom-dia de maneira perversa, e com igual perversidade boa-
tarde, boa-noite. Se você pensa nos seus, sente engulhos, se pensa nos outros, sente os mesmos
engulhos. Naturalmente quem pensa assim está doente, disse comigo, e no mesmo instante me
dei conta do quanto era perigoso meu estado de ânimo. Manter a calma, disse comigo, manter a
cabeça lúcida, só calma, absoluta calma. Mas não consegui me subtrair a esse perigoso estado de
ânimo. Quase que podia ouvi-los dizer: ele sofre de mania de perseguição, como sempre se diz,
de uma megalomania diversa da nossa, a sua megalomania. Quando eles me vêem sentem
engulhos, ele diz bom-dia e eles acham isso perverso, como ele diz boa-tarde, boa-noite, disse
agora comigo. O modo que ele se veste eles acham igualmente repulsivo, suas roupas, seus
chapéus, seus sapatos, o que ele fala, o que pensa, o que faz ou deixa de fazer. Eles o desprezam
como ele os despreza, eles o odeiam como ele os odeia. Qual desprezo, qual ódio tem maior
justificativa? Não sei dizê-lo, disse comigo. Levantei-me e fui até a janela, porque não me
agüentava mais à escrivaninha, e olhei a Piazza Minerva lá embaixo. Zacchi fechara
hermeticamente todas as persianas, disse comigo, é provável que não esteja lá, é provável que
esteja na casa da irmã em Palermo. Ele a visita com freqüência. Ela sofre dos rins e está
internada num hospital especializado justamente na chamada atrofia renal, numa das paisagens
mais belas da Sicília, no sopé do Monte Pellegrini. Se todas as persianas estão hermeticamente
fechadas, ele viajou a Palermo para ver sua irmã, pensei. Mas mesmo assim vou tentar lhe
participar a morte de meus pais, disse comigo. Mais à noite talvez ele esteja de volta. Caminhei
pelo apartamento inteiro, onde deixo sempre todas as portas abertas, abertas o máximo possível,
para que possa andar de lá para cá desimpedido, desse modo poupo muitas vezes ter de descer
até a rua para me revigorar, basta que ande diversas vezes de lá para cá em meu apartamento. Eu
próprio me afastei de Wolfsegg, disse comigo e atravessei meu apartamento numa direção.
Lentamente me acalmava. Eu próprio me afastei com plena consciência de Wolfsegg e dos meus.
Rompi deliberadamente com Wolfsegg. Afinal sempre ofendi meus pais. Fiz de tudo contra eles,
sempre fiz de tudo também contra meus irmãos, para ofendê-los. Não era muito meticuloso na
escolha dos meios de ofensa. Com muita freqüência os depreciava e os expunha ao ridículo,
quando não havia absolutamente nada neles para depreciar e expor ao ridículo, disse comigo, e
minha cabeça ficou lúcida de novo. Muitas vezes acusei meu pai da maneira mais abjeta em
assuntos nos quais nada havia para acusar, menti para minha mãe, muitas vezes também a expus
ao ridículo na frente de todos, a depreciei, lhe vibrei duros golpes com minha soberba, era
obrigado a admitir agora. Mas voltei a me acalmar de fato, tinha de fato a cabeça lúcida. Me
separei dos meus com plena consciência, me privei por culpa própria, digamos assim, de meus
direitos em relação a eles, disse comigo, e andei na outra direção. O apartamento eu não pinto faz
tantos anos porque não suporto mais operários, disse comigo observando as rachaduras no teto.
Tive de me mudar para um palácio renascentista para me sentir definitivamente sozinho,
separado de todos, disse comigo, pois a verdade é que me separei de todos, não somente dos
meus em Wolfsegg, Gambetti, Zacchi, Maria, a essas poucas pessoas se reduziu o meu círculo, e
em breve nem esse reduzido círculo não existirá mais, disse comigo e tornei a caminhar na
direção contrária. Quando damos pela coisa, estamos de súbito completamente sozinhos e sem
uma única pessoa, disse comigo. Tinha as mãos cruzadas atrás das costas, um hábito que herdei
de meu avô paterno, disse comigo. Aliás não herdei somente muito, mas quase tudo de meu avô
paterno. Se meu tio Georg soubesse como na realidade estou agora subitamente sozinho! Sempre
anseio pela solidão, mas se estou sozinho, sou a pessoa mais infeliz. Não suporto a solidão e falo
nela sem parar, prego a solidão e a odeio profundamente, porque não há mais nada que faça tão
infeliz, como sei, como agora já sinto na pele, prego a solidão por exemplo a Gambetti e sei
exatamente que a solidão é o mais temível de todos os castigos. Digo a Gambetti, Gambetti, o
sublime é a solidão, porque me arvoro em seu filósofo, mas sei perfeitamente que a solidão é o
mais terrível dos castigos. Só um louco propaga a solidão, e afinal de contas estar
completamente sozinho nada mais é do que estar completamente louco, pensei, e tornei a
caminhar na direção contrária. O apartamento é tão grande que nele não tenho por que me sentir
limitado ou mesmo oprimido em meus pensamentos, ele dá a meus pensamentos a liberdade que
do contrário só as grandes praças dão a meus pensamentos. Levei isso em consideração quando
em minha megalomania aluguei o apartamento, pois foi sem dúvida a megalomania de minha
parte que me fez alugar esse grande apartamento na Piazza Minerva a um preço em última
análise monstruoso, que eu jamais teria podido revelar aos meus, uma vez lhes mencionei uma
quantia porque eles me perguntaram, mas não lhes mencionei nem a metade do preço, senão uma
quantia imaginária, pois a verdade faria com que me declarassem maluco. É um dos
apartamentos mais convenientes de toda Roma, eu lhes dissera, e depois nunca mais lhes falara
sobre o preço de meu apartamento. Mas na verdade eu próprio acho de vez em quando esse
apartamento uma cela, disse comigo, e caminho nele de lá para cá, como se caminhasse de lá
para cá numa cela. E aliás muitas vezes defino esse meu apartamento como minha cela de
reflexão, mas só com os meus botões, nunca quando falo com alguém, para não cair na suspeita
de loucura, pois definir um apartamento como cela de reflexão só pode ser coisa de maluco,
pensariam eles com certeza. Sento-me à escrivaninha e observo as fotografias que já observara a
tarde inteira, que contemplara, como logo me corrijo. Coloquei agora as fotografias uma ao lado
da outra e disse comigo que os nelas retratados não podiam ser julgados assim. Não como
fotografados. Coloquei as fotografias uma em cima da outra, de modo que a foto com meus pais,
que os mostra na estação Victoria de Londres prestes a subir no trem para Dover, cobrisse as
outras duas. Desejara o contrário, mas agora eles me davam exatamente a mesma impressão
cômica e ridícula que antes. Recoloquei as fotografias na gaveta da escrivaninha e decidi bater
um fio a meus amigos, como se diz, e partir de Roma com o primeiro avião da manhã, para casa.
Meus dedos não tremiam, meu corpo não vacilava. Tinha a cabeça perfeitamente lúcida. O que o
telegrama significava, eu sabia.
O testamento

Minha chegada a Wolfsegg foi discreta, de surpresa, o que eles nunca me perdoaram, já que
não subi logo até eles, mas desci primeiro até o vilarejo, num lugar em que estava certo de passar
completamente despercebido; na entrada do vilarejo, onde a estrada principal se bifurca para as
minas, nas imediações da escola, ao lado da chamada coluna da Virgem, pedi ao chofer que
parasse, me deixasse descer, e me foi possível caminhar por toda a praça da aldeia sem encontrar
vivalma; como se todos houvessem se retirado para suas casas e moradias, era isso o que me
parecia, como se não quisessem se mostrar, agora que meus pais, como supunha, estavam sendo
velados em Wolfsegg lá em cima junto com meu irmão, como se de fato o vilarejo inteiro
estivesse de luto, pensei, sem considerar que por volta do meio-dia o vilarejo está deserto
também em dias de semana perfeitamente comuns. Em hipótese alguma quisera subir de carro
até Wolfsegg, o chofer naturalmente me reconhecera, já na estação de trem, já em Attnang-
Puchheim, onde eu descera do trem e atravessara a plataforma direto até o táxi, pareceu-me que
as pessoas me reconheciam, mas me esquivei a seu olhar com passos mais ligeiros que de
costume, e caminhei direto até o táxi e disse que queria ir o mais rápido possível a Wolfsegg.
Mas durante o trajeto não pensei em Wolfsegg, à qual me dirigia, mas em Roma, que eu deixara
de manhã, só a contragosto você sobe essa estrada para Wolfsegg, só a contragosto você está
aqui, pensara o tempo inteiro, enquanto porém o táxi atravessava uma das regiões mais belas que
existem, rumando da zona pré-alpina para o Hausruck, que sempre foi para mim a paisagem mais
agradável e mais repousante, talvez até mesmo a mais bela de todas, se alguma vez tivesse
podido contemplá-la sem os meus, sem Wolfsegg. No fundo atravessava minha paisagem
predileta, os bosques cerrados perto de Kien e Stocket, no caminho de Ottnang. Essas pessoas,
disse comigo no trajeto, você sempre as amou, as pessoas simples, as mais simples, os
camponeses e mineradores, os artesãos, as famílias dos taberneiros, ao contrário dos seus lá em
cima em Wolfsegg, que desde criança sempre só te foram pavorosos, e perguntei comigo durante
o trajeto por que amei uns, os chamados de baixo, porque vivem na região de baixo, à diferença
dos meus na de cima, e os outros não, por que sempre prezei os de baixo, à diferença dos meus lá
de cima, que no fundo sempre desprezei, quando não sempre odiei, com uns, os de baixo, você se
sentiu bem a vida inteira, com os outros, os meus, lá de cima, sempre pavorosamente mal, com
os de baixo em casa, com os meus lá de cima, jamais, para não me estender nesse pensamento.
Via como era bela a paisagem que eu atravessava e pensei como gostava das pessoas que ali
viviam, sobretudo dos mineradores você sempre gostou, disse comigo, da maneira de eles te
tratarem e como eles sempre se comportam entre si, afinal você cresceu com eles, disse comigo,
foi à escola com eles, repartiu com eles décadas inteiras. Absorto nesses pensamentos acerca da
paisagem e de seus habitantes, só me dei conta após já haver saltado de que não trocara uma
palavra com o motorista, a quem conhecia de vista, como se diz, mas não sabia como se chamava
nem lhe perguntara o nome, quando costumo sempre perguntar logo de cara a todas as pessoas
da região que nome elas têm, como se chamam, um hábito que meu tio Georg me ensinou, esse
grande conhecedor das pessoas, e, como devo dizer, grande amigo das pessoas. Ninguém lidava
tão bem com as pessoas como meu tio Georg, sobretudo com as pessoas simples e não
sofisticadas. Dele, somente, foi que aprendi como lidar com elas, como falar com elas, como
conversar com elas, estabelecer entre mim e elas um equilíbrio que fosse justo para ambas as
partes. Meu tio Georg entendia-se às maravilhas com as pessoas simples, ele as amava, o mesmo
posso dizer sem mais de mim próprio. Na praça da aldeia não havia de fato vivalma, mesmo os
gatos que costumam acocorar-se sob o calor do meio-dia haviam desaparecido, eu pude seguir
assim sem obstáculos, como acreditava, efetivamente despercebido, meu caminho Wolfsegg
acima. As tabernas haviam cerrado as cortinas, a vitrine do padeiro estava vazia, o açougueiro
baixara sua corrediça, tudo causava exatamente a triste impressão que convinha a essa desgraça
que nos atingira. Em Roma ainda dissera a Zacchi, a quem de fato alcançara por telefone em
Palermo, que não me era fácil já ter agora de viajar de novo a Wolfsegg, de novo, três dias
depois de minha volta, dissera, e isso numa entonação inadmissível, segundo pensei, que não
teria podido me permitir agora, sobretudo com uma pessoa como Zacchi, que não me é tão
próxima quanto por exemplo Maria ou Gambetti, e no meu caminho pela praça da aldeia me
arrependi de haver sequer telefonado a Zacchi, pois durante todo o telefonema Zacchi não me
pareceu lá muito compreensivo com minha situação, ao contrário de Maria, que me compreendeu
perfeitamente em todos os detalhes que lhe narrei, em todas minhas declarações, por curiosas que
fossem, e que eram porém, como ela provavelmente logo notou, justamente típicas de mim,
também a Gambetti eu disse mais que o necessário e logo incorri também em acusações contra
os meus, sem logo poder retirá-las, logo me abandonei a acusações a meu modo descontrolado,
que eu próprio sou quem mais odeia, mas que não posso refrear quando elas reclamam ser
proferidas, vou voltar para o inferno, dissera a Gambetti, já amanhã de manhã às cinco, um
terror lhe dissera ainda, sem considerar ou levar em conta que esses comentários eram
perfeitamente supérfluos e no fundo sórdidos e no mínimo inadmissíveis, inusitados com
referência aos meus, num momento em que eles teriam podido exigir pelo menos meu respeito,
mas nunca sou capaz de trair a mim mesmo, tenho de me mostrar como sou, como justamente
esses meus pais me fizeram, pensei comigo no meu caminho pela praça da aldeia. Se as pessoas
me virem, pensarão, esse homem sempre foi mesmo estranho, primeiro ele caminha pela praça
da aldeia, antes até de cumprimentar os seus lá de cima em Wolfsegg, o mal-educado, o
renegado, o malquisto. Porém logo em seguida pensei que essa gente da aldeia não pensava de
mim tal como os meus, que sempre pensaram assim de mim, de maneira tão inaudita contra mim
como eu contra eles, que essa gente, à diferença dos meus lá de cima, que me desprezavam, me
prezava, à diferença dos meus lá de cima, que mais ou menos me odiavam, me amava. Os
aldeões sempre me amaram, tal como eu a eles, sobretudo os mineradores, a maioria dos aldeões
são mineradores que trabalharam em nossas minas de linhito e lá trabalham ainda hoje, se bem
que em menor número. Eles, os aldeões, sempre foram afinal meu único consolo, disse comigo
no meu caminho pela praça da aldeia. Aqui eu podia falar aquilo que com os meus nunca pude
falar, podia me fazer entender, podia me desmanchar em lágrimas quando criança. Enquanto aqui
na aldeia tudo sucede da maneira mais natural e de fato humana, pensei no meu caminho, em
Wolfsegg lá em cima tudo sucede de maneira artificial, desumana, e perguntei comigo como se
chegara a isso, qual era a causa. Mas breve demais era o tempo no caminho pela praça da aldeia
para estender esse pensamento, ele logo foi substituído por um outro: como e em que disposição
vou encontrar minhas irmãs? perguntei comigo, e de um só olhar abarquei toda a paisagem que,
de leste a oeste, espraia-se por duzentos quilômetros, coisa que só daqui é possível, de nenhum
outro ponto na Áustria. Justamente no ponto em que sempre parei, por ser o melhor, revi de
súbito toda a paisagem nesse dia sem nuvens e respirei profundamente. Por que, perguntei
comigo nesse momento, deixamos uma natureza tão magnífica ser desfigurada e destruída por
pessoas que só se predispõem a isso, como cremos? Cheguei no momento exato, pensei, e segui
adiante, montanha acima. Era como se todo o vilarejo estivesse morto, pois continuava a não
ouvir nada. Antes ouvia de todas as janelas justo aqueles ruídos que chamam a atenção para as
atividades daqueles que vivem atrás dessas janelas, agora não ouvia nada, e relacionei também
esse fato a nossa desgraça. Todos tomam parte em nossa desgraça, pensei. Não subi com mais
vagar a alameda, como teria sido natural, senão com mais pressa. Uma curiosidade despudorada,
de que me dei conta de repente, me fez afinal subir a alameda correndo, mas estaquei diante do
grande portão junto à feitoria, por entre os enormes galhos das duas castanheiras do portão olhei
para o parque e para a orangerie, pois é na orangerie, desde tempos imemoriais, que os mortos
sempre são velados. De fato a orangerie estava aberta e, diante dela, os jardineiros iam de lá para
cá com coroas e buquês. Decidi não ir logo à orangerie, ainda não queria ver meus finados pais e
meu finado irmão. Aproveitei esse intervalo para submeter a uma observação mais detida o que
se passava diante da orangerie, isso ainda era possível, pois eu não fora ainda descoberto,
ninguém dera ainda por mim. O jeito pacato dos jardineiros de novo logo me surpreendeu, como
eles, sem dizer palavra e com seus movimentos característicos, saíam da feitoria e entravam na
orangerie carregando as coroas. Atravessavam da cavalariça para a orangerie carregados com
tinas d’água. Apareceu um caçador, fez como quem quisesse entrar na orangerie, mas voltou-se
antes e desapareceu rumo à feitoria. Espremera-me ao muro para ter um ponto de observação
ainda mais perfeito. Temos de observar as pessoas quando elas não sabem que são vítimas de
nossa observação, pensei. Os jardineiros saíam da feitoria e entravam na orangerie, sempre com
buquês e coroas, com tinas d’água e tábuas de madeira. Na frente da orangerie foram dispostas
grandes tinas de madeira com ciprestes e palmeiras, e também um agave, como aqueles que os
jardineiros sempre plantaram e cultivaram com o maior cuidado na orangerie. Com que esforço
esses símbolos do sul foram cultivados e tratados com mimo aqui no norte, pensei, espremido ao
muro, por um lado com a consciência pesada, como se diz, por outro desfrutando ao máximo a
observação. Tive a calma de observar os jardineiros, pensando que em breve teria provavelmente
sob a vista pelo menos uma de minhas irmãs ou algum outro de meus parentes, sem a urgência
de ter de ver logo meus pais amortalhados e meu irmão amortalhado, como sem dúvida exigia o
mínimo de decoro. Mas talvez eu também tivesse medo do fato de ver subitamente os meus não
mais vivos, senão agora só mortos. Temia seus rostos de mortos como temi os de vivos, temia
agora seus rostos de mortos não tanto como temi os de vivos, porém os temia, e preferi
permanecer mais tempo espremido ao muro a simplesmente entrar no parque. A teatralidade do
que se passava junto à orangerie tornou subitamente claro para mim que assistia a uma peça
teatral na qual atuavam jardineiros com coroas e buquês. Falta porém o protagonista dessa peça,
pensei ao mesmo tempo, e mais, o verdadeiro espetáculo só pode ter início quando eu entrar em
cena, por assim dizer o ator principal, que vem às pressas de Roma para essa tragédia. O que
vejo do portão, pensei, são somente preparativos para esse espetáculo a que eu, e ninguém mais,
darei início. Toda a cena e aquela por trás dela, que se desenrolava nos bastidores, no edifício
principal, pareceram-me então os camarins nos quais os atores se aprontam, se maquiam,
ensaiam seus diálogos tal como eu próprio fazia, pois eu próprio me sentia como o ator principal
que se prepara para entrar em cena, com todos os expedientes imagináveis, para não dizer
requintes, que recapitula mais uma vez todos seus gestos e falas, que repassa mais uma vez seu
script, que mentaliza mais uma vez seus passos, enquanto observa calmamente os outros em seus
preparativos, que devem ser todos preparativos secretos. Espantou-me a calma com que
permaneci junto ao arco do portão e recapitulei meu papel para um espetáculo que de súbito não
me pareceu nada novo, mas já ensaiado centenas de vezes, quando não milhares de vezes.
Conheço esse espetáculo de trás para a frente, pensei. Não estava aflito com as falas que tinha a
dizer, elas me vinham automaticamente, meus passos, meus gestos manuais foram ensaiados
com tamanha perfeição que não precisava refletir como executá-los, como pô-los em prática
prontos e acabados. Cheguei de Roma na qualidade de ator principal desse espetáculo, pensei, e
não renunciei ao prazer desse pensamento, não tive vergonha alguma desse pensamento. Vou ter
uma boa atuação, pensei, e não ao mesmo tempo, você é uma pessoa sórdida, que não se dá conta
da abjeção desse momento. Esse espetáculo, essa tragédia, tem séculos de idade, pensei, e tudo
se dá automaticamente, o ator principal ficará maravilhado de ver como ele funciona bem, como
por seu turno seus colegas aprenderam e ensaiaram bem sua arte, pois eu não duvidava que
minhas irmãs e todos os outros que provavelmente me aguardavam estivessem da mesma forma
repassando seus papéis, pois como eu, eles não tinham o menor desejo ou mesmo só a intenção
de fazer má figura perante o público presente, que se chama cortejo fúnebre, ao esquecer o texto,
ao tropeçar em pleno palco, estando antes convencido de que eles, exatamente como eu, davam
valor à grande arte e não só ao puro diletantismo, e como se sabe, a arte do funeral,
especialmente no campo, é a arte dramática mais sublime que se possa imaginar, mesmo a gente
simples revela nos funerais uma maestria que a maioria das vezes deve ser classificada como
muito superior àquela de nossos teatros, nos quais reina quase sempre o puro diletantismo.
Minhas irmãs andam de lá para cá e ensaiam esse funeral não somente como um espetáculo,
pensei, ensaiam-no como uma festa de gala, e o fabricante de rolhas para garrafas de vinho de
Freiburg, disse comigo, lhes dá assistência e ao mesmo tempo também repassa seu papel, que
porém não pode ser mais que uma ponta, segundo pensei. Elas andam de lá para cá e me
aguardam e ensaiam a tragédia que foi inserida de forma tão repentina no programa teatral de
Wolfsegg, pensei. Amanhã será o enterro, pensei, é sempre três dias depois da morte. O pano
ainda não foi erguido. Os figurinos ainda não lhe caem muito bem, pensei, as falas não saem de
seus lábios sem atropelo. E o que há de mais belo do que um espetáculo no qual todos os
figurinos são pretos, no qual só a cor preta predomina? E no qual os próprios figurantes da aldeia
só devem aparecer de preto? Havia muito tempo não tínhamos mais esse espetáculo em
Wolfsegg, a última vez foi na morte de meu avô paterno, que aos oitenta e nove anos tropeçou
numa raiz de pinheiro no bosque atrás da vila das crianças que se estende até Haag e morreu na
hora. Os meus sempre estiveram por assim dizer preparados para um funeral, sempre tinham a
parafernália à mão, até os trajes necessários, tudo o necessário, mas levou um bom tempo para
que a ocasião se apresentasse de novo, pensei. Eles só tinham de espanar o pó, pensei. De fato,
como agora podia ver, eles tinham pendurado em todos os cantos do edifício principal as
bandeiras pretas. Os jardineiros seguem as ordens de minhas irmãs, pensei, mais as ordens de
minha irmã Caecilia que as de Amalia, pensei, e ao mesmo tempo, qual papel aquelas duas
designaram nesse meio tempo ao fabricante de rolhas para garrafas de vinho de Freiburg, o que
ele terá a dizer quando começar o espetáculo, pensei, que tipo de fala elas lhe puseram na boca,
pois, que ele tivesse uma fala própria, disso eu duvidava depois de meu único encontro com ele
no dia do casamento, alguns dias antes. De um casamento, Wolfsegg teve agora de ser
radicalmente transformada num funeral, pensei de pé ao lado do muro do portão, ainda admirado
com a viagem de Roma via Viena, que transcorreu sem contratempos e cumpriu à risca o horário,
contra toda a regra, nem os ferroviários nem os aeronautas fizeram greve, todas as baldeações
funcionaram às mil maravilhas, as minhas irmãs, pensei, com certeza ainda não guardaram as
decorações do casamento e já têm de dispor e arrumar por todo o canto as decorações do funeral,
seguindo exatamente o plano que lhes é familiar, pois minha mãe, pelo menos duas ou três vezes
ao ano, por assim dizer, para a diversão delas, como ela dizia sempre, e porque nunca se sabe,
discutia com elas esse plano de funeral, velho de séculos, em seus mínimos detalhes. Também as
núpcias e os aniversários sempre transcorreram em Wolfsegg segundo um plano exatamente
preestabelecido, como se diz. Que no átrio, por exemplo, à direita e à esquerda atrás das
luminárias, não se deve dispor somente um ramo de louro da orangerie, senão dois no caso de
um funeral, que na sacada lá em cima tem de haver dois ciprestes, um bem à esquerda, outro bem
à direita, e que esses ciprestes têm de ser obviamente da mesma altura, mas não tão altos que
entrem pela janela da sala de jantar, tudo isso é familiar a minhas irmãs. Para todo o tipo de
festas há em Wolfsegg um plano exato, minha mãe sempre guardou esses planos em sua
escrivaninha, na gaveta superior direita. Ela sempre procedeu segundo esses projetos, como
todos antes dela. O exato proceder segundo esses chamados planos de festa não teve de lhe ser
imposto por meu pai, num piscar de olhos ela fez deles sua paixão pessoal. E funerais sempre
foram uma paixão de minha mãe. Mas em seu próprio ela certamente não havia pensado,
sobretudo que ele haveria de ter lugar tão cedo, disse comigo de pé junto ao muro do portão, se
pudesse, foi o que pensei de repente, ela própria teria se incumbido do seu, e vi, sem as ver na
realidade, minhas irmãs já satisfazendo os desejos de minha mãe no tocante a seu próprio
funeral. A palavra diligência me veio à cabeça no momento. Para qualquer outro teria sido óbvio
subir a alameda até o topo com o táxi e, como sempre é hábito, até a frente do portal, não para
mim. O chofer do táxi ficou mesmo bastante surpreso, porque me havia reconhecido, que eu
saltasse justo naquele ponto escondido ao lado da coluna da Virgem, entre as duas hospedarias. E
que haja caminhado sozinho pelo vilarejo e cruzado a praça da aldeia, isso ninguém entenderia,
pensei. Mas queria me aproximar de Wolfsegg a pé, pensei, e a praça da aldeia completamente
deserta veio ao encontro de meu propósito de maneira ideal, não tive apenas a sensação de passar
perfeitamente despercebido, de fato o passara, e afinal não tinha nenhuma bagagem comigo,
coisa insólita quando se considera que chegava de Roma, e justamente por isso, por estar sem
nenhuma bagagem, podia quando bem entendesse enfiar minhas mãos no bolso da calça. E foi
assim, aliás, com as mãos no bolso da calça, que dobrei então a alameda, com uma insolência tão
monstruosa que ninguém teria entendido, naturalmente nem os aldeões. Tenho quarenta e oito
anos de idade e chego de Roma, ainda por cima para o funeral de meus pais e meu irmão, e fico
andando com as mãos no bolso da calça! pensei e me espremi bem ao muro do portão, para que
não ficasse à vista dos jardineiros, que entravam de novo na orangerie com as coroas trazidas da
feitoria. Um velório é sempre um grande espetáculo, pensei, uma obra de arte que surge pouco a
pouco sob muitas mãos que sabem como criar uma tal obra de arte. Que meus próprios pais e
meu irmão estivessem sendo velados na orangerie, esse pensamento eu logo reprimi, não pensei
na tragédia, mas na obra de arte, na grandiosidade do velório, não em seu efetivo horror como
nesse caso. Como sempre fui um contemplador perspicaz e um observador ainda mais perspicaz,
tendo feito desse contemplar e observar uma de minhas maiores virtudes, era natural para mim
estar de pé junto ao muro do portão e contemplar e observar, além disso os jardineiros eram um
meio ideal e extremamente repousante para tanto, sempre os contemplara e observara com gosto,
e o fazia de novo daqui, nesses momentos que prolonguei com todo o esmero, devo dizer, e
multipliquei por centenas, em última análise por milhares. O contemplar ou observar, quando o
contemplado ou o observado não sabe que é contemplado ou observado, é um dos maiores
prazeres. Porém é ao mesmo tempo, segundo pensei, uma arte de todo ilícita, mas da qual não
podemos escapar, uma vez que dela tomemos gosto. Novamente apareceu um caçador, saindo da
feitoria com um chamado candelabro fúnebre, a fim de entregá-lo a um jardineiro, que saíra da
orangerie, provavelmente, justo para receber esse candelabro fúnebre, esses candelabros têm
mais de metro e meio de altura e são colocados em ambas as extremidades do catafalco, de modo
a lançar uma luz ideal sobre os mortos, ao todo são colocados quatro de tais candelabros
fúnebres, que certa vez, faz muitos anos, ganharam uma nova demão de tinta dourada, como me
lembro, o que então exerceu sobre mim um grande fascínio, pois, pequeno como era, pensei que
estivessem sendo pintados e polidos para um funeral específico, do qual já se sabia de quem
fosse, mas isso fora um engano, pois, uma vez repintados os candelabros fúnebres, passaram-se
décadas até o funeral seguinte, que, como disse, foi o do meu avô paterno. Quando por muito
tempo não ocorre um funeral numa família, calcula-se que súbita e repentinamente ocorrerão
vários, eis a opinião comum, confirmada agora em Wolfsegg, pensei, três pessoas encontraram a
morte juntas, serão sepultadas ao mesmo tempo, o que significa que haverá depois um longo
período de calmaria, pois afinal sempre se diz que uma desgraça nunca vem sozinha, que
portanto também um funeral nunca vem sozinho, serão sempre três em seguida tal como as
desgraças, mas nesse caso uma desgraça causou de uma vez a morte de três pessoas para um
único funeral, de modo elementar, segundo pensei, um vezes três, três vezes um. Por entre as
árvores e arbustos já bem crescidos da encosta, ouvi agora subir do vilarejo alguns acordes de
instrumentos de sopro, uma peça de Haydn, como logo pude constatar, provavelmente, pensei,
eles já estão ensaiando lá embaixo na aldeia a música fúnebre para amanhã na chamada casa da
música, um antigo edifício ao lado da escola. A música foi interrompida após uns compassos e
reinou um silêncio absoluto. Depois a música começou novamente, do início, uns compassos a
mais do que antes, para novamente se calar, como é uso nos ensaios musicais, a música
começava várias vezes e tocava uns compassos, sempre uns compassos a mais, e se calava
novamente. Sempre a mesma peça de Haydn. Já bem de pequeno eu amava a música dos
aldeões, sobretudo a música de sopro, e conservei esse amor, que defino como predileção. Ainda
hoje a situo no mesmo plano que a chamada música erudita, com muita freqüência num plano
ainda mais alto, consciente de que a chamada música erudita seria afinal impensável sem a
chamada música popular, sobretudo aquela tocada em núpcias e funerais no campo. O que
seriam desses funerais e núpcias, pensei, sem essa música? Os aldeões tocam a maioria das vezes
com ouvido absoluto, e quando são bons, são também quase sempre instrumentistas à altura dos
chamados músicos profissionais, sua vantagem é que sua música não é profissional, que ela é
tocada única e exclusivamente por paixão e predileção, não por razões profissionais, que em
última análise podem se tornar uma doença profissional, como sabemos. Como foi diferente a
música dessa banda nas núpcias de minha irmã, pensei, alegre, bem cadenciada havia sido a
música, essa é melancólica, lenta, embora também esta, como aquela tocada nas núpcias, seja de
Haydn, desse músico que mais aprecio ao lado de Mozart, que ao lado de Mozart também
sempre preferi escutar e que talvez, justamente porque na história da música sempre esteve em
desvantagem com relação ao universalmente amado Mozart, deva ser ainda muito mais apreciado
que este. Amo Mozart e Haydn, mas dos dois Haydn é o maior, pensei. Essa música de Haydn
estava em sintonia com essa atmosfera meridiana, com a cintilação do ar, com os movimentos
dos jardineiros, que carregavam suas coroas e seus buquês cuidadosamente, uniformemente, da
feitoria para a orangerie, sem que nada ou ninguém os perturbasse. Lembrei-me de muitas tardes
de minha infância, nas quais ouvia subir até meu quarto a música de sopro do vilarejo,
exatamente a mesma peça e exatamente os mesmos instrumentos, segundo pensava, e segundo
era capaz de distinguir pelos sons da banda de sopro. Mas enquanto é costume eles só tocarem
peças musicais simples, pensei, agora eles tocam as mais complicadas, que, em suma, como se
diz, exigem um bocado dos instrumentistas, afinal para Wolfsegg tinha de ser música
complicada, por assim dizer música de registro superior para personalidades de registro superior,
pois dessas é que se tratava os velados na orangerie. Deve ter sido um choque para todos lá de
baixo quando a notícia fúnebre correu o vilarejo. Até onde se tem memória, Wolfsegg ainda não
testemunhara algo tão extraordinariamente terrível, pensei, e nesse instante lamentei não estar
nas casas lá de baixo para ouvir o que as pessoas diziam da desgraça, o que pensavam dela, como
se sentiam, que em suas casas eu não pudesse tomar parte de seu luto sem dúvida perfeitamente
natural. Meu pai eles o respeitavam, quando não o amavam, meu irmão todos eles mais ou
menos o respeitavam e amavam, é verdade, minha mãe eles a respeitavam, porém não a amavam,
seja como for era grande o seu luto, e a desgraça com certeza tivera sobre eles um efeito brutal,
como se pode imaginar, pensei. Mas o que realmente lhes estará passando pela cabeça? pensei,
sem poder me dar a mínima resposta. Afinal o vilarejo viveu durante séculos de nós aqui em
cima, pensei, ainda hoje eles existem em grande parte graças a nós, poderia dizer, os mineradores
sobretudo, os oleiros, os chamados lavradores, direta ou indiretamente todos no vilarejo mais ou
menos graças a Wolfsegg, ao redor da qual, uma centena de metros abaixo, ainda hoje eles se
agrupam, como se fosse de todo natural, como se buscando refúgio. Um único instante, disse
comigo, modifica tudo num vilarejo como esse, numa paisagem como essa. E numa família
como a minha, pensei. Agora já faz muito tempo, disse comigo de pé junto ao muro do portão,
que faço o que não se deve fazer, pelo menos não segundo o conceito geral de decoro, protelo
meu efetivo ingresso em Wolfsegg da maneira mais monstruosa, pensei. Mas provavelmente
também era muito covarde para entrar de imediato no parque e pelo menos me dirigir à
orangerie, ainda que não tomasse direto o rumo da porta, ainda que não fosse direto a meus pais
amortalhados e a meu irmão amortalhado, o que simplesmente não me seria possível, para isso
não tinha forças, só para ficar de pé junto ao muro do portão e olhar pelo portão no sentido da
orangerie, disso eu era capaz, não de me dar a conhecer de imediato, essa é a verdade. Não tenho
o desprendimento que torna possível entrar de supetão, por assim dizer sem rodeios, numa cena
sem dúvida pavorosa como essa. Mas quem poderia dar prova de uma tal força, perguntei
comigo a observar como os jardineiros transportavam da feitoria uma quantidade de cavaletes de
madeira num carrinho de mão, para descarregá-los diante da orangerie. Conheço os seus nomes,
pensei, observando os jardineiros com insistência, à medida que descarregavam. Conheço não
apenas seus nomes, conheço também suas famílias e sei exatamente de onde vêm, com um deles
não só freqüentei a mesma escola, senão a mesma classe, e ele sempre fora melhor que eu em
todas as matérias, sobretudo em matemática, mas também escrevia muito melhor que eu, isso
porém não quer dizer muito. Um deles mora na saída da vila, bem na divisa entre Wolfsegg e
Ottnang, e seu pai era funcionário da comuna, pensei, e além disso coveiro, quando eu ainda era
criança, um homem considerado que, contra todas as expectativas, era adorado pelas crianças, as
crianças do campo têm sempre uma relação natural com a morte, ao contrário das crianças da
cidade, que se pelam de medo sobretudo daquilo que se refere à morte, as crianças do campo não
revelam nenhum medo nesse sentido. O outro fora destinado a se tornar pároco, e fora enviado
pela paróquia ao seminário em Kremsmünster, mas lá, ele que no ginásio se sobressaíra tanto a
ponto de ser considerado o mais talentoso de todos, fora um completo fracasso e regressara a
Wolfsegg para se tornar aprendiz de carpinteiro. Com o tempo, porém, ele se cansou da
carpintaria e nos solicitou um emprego de jardineiro. Depois de concluir o aprendizado de
carpintaria ele concluiu também o aprendizado de jardinagem conosco e é portanto carpinteiro
qualificado bem como jardineiro qualificado, minha mãe falava muitas vezes desse feliz acaso,
fora jogada sua fazer com que o rapaz aprendesse jardinagem a sua custa, com direito a casa e
comida, assim ela pôde economizar um carpinteiro próprio para Wolfsegg. Minha mãe sempre
pensava em tudo e sobretudo nas coisas práticas e em todas as vantagens práticas, como se
demonstrou no curso das décadas. O terceiro vem de uma família de mineradores de Kohlgrube,
também ele freqüentou o ginásio comigo e logo se tornou aprendiz de jardineiro, embora não
conosco em Wolfsegg, mas em Vöcklabruck, onde tem uma tia que o acolheu e sustentou até o
final do aprendizado. Brincava com esses três quando éramos crianças, pensei. Corria com eles
nos bosques, pelas encostas. Provavelmente suas casas não mudaram até hoje, pensei, à diferença
das outras casas, que nos últimos anos foram todas mais ou menos modificadas e, como creio,
desfiguradas por seus donos com móveis novos, modernos, que não valem nada e logo quebram.
Mas aqueles dois nunca deram importância à modernidade, mas à qualidade, e por essa razão
suas casas certamente mudaram pouco. Cada um deles tem três filhos, que agora estão com a
mesma idade que eu naquela época, pensei, e lhes trazem os problemas que os filhos envolvem,
problemas que não tenho, disse comigo. Para qualquer outro, pensei assim, teria sido fácil se
dirigir aos dois jardineiros e lhes apertar as mãos, ficar com eles alguns instantes e conversar
com eles, embora tivesse vontade para tanto, isso me foi impossível. Rodei meio mundo, disse
comigo observando os jardineiros, e era mais ou menos versado nesse mundo, até mesmo com a
máxima naturalidade, para não dizer maestria, no que se refere ao trato social, e por ser assim
versátil alcancei em toda parte um alto grau de naturalidade, em quase todos os centros do
mundo e em todas as camadas da sociedade, como se diz, mas era incapaz de me dirigir aos
jardineiros, lhes apertar as mãos e conversar com eles alguns instantes. Devia ter logo me
dirigido a eles, pensei, assim que cheguei ao portão e os vi, pois quando cheguei ao portão eles já
estavam na frente da orangerie, mas não me dirigi a eles com passos resolutos, como teria sido
conveniente, senão de fato recuei de medo deles e me espremi, tomado mais ou menos de
timidez e vergonha, ao muro do portão, para que eles não me vissem. E no entanto teria sido
ideal primeiro cumprimentar os jardineiros, disse comigo. Mas essa chance eu perdi, deixei
escapá-la. Se fossem os caçadores, pensei, mas justamente os jardineiros, pelos quais tenho
enorme estima e de quem não somente gosto como de ninguém mais, senão amo. Mas por outro
lado esse negócio de ficar parado junto ao portão é típico de mim, disse comigo, não sou pessoa
de entrar logo em cena, seja lá qual, de ser capaz de ingressar em cena instantaneamente. A
hesitação é do meu feitio, ela é que me faz recuar primeiro a um posto de observação favorável.
Simplesmente me convêm os meios indiretos. As famílias dos jardineiros são uma vez por ano
convidadas em peso para um chamado lanche dos jardineiros na vila das crianças, esse lanche
dos jardineiros é uma tradição centenária. Os jardineiros sobem com suas famílias a Wolfsegg e
são recebidos por nós, no meu tempo sempre por minha mãe e por meu pai. O lanche dos
jardineiros sempre foi um acontecimento. No final, já no crepúsculo da tarde, eram ainda
distribuídos presentes às crianças dos jardineiros, não recordo que também nós, Johannes e eu,
tenhamos alguma vez recebido presentes, devo dizer, dessa maneira de fato comovente, aliás
minha mãe lá estava no seu elemento, devo dizer, com calma ela distribuía os presentes e todos
tinham a sensação de que isso lhe interessava de perto, não era uma comédia, como todo o resto.
Provavelmente o modo de vida dos jardineiros, esse meu pensamento, exercia até em minha mãe
uma influência benéfica como essa, pensei, pois com os jardineiros e portanto durante o lanche
dos jardineiros na vila das crianças ela como se transformava, bem remota de tudo o que nela foi
sempre repugnante. Com os caçadores sempre achei minha mãe repugnante, com os jardineiros
não. Os jardineiros sempre exerceram um efeito salutar em Wolfsegg. Não por acaso, mal
aprendi a andar, a primeira coisa que fiz foi ir ter com os jardineiros. Com muita freqüência
penso também em Roma nos jardineiros, quando fico acordado na cama e não consigo pegar no
sono, me vejo entre eles, sempre de disposição alegre. Como se eu houvesse me insinuado,
ocorreu-me agora. Por assim dizer, os jardineiros que eu observava eram as pessoas puras, eu a
impura, e isso pelo resto da vida. Pensei, nunca mais vou fazer parte daqui e muito menos deles,
e a vida inteira não tive vontade maior do que fazer parte deles, o que sempre só foi um
pensamento absurdo, um pensamento de fato inadmissível, que só um maluco como eu pode se
permitir. A vida inteira busquei as pessoas simples, quis me ligar a elas, mas como é natural
nunca tive êxito, por vezes acreditei ter tido sucesso, pude até muitas vezes prolongar no tempo
esse erro, sobretudo quando estava junto dos jardineiros e dos mineradores, de quem gostei desde
o princípio, mas toda vez esse sofisma tinha um desfecho terrível. Quanto mais os meus me
mantinham longe das chamadas pessoas simples, tentavam torná-los intoleráveis para mim,
maior era meu anseio por elas, durante muitos anos constatei em mim uma mania doentia por
elas e, embora o quisesse, porque me dera conta de que o contrário seria absurdo, impossível,
não tive forças de me livrar dessa mania doentia, ainda hoje sofro dela. Enquanto os chamados
de baixo sempre buscavam subir até nós, eu sempre só buscava descer até eles. Os de baixo eram
sempre infelizes como de baixo, eu o era como de cima, pois sofria por ser de cima, tal como os
de baixo por ser de baixo. A vida inteira quis me insinuar às pessoas simples, que afinal só são
simples no nome, pensei de pé junto ao muro do portão, usei de muitos truques para iludi-las,
mas elas me desmascararam e me barraram o caminho, tal como os meus barraram o caminho
aos chamados de baixo, porque os desmascararam e assim lhes barraram o caminho. Em meu
apartamento em Roma imagino-me por assim dizer com muita freqüência entre eles, pensei de pé
junto ao muro, misturo-me a eles, começo a falar sua língua, pensar seus pensamentos,
incorporar seus hábitos, mas como é natural só logro isso em sonho, não na realidade, é
totalmente equivocado relacionar-me com quem tenho enorme vontade. Eu não sou simples,
tenho então de dizer comigo, eles não são complicados, eu não sou como eles são, eles não são
como eu, essa fórmula tornou-se um tormento perpétuo para mim, impossível de ser suprimido.
Quando eu defino os meus, os chamados de cima, como hipócritas, e os chamados de baixo não,
isso é um erro, pois os de baixo são tão hipócritas à sua maneira quanto os meus à sua. Como se
eu dissesse, os de baixo são gente boa, como se eu dissesse que não são cobiçosos, nem
megalomaníacos, as pessoas simples o são em igual medida à sua maneira. Mas posso dizer que
entre e com os de baixo sempre me senti melhor que com os meus, ainda que mais tarde, quando
me dei conta de que estava equivocado com eles, sempre tivesse calafrios, certo até da traição
que cometera contra os meus e contra mim mesmo. Traímos constantemente a nós mesmos
quando preferimos os outros, quando por assim dizer os tornamos melhores do que em última
análise eles são, pensei. Abusamos deles quando por assim dizer nos declaramos dos seus e com
isso abusamos de nós de maneira ainda mais repugnante, porque nos abusamos a favor deles e
contra nós. Mas não logramos por inteiro permanecer nós mesmos e estar junto deles, ou em todo
caso só tão raramente que não podemos contar com isso, que isso não conta. Quando estamos
junto deles, a maioria das vezes nos despojamos daquilo que somos, o que eles logo percebem e
levam em conta contra nós, com o que não temos mais a mesma confiança que tínhamos ao
iniciar nosso jogo com eles, pois é sempre um jogo, mais nada, quando acreditamos ter de ser
eles porque deles tivemos saudades, porque não suportamos mais a nós mesmos, e eles nos
parecem em compensação ideais. Esse eterno equívoco nos é eternamente humilhante. As
pessoas simples não são tão simples como se crê, e as complicadas também não tão complicadas.
Do muro do portão via agora os jardineiros saírem da feitoria e entrarem na orangerie
carregando grandes panos pretos, os chamados panos fúnebres, que são conservados para
velórios numa câmara mortuária própria na feitoria. Lembro-me de já ter visto uma vez
exatamente a mesma cena: os jardineiros, não os mesmos que via agora, como é natural, saem da
feitoria e entram na orangerie carregando os panos fúnebres, mas de criança não estava, como
agora, aqui de pé junto ao muro do portão, mas bem na frente da orangerie, olhando sem o
menor embaraço os jardineiros bem de perto, sem a menor vergonha, sem o menor escrúpulo,
embora o defunto na orangerie fosse meu amado avô, enquanto agora, trinta anos depois, estava
de pé junto ao muro do portão e tinha de me esconder por razões de que no fundo não tinha plena
consciência, mas por várias razões que simplesmente me agoniavam. De súbito me senti
agoniado. Lá estava de pé e não tinha o autocontrole natural de então, quando criança, para
simplesmente me dirigir aos jardineiros e lhes apertar as mãos, lhes dizer como os amava, como
eles sem pre foram úteis, de ir até eles e me mostrar a eles como sou. Disso eu me acovardava.
Disso eu tinha medo. Vai ser uma catástrofe, pensei, se o natural encontrar o artificial, eu, como
sem dúvida o artificial, segundo pensei, com os jardineiros sem dúvida de todo naturais. Por um
instante disse comigo, é só cisma essa minha artificialidade, eu sou natural, e também é só cisma
minha que os jardineiros sejam naturais, de fato os jardineiros são tão artificiais e naturais quanto
eu, disse comigo. Tinha as mãos frias, embora fizesse calor. Quando criança, pensei, sempre
encontrei as palavras certas, agora não as encontro mais. Não precisava refletir para me fazer
entender da forma mais natural pelos jardineiros ou mineradores. Foi para isso que tive de sair
pelo mundo e ir a Paris e a Londres e a Roma, pensei, para agora, como se diz com todo acerto,
estar tão bloqueado como nunca, para isso estudei minhas ciências e adquiri, como creio, um
conhecimento superior dos homens, para agora não saber mais como ir ter com os jardineiros e
lhes apertar as mãos e trocar duas palavras com eles. Por um instante tive a sensação de que, nas
décadas em que fiz de tudo para me libertar e me tornar independente de Wolfsegg, e não só de
Wolfsegg, mas independente de tudo, não me libertei e não me tornei independente, pelo
contrário, mutilei-me da forma mais deprimente. Sou uma pessoa mutilada, pensei. Mas logo a
seguir fui ter com os jardineiros e lhes apertei as mãos. Não ficaram surpresos com minha
chegada para eles repentina. Eu lhes dirigi pelos nomes, lhes apertei as mãos, disse que subira a
pé da vila até Wolfsegg, disse que os observara por alguns instantes, postado junto ao muro do
portão, disse volvendo o olhar para este. Isso eles não entenderam, mas também não atribuíram a
esse comentário importância alguma, olharam comigo para os lados do muro do portão, sem
saber que atitude tomar. De forma natural, em conformidade com aquele dia, eles não tinham a
mesma desenvoltura de sempre, só falavam algo quando eram perguntados, e eu apenas
perguntava como estavam, ao que eles se mantinham em silêncio. Supunham obviamente que eu
iria direto à orangerie ver os defuntos, mas não fui, dirigi o olhar para o portal escancarado,
como logo vi, depois para o lado da feitoria, onde não se via ninguém, depois novamente para o
portal e perguntei aos jardineiros se minhas irmãs estavam em casa. Responderam a minha
pergunta com um sim. Então me dirigi ao portal, ao grande retângulo negro lá no alto, sobre o
qual pendia, da sacada superior, a bandeira preta inteiramente desfraldada. Uma semana antes o
parque estivera repleto de gente de toda espécie, mais ou menos alegre, segundo pensava, com
trajes mais ou menos coloridos, festejando o jovem casal, minha irmã Caecilia e seu fabricante
de rolhas para garrafas de vinho, até que um temporal repentino pôs fim a toda aquela agitação,
afugentando a todos ou para seus carros, indo estes embora para casa, ou para dentro de casa,
para ali ficarem a noite inteira comendo, bebendo vinho, dançando ininterruptamente. A noite
inteira tocou uma orquestra de dança de Ebensee e não deixou dormir quem se recolheu à meia-
noite. Só às cinco da manhã a orquestra parou de tocar, os últimos pararam de dançar, tudo ficou
calmo de repente, pensei me dirigindo ao portal. A animação dos convidados também me
contagiara e eu não me restringira a observar a cena, mas também tomara parte nessa cena
animada, dançara duas vezes até, uma com Amalia, outra com Caecilia, mas naturalmente essas
duas danças me bastaram, não dançara nada mal, quem aprende a dançar uma vez não esquece
mais, em todo caso dancei melhor com Caecilia que o fabricante de rolhas para garrafas de
vinho. Embora os gordos não dancem mal, disse comigo, embora a maioria das vezes dancem
melhor que os magros, além de serem mais musicais. Mas aqueles muitos sobrinhos e sobrinhas
em quem subitamente pus os olhos nesse casamento, pensei, logo me deram nos nervos e tive
mais um exemplo do quanto é superficial essa rapaziada de hoje com seus vinte anos, como é
desinteressada de tudo, exceto de sua furiosa sede de divertimento. Não fui capaz de conversar
realmente com nenhum desses sobrinhos e com nenhuma dessas sobrinhas, não penso nem
sequer num diálogo, quero dizer, nem mesmo uma breve conversa mais ou menos espirituosa foi
possível com eles, quando não dançavam ficavam ali à toa, sem senso de humor, atoleimados
mesmo, e se podia vislumbrar neles o tédio perpétuo que os afligia, porque não haviam feito
nada contra esse tédio em última análise mortal quando ainda era tempo. Para todos esses jovens,
pensei comigo, já é muito tarde para escapar desse perpétuo tédio mortal, agora eles já estão
quase inteiramente carcomidos por seus caprichos, por suas profissões, por suas namoradas e
mulheres, prisioneiros de suas perversas superficialidades. Quando se fala com eles, só o que têm
na cabeça é seu abominável superficialismo e sobretudo a perspectiva de sua aposentadoria e seu
carro. Não converso com uma pessoa, converso com um presunçoso sumamente primitivo, sem
qualquer imaginação ou escrúpulo, quando converso com um deles, pensei. Os fanfarrões
primitivos da dita alta sociedade da região, entupidos de dinheiro e nada mais, reuniram-se nesse
casamento em suas roupas de mau gosto talhadas sob medida, os passamanes chamativos em
suas calças e os botões de chifre de cervo descomunais em suas lapelas dominavam a cena, os
herdados jaquetões de feltro preto e as também herdadas gorjeiras pretas. E Caecilia metera ainda
por cima seu fabricante de rolhas para garrafas de vinho num calção de couro que meu avô
paterno, quando vivo, já não vestia fazia décadas, provavelmente pelo único motivo de tornar em
segredo seu fabricante de rolhas para garrafas de vinho uma figura ainda mais ridícula, não era
despropósito algum pensar assim, conhecendo-a como a conheço. E lhe pespegara aquele casaco
que esse mesmo avô vestia quando topou na raiz de pinheiro no bosque, e no qual fora carregado
do bosque para casa e estendido primeiro na feitoria e por fim velado na orangerie. Esse casaco,
pensei o tempo todo que observei o marido de minha irmã, já fora velado uma vez, o que minha
irmã sabia, de plena consciência pespegara em seu fabricante de rolhas para garrafas de vinho
esse casaco já velado uma vez na orangerie, esse casaco de defunto, envergado no casamento
por um impulso sem dúvida perverso. Que pavorosa deve ter sido a sensação do noivo o tempo
inteiro nesse casaco, nesse casaco de defunto, pensei, a infâmia de minha irmã não conhece
limites, mas seria perfeitamente possível que minha mãe tenha tido a idéia de vestir no
casamento o fabricante de rolhas para garrafas de vinho com esse casaco, com esse casaco de
defunto já velado uma vez na orangerie, no fundo isso seria mais plausível, pois minha mãe
sempre tivera as idéias mais pérfidas, e a pura infâmia sempre fora o principal móbil de suas
ações. O que é mais, o pobre homem, como constatei aquele tempo todo, não podia andar nos
sapatos de fivela pertencentes a esse mesmo avô, só conseguia manter-se de pé com passos
cômicos, mas trajava, afinal de contas, uma indumentária com cento e vinte anos de idade, coisa
que Caecilia a todo instante salientava a todos, sem que ninguém houvesse perguntado, para
tornar a si mesma interessante e a seu marido, ridículo, consciente ou inconscientemente, na
presença de todos os convidados. No fundo, ao apresentá-lo nessas roupas de cento e vinte anos
de idade, Caecilia apresentou seu marido a esses convidados como um palhaço, pensei. Por outro
lado, pensei, todos vestiam roupas de palhaço, pois todos, com umas poucas exceções, como os
médicos de Wels e Vöcklabruck, como os advogados dessas mesmas cidades, como alguns dos
parentes de Viena e Munique, vestiam tais roupas antigas, de pelo menos cem anos de idade. E
com isso se fizeram de palhaços, como é óbvio. Tais casamentos sempre só me deprimiram e
logo deixei de tomar parte neles, sempre declinava os convites. Mas teria sido impossível não ir
ao casamento de minha irmã, ficar em Roma, uma tal afronta não estava nas minhas intenções,
eu estava, pelo contrário, surpreso de ter superado tão bem esse casamento. E esse é afinal o
último casamento de que participo, pensara, como se de antemão excluísse para sempre um
casamento de minha outra irmã, Amalia, e um casamento de meu irmão ao menos para a década
seguinte. Gente de uma estupidez sórdida, pensei, essa que esteve no casamento. Nos alegramos
de ver uma pessoa que conhecemos praticamente desde que nos conhecemos por gente, lhe
apertamos a mão, mas na hora vemos que ela se tornou uma imbecil, pensei. E os jovens são
ainda mais estúpidos que os velhos, em quem a maioria das vezes há pelo menos algo de
grotesco. Vivemos sempre no erro de que, assim como nos desenvolvemos, seja lá para onde,
também os outros se desenvolvem, mas isso é um erro, a maioria ficou parada no lugar e
absolutamente não se desenvolveu, quer nessa, quer naquela direção, não se tornou melhor nem
pior, tornou-se apenas mais velha e com isso extremamente desinteressante. Acreditamos que
ficaremos surpresos com o desenvolvimento de uma pessoa que de muito não vemos, mas,
quando a revemos, só nos surpreende que ela não tenha se desenvolvido, que só esteja vinte anos
mais velha e, em vez da figura enxuta, agora tenha uma baita pança e anelões de mau gosto nos
dedos gorduchos, que uma vez nos pareceram tão bonitos. Acreditamos que teremos muito que
falar com este e com aquele, e constatamos que não temos nada a falar com nenhum deles.
Estamos ali e nos perguntamos, por quê, e não encontramos palavras, salvo que o tempo está
assim ou assado, que a crise política está assim ou assado, que o socialismo mostrará agora sua
verdadeira face e assim por diante. Acreditamos que o amigo de ontem também é o amigo de
hoje, mas de pronto vemos nosso erro cruel, com muita freqüência fatal mesmo. Com essa
mulher você pode conversar sobre pintura, com aquela sobre poesia, você pensa, mas então tem
de admitir que se enganou, uma sabe tão pouco sobre pintura quanto a outra sobre poesia, as
duas só dispõem de seu lero-lero de cozinha, como é feita a sopa de batatas em Viena e como é
feita em Inssbruck e quanto custa um par de sapatos em Merano e um igual em Pádua. Como era
bom falar com este sobre matemática, você pensa, como era bom com aquele outro sobre
arquitetura, mas constata que a matemática de um, a arquitetura do outro ficaram atoladas vinte
anos atrás no pântano da maioridade. Você não encontra mais nenhum ponto de apoio, nenhum
suporte, com isso você os ofende, sem que eles saibam por quê. Súbito você nada mais é que o
ofensor, que os ofende sem parar. Esse vai ser um casamento mais que ridículo, pensei antes de
partir de Roma para Wolfsegg, e então, depois de nele haver tomado parte, pensei que no fundo
tinha sido muito, muito mais ridículo do que sequer me atrevera a imaginar. Mas só ouvia falar
de um casamento magnífico, de um casamento único, como se diz. Porém vou me guardar de
lhes dizer a minha verdade, já que a deles está no poder, pensei. Ora, o casamento em si foi
divertido à beça, de uma forma deliciosamente cômica. A capela em que ele se realizou estava
apinhada, como é natural, de modo que o mesmo tanto de pessoas que estava em seu interior teve
de ficar de pé no átrio durante a cerimônia. Como é natural, não forcei caminho até os meus nas
duas primeiras fileiras, isso eu descartara de antemão, antes fiquei de pé no átrio com as moças
da cozinha e os jardineiros. Como tenho bons ouvidos, ouvi tudo o que o pároco dizia. Como o
pároco estivesse ligeiramente bêbado, seu ministério sagrado tinha algo de improvisado e não era
tedioso como de costume nessas ocasiões, senão divertido para todos. Só minha mãe, como se
diz, deve ter suado frio. O pároco tinha de fazer um discurso em honra dos noivos, no qual
misturou porém todo tipo de fato e ficção e concluiu finalmente com a frase, válida em todas as
circunstâncias, que a vida era a vida em Deus até o final, e nada mais. Mas ao chegar ao auge da
solenidade, quando tinha de perguntar aos noivos se lhes era de livre e espontânea vontade
aceitarem um ao outro como cônjuges, ele esqueceu o nome da noiva e, depois de uma longa
pausa, de dar na vista, pediu em voz alta por socorro, isto é, pelo nome da noiva, que meu pai
então lhe gritou com vontade, o que desencadeou instantaneamente uma estrondosa gargalhada
na capela e em todo o átrio. Como ele também não conseguisse reter o nome do noivo, teve de
solicitar também este, e meu pai, agora contudo já furibundo, lhe berrou também esse nome, com
o que rebentou na capela e no átrio uma gargalhada ainda mais estrondosa que no primeiro
branco de memória eclesiástico. Nessa ocasião tive ganas de gritar por sobre as cabeças, na
direção da capela, simplesmente o termo fabricante de rolhas para garrafas de vinho, em vez do
nome de meu futuro cunhado, mas no derradeiro momento me contive. Essa abjeção de minha
parte permaneceu portanto segredo meu, pensei. É sempre ridículo quando a noiva diz sim,
porém ainda mais ridículo quando o noivo diz sim. Isso eu pude constatar novamente nessa
ocasião. Como podemos levar a sério este sim da noiva quando sabemos bem que ele é hipócrita,
tão hipócrita quanto o sim do noivo, este sim constrangedor pronunciado duas vezes, com o qual
só se firma um martírio de décadas, pensei. O sim matrimonial firma o jugo matrimonial. Nada
mais. E não há nada que as pessoas almejem tanto como dizer o sim e abrir mão de si próprias e
se aniquilar, pensei. Como me parecia ter assistido a um pequeno espetáculo, uma comédia ou
farsa encerrada em si mesma, tive uma vontade imensa de aplaudir calorosamente no instante em
que o pároco disse a última palavra e se afastou com os acólitos, sobrinhozinhos de seis a sete
anos. Mas me contive também dessa vez. Minha discrição valia muito para mim, um escândalo
tornaria para mim a estada em Wolfsegg absolutamente intolerável, não cogitava atrair a atenção
sobre mim, para que então se dissesse novamente, o desmancha-prazeres novamente entrou em
cena. O clímax do espetaculozinho centenário do casamento é o sim, pensei, com o qual a Igreja
Católica se apossa plenamente daqueles que proferiram esse sim. O pároco foi depois convidado
a subir ao primeiro andar, onde aguardou o sinal de que o banquete estivesse servido, que foi
dado em todos os aposentos anteriores do primeiro andar. Minha mãe, como sempre em tais
ocasiões, presidia a tudo, e o casal de noivos foi reduzido à dimensão que a esse casal de noivos
era de todo pertinente, a uma marionete gorda e a outra magra, que tomaram assento lado a lado
no centro da mesa, por assim dizer com as costas para a sacada e portanto para o mundo externo,
o gordo fabricante de rolhas para garrafas de vinho e minha irmã Caecilia, que não parava de lhe
acariciar a mão esquerda com sua mão direita, não por uma necessidade íntima, mas porque
assim mandava o figurino, segundo ela pensava. Depois de os convidados terem comido a
comida, sem dúvida boa, e bebido o vinho, sem dúvida também de primeira classe, e
naturalmente de Baden, minha mãe levantou-se mais uma vez para fazer um breve discurso, que
deu inimitável expressão a sua arte da hipocrisia. Agora ela tinha o melhor dos genros que podia
imaginar, ela disse, e a filha mais feliz que se pudesse conceber. Ela foi até o fabricante de rolhas
para garrafas de vinho e lhe cobriu de beijos na frente de todos e depois ainda abraçou Caecilia e
convidou para que todos descessem ao parque. Lá, porque fizesse tempo bom, estavam dispostas
muitas mesas, e os jardineiros e caçadores logo se misturaram aos chamados superiores. Muitas
pessoas da aldeia também haviam subido para juntar-se à festa. Fizeram isso com absoluta
espontaneidade. De novo foram os jardineiros e os mineradores que me agradaram mais. A
banda de sopro tomara posição num palanque armado recentemente na frente da orangerie e
desfiara pouco a pouco todo o seu repertório, repetindo-o de hora em hora desde o princípio.
Dizem que a animação desse casamento foi ouvida até em Atzbach, que fica a seis quilômetros a
leste. Meu irmão fora de um retraimento conspícuo, retirara-se muito cedo e não fora mais visto,
desde criança ele sempre fora avesso a essas festas, mas não pelas mesmas razões que eu, que
depois de poucas horas não podia mais suportar sua superficialidade e em última análise sua
deselegância, mas por razões de saúde. Sempre lhe vinha logo uma dor de cabeça. A vida inteira
ele sempre sofreu de dor de cabeça, tal como meu pai, a quem essa dor de cabeça também
sempre estragou tudo. Ele, meu irmão, talhado como nenhum outro para tanto, disse comigo, até
hoje não se casou e não consigo me explicar por quê; ele, que precisa impreterivelmente de um
herdeiro e a toda hora é pressionado a isso por sua mãe, ele, que ainda mais vive às turras com
sua mãe, pensei ao longo de todo o casamento. Claro que ele se casará um dia, às pressas, antes
que seja tarde, com uma mulher qualquer, pensei, filha de algum merceeiro de Wels, de
Vöcklabruck, uma enfermeira qualquer de Salzburgo, filha de algum estalajadeiro de Unterrach
ou Strasswalchen. Tipos como meu irmão esperam chegar aos cinqüenta e estar mais do que na
hora, então fecham os olhos e traçam a primeira que aparece, pensei, um remate à altura dos
palhaços caducos que se tornaram. Antes disso deixam escapar as oportunidades, os melhores
partidos, como se diz, não permitem que as chamadas aventuras resvalem no hábito, nem tomam
como natural o namoro com uma garota ou uma mulher. Nessa época a cama não pertence a uma
só, mas a diversas, ainda que não a muitas, mas sempre a uma nova, que então logo é posta a
correr por medo da prisão perpétua, certamente ele pensa assim, pensei. Agora a bestalhona da
Caecilia se casou, eu é que não me caso antes dos cinqüenta ou até mais tarde, ele deve ter
pensado com os seus botões, apalpando a cabeça, e retirou-se com aquela sua enxaqueca. Agora
ele se habituou a só usar chapéus velhos, pensei, tal como seu pai, a usar casacos velhos, calças
velhas, sapatos velhos, tudo que ele usa tem sempre de ser velho, dessa maneira, tal como a
maioria de sua classe e de sua linhagem, ele crê sempre poder representar melhor essa classe e
essa linhagem, poder introjetá-las, corresponder ao gosto da chamada elite, da qual ele sempre se
considerou parte. Ele compra um chapéu e o expõe à chuva, deixa-o dependurado umas semanas
num gancho na sacada do pavilhão dos caçadores e só o retira do gancho quando estiver curtido
pelo tempo; então o assenta sobre uma panela com água fervente e o veste assim, pelando de
quente, para que tome a forma de sua cabeça, as calças ele mergulha brevemente na água e as
pendura na janela, para tomarem vento antes de vesti-las, o mesmo ele faz com seus casacos,
com os sapatos ele dá primeiro uma bela caminhada, de lá para cá, no barro do jardim, para que
eles não dêem a impressão de serem novos em folha, pois não se usam sapatos novos, não se
vestem casacos novos, não se anda com chapéus novos, tudo novo é visceralmente desprezado,
odiado mesmo, porque assim manda o figurino, as casas novas também, as novas igrejas, as ruas
novas, as novas invenções, obviamente todas as pessoas novas também, como se diz, tudo novo,
de que os novos pensamentos naturalmente também fazem parte. Esse círculo habituou-se ao
longo dos séculos a desprezar e a odiar tudo novo, com o que ele próprio se tornou velho e não
se renovou mais. Esse pobre homem, dizia comigo muitas vezes a respeito de meu irmão. Esse
pobre homem foi carcomido pelo círculo que ele, como se diz, toma como único e verdadeiro,
nada mais restou dele que lembre sua personalidade, tal como seu pai, pensei, ele leva a mesma
vida de milhões de outras cópias desse velho círculo. Tudo nele e ao redor dele tem de ser velho,
pensei, só seu carro é que não, a respeito deste ele dava a maior importância que fosse o mais
novo e o melhor, o que significava que sempre tinha de ser também o mais caro. Tornou-se um
hábito para ele todo ano trocar de carro; como minha mãe anda nele, porque ela própria não tem
carro, porque não tirou a assim chamada carteira de habilitação, esse carro tinha de ser a seus
olhos o mais belo e o melhor. Agora esse carro mais belo e melhor, o Jaguar, tornou-se a
perdição deles, pensei. Seu culto ao carro os destruiu, pensei. Se de costume ele era a pessoa
mais pacata, ao volante não era mais que um desembestado, tornando-se a autoridade máxima
que não podia ser fora do carro, afinal isso lhe proibia a sua e minha mãe, que reivindicava esse
título para si, no carro, no Jaguar, ele era porém a autoridade máxima e ela tinha de se submeter,
ele determinava, quando não o caminho, a velocidade, coisa que para ela, nessas ocasiões
sentada no banco de passageiros sempre morta de medo, como sei, era um verdadeiro suplício,
como se diz. Meu pai gostava do trator, não do carro, que para ele sempre fora muito leve, meu
pai não perdia a ocasião de se sentar num de nossos McCormick, ainda que sem o menor
propósito. Sentado no trator ele se considerava a mais feliz das pessoas. A mais independente.
Sentado no trator ele era ele próprio, isso era tão triste quanto verdadeiro, e nele eu acreditava, a
que ponto chegamos, que agora só posso estar sozinho e feliz sentado no trator, ele me disse
uma vez. Seu filho, meu irmão Johannes, pelo contrário, falara muitas vezes de ter de entrar no
carro para poder respirar e abandonar-se a seus pensamentos, seja lá o que isso significasse para
ele, me deprimia ouvi-lo dizer isso, ter de tomá-lo como a verdade. Meu irmão está saindo cada
vez mais a meu pai, pensei muitas vezes. Nos últimos tempos ele já se aproximou bastante,
pensei no casamento, não dura muito e ele será nosso pai. Seu modo de andar, toda sua postura,
sua voz estão cada vez mais parecidos com meu pai, logo vão coincidir com a postura de meu
pai, com seu modo de andar, com sua voz e em conseqüência, é claro, com sua postura
intelectual. O primogênito estava por assim dizer desde o início predestinado a ser meu pai e em
breve o será, pensei. É só uma questão de tempo, de brevíssimo tempo. E às vezes, quando meu
irmão fala, pensei, tenho mesmo a sensação de que fala meu pai, ouço meu irmão caminhar,
caminha meu pai, meu irmão pensa, pensa meu pai. Com Johannes meus pais tiveram seu filho
dos sonhos, pensei. Não poderiam sonhar com outro melhor, outro mais adequado a eles. Pouco
a pouco ele se aproximava da imagem ideal que sempre tiveram de um filho, com a mesma
rapidez com que eu me afastava de tal imagem ideal. Por isso eles sempre o amaram mais, a mim
desprezaram e odiaram, execraram mesmo cada vez mais, sem na verdade admiti-lo, não
ousavam fazê-lo, com todos aqueles ininterruptos expedientes de autodefesa em suas cabeças. A
imagem ideal está quase perfeita, pensara no casamento de minha irmã Caecilia, coincide quase
inteiramente com o modelo que meus pais, ainda que só a posteriori, como se diz, adotaram
como imagem ideal. Meu irmão deixou-se educar para ser a imagem ideal, eu sempre me
esquivei dessa injunção, nunca estive interessado em representar uma tal imagem ideal paterna,
execrava uma tal imagem, porque, em suma, nunca quis corresponder a um modelo e com isso
também nunca pude ser uma imagem ideal. Johannes eles puderam, como se diz, modelar,
plasmar, a mim não. E começaram com essa modelagem de meu irmão, com esse processo
plasmador paterno, já de cedo, já quando essa argila infantil não tinha mais de três, quatro anos,
perceberam já então que era possível fazer dessa argila sua imagem ideal, e se puseram a plasmar
e a modelar a argila Johannes, sem nenhuma resistência, enquanto comigo sempre encontraram a
máxima resistência nesse sentido, pois desde o início me esquivara a suas mãos, a sua cabeça, a
sua arte plasmadora e modeladora, não deixara que se aproximassem, logo os repelira desde o
início. Eles plasmaram Johannes como bem entenderam e se regalaram com isso, sem perceber
que, com sua arte plasmadora e modeladora, o destruíram e aniquilaram, definitivamente. Da sua
cabeça natural fizeram uma cabeça ideal e com isso, a meu juízo, aniquilaram essa cabeça da
maneira mais impudente e sórdida, sem piedade, fizeram dele aquilo que não puderam fazer
comigo, um imbecil ideal, que com o tempo se tornou aquilo que queriam, uma pessoa servil,
que correspondia nos mínimos detalhes a suas intenções. Johannes, pensei, tornou-se
absolutamente servil a meus pais, mas sobretudo a minha mãe, não se defendera, isso lhe era
mais cômodo que o contrário, defender-se contra toda a monstruosidade paterna e contra toda a
sordidez paterna e contra toda tendência paterna a deturpar tudo; só no carro, no Jaguar, e mesmo
nele por assim dizer só em movimento, podiam seus pensamentos ter livre curso, nessas viagens
de terror, como sempre dizia minha mãe, ele podia respirar, mas uma vez fora do carro, do
Jaguar, faziam-lhe pagar mil vezes mais, esse pobre homem, pensei. Estou certo de que, quando
chegar aos cinqüenta, haverá aqui, como se diz, um casamento de arromba, pensei. Mas um
defunto não pode mais se casar. Com esse pensamento atravessei o portal. O átrio estava deserto.
As luminárias do vestíbulo estavam ornadas com ramos de louro, como supus, cada uma com
dois ramos de louro, segundo o plano de funeral. Reinava exatamente essa doce calma
inquietante que é característica das casas de luto. O chão do vestíbulo fora lavado algumas horas
antes do meu ingresso, esfregado, como dizemos, de joelhos, pelas moças da casa, a mais velha
das quais já tem setenta e quatro anos de idade, mas ainda continua a contar como moça da casa,
mesmo no leito de morte, quando estará velhíssima, provavelmente com mais de oitenta, tal
como a maioria de nossas moças da casa, ainda será definida como moça da casa. As moças da
casa sempre se sentiram bem em Wolfsegg, dizia minha mãe, embora por outro lado, como
minha mãe também sempre dizia, nada lhes tenha sido nem seja poupado. Usam elas aventais
cinzas, cortados por nossa costureira doméstica no vilarejo lá embaixo, pelos quais são
reconhecíveis de longe, penteiam os cabelos puxados para trás e andam, de resto, sem nenhum
atavio, como manda o figurino, assim dizia minha mãe. É o que lhes fica melhor, assim dizia
minha mãe. Quase sempre passam a servir em Wolfsegg com catorze ou quinze anos e em
Wolfsegg envelhecem. Não têm nada do que rir, como se diz, mas são, assim também dizia
minha mãe, muito estimadas por todos em Wolfsegg. Seu número diminuiu drasticamente nos
últimos anos, antes eram doze, incluindo as moças da cozinha, a mais velha das quais já passou
até dos setenta, agora só são cinco ao todo. Quase todas sempre tiveram, desde que nasceram,
uma voz desagradável, assim dizia minha mãe, ou lhes viera aquela voz desagradável em
Wolfsegg com o passar do tempo, pois em Wolfsegg jamais lhes foi permitido falar de maneira
natural com sua voz, senão de uma forma artificial, também inculcada pela minha mãe, o mais
baixo e reservadamente possível, assim também dizia minha mãe, o que só podia acabar por
distorcer suas vozes. Agora as moças da casa vêm quase todas da vila lá de baixo, mas antes
minha mãe preferia sempre pegar aquelas de Mühlviertel, que saem tão em conta, se possível de
famílias camponesas cheias de filhos, pois essas eram famosas por estarem sempre satisfeitas
com tudo (palavras de minha mãe) e por serem eficientes e em geral sempre trabalhadeiras. Mas
nos últimos tempos Mühlviertel não fornecia mais moças da casa, as moças de Mühlviertel
preferiam ser operárias a moças da casa, coisa que minha mãe sempre definiu como decadência
de Mühlviertel, característica não só de Mühlviertel, mas do mundo em geral. As moças da casa,
naturalmente, eram católicas até a medula e tinham na exata medida do desejado uma atitude
humilde perante a autoridade, não só eclesiástica mas também secular. As moças da casa
favoritas sempre vinham da região de Freistadt e de Aigen-Schlägel, para onde convergem as
fronteiras da Boêmia e da Baviera e da Áustria e aonde não chega a estrada de ferro. Eram
sempre as mais devotas, assim dizia minha mãe, as mais decentes, assim também dizia minha
mãe. Ela própria ia buscá-las, passando pelos conventos de Freistadt e AigenSchlägel e deixando
claro o que queria. As freiras ou os monges, conforme o lugar, lhe confiavam a maioria das vezes
duas ou três moças bem jovens, ainda não corrompidas, com as quais ela retornava a Wolfsegg,
para iniciá-las e pô-las à prova. Essa iniciação em forma de prova consistia em fazer com que,
logo de cara, a moça esfregasse o átrio, o que logo de cara custava a cada uma delas um esforço
tremendo, pois o comprimento do átrio e também a largura, quando se trata de esfregar, exigem
de fato um trabalho desumano. Mas as moças, fascinadas com o espalhafato de minha mãe e de
Wolfsegg em geral, com uma propriedade que nenhuma delas nunca tinha visto antes na vida,
esfregavam o átrio, sabe-se lá a que penas, algumas fracassavam, então minha mãe lhes
comunicava a terrível notícia, que não podia contratá-las, com o que aquela que primeiro
fracassara sempre achava jeito de esfregar o átrio por inteiro numa segunda tentativa. Minha mãe
sempre fora implacável. E como sempre era mais implacável consigo mesma, jamais poupava a
quem a rodeasse pelo menos a mesma implacabilidade. As moças da casa se matavam de
trabalhar, como se diz, e no entanto estavam sempre felizes de poder estar em Wolfsegg, como
elas próprias sempre exprimiam, elas custavam uma ninharia a minha mãe e, por assim dizer
como testemunho do bom tratamento que lhes era dispensado, tornavam-se velhíssimas em
Wolfsegg, como já se referiu. O absurdo era que de um lado elas se matavam de trabalhar, mas
de outro se tornavam velhíssimas. Nenhuma moça da casa morreu por assim dizer jovem em
Wolfsegg, pelos menos não antes dos sessenta. Todas elas tiveram um belo funeral, assim dizia
minha mãe, e as famílias das moças da casa sempre eram gratas que a uma das suas fosse
permitido trabalhar em Wolfsegg. Essa atitude não mudou até hoje, pensei no átrio deserto,
recém-esfregado, com suas largas tábuas de lariço. As teias de aranha, que de costume
escureciam os cantos do átrio, haviam sido removidas já antes do casamento, pensei, as janelas
limpas, as luminárias untadas com óleo para que reluzissem. Os jardineiros me disseram que
minhas irmãs estavam no prédio principal, o novo patrão também, como na sua inocência
definiram o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, pensei. Os três estarão portanto lá em
cima no primeiro andar, sem nem ter idéia de que já estou no átrio, mais ou menos debaixo deles.
Porém não tinha vontade de subir logo até eles, e aguardei no átrio os minutos seguintes. Fiquei
ali ao pé da escada que conduz ao primeiro andar, onde na parede está pendurado um quadro de
um tio-tataravô, Ferdinand, que, como dizem, salvou a vida do imperador lançando-se entre o
imperador e um traidor húngaro que investia contra ele. Esse ato de heroísmo custou a vida a
meu tio-tataravô e em recompensa, como ainda hoje se murmura, foi promovido postumamente a
um posto superior na hierarquia. O homem é de fato, pensei, a cara de Descartes, coisa que
jamais notara antes, ele viveu afinal na mesma época que o filósofo, mas eram mais as roupas
que o tornavam parecido a Descartes, e menos seu rosto. Mas a semelhança entre esse tio-
tataravô e Descartes deixou-me subitamente desconcertado. Como é que não fui notar isso antes,
perguntei comigo a observar o quadro com curiosidade ainda maior. No quadro meu tio-tataravô
tinha de fato essa barba característica de Descartes e as sobrancelhas arqueadas de Descartes. O
quadro não é nada ridículo, pensei, e ao mesmo tempo perguntei comigo se não era de fato
possível que esse tio-tataravô retratado a óleo fosse também um filósofo, pois ele tinha um quê
de filosófico. Decidi pesquisar em nossas bibliotecas se por acaso existia algo escrito por esse
tio-tataravô, talvez algum Ensaios, pensei, do qual até agora não tinha conhecimento, escritos de
fato filosóficos, eu acreditava não me enganar ao ver um escritor filosófico retratado num quadro
a óleo, e já supunha suas obras numa de nossas cinco bibliotecas. O nome eu conhecia, era só me
pôr à busca numa de nossas cinco bibliotecas. Não me surpreendia nem um pouco que os meus
nunca tenham falado do filósofo Ferdinand, pois isso é típico deles, que jamais mencionassem,
nem sequer de passagem, os chamados intelectuais, e quando o faziam, era somente num
contexto embaraçoso, que em todo caso depreciava essas personalidades filosóficas. Agora
imaginava até já ter ouvido falar uma vez do filósofo Ferdinand, assim o apelidara, talvez já o
tivesse até lido, sem me dar conta de que quem estivesse lendo fosse o homem do retrato a óleo
pendurado junto à escada do átrio. Súbito me ocorreu a idéia de submeter a um exame mais
detido também os outros quadros a óleo com meus antepassados pendurados escada acima, até
agora só os observara sempre superficialmente, no fundo sempre ciente de que se tratava de
antepassados, mas nunca de quais, isso não me interessara até agora, os quadros de Wolfsegg eu
sempre os contemplara como os meus sempre contemplaram os quadros, de forma tal que,
embora contemplassem esses quadros, nunca sabiam dizer o que ou quem afinal estava retratado,
pois os observavam durante décadas só pela força do hábito, como manchas de tinta mais ou
menos escurecidas, que em boa parte já haviam tomado seu lugar definitivo em nossas paredes
séculos antes de nós, seja lá por qual motivo, neste ou naquele lugar, sobre isso nunca se refletiu
e muito menos se pesquisou. Vai saber, pensei, o que realmente está pendurado nessas paredes,
pensei, quem sabe se descobre que tivemos até vários filósofos como antepassados e talvez ainda
uma série de outros intelectuais, pensadores portanto, e possivelmente os quadros pendurados na
parede têm de fato um valor realmente inestimável, como sempre se sussurrou entre os nossos.
Mas esse valor me interessava realmente menos do que as pessoas ou as coisas representadas
nesses quadros, que chegavam às centenas. Para não falar dos muitos quadros e pinturas largados
em nossos sótãos, pensei, que em grande parte estão todos esquecidos e, após séculos e séculos
de desleixo e descaro em Wolfsegg, relegados a um estado deplorável. Um dia desses tenho de
contratar um restaurador de Viena, pensei retendo essa idéia, que identifique todos esses quadros
e depois os classifique e enfim os avalie. E pensei numa determinada pessoa conhecida minha,
que é o chamado restaurador-chefe de nossos maiores museus e que nos últimos tempos
restaurou por exemplo o mais precioso Velázquez que esses museus possuem, e eles possuem,
como sei, os Velázquez mais preciosos de todos, ainda mais preciosos de quantos possua o Prado
em Madri. Ao nome Velázquez e ao nome Prado me ocorreu subitamente se talvez um tal
Velázquez não se encontraria em Wolfsegg sem que o soubéssemos, pois não tivemos poucos
parentes espanhóis ao longo dos séculos, sempre houve espanhóis aqui, hoje eles ainda aparecem
por aqui de vez em quando, passam em Wolfsegg jornadas de caça, e com a Espanha Wolfsegg
sempre teve os mais estreitos laços e relações. E com a Itália. E naturalmente também com a
Holanda, onde afinal Rembrandt e Vermeer e outros dos chamados grandes batavos viveram e
pintaram. Súbito tivera uma chamada idéia fantástica, que me absorveu então o resto do tempo,
até quando já me achava na capela, à qual me encaminhei para não ter de subir prontamente até
os meus. Vou a passos lentos e sem dar na vista, pensei ao ingressar na capela, na qual havia
muito a decoração de núpcias fora retirada e já arrumada a decoração do funeral. Com que
rapidez eles transformaram o cenário, pensei. Panos pretos recobriam todos os objetos da capela,
do contrário resplandecentes e luzidios, os candelabros e as travessas, os copos e as correntes, e
igualmente cobertas com panos pretos estavam as duas janelas, só a chamada lâmpada votiva
ardia, de modo que quem entrasse na capela não tivesse de permanecer na total escuridão.
Ocorreu-me o lapso do pároco bêbado que divertira os convidados das núpcias, e agora ainda
ouvia a estrondosa gargalhada do auditório nupcial. Veio-me à cabeça a minha infâmia, que
porém não tornara pública, e agora ouvia novamente meu pai berrar o nome Caecilia, que repôs
em marcha a cena matrimonial após um impasse absoluto. Por quanto tempo, afinal, ouvimos a
voz de uma pessoa, que uns dias antes ouvimos ainda na realidade como a voz de alguém vivo,
quando ele de repente morre? perguntei comigo. Por um instante tive a sensação de que tivesse
de me ajoelhar, como é hábito ao entrar na capela, mas não o fiz, pois na hora H tive consciência
da teatralidade e do total artificialismo de um tal gesto de minha parte, da hipocrisia que sem
dúvida teria significado tomar assento num banco e ajoelhar-me, quando afinal não tinha a
menor necessidade de me pôr de joelhos, só a idéia de que é natural a quem entra na capela
ajoelhar-se, ainda mais nessa situação. Mas afinal qual é minha situação? perguntei comigo a
avançar alguns passos, e então me detive. Lembrei que a capela, quando criança, sempre fora
para mim não um refúgio de paz e recolhimento, como sempre é afirmado pelos outros, porque
assim ela sempre tenha agido sobre eles, mas um lugar de inquietação e pavor. Ainda com quinze
anos, talvez também ainda com vinte, sentia de fato a capela como lugar do pavor e da crueldade
quando nela punha os pés, como espaço da danação por assim dizer, no qual eu era objeto de
juízo, naquela época entrava na capela como se numa imponente sala de tribunal, onde toda vez
era condenado. Os dedos que naquela época via nessa sala da danação, os dedos judicantes,
implacáveis, apontavam sempre para baixo, e quando criança e adolescente eu só deixava a
capela sempre cabisbaixo, humilhado, punido. A Igreja Católica teria muito a me ressarcir, disse
comigo, se eu calculasse os estragos que ela me causou quando criança com sua doutrina, como
me destruiu e arruinou, ela teria, por maior que seja seu sangue-frio, do que se espantar, pensei.
Eu era sempre mandado por minha mãe à capela, para nela por assim dizer me torturar com
minhas centenas e centenas de pecados, entregue ao desespero. Na capela eu sempre entrei
tremendo, para dela sair arrasado. As únicas boas lembranças da capela eram só aquelas em que
se cantava o magnificat de maio. Embora o mundo inteiro tenha nesse meio tempo mudado de
maneira total e, como devo dizer, irrestrita, em Wolfsegg eles continuam a freqüentar a capela
como se nada tivesse mudado, todos continuam a freqüentá-la assim, pensei. Tal como em
Wolfsegg, em geral, fazem como se o mundo não tivesse mudado nos últimos cem anos, quando
porém mudou de fio a pavio, por assim dizer se pôs de cabeça para baixo, poderia dizer, pensei.
Os meus sempre consideraram Wolfsegg exatamente como a seus quadros nas paredes, que
sempre estiveram pendurados nas paredes assim, e não de outro modo, e que nunca puderam ser
mudados ou mesmo despendurados, afinal eles próprios se consideravam assim, não podiam
mudar em nada, quem se deixasse mudar ou mudasse sozinho, como meu tio Georg e como eu,
pensei, este eles excluíam, não tinha mais nada a fazer entre eles e, como acreditavam, com eles.
Mas também é falso dizer que em Wolfsegg o tempo parou, pois eles, os meus, estão afinal no
presente, existem no presente, são parte do presente, também eles são portanto visceralmente
esse presente, como demonstram pela sua existência presente. Eles estão mesmo impregnados
por esse tempo presente, pensei, muito mais profundamente que outros, mas à sua maneira. Não
é certo dizer que os meus são relíquias de um tempo passado, de um tempo antigo, bem remoto,
pois afinal eles estão no presente. Mas à sua maneira. Eles não são, como se poderia afirmar
quando se os vê e quando se os observa por um instante, de um tempo que não tem mais nada a
ver com o nosso, pois afinal eles são do presente. Mas à sua maneira. Cada um que existe no
presente participa do presente, pensei. As pessoas se enganam quando acreditam que os meus
não têm nada que fazer no presente, pois os meus estão na verdade e na realidade nesse tempo
mais vivos que outros e dominam esse tempo, como se vê, com maior senso prático que outros,
se considero que não é pouca a influência que exercem hoje sobre quem os circunda. Mas são
pessoas a seu estilo, quer se rejeite esse estilo ou não, quer ele repugne ou não. Dizer que os
meus são pessoas de um outro mundo é dizer um absurdo. Que sejam pessoas que vivem da
forma mais estranha e levam uma existência extremamente estranha, dessas justamente que não
tomam nota da mudança do mundo e da humanidade, é uma outra questão, mas eles são
naturalmente pessoas do presente. Seria a coisa mais estúpida afirmar que eles são de um outro
tempo ou de um outro mundo, pois mais do que milhões de outros eles são desse tempo e desse
mundo e nele dominam como antes, essa é a verdade. Aliás, talvez seja seu grande truque dar a
impressão de ser de um outro tempo e de um outro mundo, pensei, um truque com o qual
trabalham e com o qual, como se diz, não se dão mal, pois no fundo mal eles não se dão, estão
muito melhor do que milhões de outros que se afirmam pessoas desse tempo e desse mundo,
coisa que os meus, talvez guiados por um instinto inato melhor, e não só bom, para as
contingências desse mundo e desse tempo, jamais afirmaram. Eu próprio afirmo até que os meus,
sejam como forem, são mais atuais que a maioria dos outros que conheço, e era isso que eu
pensava na capela, enquanto não conseguia porque não conseguia me decidir a deixar a capela e
subir até os meus. Tomamos a nosso cargo, pensei, excluir pessoas como os meus desse mundo e
dessa sociedade e a dizer que eles não são desse mundo, nem desse tempo, que estão em
desarmonia com os tempos, pois sentimos muito bem que não temos razão, precisamente essas
pessoas como os meus, agora vejo isso cada dia mais claramente, vivem em harmonia com os
tempos. Eu rejeitar seu estilo de vida não quer dizer que eles não pertençam ao presente, que
estejam em desarmonia com ele. São justamente eles, poderia dizer também, que estão no
caminho certo, no caminho que leva, não à destruição e à aniquilação, mas à unidade e ao
amparo, por mais que possa nos desagradar a natureza das circunstâncias sob as quais eles
perseguem esses objetivos, pensei. Eu não ter nada a ver com eles não significa que eles devam
ser suprimi dos, como muitas vezes se pensa, como quase sempre se pensa, como quase sempre
se pensa e na seqüência se age. E pensei que, embora eu pensasse de forma diversa, fizera de
mim mesmo nesse meio tempo alguém que os suprime e os extingue, e portanto penso da mesma
forma incompetente e inadmissível que censuro nos outros por pensarem. Não é por ser maioria
que a maioria está em harmonia com os tempos, pensei, tal como se acredita e se age de acordo
com essa crença, com muita freqüência em prejuízo do seu tempo, mesmo uma ou a minoria
pode estar em harmonia com os tempos e com muita freqüência em harmonia muito maior do
que a maioria, e quase sempre está, mesmo um indivíduo pode estar em maior harmonia com os
tempos do que a maioria, e no fundo ele é com muita freqüência quem mais está em harmonia. A
maioria sempre trouxe só desgraça, pensei, mesmo hoje devemos nossa desgraça, se desgraça
for, à maioria. A minoria ou mesmo só o indivíduo são justamente por isso esmagados pela
maioria, porque estão em harmonia muito maior com os tempos do que a maioria, porque agem
em harmonia muito maior com os tempos do que a maioria. Os pensamentos em harmonia com
os tempos estão sempre em desarmonia com os tempos, pensei. Os pensamentos em harmonia
com os tempos estão sempre à frente de seu tempo, quando são de fato pensamentos em
harmonia com os tempos, pensei. Portanto o que está em harmonia com os tempos é de fato
sempre o que está em desarmonia com os tempos, pensei, sobre isso tive uma vez uma longa
conversa com Zacchi. Eu estar em harmonia com os tempos significa que tenho de estar à frente
com meu pensar, não que aja em harmonia com os tempos, pois agir em harmonia com os
tempos significa estar em desarmonia com os tempos, e assim por diante. Uma vez passei vários
dias a discutir esse assunto com Zacchi, em Orvieto, onde ele tem uma casa nas montanhas,
legada por um de seus admiradores. No fundo e na verdade, pensei, são os de Wolfsegg, por
mais execráveis que possam parecer ao indivíduo ou mesmo à maioria, que estão em harmonia
com os tempos, pensei, sobretudo quando examinamos esse nosso tempo a fundo e sem paixão e
não nos deixamos ofuscar e embotar pela opinião corrente, instigada apenas pela política do dia,
pensei. Há séculos existe a opinião política do dia e os fatos incontroversos, sempre contrapostos
à opinião política do dia. O fato, disse comigo, é que no momento o mundo se acha num estado
caótico, enquanto em Wolfsegg impera a ordem, tomei cuidado para não me dizer ainda impera
a ordem, disse comigo apenas impera a ordem. Enquanto o mundo, num estado comatoso, não
tem condições de despertar e tornar-se consciente nesse estado comatoso, os de Wolfsegg são
muito conscientes, eles podem me repugnar, posso ter me esquivado deles por aversão, mas que
agem, corrigi-me, que agiam com mais consciência que boa parte do resto do mundo, isso eu não
questiono, pensei. À sua maneira, disse comigo. Logo em seguida pensei que o que acabara de
pensar era um completo absurdo, ou pelo menos um desatino que não conduzia a nada, um
fracasso de pensamento. Para levar adiante esse pensamento de que os de Wolfsegg estão em
harmonia com os tempos, e não o resto do mundo, pensei, teria precisado de Zacchi, ou de
Gambetti, qualquer um dos dois, sozinho eu fracassei nesse pensamento como em tantos
pensamentos pensados por mim, vítima de um sofisma, de uma impertinência do pensamento,
segundo pensei. Mas sempre temos de levar em conta o fracasso, se não acabamos abruptamente
na inércia, pensei, tal como não há nada, fora de nossas cabeças, contra o que temos de investir
com maior resolução do que contra nossa inércia, assim também dentro de nossa cabeça temos
de investir contra a inércia da mesma maneira, mais ou menos com a impiedade que nos é
congenial. Temos de nos permitir o pensar, nos atrever a ele, mesmo sob o risco de fracassar
prontamente porque de súbito nos seja impossível ordenar nossos pensamentos, sempre
fracassamos, como é natural, porque, quando pensamos, temos sempre de levar em conta todos
os pensamentos que existem, que são possíveis; no fundo sempre fracassamos e todos os outros
também, pouco importa como se chamassem, pouco importa que fossem os espíritos mais
sublimes, de repente, nalgum ponto, eles fracassaram e seu sistema ruiu, como demonstram seus
escritos, que admiramos porque são os que se aventuraram mais longe no fracasso. Pensar é
fracassar, pensei. Agir é fracassar. Mas naturalmente não agimos para fracassar, tal como não
pensamos para fracassar, pensei. Nietzsche é um bom exemplo de um pensamento que avançou a
tal ponto no fracasso que só pode ser definido como desvairado, disse uma vez a Zacchi, pensei.
Dentro dessas paredes frias, caiadas de branco, eu pude me desenvolver, como dizia minha mãe
com muita freqüência, pensei, refletindo no átrio se devia subir logo ao primeiro andar ou não, ir
ter com os meus ou com os outros, que estavam reunidos na cozinha, como notei. As moças da
cozinha e as moças da casa conversavam baixo na cozinha, em deferência ao fato de que se
tratava de uma casa de luto, aquela em que agora estavam. Detive-me na frente da porta da
cozinha e tentei compreender o conteúdo da conversa, mas não entendi o que diziam, só palavras
esparsas, de que não alcançava o nexo, se bem que tivesse podido constatar que falavam de suas
famílias, diziam a palavra Mühlviertel com recorrência. Estava consciente da impropriedade de
me deter na frente da porta da cozinha, mas continuava parado, incapaz de decidir se subia logo
ao primeiro andar e punha um termo a minha aproximação aos meus, cumprimentando-os, ou se
simplesmente abria a porta da cozinha e cumprimentava antes as mulheres e moças ali reunidas.
Estas subitamente desataram a rir e eu pensei, se de repente elas abrem agora a porta, me
descobrem espreitando, ao pensar isso, à parte meu descaramento, fiquei gelado. Eu próprio
tinha de considerar meu comportamento como absolutamente inadmissível, seja lá o que me
decidisse a fazer agora, pensei, abrir a porta da cozinha e cumprimentar as mulheres e moças na
cozinha, ou subir ao primeiro andar até os meus para cumprimentá-los, há muito já me tornara
culpado à minha maneira, naturalmente incompreensível e ofensiva. O conteúdo da conversa da
cozinha, que agora do átrio eu seguia com a maior atenção, eram os diversos enterros a que as
mulheres e moças reunidas na cozinha já haviam assistido, e os acidentes que os ocasionaram.
Um velho, oitenta e sete anos, como elas diziam, caíra na correnteza, uma velha, sessenta e seis
anos, enforcara-se de uma janela do dormitório, uma criança fora atropelada por uma carroça que
entregava sacos de carvão justo para a família dessa criança no chamado Kohlgrube, nosso
povoado de mineradores. Foi dito que os cadáveres tinham um cheiro desagradável e as coroas
ficaram muito caras, que havia cada vez menos agências funerárias e os parentes do defunto, nem
sequer os mais próximos, não vestiam mais sem exceção, como antes, luto por seis meses, nem
sequer as viúvas, foi dito. Parecia que elas preparavam na cozinha seu café da tarde. Enquanto
elas próprias bebiam seu café da tarde por volta das duas, pensei, só punham para ferver a água
do chá para os do primeiro andar às cinco, quando então elas próprias faziam seu jantar, que só
era servido aos do primeiro andar por volta das sete e meia. De repente achei agradável que nada
nesses hábitos tivesse mudado em Wolfsegg, nos hábitos do dia-a-dia, pensei. Elas falavam na
cozinha de um maquinista assaltado e morto, cujos cinco filhos agora estavam desamparados e
cuja viúva procurava agora emprego, para poder sustentar a si mesma e a esses cinco filhos, pois
o Estado não pagava nada aos dependentes das vítimas assassinadas, mesmo quando o culpado
era preso, as leis nesse país eram uma lástima. Ouvi acerca de um carrinho de mão emborcado
perto da vila das crianças, no qual as moças da cozinha tinham de transportar uma quantidade de
bancos de madeira da vila das crianças para o prédio principal, e ouvi como, a um comentário
sobre galinhas poedeiras, todas riram alto, mas logo se calaram, como se envergonhadas dessa
risada tal qual de uma impertinência fora de cabimento. Se entro e as cumprimento, pensei, faço
uma figura ridícula, e subi ao primeiro andar, o fato de ter chegado de Roma sem nenhuma
bagagem, para ser exato só com minha carteira e um lenço, nada mais, divertia-me secretamente,
mesmo nessa atmosfera triste. Vou fazer com que se examinem todos os quadros nas paredes e
nos sótãos e assim ter uma idéia de seu valor efetivo, disse comigo passando pelo quadro a óleo
do meu tio-tataravô enquanto subia ao primeiro andar, com toda calma, é só não ficar sem
respiração, pensei, para de novo estacar o passo no lanço da escada, apurando os ouvidos. Minha
irmã Amalia conversava claramente com seu cunhado, que é meu cunhado também, com o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho de Freiburg, que nos trouxe os vinhos de Baden,
pensei, com quem eu mal troquei uma palavra no casamento, mas não por excesso de orgulho de
minha parte, senão porque ele preferiu esquivar-se de mim, correu de mim sem parar, o quanto
pôde, fugira de mim, temera certamente minhas perguntas. Ainda posso vê-lo no parque, de pé
sob o carvalho, pensei, sozinho, o que me deu oportunidade de me dirigir a ele a fim de
conversar com ele, arrancar dele, assim pensei, mais do que eu já sabia, o que porém não era
muito, pois minha irmã nunca deixava que lhe arrancassem muito quando o assunto era seu
noivo, mas quando me dirigi ao carvalho, meu cunhado já dera no pé, ele me observara e no
mesmo instante em que percebera que eu tinha a intenção de me dirigir a ele, esquivou-se de
mim atravessando rapidamente, sem motivo algum, segundo pensei, para a orangerie, onde não
havia ninguém, em todo caso não vira ninguém por aqueles lados, e fiquei assim de pé sob o
carvalho, sem meu rico cunhado. Mesmo durante o banquete de núpcias não me foi possível
conversar com ele, pois ele sempre desviava o olhar quando eu olhava para ele, era evidente que
o afligia ser observado por mim, mas é a coisa mais natural que o novo cunhado seja observado
pelo irmão de sua mulher, como ele se porta, o que tem a dizer, como procede não só
externamente, por assim dizer, mas também internamente. Porém o fabricante de rolhas para
garrafas de vinho preferiu manter distância de mim. Durante toda a minha permanência em
Wolfsegg não tive uma única oportunidade de conversar realmente com ele, pensei agora;
sempre tive a intenção, a necessidade, como é natural, mas não houve jeito, esse tipo de gente,
ainda mais de Baden, da região vinícola, tem uma grande habilidade de furtar-se a quem quer
conversar com ela, pensei, evade-se continuamente a quem quer se insinuar com perguntas, é
muito astuta no que se refere a tal evasão. Dizemos, trata-se de uma pessoa estúpida, mas ao
mesmo tempo temos de admitir que é astuta. Os gorduchos são sempre mais astutos que os
outros, no fundo também sempre mais móveis. Mas essa mobilidade resume-se ao corpo, pois
seu espírito, se é que dele se possa falar com relação a eles, é completamente imóvel. Quis
submeter meu cunhado a inúmeras provas e pensei, vai ser moleza lhe aplicar tais provas, por
assim dizer interrogá-lo, descobrir qual é a dele, mas superestimei em muito minha arte de
aproximação, nisso sem dúvida fracassei. Mas, eu pensara, por que cargas d’água meu cunhado
foge de mim? O que é que o assusta em mim, que afinal sou o irmão de sua noiva e, após o
casamento, de sua mulher, eu que, como creio, tenho o direito de me informar sobre ele? Sem
dúvida foi visto como uma monstruosidade da parte de minha irmã que ela, sem praticamente
nada perguntar, tenha se casado com esse homem, sem na verdade conhecê-lo, pois que ela não o
conhece, isso é evidente. Ela se limitou sempre a dizer que nossa chamada tia do Titisee o
conhecia, e bem, conhecia a família dele desde que nascera. Mas isso naturalmente não bastava,
pensei exatamente como minha mãe, que se entranhou nesses pensamentos ainda muito mais
fundo que eu, embora não tenha podido impedir esse casamento, pois Caecilia fizera questão,
pela primeira vez na sua vida batera o pé, como se diz, e cometera um crime contra minha mãe,
pois desde o início minha mãe definira esse casamento como nada mais que um crime de
Caecilia, a ser cometido contra ela e somente contra ela, se bem que esses pensamentos minha
mãe só se atrevera a concebê-los secretamente e entre nós, para não quebrar a cara. Ambas as
filhas, assim ela pensara e também imaginara como um fato irrefutável, deveriam a vida inteira
estar a seu serviço em sua imediata vizinhança, portanto em Wolfsegg, e um casamento estava
absolutamente fora de cogitação. Até que a tia do Titisee veio com sua idéia absurda, assim dizia
minha mãe com muita freqüência, e deitou a perder todos os planos. Mas esse casamento é
também contra Amalia, pensei, pois minhas irmãs, como sei, ainda que tacitamente, juraram-se
fidelidade eterna, o que mais não significava senão que nenhuma delas tomaria um marido, pois
tomar um marido significava naturalmente sua separação, que agora se consumou por meio desse
casamento absolutamente curioso, como tornei a pensar, que minha mãe, com perfídia suprema,
sempre só definiu como enlace, uma palavra que, até esse casamento, sempre só foi pronunciada
com o máximo desprezo em Wolfsegg. Porém o fabricante de rolhas para garrafas de vinho
nunca dizia casamento, mas sempre enlace, porque o termo é corrente em Baden e em seu
círculo e nunca lhe pareceu constrangedor, como a ninguém não versado em nossa ironia, pensei.
Não o tenho por um vigarista, por quem queira dar o golpe do baú, mas por um imbecil que
aspira às chamadas coisas superiores e melhores, desses que topamos aos milhares pelas ruas e
tornam todo ambiente e em última análise toda roda maior de pessoas um verdadeiro inferno.
Para ser vigarista, bem como para dar o golpe do baú, lhe faltava a malícia, ele é um arrivista
honesto com seus complexos, disse comigo. Eu bem que teria podido forçá-lo a me prestar
contas, disse comigo, não seria difícil lhe cortar o caminho, mas a tanto não chegava minha
vontade. Talvez eu também não quisesse ser confrontado com a sua linguagem grotesca, pensei,
com o linguajar do sudoeste alemão, com o linguajar de Baden. A bonomia de Baden, com a qual
tive contato em várias visitas à Floresta Negra na casa de minha tia do Titisee, sempre me
desagradou, nela não via nada de positivo, tampouco quanto na chamada bonomia vienense, cujo
rasgo diabólico e aparvalhado também sempre me repugnou, e o próprio conceito de bonomia
sempre pelo menos me irritou, embora me deprimisse a maioria das vezes, porque a dita
bonomia nada mais é que o trato sórdido com a vida, um trato sórdido com a natureza humana,
para levar a extremos essa idéia, uma forma absolutamente baixa de tratar nossa visão de mundo.
Não posso dizer que o fabricante de rolhas para garrafas de vinho haja se insinuado em
Wolfsegg, pois afinal foi com plena consciência que minha irmã o trouxe a Wolfsegg
contrariando sua mãe, com ele cometendo contra ela um crime hediondo. Um homem que jamais
ouviu falar de Max Bruch, disse minha mãe uma vez à mesa, quando se falava do fabricante de
rolhas para garrafas de vinho e apenas do fabricante de rolhas para garrafas de vinho, ela, que
não tinha a menor idéia de música e para quem o concerto de violino de Max Bruch foi a vida
inteira, a bem da verdade, o supremo êxtase musical, justo ela sentiu-se na necessidade de
ridicularizar seu futuro genro ainda mais do que ele já o fora não só por ela, mas por todos nós,
invocando justo o discutível nome de Max Bruch, pensei. A meus amigos em Roma não deixei
transpirar uma única palavra sobre o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, até que o
casamento estivesse praticamente acertado, então desenrolei sua história de forma por assim
dizer picante para Zacchi e Gambetti, e também para Maria, que não se agüentou de tanto rir com
minhas descrições. Só mais tarde me dei conta da sordidez com que procedera, que não falara
contra ele, meu novo cunhado, mas no fundo só contra mim, que denunciara a mim mesmo. Não
conseguia falar a sério sobre o meu cunhado, sempre só da maneira irônica e amarga a que
recorro quando não suporto a seriedade. Mas são precisamente pessoas como o fabricante de
rolhas para garrafas de vinho que sempre me enfureceram, sempre em última análise me tiraram
do sério, como se diz, porque elas revelam como nenhuma outra a insuportável caricatura do
homem, sua imagem deformada, seu ridículo vulgar, que não deve ser confundido com
desamparo. Uma coisa também é ter diante de mim uma pessoa simples, outra um proletário, um
é suportável, tranqüilizador, o outro é absolutamente insuportável, intranqüilizador, deformado,
pensei. O proletário é o homem da indústria, que não havia antes da industrialização, é o escravo
da máquina, aquele que é ininterruptamente humilhado pela máquina e não pode se defender
dessa humilhação, aquele que é amesquinhado pela máquina, enquanto o homem simples, tal
como o entendo, nunca se fez escravo da máquina, não se deixou humilhar nem portanto destruir
nem aniquilar por ela, pensei. O pequeno-burguês e o proletário são produtos dignos de lástima,
mas insuportáveis, da era da máquina, e assustamos quando os temos diante de nós, porque é
impossível não pensar o que as máquinas e os escritórios fizeram com eles. Por meio das
máquinas e dos escritórios foi destruída e aniquilada grande parte, a maior parte das pessoas,
pensei, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho foi destruído e aniquilado, tornando-se
insuportável, por seu escritório de rolhas para garrafas de vinho e por suas máquinas de rolhas
para garrafas de vinho, pensei, enquanto, embora já no primeiro andar, estacava o passo logo no
topo da escada. Não posso saber o que levou minha irmã a fazer justamente desse homem o
homem da sua vida. Por outro lado, sei que ela não encontrou ninguém disposto a unir-se a ela,
todas suas tentativas, e tais tentativas foram muitas, fracassaram, não podiam senão fracassar
com uma mãe que sempre proibiu a suas filhas os homens e a relação com os homens em geral,
minhas irmãs já iam pelos trinta e tinham de se ater a essa proibição materna, não ousavam
transgredi-la, porque temiam então ser expulsas de casa e privadas de seus direitos. Sempre se as
ameaçou com sua deserção, caso não se ativessem às ordens maternas, elas pois se atinham,
porque nada as amedrontava mais que a deserção, pois deixadas por conta própria elas se sentiam
de fato desamparadas, sentiam-se um nada, posso dizer com tranqüilidade. Quando Caecilia
manifestou certa vez o desejo de ir a Salzburgo, só por dois dias, com um amigo, um namorado,
como ela se expressou de modo infeliz, lhe foi proibido sequer sair de casa por uma semana.
Com Amalia não foi diferente, quando entre seus desejos constavam essas escapadelas perigosas,
como dizia minha mãe. Mas como vou me comportar agora, nessa situação, diante do fabricante
de rolhas para garrafas de vinho, pensei, ouvindo ao mesmo tempo as vozes dos meus, dos três,
ainda que, daqui do corredor, não entendesse sobre o que conversavam, sem dúvida discutiam
algo relacionado com o funeral, isso logo ficou claro. Qual a melhor forma de proceder?
perguntei comigo, como agir logo depois de entrar em cena? Tais reflexões o mais das vezes não
levam a nada, só tornam tudo ainda mais difícil, complicam o que em última análise é sempre tão
fácil, por mais complicado que pareça, por mais intrincado. Eu sabia que tudo sempre se resolve
por si mesmo, como se diz, e que é inútil preocupar-se em tais casos, que em geral são
qualificados como os mais difíceis, como por exemplo o primeiro encontro quando, informados
de uma tragédia como essa em questão, retornamos para casa e as testemunhas ou as pessoas que
a tragédia atingiu primeiro já se acham a nossa espera. Sabemos que tudo se ajeita por si mesmo,
mas nunca confiamos nesse fato, sempre o ignoramos e fazemos de nossa cabeça um inferno. Se
minhas irmãs estivessem sozinhas, pensei, não teria a menor dificuldade, então já estaria com
elas faz muito tempo, discutindo o futuro imediato, mas o fabricante de rolhas para garrafas de
vinho impedia essa singela espontaneidade de meu ingresso. Ele já se põe no meu caminho,
pensei, já inibe meu impulso natural, pensei. Agora, depois de uma semana, esse casamento já
revela ser um grande e grosseiro erro, pensei, ele é o pomo da discórdia entre Caecilia e Amalia,
pensei, que separará essas duas definitivamente, de maneira inexorável, não por puro capricho,
que fez Amalia se mudar por um tempo para a casa dos jardineiros, a fim de punir Caecilia, por
um tempo ridiculamente curto. O fabricante de rolhas para garrafas de vinhos agora está lá
sentado, com elas, e discute o que na verdade teriam de discutir comigo, pensei. Ele se intromete
em assuntos que não lhe dizem respeito, possivelmente já comanda Wolfsegg com sua
imbecilidade, com suas noções e opiniões pequeno-burguesas, que nunca serão capazes de se
tornar idéias sutis. Não se passou nem uma semana do casamento e ele já se instalou em
Wolfsegg, tomou conta dela, pensei me posicionando de maneira tal a poder ouvir quase tudo o
que os três dissessem, no fundo só reparando sempre se apanhava subitamente alguma coisa
sobre mim, qualquer coisa, mas só as ouvia falar do agente funerário, que ali já estivera três
vezes e com quem não haviam chegado a um acordo. Que já haviam chegado oitenta coroas e
quarenta buquês. Que elas haviam remetido grandes avisos fúnebres não só ao
Oberösterreichische Nachrichten e aos outros jornais da Alta Áustria, mas também aos jornais
de Viena e Munique, e se não deviam também inserir outro no Frankfurter Allgemeine. Elas
falam tão baixo para que ninguém as ouça, pensei, e eu ouvia tudo, pela primeira vez fazia a
descoberta de que aqui fora no corredor pode-se ouvir quase tudo lá dentro, ainda quando se fala
num tom de voz absolutamente baixo, baixíssimo mesmo, o que me assustou, pois até agora
sempre acreditara que de fora não se ouvisse o que de dentro se falasse. Essa descoberta é da
maior importância, pensei, ela me obriga a tomar precauções extremas quanto ao que digo no
chamado salão. Elas estão certas de não estarem sendo ouvidas e compreende-se cada palavra,
pensei. O tempo inteiro o fabricante de rolhas para garrafas de vinho sempre dizia somente sim
ou não às perguntas mais irrelevantes, minhas irmãs dirigiam a conversa, isso me acalmou um
pouco. Mas de repente ele disse, o catafalco devia ser erguido um bocadinho, ao que eu
naturalmente escutei com atenção ainda maior. O catafalco estava muito baixo e as visitas teriam
uma dificuldade enorme de ver os corpos, o único remédio seria pôr mais um calço no catafalco.
Fala daqui, fala dali, até que os três decidiram dar a ordem de erguer o catafalco com mais um
calço. Depois falaram dos jardineiros, depois dos caçadores, depois, de que já haviam reservado
todos os quartos para os convidados fúnebres, que de todos os cantos haviam anunciado sua
presença, em todas as estalagens não só do vilarejo lá embaixo, mas também em Ottnang, várias
vezes foi mencionado o nome Gesswagner, o nome daquela hospedaria em que mais me
agradava comer quando escapava da cozinha de Wolfsegg. No Gesswagner eles tinham quartos
amplos com camas antigas, nos quais os hóspedes que lá alojávamos nas mais variadas ocasiões
sempre se sentiram confortáveis, essa hospedaria não é famosa à toa, e assim também o açougue
que lhe é anexo. A palavra Gesswagner lembrou-me instantaneamente de que passara tantas
horas felizes na hospedaria de mesmo nome na companhia de gente de Ottnang, é aos
mineradores, aos camponeses, aos carpinteiros e aos pavimentadores de rua que a freqüentam
que devo o fato de ter bem cedo ampliado meus horizontes. Em nenhuma outra hospedaria
conheci uma alegria, um júbilo tão inveteradamente natural, nesse sentido a palavra Gesswagner
é uma palavra mágica para mim. Ela é o coração de Ottnang, conhecida e célebre por sua gente
alegre e francamente festiva, bem como pela melhor banda musical, ao lado daquela de nosso
vilarejo. Mas naturalmente só para mim, que conheço suas implicações, a palavra Gesswagner
tem essa conotação alegre, pensei. De repente passaram a falar de mim, não podiam entender por
que até agora eu não dera notícias, quando afinal tinham me enviado o telegrama assim que
souberam do acidente. Nenhum telefonema, nada, disse Amalia. Aquele era o momento de
entrar. Puseram-se de pé, não estavam em condições de dizer nada, abracei minhas irmãs, apertei
a mão de meu cunhado. Sem outra palavra desci então com Caecilia à orangerie. Minha primeira
impressão delas foi que me respeitavam como o único herdeiro das vítimas, não tinham outra
escolha, assim se recebe aquele em quem depositam agora toda a esperança, pensei, e por um
instante também, que agora elas estavam em minhas mãos, que dependiam de minha ajuda,
deviam sobretudo me dar ouvidos. Por um instante, que elas sem mim não estavam mais em
condições de sobreviver, que agora contavam com minha magnanimidade, sabendo muito bem
que eu era naturalmente o herdeiro dos finados, em torno do qual elas agora se ajuntam,
reduzidas ao completo desamparo após o acidente. O renegado, o rejeitado, o maldito, o odiado
de repente tornou-se por assim dizer o único árbitro, o arrimo de família, o salvador. Nesses
primeiros instantes de reencontro, elas apostavam tudo em mim, exigiam de mim que eu, mais ou
menos por força das circunstâncias, esquecesse de golpe tudo de insuportável que elas e os
finados me houvessem infligido, a fim de salvá-las. Essa era sem dúvida a minha intenção, e foi
isso que lhes dei a entender, não com palavras, somente com meu comportamento, que não se
pode explicar em maiores detalhes. Meu cunhado fora forçado com elas à mesma posição,
esperava de mim que agora o protegesse junto com minhas irmãs, que o incluísse logo, como é
natural, nas minhas reflexões sobre o futuro. Mas se eles não podiam saber o que aconteceria
agora, tampouco o sabia eu próprio, pois o fato de que todo o complexo de Wolfsegg, com tudo
que lhe era explícito e implícito, tocasse a mim e a mais ninguém era algo que eu ainda não
ponderara, o mínimo que fosse, nem no dia anterior em Roma, com o telegrama sem dúvida
chocante em mãos, nem até esse momento, atarefado que estava com a urgência da viagem e sem
tempo para refletir sobre o futuro desse complexo de Wolfsegg, seja como for não me concedera
nenhum tempo para tanto, não o quis, porque não queria, antes mesmo que meus pais e meu
irmão fossem sepultados, por assim dizer me onerar e me oprimir, depois deles, com esse
complexo de Wolfsegg, além do que a notícia da morte de meus pais e de meu irmão chegou a
Roma muito de supetão, o choque, como já disse, não me abalara, antes pelo contrário, primeiro
me pusera até, com relação a essa tragédia sem dúvida pavorosa, num estado de espírito
indiferente, que não tive a força, nem portanto a vontade, de abandonar. Não fizera mais que
colocar as fotografias sobre a escrivaninha e, como posso dizer com tranqüilidade, fantasiara
acerca dessas fotografias para mais ou menos me distrair do horror, esse fora o melhor método,
como via agora, depois do telegrama com a notícia fúnebre estava mais contido do que abalado,
como se diz, tinha pleno controle sobre mim, e minha cabeça, como disse, permaneceu lúcida,
mas, como é natural, não havia examinado em pormenores e em toda a sua gravidade as
conseqüências dessa notícia fúnebre, porque queria me proteger, tinha de me proteger, não podia
nem queria me deixar oprimir pelo fato de meus pais e de meu irmão terem falecido. A caminho
da orangerie, com Caecilia a minha frente, pensei que minhas irmãs e meu cunhado agora
confiariam plenamente em mim, que agora já haviam mudado completamente, por absoluta
necessidade, em relação a mim. Súbito eu representava, após a morte de meus pais e de meu
irmão mais velho, o papel que para eles sempre fora de fato inimaginável, aquele que as
sustentaria e manteria. Mas agora sou a mesma pessoa de antes, pensei, eu não mudei, eu não
mudo, ainda que agora esperassem isso de mim, elas tinham de acreditar nisso para não entrar
em desespero e deitar tudo a perder. O fato é que, no caminho da orangerie, por mais triste que
ele também fosse para mim, como é natural, pensei que devia liquidar a partilha com minhas
irmãs, que não pensava em deixá-las morando em Wolfsegg, nem permitiria que Wolfsegg
continuasse a ser administrada como fora até agora, mas naturalmente não podia saber qual seria
outra forma, só que as coisas não continuariam a ser como eram havia séculos, como são até
hoje. No caminho da orangerie Caecilia adiantara-se a mim com um ar deliberado, talvez
verdadeiro, de filha e irmã dilacerada pela morte repentina dos pais e do irmão, vestida de preto,
num vestido colante de lã, os cabelos apanhados na nuca, ela tinha um aspecto ótimo, como aliás
Amalia, assim pensei, a quem o preto cai igualmente bem. Se pelo menos elas não andassem
sempre naqueles medonhos vestidos de tirolesa, pensei, se usassem vestidos pretos, seriam mais
agradáveis, pensei. Meu cunhado, ao lado de Caecilia, no primeiro instante deu-me a impressão
de absoluto desamparo, agora não era mais o noivo de uma semana atrás, de um lado triunfante,
de outro carregado de complexos; a tragédia e suas repercussões imediatas não lhe permitiram
encobrir minimamente sua irrelevância e sua estupidez, lá estavam elas diante de mim, em toda a
sua deprimente insignificância. Em vez de amparar Caecilia, como teria sido natural, esta
amparava seu marido, em todo caso foi essa minha impressão ao ingressar no chamado salão,
olhando primeiro para Caecilia e seu marido, só depois para Amalia, que me pareceu ainda a
mais contida. Haviam providenciado tudo, eles disseram, não pude imaginar o quê, mas pensei
que por iniciativa deles agora estava em marcha tudo quanto fosse necessário fazer. Antes de
chegarmos à orangerie, Caecilia disse que enviara também, junto com o meu, um telegrama a
Spadolini. Cabia a mim decidir quem deveria ainda ser comunicado da tragédia, além daqueles
que ela já comunicara. Ela tomara como algo óbvio enviar um telegrama a Spadolini. Agora me
ficara claro que Caecilia sabia muito bem de que natureza era a relação de nossa mãe com
Spadolini. Minhas irmãs sempre estiveram a par de tudo, pensei. O fabricante de rolhas para
garrafas de vinho agora é um peso e tanto para mim, pensei nesse momento, mas não posso
suprimi-lo, ao contrário, minha impressão é de que Caecilia o forçará expressamente ao primeiro
plano, por assim dizer como seu protetor, mas esse pensamento não me atormentava, pois, ainda
que fosse agora meu cunhado, não temia o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, ele
permanecerá uma figura marginal sem nenhuma influência, pensei. Com o propósito mais do que
nítido de colocá-lo em primeiro plano, quando eu entrara no salão Caecilia se pusera atrás dele,
fazendo-o por assim dizer de escudo. Logo no primeiro momento isso me pareceu ridículo, para
não dizer de mau gosto, não fora algo que brotara de um impulso interior espontâneo, que ela, ao
notar que eu entrava no salão, se pusesse atrás de seu marido mal acabara de levantar-se, era algo
indigno dela, pensei, sem levar adiante esse pensamento, afinal no momento ele não era de
importância, mas mesmo assim me irritara, apesar de compreender muito bem que fosse
inevitável algum transtorno naquela situação. Minhas irmãs, levando em conta o novo estado de
coisas em Wolfsegg, esforçaram-se em mostrar-se mudadas para mim, mas só lograram pela
metade simular para mim sua mudança, pois não tinham mudado, eram as mesmas de antes, eu
só pensei que tivessem mudado, foi um erro de minha parte, um erro no qual incorrera a
princípio, mas que logo fora dissipado, já no instante em que disse querer ver então meus finados
pais, meu finado irmão. Antes de chegarmos à orangerie pensei ainda que minhas irmãs
provavelmente exigiriam agora de mim nada menos do que a total abnegação. Agora, enquanto
as protege o melhor que pode, você tem de tomar cuidado, se não levará a pior, afinal elas
seguem a escola de sua mãe e sabem mesmo tirar proveito de uma tal tragédia em benefício de
seus objetivos sórdidos. Num instante execrei esses meus pensamentos, mas não os entretivera
sem fundamento e era absolutamente necessário que o fizesse. Os meus, incluindo minhas irmãs,
nunca hesitaram diante de nada que condissesse com seus objetivos, por que agora seriam
diferentes, disse comigo, e ao mesmo tempo, como deve ser grande e profunda minha
desconfiança contra elas, para nesse momento poder pensar assim, e me execrei por isso. A
desconfiança sempre foi a regra entre nós, cada um por si a desenvolveu muito acima do normal
e dela fizera um hábito absolutamente indispensável contra tudo e todos. Mas essa desconfiança
eu só tinha em Wolfsegg e sempre só contra os meus, do contrário não a tinha, em nenhum outro
lugar agia de tal modo, mal chegava a Wolfsegg, lá estava ela, ela fazia parte de Wolfsegg, fazia
parte de Wolfsegg como todas as outras chamadas más qualidades, que no fundo só são os meios
de todo naturais para poder se afirmar, para não sucumbir. Em Roma eu pensei, vou encontrar
minhas irmãs desalentadas, reagindo a tudo com nervosismo, mas, como constatei, elas eram a
calma em pessoa, ou então me enganei e via apenas sua calma externa, não percebi sua
inquietude e nervosismo internos. Em Roma eu pensei, vou encontrar uma casa agitada, mas a
casa não estava agitada e eu pensei, afinal de que tamanho tem de ser a desgraça para que os
meus percam o prumo, para paralisá-los, eles não haviam perdido o prumo, não estavam
paralisados, não só haviam mantido o controle, como se diz, mas estavam extremamente alertas
quando entrei no salão. Não lhes passara pela cabeça me perguntar como e por que eu chegara
tão tarde de Roma, se de trem ou de avião, tal era a obviedade de eu surgir diante deles
exatamente naquele instante, e não em outro. Não me fizeram nem sequer uma pergunta, pensei,
também não me ofereceram nada, de imediato pretenderam de mim que fosse o dirigente, aquele
que agora tem tudo nas mãos e tem de ser forte; que eu possivelmente não estivesse em
condições de assumir minha nova função, que de estalo caíra sobre mim, isso não lhes passou
pela cabeça, pelo menos não na aparência. Num instante eles me transferiram tudo, pensei,
embora naquele instante soubessem mais do que eu, possivelmente foram testemunhas do
acidente, em todo caso os que dele primeiro tiveram notícia, antes de mim, a caminho da
orangerie não sabia nem mesmo como acontecera, fiquei inibido de perguntar como, naquele
instante não tinha a disposição necessária para lhes perguntar a respeito. Mas o acidente só pode
ter sido um acidente de carro, pensei, também não passara pela cabeça de minhas irmãs me
esclarecer sobre a natureza do acidente, a isso elas se pouparam nos primeiros minutos de meu
regresso de Roma, nenhuma queria ser a primeira a me participar a verdadeira causa da morte de
meus pais e de meu irmão, como se a respeito estivessem condenadas ao silêncio, comportavam-
se como se se tivessem posto de acordo sobre esse ponto delicado, sobre essa questão de fato
tremendamente penosa, como elas não falavam nada, quem falou fui eu, disse que não tinha sido
possível chegar mais cedo, embora isso fosse mentira, mas elas, como pude ver, acreditaram em
mim, elas conhecem as condições italianas, sempre caóticas no que se refere aos meios de
transporte, os sindicatos na Itália já cuidam para que as greves sejam quase diárias e para que
diário seja portanto o caos em toda a Itália, isso elas sabem, pois muitas vezes lhes expliquei essa
situação caótica e dela elas também tinham conhecimento pelos seus jornais; pude dizer portanto
com tranqüilidade que não pudera chegar mais cedo, porque de imediato elas pensariam
certamente nessas condições caóticas, não numa mentira de minha parte. Aliás a palavra Itália
sempre foi para os meus a palavra para condições caóticas, para o país das condições caóticas, e
muitas vezes eles me perguntaram por que justamente na Itália eu havia por assim dizer me
estabelecido, onde há décadas imperam as condições mais caóticas de todas. Ao que eu lhes
respondi que eram justamente essas condições caóticas que me induziram a fazer da Itália minha
residência, justamente Roma, onde as condições caóticas são extremas, as imprevisibilidades, as
impossibilidades, como eu sempre lhes disse. Justamente porque a Itália é o país mais caótico da
Europa, provavelmente o país mais caótico de todo o mundo, eu lhes disse, ela é minha
residência, Roma, o centro do caos, isso eles não entendiam, e eu não tive vontade de lhes
fornecer mais explicações sobre meus interesses lá. Somente uma grande cidade não me basta,
eu lhes dissera muitas vezes, tem de ser caótica, uma metrópole caótica. Com esses conceitos,
porém, como em geral com todos os meus conceitos, eles nunca souberam o que fazer. Elas não
me perguntaram nem sequer se eu queria uma xícara de chá ou um copo d’água, pensei, mas
então lhes tomei a defesa, levando em conta a situação toda, pois sem dúvida se pergunta a quem
chega a Wolfsegg direto de Roma, o que em todo caso é uma canseira, se está com sede ou com
fome, mas elas não me perguntaram. Eles próprios estavam tomando café, mas não me
ofereceram, deveria ter simplesmente me servido de uma xícara, pensei, mas não o fiz, porque no
fundo eu próprio queria ir o mais rápido possível à orangerie lá embaixo, para ver os finados,
meus pais e Johannes, não queria mais adiar o inevitável, por terrível que fosse. De fato Caecilia
surpreendeu-se agora, ao chegarmos à orangerie, que eu não apertasse as mãos aos jardineiros,
com eles não trocasse palavra, pois afinal não sabia ela que pelo menos meia hora antes, se não
ainda mais cedo, eu conversara com os jardineiros, de muito os cumprimentara e lhes perguntara
até como estavam, mas a ela pareceu estranho como me portei diante dos jardineiros, agora que
eles novamente carregavam da feitoria grandes coroas, parados na frente da orangerie para nos
ceder o passo, aos patrões, por assim dizer. Entrei na orangerie, Caecilia ficara junto à porta.
Logo me espantei com o fato de que os corpos de meus pais e de meu irmão estivessem dispostos
de forma desigual, meu pai mais alto que minha mãe e Johannes, e que meu pai e meu irmão
jazessem num caixão aberto, enquanto o caixão de minha mãe estivesse fechado. Virei-me para
Caecilia, como quem quisesse nesse instante, antes mesmo de me aproximar dos caixões, uma
explicação acerca dessa singularidade, mas então soube explicar por mim mesmo a causa dessa
disposição desigual, o corpo de minha mãe estava num estado que tornava impossível ser velado
de caixão aberto. Mais tarde me disseram que minha mãe, como eu supunha, ficara de tal forma
mutilada no acidente rodoviário, como se diz, irreconhecível, como escreveram os jornais, como
me disse então Caecilia, que de pronto foi necessário selar seu caixão. Minha mãe foi mais ou
menos decapitada no acidente, ao passo que em meu pai não se notava absolutamente nada, em
Johannes também não, os dois só haviam batido contra o pára-brisa e, de maneira igualmente
fatal, haviam quebrado o pescoço. Uma barra de ferro daquele caminhão de Linz atingira de tal
modo a cabeça de minha mãe que sua cabeça fora quase inteiramente seccionada do tronco, bem
ali, no meio do carro, no banco de trás, onde ela sempre se sentava quando viajavam a três, a
barra de ferro penetrou o interior do carro e atingiu fatalmente minha mãe. Nenhum dos três
havia sentido dor. Quando me voltei, depois de primeiro relancear a vista ao caixão fechado de
minha mãe, vi que Caecilia tinha lágrimas nos olhos. Atrás dela estavam os jardineiros. Fiquei
cerca de dois ou três minutos diante dos defuntos, então me virei e saí da orangerie. Estando
junto aos defuntos sentira o odor característico dos corpos amortalhados, e para evitar náuseas
preferira deixar a orangerie, também tivera a impressão de que seria melhor não ficar mais
tempo diante dos corpos, que, assim pensei enquanto estava diante deles, não me diziam respeito.
Olhá-los me dava nojo, estava longe de ficar comovido, como se diz, de sentir outra coisa além
de nojo e aversão. Ligação eu tinha era com meus pais vivos e com meu irmão vivo, não com
esses cadáveres fétidos, pensei. Naturalmente me guardei de expressar minhas sensações a minha
irmã ou a qualquer outro, como é natural. Os rostos amortalhados de meu pai e de meu irmão eu
não os reconhecia nem sequer como tais, estavam tão modificados como se fossem de estranhos,
que não tivessem nada a ver com meu pai e meu irmão. Vamos, dissera a Caecilia na frente da
orangerie. Voltamos ao prédio principal. Irritou-me nesse trajeto que a bandeira preta, pendendo
como que descaradamente da sacada do centro, não estivesse exatamente no centro da sacada, e o
fiz notar a minha irmã, sempre odiei esse tipo de imprecisão. Antes, ao chegar, quando ainda
sozinho e insuspeitado olhara na direção do edifício principal junto ao portão, não me dera conta
desse fato, agora ele me perturbava mais do que todo o resto no momento. Minha irmã acenou a
um dos jardineiros, ele veio, e ela lhe disse para ajustar a bandeira bem no centro da sacada, não
era difícil. Ela disse apenas que tudo tivera de ser feito às pressas, o que soava como uma
desculpa no que se referia à bandeira preta, que o jardineiro deslocou prontamente para o centro
da sacada, como via de baixo, de baixo eu o orientava, dizia-lhe onde era o centro exato da
sacada, de onde a bandeira devia pender. Nessa ocasião descobri um crescente nervosismo em
mim, que porém logo tentei reprimir dizendo a minha irmã Caecilia como ela ficava bem de
vestido preto, o preto te cai melhor, disse a ela, não falei com má intenção, mas ela naturalmente
presumiu assim, não me supunha capaz de um comentário sincero, sem segundas intenções,
acreditava de imediato numa infâmia, portanto não deu resposta a meu elogio. Não, disse, é
sério, esse vestido preto te cai feito uma luva. Ela fez como se não fosse com ela. Ergueu a vista
às pombas encarapitadas nos parapeitos das janelas e que este ano já haviam emporcalhado tanto
esses parapeitos que a impressão era de embrulhar o estômago. As pombas eram um problema
grave em Wolfsegg, entra ano, sai ano, e elas sempre encarapitadas às centenas nos edifícios,
emporcalhando e arruinando tudo. Sempre odiei as pombas. Erguendo a vista às pombas nos
parapeitos das janelas, disse a Caecilia que minha vontade era a de envenenar todas as pombas,
elas arruinavam os edifícios, cheiravam mal, e além disso quase nada me era tão repugnante
quanto seu arrulho. Já de criança eu odiava o arrulho das pombas. O problema das pombas era de
fato velho de séculos, nunca foi solucionado, sempre só se discutiu e praguejou a respeito, mas
nunca lhe foi dado uma solução. Sempre odiei as pombas, disse a Caecilia, e comecei a contar as
pombas uma a uma, num único parapeito estavam encarapitadas treze cabeças, espremidas em
sua própria imundície. As moças devem pelo menos limpar as titicas de pomba dos parapeitos
das janelas, disse a Caecilia, e surpreendeu-me que as titicas de pomba não tivessem sido limpas
antes do casamento. Tudo eles limparam, mas não, evidentemente, as titicas de pomba dos
parapeitos das janelas. Uma semana antes isso não me chamara a atenção. Caecilia não disse
nada sobre meus comentários a respeito das pombas. Os jardineiros tinham deixado um
vagabundo pernoitar na vila das crianças, ela disse depois de uma longa pausa, durante a qual me
penetrou subitamente a dúvida se havia dado os livros certos a Gambetti, se não teria sido
conveniente lhe dar também Effi Briest de Fontane, e os vagabundos haviam acendido um fogo
que provocara um incêndio no quarto térreo em que os vagabundos pernoitavam. Porém os
jardineiros tinham conseguido apagar o incêndio, os vagabundos desapareceram logo depois de o
incêndio deflagrado, para onde, ninguém sabia, mas também não fazia diferença, pois de todo
modo eles não seriam mais encontrados, o quarto que pegara fogo era aquele no qual
guardávamos nossas marionetes de infância, todas aquelas marionetes haviam sido queimadas,
disse Caecilia. E ao dizer isso olhava, por sobre o vilarejo, as montanhas. Justo as marionetes de
infância, pensei, sem conseguir dizer algo sobre essa ocorrência. Inspirou minha simpatia que
fossem vagabundos que tivessem pernoitado na vila das crianças e causado o incêndio, pois não
pensara que ainda houvesse vagabundos, pensei que eles estivessem extintos havia muito tempo.
E pensei ser natural que os jardineiros houvessem deixado os vagabundos pernoitar na vila das
crianças. Caecilia provavelmente esperava que eu dissesse agora algo contra os jardineiros, mas
muito pelo contrário, para sua grande surpresa, elogiei agora os jardineiros de modo todo
particular, que eles eram os mais fiéis, disse, os mais confiáveis, os mais naturais, os meus
prediletos. Era justo porque Caecilia esperasse agora de mim algo contra os jardineiros que eu
falava bem deles, elogiava-os sem nenhum fundamento, como eu próprio sentia. Vou fazer com
que se restaure a vila das crianças, disse de repente, e essa declaração, segundo acreditava,
absolutamente marginal, foi como um choque para Caecilia, ela ergueu a vista e me fitou direto
nos olhos. Com essa declaração eu me fizera de fato patrão de Wolfsegg, pois dissera
literalmente, vou fazer com que se restaure a vila das crianças, nunca antes eu dissera que iria
fazer com que se restaurasse algo em Wolfsegg, pois para tanto até hoje não tivera direito, pelo
contrário, aqui todos os direitos sempre me foram tolhidos, havia décadas era privado de direitos,
nunca desfrutei, desde o início, do menor direito que fosse em Wolfsegg, essa é a verdade. A vila
das crianças é uma jóia, disse, ela deve ser restituída ao que foi um dia, em exata conformidade
aos quadros antigos, disse. E tive a idéia de começar a restauração da vila das crianças no tempo
mais breve possível, minha vontade era enorme. Também a feitoria deve ser restaurada, disse, a
feitoria está abandonada às traças. O que não falta é dinheiro, disse, Caecilia calava e me deixava
falar. Esse era seu antigo método, deixar-me falar até que falasse muito mais do que devia, mais
do que fosse sensato, até que desse com a língua nos dentes, então ela triunfava. Também desta
vez eu falei demais e me traí. Vou chamar além disso meu restaurador de Viena, a fim de que ele
catalogue nossos quadros e estime seus valores, disse. Mal dissera isso, senti-me constrangido e
tentei desviar o assunto. Não esperava, disse, estar tão cedo de volta a Wolfsegg. Não queria
mais voltar por um bom tempo, disse. Roma é ideal para mim. Não posso viver em nenhuma
outra cidade, e no campo muito menos. Wolfsegg está agora fora de cogitação para mim. Talvez
não devesse também ter feito esse comentário, pensei. A vila das crianças é meu edifício
favorito, disse. Você se lembra quando representamos Confúcio, que nós próprios inventamos e
escrevemos? Não sabíamos nem o que ou quem era Confúcio, mas a palavra Confúcio nos deu
inspiração para fazer uma peça. Aliás, onde foram parar essas peças que escrevemos? perguntei a
Caecilia. Ela não sabia. Só podem estar no sótão da vila das crianças, disse. A última vez que as
vi estavam no sótão da vila das crianças. Você pintou seu mais belo cenário para Confúcio, disse.
E Amalia foi uma magnífica Confúcia. As bibliotecas têm de ser abertas, disse. Todos aqueles
livros têm de ser arejados. Não sabemos nem que tesouros temos ali, enfurnados, cobertos de pó,
disse. Pouco a pouco Wolfsegg deve se tornar novamente viva, como a imagino, disse. Caecilia,
muda. Décadas a fio nossos pais trancaram tudo, disse. Olhei de novo na direção dos jardineiros,
dois caçadores entraram pelo portão do muro, viram-me e cumprimentaram-me de longe. Só a
caça, sempre só a caça, disse, e pensei, agora estou ainda mais sozinho que antes. As pombas
arrulhavam de forma tal que ergui de novo a vista às janelas, sobretudo as do andar superior.
Sempre que vai chover elas arrulham de maneira particularmente abominável, disse. Aliás meu
aluno Gambetti, disse, também odeia as pombas. Roma está cheia de pombas, em Roma elas
destroem tudo o que há de belo, toda a arquitetura. As pombas têm de ser dizimadas, disse, e no
mesmo instante me senti constrangido por ter pronunciado a palavra dizimadas. Um dos
jardineiros veio até nós e me perguntou se devia mesmo pôr mais um calço no caixão fechado.
Deve, disse minha irmã, embora o jardineiro houvesse perguntado expressamente a mim. Ele se
retirou, para com um colega pôr mais um calço no caixão de minha mãe. O melhor de Wolfsegg
são os jardineiros, disse a Caecilia. Ela fez como se não houvesse escutado. O acidente
aconteceu, como se diz, quarta-feira à noite. Na cozinha, bem à vista, havia uma pilha de jornais
que as moças da cozinha haviam comprado, eu entrara na cozinha para pelo menos filar um
chamado cafezinho e meus olhos pousaram de imediato na pilha de jornais sobre a mesinha da
cozinha ao lado da janela. Embora primeiro me recusasse a fazê-lo, não pude me conter e me
sentei na cadeira para dar uma olhada nos jornais. Do modo repugnante e abjeto de sempre os
jornais noticiavam agora nossa tragédia, com um descaramento, ao mesmo tempo com uma
minúcia de detalhes que é característica de nossos jornais, a impiedade com que eles tratam
nossa tragédia, para causar sensação, era aquela impiedade cruel que sempre temi, mas ao
mesmo tempo sempre admirei, ao ler as tragédias alheias, o chamado sangue-frio que em tais
casos vai para o prelo sem o menor embaraço e é devorado com avidez pelo público, por mim
também, pois, no que se refere ao sensacionalismo primitivo, sempre fui um desses ávidos
leitores de jornal, tanto hoje quanto de criança; mas desta vez, como é natural, as notícias sobre
nossa tragédia logo me causaram asco. Meus pais foram com Johannes a Steyr para inspecionar o
novo modelo de uma debulhadora americana num revendedor de máquinas agrícolas da cidade, a
exemplo de todas as máquinas agrícolas de Wolfsegg, a debulhadora desejada também tinha de
ser uma McCormick. Meus pais, com Johannes ao volante, passaram a tarde inteira em Steyr,
visitando amigos e fazendo compras, Steyr é um bom lugar para compras, e à noitinha foram a
Linz para assistir, na chamada Brucknerhaus às margens do Danúbio, um dos ditos centros
culturais mais abomináveis que existem, a um concerto com peças de Bruckner, sob a regência
de Eugen Jochum. Logo após o concerto, com meu pai ao volante, eles haviam retornado a
Wolfsegg e então, pouco depois de Wels, na Rodovia Federal 1, onde a estrada se bifurca para
Gaspoltshofen, bem no trevo, acidentaram-se. A maneira exata de como se deu o acidente nem os
jornais sabiam, os quais não pouparam fotografias abomináveis. Delas havia até uma em
destaque, na qual figurava o tronco acéfalo de minha mãe, observei a imagem por algum tempo,
na constante angústia, como é natural, de que alguém pudesse entrar na cozinha e me pilhar em
flagrante. Bebi o chamado cafezinho, ainda quente por estar em cima do fogão quente, e abri um
jornal após o outro, todas as primeiras páginas traziam pelo menos uma foto do acidente, as
manchetes eram da mesma sordidez e vulgaridade que sempre distinguiram os jornais de
província. Afinal eles não têm a temer pelo seu nível, pois é justamente isso que os distingue aos
leitores, é isso que lhes garante as tiragens, que são enormes e rendem aos editores lucros
imensos. A absoluta vulgaridade e a igualmente vulgar falta de compostura dessas folhas de lixo
de província era o que agora sentia, não só na própria pele, mas na própria cabeça, e quanto mais,
sentado na cadeira, folheava e lia essas folhas de lixo de província, maior era minha repugnância.
Cada um dos jornais sentia-se no dever de exceder o outro em abjeção. Família extinta, dizia
uma das manchetes, e abaixo, Três espectadores do concerto irreconhecíveis de tão mutilados.
Reportagem fotográfica completa em encarte especial, li, e no ato procurei essa reportagem. E o
fiz, devo dizer, com o maior despudor que se possa imaginar, folheando sem descanso a gazeta
que já na primeira página anunciava a reportagem e de olho na porta da cozinha, na angústia de
ser flagrado em meu crime sem dúvida repugnante, não devo me absorver nessa reportagem,
disse comigo, se não alguém acaba entrando na cozinha sem que eu perceba e me apanha em
flagrante. Foi assim que li, pela primeira vez minhas mãos tremiam, que li quase tudo o que os
jornais escreveram sobre os meus, e durante a leitura tive a impressão de que os jornais
escreviam, sim, com suprema mentira, mas ao mesmo tempo também a verdade, escreviam com
a maior vulgaridade possível, mas ao mesmo tempo nada mais que os fatos, que essas
reportagens tornavam tudo irreconhecível de tão mutilado, como eles próprios escreviam sobre o
corpo de minha mãe, mas que ao mesmo tempo nada mais eram que autênticos. Por mentiroso
que seja tudo o que está nos jornais, também disse comigo enquanto lia, verdadeiro ele é na
realidade, afinal os jornais não escrevem, quando escrevem mentiras, nada mais que a verdade, e
quanto mais mentiras escrevem, mais verdadeiras elas são. Isso é o que sempre constato ao ler
jornais, que os jornais nada mais são que mentirosos, mas ao mesmo tempo também não
escrevem mais que a verdade, desse absurdo nunca escapei ao ler jornais, mesmo agora, lendo as
reportagens da tragédia que nos dizia respeito, sem dúvida uma das mais terríveis na história
rodoviária da Alta Áustria. Uma das imagens retratava a cabeça de minha mãe, que um delgado
fiapo de carne unia ainda ao tronco sentado no carro, e na legenda abaixo o jornal dizia: A
cabeça seccionada do tronco. O acidente, como é natural, também deu a possibilidade de os
jornais escreverem algo sobre Wolfsegg, absurdos, como se pode imaginar. Meus pais eles
diziam ser um casal feliz no casamento, que dedicara sua vida ao trabalho e ao bem comum,
meu irmão eles definiam como um dos melhores caçadores do país, meu pai uma vez era o
silvicultor conhecido por sua ponderação, outra vez o ilustre conselheiro agrícola, uma terceira
vez o estimado perito em caça, o abnegado presidente da Associação dos Agricultores da Alta
Áustria. Um jornal publicou a foto que mostra Johannes em seu barco a vela em SanktWolfgang,
com a legenda: Um retrato dos tempos felizes; não sei como a foto foi parar na mesa de redação
desse jornal, é inexplicável para mim. O Linzer Volkszeitung imprimiu a manchete Extintas duas
gerações em vermelho. Em nenhuma reportagem faltava a menção de que a nossa era uma
família cristã, meu pai um benfeitor da Igreja, minha mãe uma mulher boa. Deixam um filho que
vive em Roma, onde desenvolve suas atividades de acadêmico, e suas duas irmãs, escreveu o
Linzer Volkszeitung. O enterro está marcado para sábado à tarde, li. Wolfsegg perdeu seu chefe,
li. O tirante transpassou todo o veículo, como se podia ver claramente numa das imagens, e
seccionou e arremessou contra o vidro de trás do carro a cabeça de minha mãe, os três, meu pai,
Johannes e também minha mãe permaneceram sentados em seus lugares. Com todo o ímpeto o
carro abalroara o caminhão, que, supõe-se, freou de repente na bifurcação para Gaspoltshofen. O
carregamento de tirantes destinava-se a uma empresa de Schwanenstadt. Os jornais falavam de
culpa do caminhoneiro, que porém não pode ser judicialmente responsabilizado, pois a culpa é
sempre do carro que abalroa outro. A população compadece-se imensamente com a desgraça, li.
A bênção será dada pelo arcebispo de Salzburgo, um amigo da família, li. O arcebispo de
Salzburgo foi à escola com meu pai, ambos freqüentaram o internato do liceu de Lambach. Um
vilarejo inteiro de luto, li. Ouvi passos no corredor e levantei. Repus os jornais sobre a mesa
como os havia encontrado, sobre os jornais os óculos da cozinheira. A cozinha é uma grande
abóbada, quando crianças foi durante anos nosso lugar preferido, pois na cozinha sempre fazia
calor, mesmo no inverno mais rigoroso, ao contrário do resto da casa, onde o aquecimento
sempre foi péssimo. E a cozinha também sempre foi para nós crianças o lugar mais divertido até
os cinco, seis anos, até que conheci a valer os jardineiros, fiz amizade com eles, e Johannes os
caçadores, por quem ele se decidiu. A cozinheira está conosco há décadas. Ela me chamou de
patrão no mesmo instante; para ela essa denominação transmitira-se com toda naturalidade do
meu pai para mim. Era a meu irmão que essa denominação se destinava, agora eu tinha de
suportá-la. Ainda não me dera conta do que esse título, em toda sua extensão, significasse para
mim. Se o patrão queria talvez beber um café, perguntou a cozinheira, e eu disse que acabara de
beber um cafezinho. Se o patrão queria talvez ler os jornais, perguntou ela no mesmo tom. Não,
disse, de imediato me refugiei na mentira, embora ao mesmo tempo tenha pensado, a cozinheira
com certeza sabe que nesse meio tempo eu li os jornais, que me atirei a eles avidamente, mais
uma vez disse, não, obrigado, o que não soou nada convincente. As chamadas pessoas simples,
como se diz, têm um ouvido aguçado para o tom de voz falso, para o uso mentiroso da língua.
Ela não sabia ainda quantos seriam os convidados para o enterro, disse a cozinheira, isso a punha
preocupada, mas provavelmente o patrão também ainda não soubesse. Disse que não sabia, não
sabia nada de nada, tinha acabado de chegar de Roma. Ah, de Roma, disse a cozinheira.
Desaprendi a conversar com gente simples, a trocar com ela dois dedos de prosa, pensei, isso me
deprimiu, em Roma desaprendi o contato com gente simples, pensei. Antes teria sido fácil para
mim conversar com a cozinheira, perguntar-lhe algo, ouvir a resposta, perguntar algo de novo e
assim por diante. Essa capacidade, de súbito não a possuía mais. Com os jardineiros tivera sorte,
conseguira conduzir do modo mais natural uma breve conversa com eles, com a cozinheira fui
malsucedido, provavelmente porque o tempo inteiro eu pensei, ela sabe que me atirei avidamente
aos jornais, coisa que deve ter achado pelo menos indecente, que me flagrou num ato baixo, me
pilhou numa conduta sórdida, por outro lado pensei que era a coisa mais natural, numa tal
situação dominada do início ao fim pelo horror, estar eu próprio horrorizado e nervoso e incapaz
das banalidades mais triviais, como justamente trocar do modo mais simples dois dedos de prosa
com a cozinheira; não via assim razão para me censurar, nem razão para espanto, mas achei
humilhante ser flagrado pela cozinheira numa conduta sórdida, encarava aquela mulher como se
houvesse cometido um crime, e nesse meio tempo ela percebera que seus óculos não estavam
mais sobre a pilha de jornais na posição que os deixara, isso pode ser até imaginação minha, mas
acreditava ela soubesse que escarafunchei a pilha de jornais e devorei avidamente tudo sobre a
tragédia, com a voracidade que sempre tive quando ponho as mãos nos jornais, embora essa
voracidade já tenha esmorecido, ela não é tão grande quanto antes, pensei. A cozinheira pode ver
que sou sórdido e abjeto, pensei, ela nota isso em mim, explora essa certeza contra mim, pensei,
observando-me com ar inquiridor, coisa incomum numa chamada pessoa simples, ainda mais
numa mulher, pensei. Ao fazê-lo ela escondia as mãos atrás das costas, como se amarrasse o
avental, mas isso era pura dissimulação, gerada pelo embaraço de ser por sua vez flagrada num
ato de desrespeito, num ato de desrespeito absolutamente fora de cabimento, segundo pensei, ela
mostra a abjeção de sua parte, pensei, sua sordidez, fitando-me com ar inquisidor. Isso não era
jeito de olhar o patrão, pensei, por que comigo seria diferente? Por outro lado eu sabia estar
numa posição muito mais constrangedora, pois minha sordidez viera primeiro, a sua apenas
como reação à minha, meu despudor absolutamente não se comparava ao seu, seu despudor é
ridículo, pensei, defronte ao meu, que é brutal, pois devia ter me proibido olhar os jornais,
deveria tê-los ignorado, mas isso teria sido falsificar meu caráter, que exigia esse folhear ligeiro
dos jornais. A cozinheira pousou a vista de tal forma na pilha de jornais que tive a sensação de
que me pilhara em flagrante, sem sombra de dúvida. Por um instante a odiei. Mas então vi que
ela é quem estava com medo de mim, o que instantaneamente me fez assumir uma outra atitude
com relação a ela, não mais de ódio direto, pois sem dúvida ela havia podido ler no meu rosto
que me sentia culpado e pensava que ela me houvesse desmascarado. Teria sido afinal uma
imperdoável estupidez ter medo de uma pessoa como a cozinheira, mesmo que por um instante,
de uma pessoa que afinal depende de mim e em última análise é estúpida da maneira mais
inofensiva. Para ser sincero, não me agradam esses rostos camponeses túmidos e rosados, por
assim dizer espessos de tanta estupidez. No fundo sempre os odiei, ainda que isso seja injusto,
pois precisamente nesses rostos camponeses túmidos e rosados reside também a benevolência,
como em nenhum outro. Mas precisamente essa benevolência sempre me foi suspeita, pensei.
Tal como a benevolência em geral, e em geral o conceito de benevolência, que não me diz nada,
que no fundo me repugna. A cozinheira me conhece desde criança, pensei, não tenho nada a lhe
esconder, não posso lhe esconder nada, por que então me irrito com ela? pensei. Ela me conhece
até a medula dos ossos. Mas naturalmente, pensei, também nisso estou enganado, pois afinal o
que sabe essa cozinheira sobre o que ou quem eu sou, é ridículo sequer se preocupar com a
relação da cozinheira comigo. Não, disse, chega de café, dissera isso num tom rabugento e saíra
da cozinha. Caecilia veio a meu encontro, atrás dela Amalia e atrás de Amalia o fabricante de
rolhas para garrafas de vinho, meu cunhado. A seu cunhado e à palavra cunhado você vai ter de
se habituar, pensei. Os três se postaram de improviso diante de mim, como se quisessem me
acusar. Não sabia como chegara a essa idéia absurda, mas pensei, de repente eles se postam
como acusadores diante de mim, de mim, que eles acusam sabe-se lá por que razão, por todas as
razões, possivelmente. Mas Caecilia disse somente que estavam indo à feitoria, lá fariam os
acertos com os caçadores que deveriam carregar os caixões nos ombros durante o enterro, era
preciso acertar quem carregaria qual caixão e assim por diante. Como só se falava que os
caçadores carregariam os caixões, eu disse que naturalmente também os jardineiros haviam de
carregar os caixões, irritava-me ter de falar continuamente sobre caixões, isso era o insólito de
toda a conversa, dizíamos seguidamente caixões, quando afinal é comum falar só de um caixão
em tais circunstâncias. Os caçadores não têm condição de carregar todos os caixões, disse. Os
caçadores e os jardineiros vão carregar os caixões, disse, dois caixões vão ser carregados pelos
caçadores, um caixão pelos jardineiros. O caixão de papai carregam os caçadores, naturalmente
também o caixão de mamãe, disse, os jardineiros carregam Johannes. Durante essa conversa
sobre quem carregaria os caixões, Caecilia e Amalia puseram de parte o fabricante de rolhas para
garrafas de vinho; de súbito ele se viu em segundo plano, sem ter voz ativa. É óbvio, disse, que o
caixão de mamãe seja carregado pelos caçadores, ao declarar isso pensava na relação que minha
mãe tivera com os caçadores, e que papai seja carregado pelos caçadores também é claro, pois
ele era o caçador deles, durante décadas fora o monteiro-mor provincial, como se diz. Esse título
lhe fora concedido no período nazista e ele o conservou, depois de encerrado o período nazista,
por mais duas décadas. Primeiro os caçadores carregando papai e mamãe, e atrás os jardineiros
carregando Johannes, é bem simples, disse. Súbito minhas irmãs grudavam-se agora a mim como
sanguessugas. Tudo elas punham nas minhas costas, como se havia muito já tivessem posto nas
minhas costas toda Wolfsegg, pareceu-me. Quando as vi juntas em seus vestidos pretos, elas me
deram a mesma impressão cômica, e ao mesmo tempo repugnante, que em seus vestidos de mau
gosto à moda tirolesa. O ar sardônico desaparecera de seus rostos, restara a amargura, súbito elas
tinham rostos enfermiços, de um branco-cinzento, ainda mais deprimentes pelos trajes pretos que
minhas irmãs vestiam. Falasse uma delas, a outra também não via a hora de falar, súbito uma
cortava a palavra da outra, como se ali nada houvesse mudado. Seus cabelos estavam penteados
para trás da mesma maneira, via que usavam os mesmos sapatos. Amalia, de regresso da casa
dos jardineiros para o prédio principal, pensei, voltara a ser a velha irmã de Caecilia, colegas de
conspiração. Mas não mais contra mim, senão de repente para mim, como sentia, porém
justamente isso me repugnava, seu oportunismo descarado, vertido inteiramente sobre mim com
a morte de meus pais e de meu irmão. Minhas irmãs, para quem eu fui décadas a fio o monstro, o
sórdido renegado, agora se grudavam elas a mim, bancando as desamparadas. Mas não devia ir
longe demais nessa sensação e nesse pensamento, para não perder o controle, pensei, vou me
comportar com toda a calma. Aos poucos elas quiseram me esclarecer como se dera o acidente,
quando isso já me fora esclarecido pelos jornais, uma intrometia constantemente suas palavras
nas palavras da outra, e meu cunhado não tinha a menor chance de dizer coisa alguma. Deixei-as
falar, apurando assim que seu relato da tragédia era totalmente diverso daquele dos jornais, cada
um relata, por assim dizer, a sua tragédia, como ele a vê, como os jornais a vêem é totalmente
diverso de como minhas irmãs a vêem e como provavelmente meu cunhado a vê, da mesma
tragédia todos eles estão longe de dar o mesmo relato, cada um a seu modo relata uma tragédia
diversa, quando afinal se trata da mesma tragédia, pensei, tal como lemos sobre um único e
mesmo fato tantos relatos diversos quantos são os jornais, assim também relatavam minhas
irmãs, cada uma a seu modo, uma única e mesma tragédia sempre de maneira diversa, de sorte
que se trata afinal de tantas tragédias quantas são as pessoas que as relatam. Cada um relata a
tragédia como a vê por meio de suas sensações, e embora se trate sempre de uma única e mesma
tragédia, sempre se trata afinal de uma tragédia diversa, pensei. Caecilia relatava uma tragédia
totalmente diversa da de Amalia, Amalia também interrompia constantemente o relato de
Caecilia, Caecilia, por sua vez, o relato de Amalia. Meu cunhado nada tinha a dizer. Enquanto
Amalia falava sempre de uma barra de ferro que decepara a cabeça de minha mãe do seu tronco,
Caecilia falava sempre de peça de tirante que perfurara a cabeça de minha mãe. Eu não dizia
nada, pois não queria trair que já tinha ciência de todas as reportagens dos jornais, e em hipótese
alguma podia revelar que lera essas reportagens dos jornais na cozinha, não cogitava em causar a
pior das impressões justo no primeiro dia. Minhas irmãs eram da opinião de que eu ainda não
sabia praticamente nada do acidente, e assim deram rédea larga a seu discurso, a seu modo de
cuspir tudo aos brados e sem a menor disciplina. A polícia de Lambach fora a primeira a avisá-
los. Quando elas estavam para se deitar. Em vez de irem para a cama, tiveram de tomar a estrada
para Lambach a fim de identificar os corpos, como se expressou Amalia. O carro ficara
completamente destruído, na escuridão que reinava no local do acidente, sob as lanternas dos
policiais, elas foram por estes obrigadas a enfiar suas cabeças no interior do veículo
completamente destroçado, para não haver engano na identificação dos três defuntos. Ao longo
desse relato não me foi difícil pensar que o caráter de minhas irmãs era ainda muito mais baixo
que o meu. Seu nervosismo durante o relato não pudera encobrir seu sangue-frio. Ridículo, como
as duas disseram quase em uníssono, que meus pais e Johannes ainda houvessem sido primeiro
transportados a Wels numa ambulância, muito depois de mortos. A polícia agira com correção.
Claro que o acidente causara grande espécie na vila e nos arredores, vários camponeses das
redondezas acorreram ao local. Parte deles em pijamas abotoados pelo meio, disse Amalia. A
princípio elas não mencionaram que meu cunhado também estivesse com elas, embora tenha sido
ele que as levara ao local do acidente no seu carro. Embora houvessem tido de cumprir logo
todas as formalidades possíveis, encerradas estas foram elas condenadas à completa inércia até a
manhã seguinte. Amalia fora primeiro ao correio para me enviar o telegrama. Elas também
teriam podido telefonar, mas escaparam dessa provação enviando-me o telegrama, o que eu
compreendo. Haviam mandado então meu cunhado à feitoria em busca das bandeiras fúnebres, e
também fora ele que pendurara a primeira bandeira fúnebre, suspensa da sacada. Primeiro houve
um silêncio pavoroso, disse Caecilia. Amalia primeiro fora ter com os caçadores e lhes relatara o
acidente, eles já estavam encafifados onde diabos fora parar o carro com que os patrões haviam
ido a Steyr na tarde anterior. Caecilia informara aos jardineiros. Caecilia dissera a Amalia que
deveria, junto com o meu, expedir também um telegrama a Spadolini, o texto desse telegrama a
Spadolini dizia: Mamãe morta. Caecilia, Amalia. Contavam sem falta com o comparecimento de
Spadolini ao enterro. Primeiro elas haviam pensado até em fazer com que o próprio Spadolini
rezasse a missa fúnebre, o arcebispo Spadolini, mas então, certas de meu consentimento nesse
ponto, decidiram-se pelo arcebispo de Salzburgo, com boas razões, disse Amalia. Também a
chamada bênção seria dada pelo arcebispo de Salzburgo. O próprio Spadolini se manterá com
certeza em segundo plano, disseram. Por outro lado, pensavam que lhes pesaria uma culpa
irreparável recusar a minha mãe que Spadolini rezasse a missa e desse a bênção, mas esse
pensamento expresso a mim era hipócrita, como logo vi. Certo, era de fato oportuno fazer com
que o arcebispo de Salzburgo rezasse a missa e desse a bênção, consegui porém me conter para
que não dissesse a minhas irmãs que era óbvio fazer com que Spadolini rezasse a missa e desse a
bênção, guardei para mim o mau gosto de dizer que o amante de nossa mãe devia sem falta rezar
a missa e dar a bênção. Não podia me tornar culpável pelo resto da vida com uma tal declaração
insolente, então disse a minhas irmãs que ficasse assim, que o arcebispo de Salzburgo rezasse a
missa fúnebre e desse a bênção, isso elas já tinham decidido havia muito sem mim e não se podia
mais modificar. Com essa concessão e esse meu consentimento a seus arranjos ganhei uma certa
vantagem, além disso falei ainda que, afora o arcebispo de Salzburgo e Spadolini, viriam ao
enterro pelo menos outros três arcebispos, o de Linz, de quem nosso pai era tão amigo quanto
dos dois outros, de Innsbruck e Sankt Pölten. Também com esses bispos meu pai foi à escola e o
contato entre eles e meu pai, enquanto meu pai esteve vivo, nunca se rompeu, nem mesmo no
período nazista, pensei enquanto dizia a minhas irmãs, os bispos sempre tiveram uma boa relação
com nossos pais, até mesmo no período nazista. Não pude resistir a esse comentário, aliás ele
vinha a propósito, pois impedia que a intimidade com minhas irmãs se tornasse por demais
sentimental e portanto falsa. No fundo tinha pavor desse enterro como de nenhum outro, todos
aqueles que ocorreram nos últimos anos nos arredores de Wolfsegg não eram nada, súbito vi com
toda a clareza o que me esperava sábado, o dia do enterro. Como é verdade o que eu dissera a
Zacchi por telefone, que uma catástrofe se abatera sobre mim, pensei enquanto minhas irmãs se
voltavam a meu cunhado, mais ou menos para lhe dar uma ordem, segundo pensei, disseram-lhe
que fosse a nossa frente à feitoria e averiguasse se lá ainda não havia duas das chamadas
mortalhas no sótão, como Caecilia afirmava, numa grande caixa com o rótulo Sunlicht, estive a
ponto de desatar a rir quando a ouvi pronunciar essa palavra Sunlicht com toda desenvoltura, no
tom estúpido que lhe é próprio, mas me contive. Está escrito Sunlicht na caixa, disse Caecilia a
seu marido, que na hora se pôs a caminho da feitoria. Ao mandar meu cunhado à feitoria, sua
intenção foi apenas, segundo pensei, ficar a sós comigo e com Amalia, queria simplesmente se
livrar da cara dele, o intruso, segundo pensei e segundo talvez até ela própria tenha pensado
nesses instantes, também ela toma de repente meu cunhado como um corpo estranho aqui,
pensei, ela, a esposa, mas o pensamento não me divertiu como teria merecido, era constrangedor.
O fabricante de rolhas para garrafas de vinho foi até à feitoria somente para que Caecilia pudesse
conversar mais ou menos em paz comigo e com Amalia, pensei. Enquanto o fabricante para
rolhas de garrafas de vinho se distanciava de nós, mal dera vinte passos, Caecilia disse que seu
marido lhe dava nos nervos, estava sempre grudado nela, ela não podia ficar um instante a sós.
Esse comentário surpreendeu-me, pois até agora tivera a impressão de que ela, Caecilia, grudava-
se em seu marido, meu cunhado, não, era ele a sanguessuga, não o inverso. Uma semana depois
do casamento ela já achava seu marido uma sanguessuga, e ainda por cima declarava isso na
nossa frente. Amalia só a custo pôde reprimir uma risada, como pude ver. Com que facilidade
uma risada dessas vem aos lábios da pessoa, mesmo numa situação terrível, pensei. Pois é, uma
situação terrível dessas como que provoca uma risada dessas, pensei. Quem se submete a tal
tensão numa desgraça como a nossa rapidamente se refugia numa risada, pensei. Amalia afirmou
que meu cunhado não as ajudara em nada no seu desespero, ficara de pé em seu quarto, defronte
da janela, não haviam podido arrancar nada dele, vezes sem conta tinham-no implorado que as
ajudasse, por exemplo que telefonasse à agência funerária em Vöcklabruck, por elas contratada,
ele não levantara uma palha, disse Amalia. Falava somente do choque que lhe causara o acidente,
sem pensar que o acidente era afinal um choque tanto maior para sua mulher e a irmã dela, que
contudo não puderam se trancar em seus quartos, como ele no seu, para não fazer praticamente
nada. Gente da laia do meu cunhado, eu disse, nunca está à altura de tais desgraças, essa gente
fica prostrada por uma tal desgraça brutal e não tem forças para se reerguer, não como nós, disse,
a quem uma tal desgraça atinge de forma muito mais profunda e brutal e também nos prostra,
mas logo nos reerguemos e a superamos. No mesmo instante me arrependi dessa frase, mas não
podia retirá-la, nós a superamos, dissera efetivamente, os outros não, com isso nada mais queria
dizer senão que aprendemos a lidar com tal desgraça, por maior que ela seja, por mais sórdida,
mas o pequeno-burguês não; naturalmente não pronunciei a palavra pequeno-burguês, que se
endereçava de propósito a meu cunhado, só a pensei comigo. O pequeno-burguês, pensei, é
dilacerado por uma tal desgraça e ainda por cima faz praça desse seu sentimentalismo, nós não.
O pequeno-burguês, tal como o proletário, nunca tem a força que temos para superar uma
desgraça tão brutal, pensei. Disse a minhas irmãs que uma tal desgraça estava acima das forças
de meu cunhado, mas isso elas não entenderam, não compreenderam o que quisera dizer, nem o
desprezo implícito compreenderam. Gente como meu cunhado, disse, tem de ser deixada de lado
após uma desgraça brutal como essa, e a nossa era brutal. Disse essa frase no instante em que o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho ainda nem sequer desaparecera na feitoria, a caminho
da feitoria eu ainda o via. Gente como nosso cunhado, ainda disse porém, no fundo tem uma
natureza muito indolente para desgraças, pois em última análise tem uma natureza muito
indolente para tudo, não tem a visão fria do mundo que temos quando se faz necessário. Não
hesitei em pronunciar o que agora pensava, e disse a minhas irmãs, meu cunhado não serve para
nós. Ao que Amalia limitou-se a fazer uma careta, Caecilia virou-se, em silêncio, decerto para
ver onde estava meu cunhado, mas ele já entrara na feitoria. Gente como o honrado fabricante de
rolhas para garrafas de vinho tem uma concepção de vida absolutamente sentimental, pensei sem
dizê-lo, que nós não temos. O sentimentalismo nela é o que repugna. Mas o sentimentalismo é
também a sordidez com que ela se ocupa a vida inteira em prejuízo de todos. O sentimentalismo
dessa gente, que lhe torna tudo tão cômodo, é a desgraça do mundo. O sentimentalismo, que ela
ostenta sem parar e que a torna repugnante àqueles como nós, pensei. Disse a minhas irmãs que
meu cunhado se aventurara em terreno escorregadio em Wolfsegg. Amalia achou nisso motivo
de riso, Caecilia não, ela que permaneceu calada, ela que depois dessa minha declaração só se
voltou para mim e me encarou friamente nos olhos. Seu erro, no que se refere a esse casamento
absurdo, foi com isso admitido, esse olhar não me enganava. Nem oito dias, pensei, e a cena está
totalmente subvertida, não podia ser mais diabólica. Só um louco podia se casar com você, disse
a Caecilia, não falara com a rispidez que ela ressentiu no mesmo instante, e me arrependi da
frase, o que dissera como brincadeira calara fundo, como podia ver, Caecilia continua a me odiar,
pensei, esta é a velha Caecilia. E Amalia lhe assistia nesse ódio de irmã contra mim. Mas agora
tenho de me haver com as duas, pensei, e ao mesmo tempo senti pena delas, pois, embora ainda
não tivesse uma noção, não digo precisa, mas aproximada, daquilo que minhas irmãs haveriam
de suportar nos próximos tempos, tinha uma vaga idéia, e que essa vaga idéia era ruim, isso me
estava claro. Para Caecilia, que de Baden o trouxera a Wolfsegg para ofender sua mãe, puni-la a
sua maneira, o marido de Freiburg im Breisgau, o mais católico de todos os redutos católicos,
súbito tornou-se incômodo. Uma semana depois do casamento ela por assim dizer lhe descia a
lenha, pois a razão pela qual se casara com o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, qual
seja, minha mãe e seu modo de agir contra Caecilia e Amalia no tocante aos homens, e portanto
ao futuro de suas filhas, de repente cessara, deixara de existir, a morte de minha mãe retirara a
razão de ser a esse casamento, disse comigo, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho já se
tornara supérfluo, só ele próprio ainda não percebia isso, na cabeça de minhas irmãs, portanto
não só de Caecilia, pensei, já se começou a maquinar aquilo que naturalmente ainda não
ousavam tornar manifesto, mas que já era evidente em seu modo de agir, em seu comportamento
com o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, a idéia de como livrar-se de súbito, da noite
para o dia, do imprestável. Ele me dá nos nervos o tempo inteiro, disse Caecilia várias vezes,
Amalia ficou calada. Não era mais possível, quanto ao fabricante de rolhas para garrafas de
vinho, manter a fachada, por trás dela já não se entrevia nada além de uma aversão que se
aprofundava incessantemente. Meu cunhado fora enviado lá para baixo com um pretexto
ridículo, para que desabafassem sobre ele comigo, segundo pensei, bem à maneira de minhas
irmãs, pelas costas. Ele já lhe dar nos nervos o tempo inteiro só provava que ele sempre lhe dera
nos nervos o tempo inteiro, que apesar disso ela o atraíra e trouxera a Wolfsegg, e a tia do Titisee
a auxiliara em sua infinita sordidez só para punir sua cunhada, nossa mãe. A tia do Titisee
chegará da Floresta Negra e irá se esgueirando até a primeira fileira dos parentes próximos,
ciente de seu triunfo, pensei. Mesmo se o casamento de Caecilia com seu marido já pudesse ser
tido agora como fracassado, o triunfo da tia do Titisee era tanto mais esplêndido, afinal ela
alcançara o que queria, desferir um golpe em sua cunhada com esse casamento a que primeiro
persuadira a sobrinha, minha irmã, mas que depois se realizara de fato com tremenda rapidez.
Que aquela contra quem se dirigiram o complô e a manobra esteja agora morta, pensei, não
ofusca em nada o triunfo da tia do Titisee, agora só minha irmã é quem tem de pagar a conta de
sua abjeção. O fabricante de rolhas para garrafas de vinho estava lá e começava a representar seu
papel, por ridícula que seja a performance desse homem, pensei, será difícil se desfazer dele, em
todo caso Caecilia terá enorme dificuldade nisso, a mim pode ser em última análise indiferente,
pois em breve o boto para fora de Wolfsegg sem rodeios, quando quiser, basta uma decisão de
minha parte, não tenho intenção de tolerá-lo por mais tempo em Wolfsegg, disse comigo, mesmo
minha irmã em breve não vai estar mais em Wolfsegg, talvez ela sinta o que penso, pensei, talvez
o saiba até com certeza, não é problema meu quebrar a cabeça com isso. Quando se casa do
modo tão grotesco como minha irmã se casou, contra todo o bom senso e ainda mais com plena
consciência, a nubente, portanto ela própria, tem de arcar sozinha com as conseqüências, pensei.
O casamento com um fabricante de rolhas para garrafas de vinho não pode prescindir de
conseqüências dolorosas. Tais conseqüências dolorosas, constrangedoras mesmo, já se tornaram
evidentes. Nós advertimos, mas não nos dão ouvidos, pensei, dizemos e repetimos sempre a
mesma coisa, mas os ouvidos aos quais se destina o que dizemos não ouvem, os ouvidos de
minha irmã Caecilia não ouviram, pensei, o que lhe disse, não se meta com o fabricante de rolhas
para garrafas de vinho, não se meta nessa forma perversa de sordidez contra nossa mãe. Assim
nossa tia do Titisee tornou-se duplamente culpada, pensei, em relação a minha mãe tanto quanto
em relação a Caecilia, em relação a nós todos. Ela jamais pôde superar o fato de que minha mãe
a tivesse por assim dizer banido de Wolfsegg trinta anos atrás, de que minha mãe não a tivesse
mais tolerado ao lado de meu pai, seu irmão, banindo-a para a Floresta Negra num pequeno
pavilhão de caça que sempre nos pertenceu. Tudo obra de sua querida tia do Titisee, disse a
Caecilia. Ela compreendeu. Meu tom não era de consolo, porém de absoluta reprovação, um tom
que não se perdoa. Ele me dá nos nervos o tempo inteiro, dito com essas exatas palavras e por
minha irmã, não significava outra coisa senão os primeiros indícios de ódio a seu marido. Ela
queria se ver livre dele e o enviou ao sótão da feitoria, onde ele terá muito que procurar, pensei,
pois Caecilia sabe muito bem que lá em cima no sótão da feitoria não se encontra nenhuma caixa
com as ditas mortalhas. E afinal de contas era também um descaramento enviar seu marido para
lá, onde sempre se tinham enviado somente os criados. Ele não sai do meu lado também não
significava outra coisa senão que minha irmã já execrava o fabricante de rolhas para garrafas de
vinho. Não consigo dormir de janelas fechadas, ela disse, enquanto ele só quer dormir de janelas
fechadas, a todo instante escancaro as janelas, ela disse, ele as fecha novamente, a noite inteira.
Em sua voz não havia nada mais senão revolta, não só indignação, o puro ódio já estava presente,
os enfeites nupciais mal haviam sido retirados, aqui e acolá ainda pendiam restos desses enfeites
nupciais, que foram esquecidos na pressa dos preparativos do enterro, como pude ver, tal como
por exemplo na própria feitoria, onde atrás das luminárias da porta de entrada ainda havia cravos
brancos, onde no fundo conviriam há muito louros fúnebres. Dizer com todas as letras que ele
tinha um cheiro desagradável, isso naturalmente minha irmã não disse, mas foi como se havia
muito dele tivesse dito também isso. Minha mãe não teria precisado refletir tanto como romper
da maneira mais rápida esse casamento, que aliás por ela sempre foi definido como grotesco,
esse pensamento ela teria podido se poupar, pensei. Esse triunfozinho eu o concedia à defunta,
agora que ela não podia mais presenciá-lo, que o casamento que ela de todo coração, como se
expressou uma vez, execrava, que lhe fora impingido pela tia do Titisee e Caecilia, porém mais
pela tia do Titisee, tenha ido para o beleléu, como se diz, já nos primeiros dias após as núpcias.
Enquanto o fabricante de rolhas para garrafas de vinho procurava no sótão da feitoria as
mortalhas na caixa com o rótulo Sunlicht, sua mulher o espinafrava, e não se envergonhava
minimamente, não se dava conta de como agia de forma sórdida e abjeta. O fio delgado que
prendia o fabricante de rolhas para garrafas de vinho a Wolfsegg já estava rompido, sem que ele
próprio pudesse sabê-lo. Caecilia bandeara-se para meu lado, e o cálculo de sua irmã Amalia era
igualmente inescrupuloso, pensei, agora elas querem salvar o que há para salvar, e para tanto
tinham de se aliar a mim, pois com toda evidência agora já se tinham dado conta de que somente
eu tinha as rédeas de Wolfsegg nas mãos. O patrão, em quem elas nunca pensaram, e se
pensaram, só com o nome de Johannes, tornara-se subitamente realidade; como elas nunca me
haviam tratado senão de maneira hostil, não esperavam nada de bom. Mas primeiro tinham de se
fazer de fracas a meus olhos, para poderem então me confrontar com toda força, pensei, via essa
como a única tática que lhes era possível, e não me enganava, disse comigo. Como tivesse
necessidade de tomar um banho ou pelo menos uma ducha, deixei minhas irmãs sozinhas e subi
ao primeiro andar. Nesse trajeto uma das moças da cozinha veio a meu encontro com minha
carteira, que eu, como ela disse, deixara na cozinha. Não pude imaginar como minha carteira fora
parar na mesa da cozinha, mas provavelmente a tirara distraído, como se diz, do bolso do casaco
e a colocara sobre a mesa, e a cozinheira, com quem eu falara primeiro, a encontrara sob os
jornais. Agora me traí, disse comigo, pois a carteira sobre a mesa com os jornais é uma prova
irrefutável. Guardei a carteira e entrei no meu quarto. Acreditamos que a mentira simplesmente
nos facilita a vida e que não seremos reconhecidos como mentirosos, pensei, e então nos
desmascara por assim dizer um indício de nossa própria distração. A viagem de avião e trem de
Roma a Wolfsegg surtira o seu efeito, de repente me sentia cansado. Meu quarto dava a
impressão de que eu tivesse acabado de sair. Não o arrumara ao partir para Roma, e nesse meio
tempo ele também não fora arrumado, eles dizem, pensei, que arrumam meu quarto assim que
saio e lhe passam ordem, mas não o arrumaram, não contavam com meu retorno imediato, então
os flagrei novamente em seu desleixo. Por outro lado, pensei, é agradável entrar no quarto e tudo
estar mais ou menos em desordem, nada estar arrumado, ninguém acreditaria ao ver agora meu
quarto que já havia uma semana que estivesse em Roma, nada o fazia supor, tudo dava idéia de
que só havia pouco o houvesse deixado, há algumas horas ou até menos. Nem minha cama fora
feita, no rebuliço geral esqueceram também, assim pensei, de fazer minha cama. Da cama não
feita com certeza nada sabem, pensei, se não a teriam feito, não a fizeram, e seu chamado
fanatismo da ordem, como diz sempre Caecilia, perdeu todo o crédito. Joguei minhas roupas no
chão e entrei nu no banheiro. Tomei uma ducha. Queria me barbear, mas não tinha mais creme
de barba, e então atravessei o corredor, nu como estava, só com uma toalha de banho nos
ombros, e entrei no quarto de meu pai para apanhar um creme de barba, de que ele, assim pensei,
agora não precisa mais, que para ele, assim também pensei, tornou-se supérfluo. No banheiro de
meu pai tudo estava tal qual meu pai havia deixado, como se a qualquer instante ele pudesse
voltar. Aqui também nada fora arrumado, o que elas estão pensando, pensei, elas que, como eu
sei, pouco têm a fazer o dia inteiro e não arrumam nem mesmo o banheiro do meu pai, nem
sequer depois de ele morto acham que vale a pena passar ordem em seu banheiro, ocorreu-me a
palavra piedade, mas a descartei de imediato por causa de sua repugnância, simplesmente a
eliminei de minhas reflexões, pensei apenas que é inquietante ver que, já quase dois dias após a
morte de meu pai, o banheiro de meu pai ainda não fora arrumado, que também isso elas
esqueceram, mas o chamado luto as justifica, pensei. Primeiro não achei nenhum creme de barba
e remexi nos armários do banheiro até haver encontrado o creme de barba, também meu pai, tal
como eu, barbeava-se sempre com água, digamos assim por princípio, ele execrava, como eu, os
chamados barbeadores elétricos, a minha pele, aliás, nem suportaria um tal barbeador elétrico,
disse comigo, e voltei com o creme de barba a meu banheiro. No corredor, por assim dizer a
meio caminho entre o quarto de meu pai e o meu, dei de cara com Amalia, que se espantou ao
me ver completamente nu, no banheiro de meu pai eu despira a toalha de banho em que antes
estava enrolado e depois a esquecera, na mais completa nudez me achava postado frente a frente
com Amalia, que, tirando ali proveito da penumbra, não acabava de me fitar, de uma maneira
que de fraternal não tinha nada, segundo pensei. Como ela permanecia imóvel e não fazia
menção de sumir da minha vista, passei-lhe à frente, do jeito que estava, e perguntei se ela afinal
nunca tinha visto um homem pelado na vida. Agora você pode ver, disse, que aparência eu tenho,
nada mal, não é, e lhe mostrei a língua, ao que ela se virou e desceu correndo ao átrio. Havia
trinta anos eu não mostrava minha língua a minha irmã Amalia, agora o fizera de novo pela
primeira vez, e isso me divertiu. Com o corpo todo refrescado e até mesmo animado por esse
incidente, pus-me a fazer a barba. Enquanto isso pensava como minhas irmãs haviam sido
estragadas com mimos, o que minha mãe fizera delas, duas adultas totalmente estragadas, não só
fisicamente estragadas, desajustadas mesmo, segundo pensava, mas também intelectualmente de
todo estragadas e desajustadas. Ensaboei meu rosto com o pincel e me olhei no espelho com
feições de palhaço, que logo mostrou a língua para si mesmo e que se divertiu tanto de mostrar a
língua que repetiu esse gesto várias vezes, por assim dizer para sua própria diversão. Não há
nada mais agradável do que se barbear após uma viagem, ainda que uma viagem breve como
essa, porém cansativa. Nu diante do espelho, mostrando a língua a mim mesmo, não tinha a
sensação de ser uma pessoa com uma expectativa de vida abaixo da normal, como até agora
acreditara. Entrei em meu quarto e me vesti, meditando sem parar, todo de preto ou não, então
me decidi por uma roupa normal de uso diário, bem discreta, por um velho casaco romano
marrom-esverdeado e a calça que lhe fazia par. Se essas minhas irmãs fossem diferentes, pensei,
não tão ranhetas, disse comigo, talvez fosse possível levar a vida com elas em Wolfsegg, mas
então pensei como seriam as coisas sem elas, pois estava claro para mim que elas não iriam
continuar em Wolfsegg comigo. Caecilia e Amalia têm de ir embora, isso é o melhor para ambas
as partes, pensei. Elas se fixaram em Wolfsegg como se aqui houvessem de ficar a vida inteira,
mas agora têm de ir embora, seja lá para onde, mas embora, pensei, para o seu próprio bem. O
espetáculo aqui está praticamente no fim, pensei, os personagens secundários de minhas irmãs,
agora que os personagens principais se encontram mortos e já amortalhados na orangerie, não
têm mais nada que fazer nesse teatro. Desceu o pano, pensei. Ainda não de todo, pensei, por
assim dizer teve início o drama satírico. A parte mais difícil de todas. Quando lá embaixo no
átrio encontrei minha irmã Caecilia, ela me pediu para ao menos pôr a gravata preta, primeiro
recusei-me, depois lhe dei razão e subi novamente a meu quarto e pus a gravata preta. Agora
vestia a roupa por assim dizer adequada para esse dia, fui até a janela e vi o fabricante de rolhas
para garrafas de vinho ir da feitoria à orangerie com uma grande caixa. Não é que meu cunhado
encontrou mesmo a caixa com o rótulo Sunlicht e as mortalhas? pensei. E eu pensava que essa
caixa não existisse. Mas a sordidez de minha irmã resta a mesma, pensei. Ela mandou seu marido
agora repulsivo, como era obrigado a dizer, ao sótão da feitoria com o único objetivo de ficar a
sós, finalmente, como ela se expressara, comigo e com Amalia. O fabricante de rolhas para
garrafas de vinho tem um jeito de andar desengonçado, desagradável, pensei, quando carrega um
peso como essa caixa, seu jeito de andar é ainda mais desagradável que de costume, ele fica
então de pernas tortas, pensei. A caixa quase o esmaga, embora não pese nada, ele a segura como
se nos ombros não tivesse a cabeça, mas aquela caixa, pensei, era um espetáculo cômico. Na
frente da orangerie um jardineiro aliviou-o da caixa, após o que ele ficou parado ali, como quem
não soubesse agora o que fazer, o desamparo em pessoa, eu até teria podido ir a seu encontro e
ajudá-lo, mas não fui, pois gente como essa não se pode ajudar, essa gente segue sendo cômica e
nunca sabe o que fazer. Os jardineiros que vinham da feitoria conversaram brevemente com ele,
depois tiveram de deixá-lo, pois estavam ocupados. Do vilarejo ouvi subir novamente trechos do
ensaio musical, agora já tinham avançado bastante com seu Haydn. Uma música circunspecta,
pensei. Meu cunhado foi até o muro para ter uma visão do vilarejo lá embaixo, observei como
ele quis passar por maior do que era, como tentou encontrar apoio numa saliência do muro, mas
sem êxito, e voltou-se na angústia de que alguém houvesse observado seu contratempo e visto
seu ridículo, a mim ele não podia ver, pois estava de pé atrás da janela de meu quarto, e através
dela não se pode enxergar de fora com essa luz vespertina, pode-se olhar a janela, mas não se vê
o que está por trás. A esta hora posso tranqüilamente ficar defronte da janela e observar tudo lá
fora, disse comigo, eu próprio não posso ser visto. O fabricante de rolhas para garrafas de vinho
limpava os sapatos e o casaco, sujos em sua fracassada tentativa de escalar o muro, novamente
olhando para todos os lados, ele tem, reparei nessa ocasião, braços curtos demais, suas roupas,
embora da lavra de alfaiate, têm um corte provinciano, um corte ainda por cima do sul da
Alemanha, canhestro, de mau gosto, os tecidos que ele escolhe são os tecidos repulsivos do
pequeno-burguês, que, por ser de bom-tom, como crê, fez da aspiração diuturna, ininterrupta, às
coisas finas um princípio, que por essa aspiração é simplesmente obcecado. Esse meu cunhado
nos foi impingido pela tia do Titisee, pensei. Sujeito de Baden, degustador de vinhos, aficionado
por costeletas, sempre de camisas brancas. A alegação de Caecilia de que seu marido era o
melhor dos maridos só podia suscitar agora uma gargalhada de escárnio, a que não se podia dar
vazão nessa tarde, que tinha antes de ser reprimida atrás das vidraças. Tudo menos compaixão
caberia a esse homem, que de inocente não tinha nada ao entrar nesse relacionamento, pensei, do
qual minha irmã, uma semana após o casamento, já está até o pescoço. O caso não passa de um
episódio, com que Caecilia terá porém de se haver sozinha. Não vou me intrometer, o que não
significa que suspenda minhas observações e deixe de pensar sobre o assunto, pensei. Mas era
absolutamente insuportável a idéia, por exemplo, de ter de passar noite após noite justo com esse
homem, e de quebra com minhas irmãs, que afinal também nunca sabem o que falar comigo,
nem eu inversamente com elas. O choque do acidente bastará só por alguns dias para superar
aquilo que agora já me enche de horror, pensei, ter a meu redor essas irmãs amarguradas e ainda
por cima o rosto estúpido de meu cunhado, rosto que a todo instante desata a rir, estúrdio, da
menor banalidade com a mais completa insensatez. No entanto, logo pensei, a soberba não é um
meio apropriado para lidar com as pessoas a nossa volta que desprezamos e nos são portanto
insuportáveis. Mas se não tivéssemos a soberba, estaríamos perdidos, afinal ela não é outra coisa
senão uma arma contra um mundo que, do contrário, e portanto sem essa soberba, nos engoliria
sem mais nem menos. Por nós ele não teria um pingo de consideração. Temos de nos precaver
dele com nossa própria soberba, disse comigo, sempre que ela nos salve de ser devorados. Pois
não nos iludamos, pensei, os chamados estúpidos, aqueles que por assim dizer temos em pouca
conta, são os mais implacáveis, não se importam com o que sentimos, desde que possam nos
atormentar e destruir e finalmente nos aniquilar. A soberba é um meio absolutamente apropriado
para lidar com o ambiente que nos é hostil, essa soberba ele teme e respeita, ainda que seja só
uma soberba simulada como a minha, segundo pensei. Usamos a soberba como escudo para
poder nos afirmar, essa é a verdade, sou soberbo para sobreviver, eis uma frase coerente. Logo
não sabemos mais, claro, se nossa soberba é simulada ou efetiva, mas não é necessário nos fazer
constantemente essa pergunta, isso nos deixaria malucos e por fim dementes. Que meu cunhado
não saiba quem é Max Bruch me é indiferente, pois se tivesse sabido então, quando minha mãe o
expôs ao ridículo perante todos à mesa, nem por isso teria feito melhor figura, minha mãe teria
podido igualmente me perguntar isso ou aquilo e eu não teria sido capaz de lhe dar uma resposta,
são tantas as coisas que eu não sei e sou tão pouco esclarecido, a meu modo, pensei, quanto o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho, e afinal é completamente indiferente o quão instruída
é por assim dizer uma pessoa, pelo contrário, quem fosse tão instruído que causasse admiração a
minha mãe seria no fundo uma pessoa pavorosamente sem espírito, um idiota letrado, como
sempre digo, mas o fabricante de rolhas para garrafas de vinho crê que é importante saber quem
é Max Bruch, que é importante saber quem é Friedrich Kienzel etcétera. Mesmo que ele não
soubesse quem é Kant, isso seria completamente indiferente no que tange a seu caráter. Mas o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho não tem caráter, pensei. Sempre pus em dúvida essa
falta de caráter do fabricante de rolhas para garrafas de vinho, o descaramento, por assim dizer
camuflado de desamparo, que deixa os escrúpulos de lado em sua escalada rumo às esferas
superiores. Caecilia caiu no conto-do-vigário, pensei observando meu cunhado junto ao muro.
Do que ele não seria capaz, pensei, no que ele não poderia meter a mão, como se diz. Mas então
pensei que, fosse ele realmente fazer alguma coisa, meter a mão em algo, em todo caso só o faria
com incompetência, de modo a se tornar, em suma, ainda mais ridículo. Aliás, não fosse ele sem
caráter, pensei, há muito teria pelo menos se feito benquisto dos jardineiros, mas os jardineiros o
evitavam, um sinal de que algo ia errado com ele, pensei, pois os jardineiros têm um instinto
inacreditável no que se refere a pessoas. Os jardineiros sentem em quem se pode e em quem não
se pode confiar, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho eles evitaram desde o início, como
pude ver já antes do casamento, literalmente desconfiavam dele, mas não como costuma
acontecer com os estranhos, senão de maneira bem resoluta, não devem tê-lo visto como o
desamparado, senão como o sem caráter, pensei. Sempre foi interessante ver em quem os
jardineiros depositavam sua confiança, eles nunca se enganaram. Mesmo o jeito de eles por
exemplo terem-no aliviado da caixa é característico de sua desconfiança pelo meu cunhado. De
repente me pareceu ridículo ficar tanto tempo de pé defronte da janela a observar justamente meu
cunhado, e desci ao átrio, não sem antes parar sob o quadro que retrata meu tio-tataravô
Ferdinand. Meu Descartes, disse com meus botões, perdeu algo de sua grandeza filosófica nesse
meio tempo, não pode ter escrito os Ensaios com uma cara dessas. Amalia saiu da cozinha e
disse que agora, no final da tarde, provavelmente subiriam os primeiros condolentes, de manhã já
havia aparecido uma dúzia, não só do vilarejo lá embaixo, como o professor do liceu, como o
médico da comuna, a cuja disposição por assim dizer todos tínhamos de estar, de preferência na
vizinhança imediata do átrio, se não dentro dele próprio, a capela ou mesmo a cozinha eram os
locais apropriados, pois ela não queria deixar que nenhum dos condolentes subisse ao primeiro
andar, aliás o melhor seria trocar só duas palavras com as pessoas, não mais, em seguida
despedir-se delas, era óbvio. Gelei de pensar que agora, uma após a outra, subiriam até nós justo
as pessoas que no fundo tanto execro, a classe média das cidadezinhas circunstantes, que por
nada nesse mundo deixará de agarrar com ambas as mãos a oportunidade, por assim dizer no
exercício de seu direito, de nos visitar sem ser convidada, e de poder além disso, com descaro,
entrar com seus carros pelo parque. Agora já podia ver os curiosos descer um após o outro de
seus carros e nos importunar com suas condolências repulsivas, às quais teríamos de fazer cara
satisfeita. Seja como for, pensei, vou apertar essas mãos com mais sangue-frio do que jamais
apertei uma mão, de modo que em nenhum caso isso redunde num aprofundamento das relações
dessa gente conosco, pensei. Mentalmente já exercitava esse aperto de mãos e ensaiava as
palavras de mau gosto que lhes seria obrigado a dizer, segundo pensava. Mas não temia essas
pessoas, delas me safo em dois tempos, sem o mínimo de irritação, pensei, tinha medo dos dois
antigos gauleiter, como são chamados, que confirmaram presença no enterro, como sabia, e dos
mais ou menos numerosos oficiais da SS que compareceriam, os SS-Obersturmbannführer, que
durante décadas acreditei estarem mortos havia tempos ou pelo menos cumprindo suas
respectivas penas, mas que, como de repente vim a saber anos atrás, mantinham havia décadas,
já desde a clandestinidade na qual haviam buscado refúgio, um contato com os meus, com meus
pais, com muitos outros de nossos parentes, e que agora usavam esse enterro, disse comigo, para
aparecer novamente em público pela primeira vez, com clareza meridiana. Mas não tenho a
possibilidade de impedir a participação dessa gente no enterro, pensei. Ela virá, quer eu queira ou
não. Os ex-gauleiter não se deixarão dissuadir. De um deles sei que enviou milhares de pessoas a
prisões e penitenciárias, nossas e alemãs, e outros milhares, com sua assinatura, a Buchenwald,
Dachau e Auschwitz, do outro, que levou ao menos o mesmo tanto de pessoas, judeus em sua
maioria, a campos de concentração húngaros e tchecos. Para não falar da chamada Liga dos
Camaradas, que desfila indefectivelmente em todo enterro, a qual nada mais é que uma
organização nacional-socialista, como penso, pois suas idéias são nacional-socialistas até a
medula e sua gente, afinal, aonde quer que vá, hoje traz de novo ao peito as suas insígnias
nacional-socialistas, sem o mínimo pudor, e justamente hoje ostentam-nas de novo com o maior
descaro. Os gauleiter eu temia efetivamente e não sabia como cumprimentá-los, esses amigos de
meu pai, companheiros de escola primeiro, companheiros de vida, como ele próprio então
sempre os chamou, mais tarde, com quem depois da guerra, como fiquei sabendo, ele cultivou os
mais estreitos laços, embora soubesse tratar-se de delatores e assassinos; ciente disso, ele lhes
oferecera valhacouto, os provera de mantimentos, lhes providenciara tudo de que necessitassem
para se manterem à tona, como exprimia meu pai. Dizem que os escondeu durante anos na vila
das crianças, sem que as crianças na época tivessem a mínima suspeita disso, durante anos, como
mais tarde me veio à memória, não tivemos acesso à vila das crianças, a solução do enigma era
essa, nos anos do pós-guerra meus pais esconderam na vila das crianças seus amigos nacional-
socialistas. Eles fizeram por onde deixar que a vila das crianças parecesse completamente
desabitada, deixaram-na cair aos pedaços por fora, enquanto em seu interior os procurados
delatores e assassinos e condecorados com a Ordem do Sangue viviam, como penso, no bem-
bom, pois os meus nunca sofreram de carência de alimentos, sempre tiveram, até durante e após
a guerra, tudo em abundância, como se diz, enquanto o resto do povo, como minha mãe o
chamava, passava fome e necessidade, como se diz. A vila das crianças foi o esconderijo dos
dois gauleiter, mas provavelmente, assim penso, os numerosos SS-Obersturmbannführer amigos
de meus pais também desfrutaram de nossa abundância, aos poucos tomei conhecimento desse
tempo, que para nós, crianças de treze, catorze anos, sempre pareceu grego, como se pode
imaginar. Porém sempre nos foi dito expressamente que não podíamos pôr os pés na vila das
crianças. Com cerca de quinze anos ela nos foi aberta, pois nesse tempo, recordo-me, nela já
encenávamos nossas peças. Mas até hoje, embora sempre a tenha amado, a vila das crianças para
mim guarda algo de sinistro por causa de seus conspurcadores. Provavelmente, pensei, meus pais
não esconderam e mantiveram gente só na vila das crianças, os seus colegas de fé nacional-
socialista, como se pode dizer, com certeza alojaram-nos também nas nossas diversas choupanas
de caça, até naquela sobre Weieregg, como penso, que é quase totalmente inacessível. Mas sobre
todas essas coisas sinistras meus pais sempre se calaram, e deles também não se arrancava nada,
recusavam toda a informação, só sua correspondência regular com toda essa gente, até sua morte,
era a prova de como foram estreitos os laços com toda essa gente. Enquanto jantavam com os
americanos e brindavam já em seus cafés da manhã regados a champanhe ao general
Eisenhower, algumas centenas de metros dali os gauleiter reuniam-se na vila das crianças,
provavelmente com largueza não menor, sem ter de renunciar ao mínimo luxo de comida ou
bebida, penso. Wolfsegg sempre foi perversa, e meus pais levaram essa Wolfsegg perversa a
extremos, penso. É provável que os caçadores estivessem a par desse segredo de Wolfsegg, de
todos sem dúvida o mais perverso, penso, aos jardineiros com certeza nunca ousaram confiá-lo,
penso. Essa gente, pensei agora, vou ter de recebê-la, não haverá jeito. Hoje toda essa gente vive
em boas condições, e de fato absolutamente impune, nos mais diversos e belos recantos do país,
como se diz, e além disso cada um deles recebe do Estado uma pensão formidável. Mas essa
sociedade de hoje merece essa situação, pensei, merece essa perversidade, pois ela própria é
perversa até a medula. No fundo, pensei, é precisamente essa gente, esses gauleiter e SS-
Obersturmbannführer e condecorados com a Ordem do Sangue, que é a sua gente, pensei, é ela
que eles, meus ditos compatriotas, consideram por assim dizer seus heróis, não, como se diz
muitas vezes, ainda hoje, mas precisamente hoje em proporção muito maior, são esses nacional-
socialistas em quem, como se diz, eles se miram e que são os seus líderes secretos. A esses
líderes secretos de meus compatriotas, pensei, vou ter de apertar as mãos. A esses líderes
secretos de meus compatriotas não vou poder proibir tomarem assento nas primeiras filas,
quando o cortejo fúnebre se puser a caminho. Esse constrangimento, que de fato via chegar a
meu encontro como o horror, já agora me enojava. Não sem sadismo em seus rostos minhas
irmãs me haviam relacionado os nomes daqueles que nesse meio tempo confirmaram sua
presença, e os dois antigos gauleiter e os SS-Obersturmbannführer e os condecorados com a
Ordem do Sangue estavam entre os primeiros. Mas preciso me haver com essa situação, intimei a
mim mesmo em segredo. Não somente dias a fio, semanas a fio esses gauleiter e esses SS-
Obersturmbannführer e condecorados com a Ordem do Sangue, como sei, sentaram ao léu e
andaram ao léu em Wolfsegg e deixaram-se manter pelos meus pais, décadas a fio, coisa que
aliás sempre azedou as visitas de meu tio Georg à casa de seus pais, e assim também a mim, que
sempre fui mais ou menos forçado a partir, porquanto corresse o rumor de que essa gente estaria
de visita. O nacional-socialismo é o maior mal austríaco ao lado do catolicismo, pensei, tal como
o fascismo o é na Itália ao lado do catolicismo. Mas na Itália tudo é diferente, os italianos até
agora não se deixaram carcomer nem pelo fascismo nem pelo catolicismo, ao contrário dos
austríacos, que há muito são carcomidos por esses dois males. Atrás dos bispos, entre os quais
figuram afinal dois arcebispos, pensei, pois Spadolini é afinal o arcebispo, marcharão os
gauleiter e os SS-Obersturmbannführer e condecorados com a Ordem do Sangue, em passo
cadenciado, como se diz. E, então, atrás desses, seguirá nosso povo nacional-socialista e
católico, pensei. E com o acompanhamento de nossa banda nacional-socialista e católica. E as
salvas nacional-socialistas serão disparadas da rampa do cemitério e os sinos católicos dobrarão
em acompanhamento. E se tivermos sorte, pensei, nosso sol nacional-socialista e católico
brilhará durante toda a cerimônia ou choverá, se não tivermos sorte, a chuva nacional-socialista e
católica. Minhas irmãs, e também meu irmão Johannes, não haviam sido iniciados nessa
Wolfsegg misteriosa, como a denomino, nem quando todos já éramos adolescentes, foi sobretudo
a estupidez de minhas irmãs que preservou meus pais de fazer notar o mínimo que fosse a esse
respeito. Pois quando tínhamos quinze ou dezesseis anos e de súbito nos foi permitido entrar na
vila das crianças, naturalmente perguntamos, curiosos, por que até então não havíamos podido
entrar, por que até então nos havia sido proibido de pôr os pés na vila das crianças, proibido
mesmo de aproximar-se dela. Meus pais, antigos membros do partido, nada responderam. Mas
naturalmente não poderiam preservar seu segredo pelo resto da vida, um dia tudo veio às claras,
quando um dos gauleiter, em visita a Wolfsegg, já no átrio começou a falar do tempo na vila das
crianças, os mais belos anos de sua vida, como ele se expressou na minha presença. Estava a seu
lado e acabei tomando conhecimento de que o gauleiter, condecorado com a Ordem do Sangue,
passara quase quatro anos com seus colegas na vila das crianças, por assim dizer com a vida que
pedira a deus, e como comera e como bebera, como movido digamos assim pela notória e eterna
gratidão por minha mãe não se punha quieto, pois minha mãe, estando eu a seu lado, não queria
ouvir nada disso, mas o gauleiter engolfava-se numa torrente de frases de agradecimento com
vozerio e entusiasmo cada vez maiores e não havia cristo que o fizesse parar. Repetia sobretudo
os elogios ao ar puro e aos ovos frescos, que minha mãe em pessoa levava diariamente a ele e a
seus companheiros na vila das crianças, e ao leite, também esse diariamente fresco, de nossas
vacas de Wolfsegg. O átrio inteiro enchia-se da risada estentórea do gauleiter, com a qual ele
várias vezes interrompia seu discurso de agradecimento, para logo em seguida retomá-lo
triunfante. Hoje ele vive em Altaussee e desfruta a pensão paga mensalmente pelo Estado, que, a
exemplo de todas as pensões em nosso Estado, é automaticamente majorada em quatro ou cinco
por cento a cada semestre e que o Estado lhe outorgou há exatos trinta anos, depois de abafar
suas atrocidades e arquivar seu processo, como se diz, e isso, como também se diz, num abrir e
fechar de olhos. E pensei em Schermaier, um minerador de Kropfing, abaixo de Wolfsegg, a
quem sempre recorria para me salvar do meu desespero de Wolfsegg, que a vida inteira explorou
com sua mulher, ao lado de seu ofício de minerador, um pequeno lote de terra com três vacas,
neste homem, ao qual ainda hoje estou ligado como a nenhum outro nos arredores de Wolfsegg e
que sempre, quando estou em Wolfsegg, vou visitar, a quem um de seus vizinhos de parede-meia
delatou nos anos de guerra por escutar a rádio suíça. O melhor amigo de escola delatou
Schermaier e o levou ao tribunal e finalmente à prisão em Garsten e a um ramal holandês de um
campo de concentração alemão. O vizinho de parede-meia e ex-melhor amigo expulsou-o de sua
casa por dois anos e enviou-o àquelas penitenciárias e àqueles campos de extermínio que pesam
na consciência desses gauleiter que virão amanhã. Schermaier foi delatado e enviado a
penitenciárias e campos de concentração, e com isso foi praticamente arruinado pelo resto de sua
vida, pensei, e depois ninguém ligou a mínima e ele não recebeu um centavo de indenização por
esses anos de atrocidade. Após o fim da guerra, aquele que o delatou e levou a prisões e
penitenciárias e campos de concentração lhe suplicou de joelhos que não se vingasse. Schermaier
não se vingou, não fala mais nisso, com ninguém, só por vezes com sua mulher, quando estou de
visita e reparto com eles sua comida frugal, prorrompe em lágrimas porque ainda hoje não
consegue suportar aquele tempo; Schermaier não foi indenizado, ou por outra, o Estado limitou-
se por assim dizer a ressarci-lo da forma mais repugnante com uma soma irrisória, minguada,
pelos sofrimentos que lhe foram infligidos pela desrazão nacional-socialista, enquanto ao
genocida que hoje vive em Altaussee o mesmo Estado remete uma pensão fabulosa a cada dia
primeiro do mês, que lhe garante uma vida nababesca, pensei. Schermaier foi humilhado pelo
resto de sua vida e dessa humilhação nunca foi redimido por esse Estado, pensei, o genocida que
vive em Altaussee foi por esse mesmo Estado, logo após o final da guerra, restituído de todos os
chamados direitos civis, e com isso viu endossados seu pensamento e ação. Odeio esse Estado,
pensei, não posso fazer outra coisa senão odiar esse Estado, e não quero ter nada a ver com esse
Estado, ou pelo menos só o estritamente necessário, pensei. Esse Estado tantas vezes deu prova
da sua absoluta falta de caráter que não pode mais ser aceito, quer se defina todo dia e em todos
os lugares possíveis e em todas as ocasiões possíveis como socialista, como progressista,
democrático, não importa, ele é um Estado horrendo, sem caráter, descarado, pensei, que nunca
se envergonhou de seu horror, sua falta de caráter e seu descaramento, antes se atreve a estadear
essas suas atrocidades em toda ocasião que se oferece. Que Estado é esse, perguntei comigo, que
ao genocida envia a domicílio uma polpuda pensão e o cumula de comendas, de louvores, e larga
mão de Schermaier? Que Estado é esse que deixa o genocida viver no luxo e se esquece de
Schermaier? pensei. Assim que puder, vou visitar Schermaier, pensei, e saí ao ar livre. A banda
de música ensaiava Haydn, os jardineiros puxavam o carro fúnebre de Wolfsegg, da feitoria para
trás da orangerie, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho lhes impedia a passagem,
pediram-lhe licença, ele retirou-se para segundo plano. Minhas irmãs estavam na orangerie.
Refleti se devia entrar ou não. Schermaier não é nem católico nem nacional-socialista, pensei.
Não existem muitos desses Schermaiers, pensei, mas existem. E não existem muitas mulheres
como a de Schermaier, mas existem. Quando os procuramos, não os encontramos, mas existem.
Finalmente entrei na orangerie. Minhas irmãs estavam na frente dos caixões, ocupadas em
ajeitar os laços das coroas de modo que a mensagem estampada ficasse legível. Os gauleiter já
tinham enviado suas coroas. Se me fosse possível, teria aberto o tampo do caixão em que jazia
minha mãe, mas naturalmente não me era possível, e no entanto me viera essa idéia, essa idéia
não me saía da cabeça, que queria olhar dentro do caixão em que jaz minha mãe, a palavra jaz
me soou grotesca. Meu pai tinha agora um rosto completamente cavo, cinza, no qual haviam se
formado manchas amarelas em que não reparara na minha primeira visita à orangerie. Johannes
estava irreconhecível. Seu rosto era o de um estranho, repugnante. Embaixo das mortalhas pretas
os jardineiros haviam empilhado grandes blocos de gelo para retardar o processo de
decomposição, que já dava sinais de evidência e ia bem avançado, a estação não era propícia a
defuntos. Os blocos de gelo foram pegos na cervejaria de Grieskirchen, pensei. Os caixões
devem ter custado caro, provavelmente são os mais caros, pensei. Mas pelo menos não tinham
enfeites. Madeira, e só. Entrelaçaram os dedos de meu pai e de Johannes, porque tal é o costume,
disse comigo, mas à vista dos dedos entrelaçados de meu pai e de meu irmão só provei repulsa.
Vestiram meu pai num chamado traje de Steyr, aquele com largos passamanes, pensei, aquele
com grandes botões de chifre de cervo na lapela, e meu irmão em sua querida roupa de caça,
comprada em Bruxelas. Aproximei-me dos caixões, minhas irmãs deram um passo para o lado,
no momento não me perturbavam. A segurança com a qual me postava agora diante dos caixões
deve tê-las repugnado, quando menos irritado, constatei em mim uma total imobilidade. Quando
eu mesmo acreditara que tremeria, nada se movia em meu corpo. Contemplava os corpos sendo
velados como se não me dissessem respeito, como se fossem estranhos. Eles não tinham mais
traços faciais, não tinham nem sequer uma face. Eles se decompõem rápido, pensei. Eles
precisam ser enterrados logo, logo, se não empesteiam o ar, a orangerie já estava carregada com
seu cheiro, com o cheiro de carne, que, de tão adocicado e repugnante, desde criança pequena
não podia suportar quando acompanhava minha mãe a velórios. Desde criança não suportava
corpos sendo velados, mas minha mãe sempre me confrontou com eles, levava-me com ela a
enterros e portanto a velórios, nunca Johannes, não sei explicar por que sempre eu, nunca
Johannes. Assim, desde cedo corpos sendo velados não eram segredo para mim, mas a vê-los, a
isso eu sempre era obrigado por minha mãe, de vontade própria nunca lhes renderia visita, como
é natural. Minhas irmãs estavam atrás de mim, ouvia-as respirar, mas não sabia o que pensavam,
pensam decerto que sou uma pessoa de sangue-frio, o insensível que sempre fui para elas, ao
menos elas sempre me chamavam de frio, insensível. Se tinham razão ou não, não saberia dizê-
lo. Mas diante dos caixões não tive sangue-frio, como se diz, nem fui insensível, pelo contrário,
fiquei abalado, poderia dizer, se essa palavra não me soasse tão vulgar, mas não me mexi, meu
corpo não se mexeu. Nunca desejei a morte de meus pais, disse comigo diante de seus cadáveres,
a idéia de que devessem morrer nem por um instante eu a entretivera, estava diante deles e disse
comigo que sempre os amaldiçoara, sempre os desprezara mesmo, não só os tivera em
desapreço, sempre os desprezara a valer, e que tinha todas as razões para desprezá-los,
visceralmente, como se diz, mas que nunca lhes havia desejado a morte. Sua morte é sem dúvida
algo terrível, pensei. E quanto a Johannes, perdi um amigo de infância, mas como essa infância
já vai remota, para mais de trinta anos, pensei, agora também não tinha razão para chorar esse
finado Johannes, talvez tivesse até chorado com gosto nesses momentos, quando mais não fosse
porque minhas irmãs estavam atrás de mim e provavelmente esperavam que eu chorasse,
soluçasse, como se diz, me debulhasse em lágrimas, como se diz, mas não chorei, não solucei,
simplesmente não me mexi. Aproximei-me do caixão de minha mãe e tentei erguer o tampo,
movido por não sei que inspiração repentina, mas não consegui erguer o tampo, ele já estava
parafusado. Quando abandonei essa tentativa, senti o constrangimento que minha tentativa
causara em minhas irmãs e virei-me em sua direção e, inesperadamente para elas, porque me
virara de propósito com tanta rapidez, olhei de frente seus rostos amargurados, apavorados
mesmo. Não me era possível ficar mais tempo diante dos caixões, virei-me e saí da orangerie. A
um dos jardineiros perguntei por que o caixão de minha mãe estava fechado. Recebi como
resposta que o caixão já havia sido trazido a Wolfsegg parafusado pela agência funerária, os dois
outros não haviam sido parafusados, mas o da minha mãe, sim. Claro, naturalmente, dissera ao
jardineiro, obviamente. A mutilada, a decapitada eles haviam depositado no caixão sem hesitar e
haviam parafusado o caixão, pensei. Para que ninguém tivesse a idéia de olhar de novo a
mutilada. Mas eu tive essa idéia, disse comigo. Mas naturalmente não vou mais fazer com que se
abra o caixão, pensei. Por um instante tive a idéia de abrir o caixão outra vez, e já refletia o modo
em que haveria de dar tal ordem, depois me proibia novamente sequer de pensar outra vez em
fazer com que se abrisse o caixão, em tornar visível a mutilada, o que seria uma monstruosidade,
mas não conseguia me livrar do pensamento de fazer com que se abrisse o caixão outra vez,
pelos jardineiros, pensei, quando minhas irmãs não estiverem olhando: não consegui reprimir o
pensamento de fazer com que se abrisse o caixão de minha mãe, e com esse pensamento andei de
lá para cá na frente da orangerie por um bom tempo, enquanto minhas irmãs permaneciam na
orangerie. Tinha de botar uma pedra em cima desse pensamento e tentei me distrair desse
pensamento acenando, por exemplo, a um jardineiro e perguntando-lhe se os blocos de gelo sob
os caixões durariam até a manhã seguinte, o enterro estava marcado para as dez, de costume
sempre aconteciam às onze, mas quando um dos nossos era enterrado, marcava-se sempre para
as dez. Os blocos de gelo eram suficientes para mais quatro dias, disse o jardineiro. Ele ficou
surpreso de me ouvir pronunciar seu nome, as pessoas pensam que, tendo estado fora por alguns
anos, não sabemos mais seus nomes, mas sempre tive boa memória para nomes, obviamente o
nome do jardineiro me era conhecido, como também o de todos os outros. Ao falar brevemente
com o jardineiro sobre os blocos de gelo quis me distrair de minha idéia monstruosa de fazer
com que se abrisse o caixão de minha mãe, mas naturalmente não o consegui em tempo tão
breve, e entabulei uma conversa com o jardineiro, que estava ocupado em capinar as ervas
daninhas do cascalho diante da orangerie, eu disse que ele com certeza se lembrava de nossa
época de escola, ele disse que sim. Mencionei alguns nomes de nossos colegas, ele logo soube
relacionar todos os nomes às pessoas certas, lembrei ao jardineiro episódios agradáveis, e
também alguns divertidos, como o chamam, do tempo de escola, no mesmo instante ele se pôs a
rir, mas interrompeu de pronto essa risada vendo chegar minhas irmãs, que, sem saber que eu
ficara diante da orangerie a conversar com o jardineiro, dela acabavam de sair. Sem me importar
com o fato de agora elas estarem a meu lado, continuei a arrastar o jardineiro à conversa sobre
nossa época de escola, com grande resolução, como me pareceu, com o único objetivo de me
distrair do pensamento de fazer com que se abrisse o caixão de minha mãe, embora estivesse
cada vez mais obcecado, como se diz, com esse pensamento, sobretudo, pensei, tem de ser
averiguado o que há realmente dentro do caixão, se com ele enterramos de fato nossa mãe, nossa
mãe inteira, por assim dizer, e não só partes dela, perguntando ao jardineiro quanto pesava um
bloco de gelo, no fundo só pensava sem parar que era bem possível que no caixão onde por
assim dizer supunha minha mãe inteira, de fato não estivesse ela inteira, mas naturalmente não
me atrevi a enunciar esse pensamento, nem sequer a mim mesmo. Minhas irmãs puseram-se de
lado e não tomaram parte na conversa com o jardineiro, elas nunca conversaram sobre questões
pessoais com os jardineiros, aliás nunca se interessaram pelos jardineiros, pela vida que levavam,
aliás jamais guardaram um só de seus nomes, o nome de nenhum dos empregados de Wolfsegg,
creio eu, nunca lhes teria passado pela cabeça discutir com os jardineiros algo estranho ao
serviço, só por essa razão estendi a conversa com o jardineiro, perguntei-lhe, de olho em minhas
irmãs, mas ao mesmo tempo ignorando-as por completo, quando havia falecido o seu pai, que
uma vez me entalhara um pífaro de avelaneira havia décadas, quando eu tinha cinco ou seis anos.
Dois anos atrás, disse o jardineiro, no fundo eu não estava nem um pouco interessado em saber
quando o pai do jardineiro havia falecido, a pergunta era somente um meio para me distrair da
idéia monstruosa a respeito do caixão de minha mãe, e ao mesmo tempo para virar as costas a
minhas irmãs, puni-las por algo que no momento não sabia o que fosse. Falei o tempo inteiro
com o jardineiro sem lograr reprimir o pensamento de abrir o caixão, ignorando minhas irmãs e
arrastando ainda mais o jardineiro a minha conversa, que era surpreendente, eu lhe disse,
trabalhar tantos anos em Wolfsegg sob condições que não eram nada fáceis, disse ao jardineiro,
sabendo muito bem que com isso também atingia minhas irmãs, que se punham de lado. As
condições em Wolfsegg sempre haviam sido dificílimas, disse, sem entrar em detalhes, aliás não
era necessário, pois na entonação que disse que as condições de Wolfsegg sempre haviam sido
dificílimas já dizia tudo o que queria dizer a respeito dessas condições de Wolfsegg, o jardineiro
também logo compreendeu a que me referia, que havia décadas, se não havia séculos, os patrões
ali sempre tornavam tudo difícil. Por outro lado, disse, é bom para nós, e referia-me com isso aos
meus como um todo, ter bons trabalhadores como você. Minhas irmãs escutavam com toda a
atenção. Elas se postaram de modo a não terem de encarar a mim e ao jardineiro, portanto davam
as costas para mim e para o jardineiro, Caecilia calcava a ponta de um dos sapatos no chão à
beira do caminho, como se quisesse traçar uma letra no canteiro, um hábito que trazia de
pequena, conversava com Amalia sobre algo que eu não alcançava entender, mas só como
pretexto, pois as duas voltavam toda sua atenção àquilo que eu dizia ao jardineiro, assim por uns
instantes nós três nos aproveitamos de nossos pretextos para espiar e bisbilhotar um ao outro, e
eu pensei, tal como naquele momento eu em última análise tirava vantagem do jardineiro, pois
afinal ele me servia apenas para me distrair das idéias monstruosas sobre o caixão de minha mãe,
assim também elas tiravam vantagem uma da outra para poder me espiar. Deixei o jardineiro e
juntei-me a minhas irmãs, minhas irmãs, pensei, são capazes de me dissuadir de meu pensamento
monstruoso, de fazer calar em mim o pensamento inadmissível, sua tagarelice mais ou menos
ininterrupta, devida provavelmente a toda essa situação terrível causada pelo acidente, irá me
distrair. Disse a minhas irmãs que me acompanhassem à vila das crianças. Eu próprio não sabia
por que lhes havia feito tal sugestão. Fomos os três à vila das crianças. A caminho da vila das
crianças pensei que Schermaier nunca falara sobre o período passado nas prisões e penitenciárias
e no campo de concentração holandês, e que, como ele não falasse sobre isso, sobre isso eu
escreveria um dia em meu Extinção, o livro que tenho na cabeça, pensei, vou escrever sobre
Schermaier, sobre a injustiça que sofreu, sobre os crimes cometidos contra ele. Sua mulher só
fazia chorar sempre que pensava naqueles tempos tão infelizes, amargos para os dois, mas ela
própria nunca dizia por que chorava. Por isso é meu dever falar deles em meu Extinção e chamar
a atenção sobre eles como os representantes de tantos que não falam de seus sofrimentos na
época nacional-socialista, só se permitindo chorar de vez em quando, sobre os Schermaier, que
pesam na consciência do pensamento e da ação nacional-socialistas, dos criminosos nacional-
socialistas, de quem hoje só se cala, após décadas do mais absoluto silêncio. Sobre Schermaier
não direi outra coisa senão que a sociedade nacional-socialista, com total impunidade, pôde
destruí-lo pelo resto de sua vida, mas não aniquilá-lo. Foi essa promessa que me fiz a caminho da
vila das crianças, que no meu Extinção concederia a Schermaier, se não os direitos de que ele foi
privado por essa sociedade, pelo menos a atenção, à minha maneira. Meu Extinção me fornecerá
a melhor oportunidade para tanto, se é que um dia serei capaz de pô-lo no papel, pensei.
Lembrando os Schermaier, esqueci a idéia monstruosa de fazer com que se abrisse o caixão de
minha mãe, ao chegar à vila das crianças disse a minhas irmãs, ocupadas em abrir a vila das
crianças, que os Schermaier, que elas conhecem bem, não saíam de minha cabeça, que justo
sobre eles, que não hesito em definir como as melhores de todas as pessoas que conheço, o
nacional-socialismo dera vazão a toda sua crueldade, esse espectro. O melhor amigo de escola o
delatou, disse enquanto Caecilia abria a vila das crianças, o denunciou da forma mais mesquinha,
o levou ao campo de concentração, isso não saía de minha cabeça, em Roma com muita
freqüência ficava deitado em minha cama e era impossível não pensar que nosso povo se tornara
culpado de milhares e de dezenas de milhares de crimes sórdidos como esses, e os silenciava. O
silêncio de nosso povo sobre esses milhares e dezenas de milhares de crimes é de todos esses
crimes o maior, disse a minhas irmãs. O silêncio desse povo é o que há de sinistro, disse. O
silêncio desse povo é o que há de pavoroso, esse silêncio é mais pavoroso que os próprios
crimes, disse. Só de pensar que tenho de receber esses assassinos, disse. Me recuso a lhes dar a
mão, disse. Não posso excluí-los do enterro, disse, mas não vou lhes dar a mão. Pois assim eu
também cometeria um crime. Justo na vila das crianças, no edifício preferido de minha infância,
disse, nossos pais esconderam esses criminosos sórdidos, lhes propiciaram até mesmo uma vida
de luxo, justo numa época de miséria extrema. E disso nunca se envergonharam, disse. Pelo
contrário, ainda se gabavam dessa sordidez, disse. Minhas irmãs permaneceram caladas o tempo
inteiro. Nossos pais se tornaram culpados, disse, acoitando e escondendo essa gente sórdida, que
merecia ser levada a juízo e condenada. Naturalmente com a pena de morte, disse. O que deve
passar pela cabeça de pessoas como os Schermaier, disse, vendo como são tratados seus
assassinos, que esses assassinos de milhares andam à solta, e ainda por cima são capazes de levar
no luxo uma vida baixa e sórdida, enquanto elas próprias têm de representar o papel de
esquecidos, e ainda por cima representar o papel de esquecidos da maneira mais miserável. Esse
Estado é igual a minha família, ele como que nasceu para o crime nacional-socialista. E a Igreja
Católica, disse ainda, não é melhor. Ela só age sempre em benefício próprio, cala onde deve
falar, disse, e quando vê a coisa preta, se entrincheira atrás de Jesus Cristo, explorado há
milênios. Tenho horror a essa gente, disse, que vai seguir os caixões cabisbaixa, completamente
incólume, pelo contrário, na condição de membros estimados de nossa sociedade. Eu, disse, vou
me esquivar a minha maneira de toda essa gente, que eu sempre odiei, não vou deixar que se
aproximem, não sou o papai, não sou a mamãe, disse. A vila das crianças estava quase de todo
vazia. Pensei, onde foram parar os belos quadros que nem um ano atrás eu vira aqui no átrio, à
esquerda e à direita, e nas paredes dos quartos do rés-do-chão. Minha mãe havia vendido os
quadros, pintados por antigos antepassados, a um antiquário em Wels, a preço de banana, como
logo constatei. A insensibilidade de minha mãe, sobretudo para com obras de arte
particularmente singulares, sempre foi de amargar. Meu pai absolutamente não apreciava
quadros, ou só o fazia quando lhe diziam que eram extremamente valiosos, isso também
impressionava minha mãe, nada mais. Nenhum dos dois tinha olho para obras de arte. Assim era
que as paredes do rés-do-chão da vila das crianças estavam agora subitamente frias e pouco
acolhedoras, quando um ano atrás, segundo pensava, ainda eram tão atraentes. Mas pelo fato de
ter albergado durante tanto tempo dois genocidas, a vila das crianças foi em todo caso
humilhada, tornou-se intragável mesmo, pensei. Por outro lado, ainda havia pouco pensara em
restaurar justo a vila das crianças, e essa idéia de repente me pareceu a melhor, súbito adorei essa
idéia, disse a minhas irmãs, seja lá o que aconteça aqui, a vila das crianças é o primeiro edifício
que quero mandar restaurar, de cima a baixo, ela deve voltar a ser o que era antes de sua
humilhação. A vila das crianças é o mais belo de todos os edifícios de Wolfsegg, disse. E o verão
é a melhor época para uma restauração. O dinheiro de Wolfsegg deve circular entre as pessoas,
deixá-lo embolorar nos bancos é loucura. Minhas irmãs não me entenderam. Seja como for, o
lugar deve ser arejado, disse a minhas irmãs, e pedi para que elas me ajudassem a abrir todas as
janelas da vila das crianças, está terrivelmente abafado na vila das crianças, disse, e, enquanto
minhas irmãs abriam pouco a pouco, já que fazia um dia tão bonito e quente, as janelas da vila
das crianças, primeiro nos quartos de baixo, depois lentamente também nos de cima, procedendo
todos no mais absoluto silêncio, enquanto abriam as janelas nem Caecilia e Amalia conversavam
entre si de maneira audível, pensei que só havia três ou quatro dias fizera a Gambetti uma boa
descrição da vila das crianças, disso tive a prova enquanto abria as janelas, os quartos são de fato
tão grandes quanto os descrevera a Gambetti, essas janelas altas, a chamada vila das crianças tem
janelas tão altas como só mesmo nosso prédio principal, ela e nenhum outro, nem o pavilhão dos
caçadores nem a casa dos jardineiros, e os tetos estão revestidos exatamente com os estuques que
tentei descrever a Gambetti, cenas de peças clássicas como por exemplo do Nathan de Lessing
ou dos Bandoleiros ou do Fausto. Ninguém é mais capaz de dizer quem fez esses estuques, mas
acho que foram aqueles artistas ditos itinerantes, numerosos no século passado, que muitas vezes
se estabeleciam num lugar por meses ou mesmo anos em troca apenas de uma boa comida e um
par de sapatos, a fim de criar obras de arte como essa. Grandes rachaduras atravessam o estuque,
está mais do que na hora de restaurá-los, pensei. Minhas irmãs não têm idéia dos temas
retratados no estuque, eu disse do Nathan, mas aquilo, como logo vi, não lhes dizia nada, o
Fausto elas conhecem, mas não se lembravam de nenhuma cena como a representada no teto,
dos Bandoleiros obviamente elas tinham ouvido falar, como eu, na escola, mas a peça mesmo
haviam esquecido, retendo só o título, nada mais, e que se tratava de algo clássico. Tentei lhes
dar algumas indicações sobre os Bandoleiros, mas logo desisti de lhes explicar algo a respeito,
pois vi a completa inutilidade de meu esforço. A Gambetti eu dera, como via agora, uma imagem
bastante exata desses estuques, ele me ouvira com atenção e demoradamente. A influência da
escola romana nessa arte anônima, assim dissera a Gambetti, é inconfundível, em todos os
estuques ao norte dos Alpes, assim dissera a Gambetti, se reconhece de pronto a influência
italiana, os italianos sempre foram os melhores de todos os estucadores, dissera a Gambetti,
agora me viera à lembrança exatamente tudo o que dissera a Gambetti acerca desses estuques na
vila das crianças. Uma vez observados a fundo, sou capaz de recordar por anos e décadas, como
agora tinha a prova, pensei, quadros e também estuques em todos os detalhes, com precisão
milimétrica, e, se for o caso, também reproduzi-los de viva voz com autenticidade, o quadro que
reproduzo coincide perfeitamente com aquele que vi um dia. Basta-me ver uma única vez um
quadro ou um estuque como o da vila das crianças e estudá-los e retenho a imagem precisa por
anos, como vejo agora, décadas. A minhas irmãs meu comentário de que acabara de fazer uma
descoberta interessante, isto é, que possuo a capacidade de reter perfeitamente na memória
quadros vistos uma única vez para lhes fazer o relato só anos mais tarde, para lhes fazer a
exposição, por assim dizer, só décadas mais tarde, não disse nada, pois primeiro não
conseguiram seguir meu raciocínio, e segundo não conheciam Gambetti, só me haviam sempre
ouvido falar dele de passagem, e como, mais ou menos por oposição a mim, não tinham
nenhuma simpatia por nada que fosse romano, que naturalmente sempre me foi caro e sempre me
fascinou, antes mesmo de ter estado na Itália e em Roma, não me entenderam em absoluto, e eu
pensei, elas não me entendem com plena consciência, tomaram por princípio, por hábito
vitalício, não me entender, não queriam, não suportavam me entender, não querem e não
suportam me entender até hoje. A vila das crianças sempre significou quase tudo para mim em
Wolfsegg, para elas praticamente nada. Assim, para elas também foi um tanto indiferente o que
lhes narrara antes sobre a vila das crianças em referência aos dois chamados gauleiter, só
sentiram minha narrativa como algo voltado contra a família, em particular contra nossos pais, e
acharam abominável sobretudo que eu acusasse nossos pais a todo momento, justamente agora
que estavam mortos não havia nem dois dias, e não que eu sofresse ao ver a vila das crianças, a
construção que eu mais amava em Wolfsegg, a peça de arquitetura que amava mais do que todas,
súbito completamente conspurcada de novo pelos gauleiter nacional-socialistas, em geral um
raciocínio como esse lhes é estranho, impossível mesmo. Quando acabamos de abrir todas as
janelas da vila das crianças e o aguardado ar fresco fluiu para dentro, disse a minhas irmãs que
queria agora deixar as janelas abertas por vários dias, para que por vários dias possa fluir ar
fresco na vila das crianças. Elas estavam exaustas pela tarefa absurda, como deviam pensar, que
eu lhes impusera, e sentaram-se no quarto superior esquerdo do sótão, uma ao lado da outra num
banco forrado de veludo verde. Súbito elas tinham agora novamente os rostos sardônicos, tais
quais na foto que guardo em minha escrivaninha no meu apartamento romano na Piazza
Minerva, esses rostos sardônicos elas me mostraram agora na luz clara da tarde por um instante,
para então desviá-los e olharem pela janela na direção das montanhas, por sobre o vilarejo. Feito
escravas elas viraram as cabeças ao mesmo tempo na direção das montanhas, como se duas
marionetes encadeadas uma a outra tivessem se virado para as montanhas ao longe, pensei.
Poderia agora lhes ordenar qualquer coisa, pensei, e elas executariam minhas ordens. Eu as tinha
totalmente nas mãos. Mas não tomei isso como um triunfo, senão como um fardo insuportável.
Elas eram sarna para eu me coçar, assim pensei subitamente. Com essas duas você ainda cai do
cavalo, pensei, como se diz. E se desabar um temporal? perguntou Amalia. Como assim, um
temporal? perguntei de volta. Se desabar um temporal e estilhaçar todas as janelas? retrucou
Amalia. Não vai desabar temporal nenhum, disse, nos próximos dias não vai desabar temporal
nenhum. Subiu-me uma vontade dos diabos, agora, nesse momento em que elas estavam
sentadas exaustas no banco na vila das crianças, de passar um sermão nas minhas irmãs, de lhes
narrar algo romano, algo por assim dizer escandaloso, para tornar-me suportável sua presença,
pois tinha a sensação de que não suportaria mais sua presença, mas depois logo desisti da idéia,
não adianta nada, disse comigo, só pioro a situação. Minha atenção fixou-se sobretudo em
Caecilia, que parecia ter esquecido de seu fabricante de rolhas para garrafas de vinho. Se pelo
menos nosso cunhado não fosse tão molóide, disse. Ao que porém não recebi nenhuma resposta
de Caecilia. Amalia fez como se nem tivesse escutado minha observação. A infâmia tem limites,
disse a seguir, referindo-me com isso que o ódio contra uma pessoa, e com isso me referia a
nossa mãe, não deve ser levado a ponto de casar-se com um imbecil, só para punir uma pessoa
odiada, isso naturalmente eu não disse, só pensei com meus botões. O que disse foi no entanto a
frase: você tem de ocupar seu marido com alguma coisa, o que não pode é deixá-lo
completamente sozinho, na acepção da palavra. Desde que cheguei ele não fez praticamente
nada senão se arrastar pelo parque, só irritando as pessoas. Caecilia levantou-se e saiu e desceu
do quarto e lá embaixo atravessou todo o átrio até o ar livre, eu e Amalia, que se levantara, vimos
como ela se afastava da vila das crianças, ela foge de nós, pensei, a bestalhona, que meteu os pés
pelas mãos. Bestalhona, eu quis dizer com os meus botões, mas o disse tão alto que Amalia não
pôde deixar de ouvir. Por que nossos pais batizaram você de Amalia e Caecilia de Caecilia, isso
é que eu não consigo compreender, disse a Amalia. Os românticos católicos e nacional-
socialistas, pensei. Depois do que saí da vila das crianças com Amalia e fomos até a orangerie,
onde se achava meu cunhado, a inércia personificada, pensei ao vê-lo. Era constrangedor para o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho ser flagrado nessa inércia personificada, e justo por
mim. Agora você tem de conversar com ele, pensei, e me dirigi a ele diretamente, nenhum sinal
de Caecilia, pensei, Amalia também não estava à vista, lá está ele, de fato abandonado por todos,
sem saber qual seja seu lugar, aqui em Wolfsegg certamente é que não é, pensei. Convidei-o a
acompanhar-me ao prédio principal, estou com apetite, disse, na cozinha a gente acha alguma
coisa, disse, e a maneira por assim dizer camarada com que disse minha frase desconcertou a
mim mesmo. Não era assim que queria dizê-lo, pensei, mas foi assim que disse, o fabricante de
rolhas para garrafas de vinho caminhava a meu lado, salvei-o por uns instantes de sua situação
impossível, pensei, por iniciativa própria. Por um momento ele até me deu pena, como se diz,
mas não por muito, pois dados alguns passos logo senti nele novamente uma pessoa importuna,
que diabo de comportamento essa gente tem, pensei, que aliás nem chega a se comportar,
simplesmente deixa sempre que as coisas corram. Na cozinha não havia ninguém, procurei algo
que comer para mim e para o fabricante de rolhas para garrafas de vinho e descobri delícias na
geladeira abarrotada. De um lado desprezamos essas pessoas, disse comigo sentado diante do
fabricante de rolhas para garrafas de vinho, de outro lhes invejamos a despreocupação, a
naturalidade com que elas não se impõem quaisquer inibições quando por exemplo comem, não
guardam a mínima reserva, primeiro hesitam só um pouco, mas depois subitamente, sem o
menor pudor, tragam e devoram praticamente tudo que lhes pusermos na frente. Os dedos
gorduchos, carnudos, voltaram a me repugnar, o anel de sinete metido à força no mindinho da
mão direita, que provavelmente o fabricante de rolhas para garrafas de vinho não consegue mais
tirar, mesmo se quiser, pensei. Sob a mesa ele cruzara as pernas e apoiara a pança no tampo, suas
abotoaduras são ainda maiores que o anel de sinete, pensei, são do mesmo jogo. Ele aguardava
que eu lhe dissesse algo, como se espreitasse a ocasião, pareceu-me, mas não estava disposto a
iniciar uma conversa com o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, lembrei haver dito a
Zacchi que dali a três ou quatro dias já estaria de volta a Roma, o que porém não será possível,
segundo pensei, vou ter de permanecer uma semana em Wolfsegg, provavelmente mais, agora já
vejo que uma semana certamente não basta. Isso porque a chatice só vem depois do enterro, disse
comigo, vou ter de ir a escritórios de advocacia, às mais diversas repartições, como o
comissariado distrital etcétera. No fundo, o que via agora só era a ponta do iceberg dessa
tragédia. Era estranho, disse a meu cunhado, ver meu pai e meu irmão sendo velados, mas não
minha mãe. Por outro lado, disse, esses rostos sendo velados não têm mais nada a ver com os
verdadeiros, são rostos de estranhos, que não me dizem nada, disse. Eles têm de ser enterrados o
mais rápido possível. Mal conhecera ele seus sogros e seu cunhado, disse, e eis que já estavam
mortos, ao mesmo tempo vi as palavras vitimados em acidente no jornal aberto diante de mim
sobre a pilha de jornais, que nesse meio tempo aumentara em alguns exemplares, as palavras
vitimados em acidente eram tão ridículas quanto tudo o que escrevem os jornais. Se ele já havia
lido os jornais que noticiam o acidente, perguntei a meu cunhado, que, enquanto há muito eu
parara de comer, ainda continuava a atochar grandes nacos de pão com salsicha na boca, mas
meu cunhado recusou-se com a cabeça sequer a dar uma olhadela nos jornais, não lhe era
condizente fazê-lo diante de mim, pensou ele, não podia permitir-se a tanto, eu lhe imputaria um
imperdoável mau gosto, se agora diante de mim ele se pusesse a olhar os jornais com as
reportagens do acidente, com a cabeça ele por assim dizer rejeitou minha oferta de informar-se
mais sobre nossa tragédia, sobre o exato curso dos eventos, justo nesse trevo já ocorreram vários
acidentes fatais, eu disse bem no estilo jornalesco, ele não é nem de difícil visibilidade nem se
distingue por algum perigo específico, e ainda assim sempre tantos acidentes, a maioria fatais,
disse, meu cunhado bancava o moralista enquanto sorvia os nacos de pão com salsicha, ora
retesava as pernas mais ou menos cruzadas, ora voltava a retrair os braços esparramados sobre o
tampo da mesa, cuidando sempre para que suas abotoaduras não roçassem o prato e portanto os
pães com salsicha que eu lhe preparara, como é que poderia ter passado pela minha cabeça, ele
parecia querer dizer comendo pão com salsicha feito um lobo, que ele teria a desfaçatez de ler na
minha presença, ou, de modo geral, agora, nessas mais tristes horas familiares, esses jornais de
mau gosto com suas reportagens atrozes, fora com desdém que ele lançara um olhar às primeiras
páginas com as fotos das vítimas, com desdém de um lado, como pude ver, de outro com
decepção por não poder logo mirá-las sem embaraço, uma vez que eu estava lá, mas dando-me a
entender que jamais seria capaz disso, quando eu mesmo o fora capaz sem rodeios, segundo
pensei, lançando-lhes seguidamente a vista, mastigando pão com salsicha, sobretudo quando
acreditava que não o observasse, lançando sua vista àqueles jornais sem dúvida interessantes,
que ele provavelmente, estivesse agora sozinho, de pronto teria folheado e olhado e lido com o
maior descaramento, mas a isso se via impedido por alguém que ele supunha nunca ser capaz
sequer de imaginar algo tão descarado, que dirá de cometê-lo, enquanto eu pensava que esse
descaro eu já cometera fazia muito. O agora não de meu cunhado era de uma hipocrisia tão
repugnante como se eu próprio o tivesse dito, pois eu próprio o teria muito bem podido dizer
nesse momento, este foi meu triunfo, pois ele o disse, não eu, eu estava lá como o decente, o
comedido, ele tinha antes de fazer o papel de um tal decente e comedido com esse agora não de
abissal hipocrisia, que até mesmo a ele, mal acabara de pronunciá-lo, logo deve haver parecido
de abissal hipocrisia, pois o sujeito não é tão estúpido assim, pensei, que não saiba de imediato o
que seja na realidade o seu agora não, e em última análise também o efeito que teve sobre mim,
logo lhe ficou claro, certamente, que eu sabia o que estava por trás de seu agora não, o qual aliás
lhe escapara dos lábios com inadvertência, já perdendo toda sua força persuasiva no caminho da
cabeça ao ar livre. Agora que meu cunhado era o desmascarado, o hipócrita numa situação
profundamente triste e, ao pé da letra, mortalmente séria, eu podia dar um passo adiante e
mostrar-me magnânimo, empurrando-lhe os jornais sobre o prato de pão com salsicha ainda não
totalmente terminado, sugerindo que desse, sim, uma olhada nos jornais e fizesse uma idéia do
acidente como os jornais o viam. Que os olhasse com calma, disse, reclinado, como se eu não
quisesse perturbá-lo em sua leitura, veio-me à lembrança a observação que Zacchi fizera sobre
mim certa vez, que eu era um dissimulador requintado de minhas atrocidades, abissal. Ainda
agora me divertia o que Zacchi dissera então sobre mim, foi no Ancora verde a Trastevere, onde
tínhamos ido com Maria para discutir sobre um passeio que planejávamos fazer a
Castelgandolfo, e também sobre As palavras de Sartre, que havíamos lido os três
simultaneamente, sem nada saber dessa simultaneidade. Discutimos As palavras até tarde da
noite, com uma minudência que antes jamais havíamos dispensado a livro algum. Enquanto
mastigava os últimos restos de pão com salsicha, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho
folheava os jornais, virava ora uma página ilustrada, ora uma não ilustrada, e nesse meio tempo
esticara as pernas de maneira característica ao comum dos leitores de jornais, de fato ele se
pusera à vontade com a tragédia e seus exploradores, pensei. Seu rosto não traía nenhum sinal de
escrúpulo, ele já era presbita e enxergava mal de perto, mas evitava, assim pensei, usar óculos,
segurava os jornais apartados de si e sob a luz da janela, de modo a lhe ser possível assimilar
tudo, no fundo ele deveria usar óculos há muito, óculos de leitura, como os chamam, pensei, os
mesmos que tenho faz anos, mas por vaidade essa gente nega-se a usá-los, pensei, vou dizer a
Caecilia que seu marido tem de comprar óculos de leitura o mais rápido possível, sem passar em
silêncio que na cozinha ele lera em minha presença os jornais depostos sobre a mesa da cozinha
com as reportagens da tragédia, atento, com a maior naturalidade e desembaraço, direi a Caecilia,
pensei, saboreando cada bocado de notícia enquanto, sentado comigo à mesa, comia pães com
salsicha, três ou quatro, não era mais capaz de dizer ao certo. Até mesmo as grandes fotografias
da noite do terror, assim vou dizer, pensei, trouxeram dificuldades a seu marido, por sorte ele
estava sentado ao lado da janela da cozinha, de modo que a luz incidia no ângulo certo a cada
página. Observava agora meu cunhado e refletia em como explorar essa cena contra ele junto a
sua mulher, minha irmã, e cheguei mesmo a entusiasmar-me com esse projeto, imaginei uma
cena absolutamente teatral em que iria até minha irmã e lhe relataria a avidez com que seu
marido se debruçara nos jornais, lhe faria notar que, contra todos os protestos dela e bem no
espírito de minhas suposições, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho era uma pessoa de
extremo mau gosto. Seu marido sentou-se a minha frente sem a menor inibição, eu me ouvia
dizer a Caecilia, e leu os jornais e nem deu bola para mim, que tinha uma coisa importante a
discutir com ele, nem me escutou. De fato sou capaz de uma tal mesquinharia, de uma tal
falsidade, pensei observando meu cunhado, sabia perfeitamente que estava à altura de uma tal
mesquinharia e aliás já cometera tais mesquinharias centenas de vezes, delas fizera até um hábito
e método, um método corriqueiro, pensei. Meu cunhado, embora ávido, mas por assim dizer
sempre com minha permissão explícita, e não sem uma hesitação a simular decoro, se bem que
fingida, realmente lia os jornais, enquanto eu, como é natural, somente os olhara de relance,
como se diz, quando estive sozinho na cozinha algumas horas antes, ele fitava as imagens com
toda calma e desembaraço, enquanto eu somente lhes pusera a vista furtivamente, sempre com a
pavorosa sensação de ser flagrado em meu descaramento e, de fato, em meu despudor, com plena
consciência de que estava cometendo um crime, enquanto meu cunhado, por assim dizer sob
meus olhos magnânimos, com a bênção de tolerância que primeiro lhe facultara, agora podia
desfrutar os jornais, eu lia em sua cara que lhe era um prazer folhear os jornais um após o outro e
examiná-los. Qualquer outro teria pouco depois fechado os jornais e voltaria sua atenção para
mim, pensei, porém meu cunhado não tinha tal sensibilidade, nem pensava mais em mim, minha
permissão equivalia para ele, como disse comigo, a um consentimento irrestrito de minha parte,
além do que ele preferia enfiar a cabeça nos jornais e digerir os pães com salsicha a entabular
comigo uma conversa qualquer, que só lhe podia ser desagradável, isso ele não somente achava,
disso tinha certeza, e usou os jornais como pretexto para esquivar-se de mim. Pois a verdade é
que ele me evita continuamente, pensei, não que busca contato comigo, como acreditei por um
instante, quando o vi diante da orangerie, inútil, obtuso, esse era o ar que tinha, sem saber o que
fazer consigo mesmo. Nisso estava redondamente enganado, e também fora um erro acreditar
que tinha de dirigir a palavra àquele homem que se entediava até a morte diante da orangerie e
trazê-lo comigo à cozinha, pôr-me a sua disposição. Mas de fato só o trouxera comigo à cozinha
para ficar de olho nele, pensei, não por caridade, qual o quê, absolutamente. Trouxera-o comigo
à cozinha só para estudar mais de perto sua pessoa, sob o pretexto de lhe dar que comer, quis lhe
arrancar isto ou aquilo contra Caecilia, sua mulher, e contra ele próprio. O imbecil é pelo menos
um produtor de imbecilidades e divulgador de todo tipo de segredos, pensei, e por esse motivo o
trouxera comigo à cozinha. Mas no fundo não tinha agora mais vontade de lhe arrancar nada,
bastava-me observá-lo e então, mais tarde, no momento oportuno, comunicar essa observação a
minha irmã Caecilia, simplesmente falsificar, trocando em miúdos, a observação para meus
próprios objetivos em prejuízo de ambos. Ele ficou lá sentado e me deixou esperando o tempo
inteiro, vou dizer a Caecilia, pensei, em particular lhe interessaram as fotos tiradas da cabeça
decepada de mamãe. A imagem em que papai, morto, está jogado para trás no assento do carro,
ao lado dele a cabeça de Johannes totalmente dilacerada, pelo menos internamente, vou dizer,
interessou meu cunhado, seu marido, de modo todo especial. Como é que uma pessoa como essa,
vou dizer, se atreve a mergulhar em minha presença na imundície dos jornais, justo nessa hora
tão triste para nós, não vou dizer trágica, vou dizer triste, pois tão trágica soa teatral, enquanto
tão triste soa mais humano. O assombro de minha irmã com a sordidez de meu cunhado são
favas contadas. Mas será que eu quero isso? perguntei-me então. Meu cunhado se tornará assim
uma figura mais importante do que é, disse comigo. Por outro lado não posso lhe facilitar a vida,
se minha intenção é desalojá-lo e expulsá-lo de Wolfsegg, embora me fosse claro que não teria
de fazer o mínimo esforço para tanto, disso cuida ele próprio com a ajuda de minhas irmãs e seus
modos traiçoeiros. Os dias de meu cunhado estão contados, pensei. Lá estava ele sentado,
devorado pelos jornais, e não o contrário, como sempre se diz. E eu sentado a sua frente e com
inveja dele, pois ele podia fazer aquilo de que eu tivera de me abster, podia ler os jornais, com
desembaraço, sem ser importunado, até mesmo sob a égide do cunhado de súbito onipotente,
pois assim como ele é o meu, agora afinal eu sou o dele, disse comigo, mas sou o cunhado
temido, disse comigo, tal como o imaginava, aquele que decide nada menos que o futuro, que o
futuro de Wolfsegg, essa é a diferença entre cunhado e cunhado, portanto aquele que decide
estava sentado diante daquele que não conta, que não tem nada a dizer, esse o meu pensamento.
O fabricante de rolhas para garrafas de vinho de Baden podia desfrutar os jornais em sua
plenitude, eu tivera de negar-me esse prazer. A situação dessa gente é sempre cômoda, pensei,
conseguem tudo na maciota, nós nunca. Qualquer um haveria podido me propor folhear os
jornais nesta nossa situação, eu obviamente teria recusado essa proposta, teria de abrir mão dos
jornais, deixá-los ali, intatos, meu cunhado aproveita o convite após uma breve hesitação e
literalmente se atira sobre a tragédia impressa que se abre a sua frente. Atroz, não é verdade? foi
o único comentário que fiz a meu cunhado enquanto ele estava imerso no jornal, por duas vezes
eu disse atroz, a palavra, que é uma de minhas palavras prediletas quando se trata de algo como
essas reportagens sobre nossa tragédia, atroz é a palavra que acho apropriada para tais situações,
eu a utilizo com freqüência, com freqüência demasiada, disse comigo, com demasiada freqüência
mesmo em contextos nos quais essa palavra atroz não é adequada, mas agora ela era ideal, eu
disse atroz, mas meu cunhado não ergueu a vista, não se deixou importunar pela palavra atroz
por mim pronunciada, não se deixou interromper, digamos assim, em sua sede de
sensacionalismo. Meu pai devia estar dirigindo em alta velocidade, eu disse. Meu cunhado fez
como se não tivesse ouvido o que dissera. Ninguém sabe por que meu pai estava ao volante e não
Johannes, disse, porque o comum era Johannes dirigir. Há tempos meu pai é míope, disse. Gente
acima dos sessenta devia ter a carteira de habilitação apreendida, disse. Os acima de sessenta
causam todos os acidentes, são eles que provocam os estragos nas rodovias. Eles não têm mais a
prontidão necessária dos reflexos, disse, e fiquei constrangido na frente do fabricante de rolhas
para garrafas de vinho por ter dito essa frase daquele modo, como se a tivesse escrito para um
dos jornais dispostos sobre a mesa, essa típica frase de jornal. Os redatores de jornais não passam
de uns porcos, disse. Mas logo em seguida: que nos jogam na cara nossa própria imundície. A
bem dizer o mundo que os porcos dos jornais nos apresentam em seus jornais é o verdadeiro,
disse. O mundo impresso é o real, disse. O mundo da imundície impresso nos jornais é o nosso.
Disse e repeti: o impresso é o real e o real, não mais que um real presumido. Não podia exigir
que meu cunhado me compreendesse. É provável que nem tivesse me escutado, pois não reagiu
ao que acabara de dizer, só olhava a foto em que se vê a cabeça de minha mãe, separada pelo
menos uns trinta centímetros do tronco, sobre uma mesa de autópsia de mármore branco. Um
absurdo que os mortos sejam transportados em ambulâncias, disse. Meu cunhado não ergueu a
vista. Lembrei que ainda antes do casamento, e portanto depois de tê-lo visto uma única vez, o
descrevera e retratara a Gambetti. Como um homem obeso, ainda na casa dos trinta, que, por
ficar mais gordo a cada dia, usava sempre roupas pequenas demais e a quem a gordura
acumulada criava dificuldades respiratórias, mesmo quando só falava, e que sua fala, por causa
dessa gordura, é somente uma fala forçada em frases bem curtas, que não podia se permitir frases
mais longas. O homem respira fazendo ruído, disse a Gambetti, e quando se caminha a seu lado,
ele se detém a todo momento, aponta com a mão esticada um objeto qualquer, e quando não há
nenhum para apontar, aponta simplesmente uma direção qualquer como paisagem interessante, a
fim de desviar a atenção de seu fôlego curto. Tudo nele é subordinado a sua gordura, disse a
Gambetti, e rebaixei a tal ponto meu cunhado diante de Gambetti que eu próprio fiquei
constrangido, e disse a Gambetti, minha sordidez me consterna, desculpando-me porém logo em
seguida por essa expressão repugnante, me consterna, pois como seu professor jamais teria
podido empregar uma fórmula de tamanho mau gosto, recordo exatamente ter dito a Gambetti
que nos irritamos constantemente quando os outros utilizam fórmulas de mau gosto, mas nós
próprios temos esse hábito pavoroso. Me consterna era absolutamente inadmissível, disse então a
Gambetti, e de meu cunhado, que ele correspondia à risca ao que as pessoas no sul da Alemanha
definem como um gourmet de Baden, o pequeno-burguês medíocre que alcançou um certo bem-
estar e dele faz alarde, e a quem interessa ser gordo e corpulento e fazer portanto figura
imponente, para afinal de contas bancar o boa-pinta; a magreza, disse a Gambetti, é tomada nessa
região estúpida como sinal de doença e perigo, é evitada por ser a cara do demônio, o ascetismo
para essa gente é o que há de repugnante, a pessoa gorda é para eles a ideal porque os serena, e
para os alemães do sudoeste, sobretudo os de Baden, tal como para todos os alemães, é de
extrema importância ser serenado. Nos gordos eles confiam, os gordos são seus modelos, dos
magros eles sempre desconfiaram. Por fim Gambetti só aceitou minha teoria rindo, e eu me
associei a sua risada. Mas essa gente também é terrivelmente preguiçosa, pensei agora sentado na
frente de meu cunhado, mas não daquela preguiça que defino como criadora, antes é
obtusamente preguiçosa como o porco, pensei, que hoje provavelmente é mais humano do que o
ser humano, que se tornou cada vez mais porco nos últimos cem anos. Não havia jeito de tirar
meu cunhado de sua pachorra, aproveitei a situação para dar livre curso a meus pensamentos,
porque por um bom tempo não vão me deixar mais em paz, pensei, porque, eram por volta das
quatro e meia, os condolentes não tardavam a chegar. Provavelmente essa ocasião junto a meu
cunhado na cozinha é a minha última de estar mais ou menos a sós, segundo pensei, embora meu
cunhado estivesse sentado a minha frente. Atroz, não é verdade? eu disse, mas meu cunhado não
reagiu. Essas pessoas se portam continuamente como a jovialidade em pessoa, como entendidos
em vinho, como piadistas, dissera a Gambetti, mas no fundo são tudo menos joviais, pois exigem
a jovialidade a todo custo e são implacáveis quando alguém se nega a tomar parte em sua
jovialidade, tudo neles se converte então em ódio, dissera a Gambetti. Com sua jovialidade eles
oprimem e subjugam seu ambiente e tornam um inferno o lugar no qual querem jovialidade a
todo preço. Pelo menos esta é sempre minha sensação, dissera a Gambetti, quando as pessoas
querem me impingir sua jovialidade. Observava meu cunhado e ao mesmo tempo tinha contínuas
visões de Roma e finalmente acreditei de fato estar em meu gabinete em Roma, enquanto porém
estava na cozinha de Wolfsegg sentado na frente de meu cunhado. Pesadão como ele só. A vista
fraca acabou sendo fatal a meu pai, disse. Não demora e eles entregam a debulhadora, disse, e
sabe-se lá se precisamos mesmo de uma debulhadora nova. Essa frase eu disse bem no tom de
proprietário de Wolfsegg, por assim dizer como fazendeiro, na memória escutei várias vezes
seguidas essa frase dita por mim, espantava-me nela a inflexão própria de um fazendeiro. Como
se essa frase tivesse sido proferida por meu irmão, pensei. Com essa frase me convertera no
mesmo instante em fazendeiro, coisa que no entanto não queria ser, agora provavelmente todos
pretendem de mim que seja fazendeiro, já acham que sou, pensei, a frase me trouxera isso à
cabeça, obviamente eles pensam isso, pensei, enquanto durante toda minha vida quis ser tudo,
menos fazendeiro, eles obviamente esperam isso de mim, que desista de todo o resto, o que mais
não significa senão que desista de tudo para lhes propiciar agora o fazendeiro que eles, segundo
pensava ao mesmo tempo, com certeza têm de ter, que aqui é necessário. Que desista de Roma,
certamente é nisso que pensam e já andam sádicos por aí, pensei, que desista de tudo relacionado
a Roma, que seja capaz disso, mas esse é um pensamento absurdo, pensei, porém arraigou-se em
mim o pensamento de que eles pudessem realmente acreditar nisso, porque simplesmente tinham
de acreditar nisso, eu renunciar praticamente a todo meu ser para lhes servir de fazendeiro em
Wolfsegg, o herdeiro natural, e óbvio, portanto. Mas isso estava fora de cogitação para mim.
Gambetti, Zacchi, Maria, mesmo Spadolini e todos os outros, pensei, nem em sonho que
desistirei dessa atmosfera por um pesadelo herdado. Em seus rostos, porém, nos rostos de
minhas irmãs, pensei, já se estampa ininterruptamente esse sadismo por me tocar agora aquilo
que elas jamais imaginaram, nem sequer por um instante, a coisa mais absurda, eu fazendeiro em
Wolfsegg, e portanto com toda Wolfsegg nos ombros e pendurada no pescoço e elas, minhas
irmãs, as beneficiárias desse horror. Meu cunhado, imerso nos jornais, não fazia idéia do que
passava pela minha cabeça enquanto dava livre curso a sua sede de sensacionalismo. Também
ele beneficiário da violência cometida contra mim, pensei, do sacrifício de mim mesmo, o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho de Freiburg im Breisgau, com seus quarenta e cinco
trabalhadores e funcionários, que o tempo inteiro, segundo penso, cagam para ele, como se diz.
Mas minhas irmãs não me conhecem realmente, disse comigo, acreditam de fato que vou entrar
na posse de minha herança como está prescrito. O testamento sempre foi conhecido de todos nós,
nem precisa ser aberto para ser bem compreendido. Meu caro Gambetti, disse a ele por telefone,
você não sabe o que me espera, pois não faz idéia do que é Wolfsegg, ouvia agora nitidamente,
enquanto meu cunhado continuava deslumbrado pelos jornais e, como podia ver, fascinado pelo
acidente neles descrito, ouvia-me dizer a Gambetti a frase: Wolfsegg não vai me matar, disso eu
já estou cuidando, e me ocorreu que Gambetti provavelmente não me entendera, ele, Gambetti,
acreditava que lhe telefonasse a fim de declinar o convite para jantar com seus pais, enquanto só
lhe quisera participar brevemente que meus pais e meu irmão tinham morrido, vitimados num
acidente de carro, dissera a Gambetti, portanto algo absolutamente inadmissível para um
chamado professor de alemão. Mas a Gambetti nunca me defini como professor de alemão,
sempre apenas como professor, e ele sempre apenas como aluno, não sou para ele um professor
especial, pensei agora, só lhe transmito este ou aquele conhecimento que, em todo caso, têm a
ver com a literatura alemã, e procuro desempenhar bem meu trabalho, sem dúvida, empenho-me
em lhe transmitir conhecimentos que valham mais que os honorários que ele me paga, que aliás
só aceito dele digamos assim pro forma, porque os cobro por princípio, por princípio ele os paga
a mim, quando mais não seja para manter a distância necessária em nossa relação professor-
aluno; poderia abrir mão de todos os honorários, mas seria a coisa mais estúpida e o primeiro
passo em detrimento dessa nossa relação, pensei, enquanto observava agora meu cunhado com
minúcia ainda maior, podia fazê-lo sem o menor distúrbio, pois nesse intervalo ele me ignorara
completamente, estava sentado lá, como se havia muito eu tivesse levantado e ido embora, saído
da cozinha, tivesse eu havia muito me levantado e ido embora, assim pensei, ele nem sequer teria
notado. O horror de nossa tragédia há muito foi substituído pelo seu lado sensacional, disse
comigo, a prova viva disso está sentada na minha frente. Meu cunhado descende de uma família
cujos antepassados primeiro foram camponeses, depois habitantes de uma cidade de província,
sequiosos por subirem na vida, seja lá o que isso signifique, sempre dispostos a tudo para se
livrar primeiro de suas origens camponesas em troca da vida na cidade de província, e então da
vida na cidade de província em troca de algo mais sublime, que não sei dizer o que realmente
seja. Meu cunhado é por assim dizer o último elo desse processo laborioso, naturalmente fadado
ao fracasso. Essas pessoas acabam pondo quase tudo em jogo para sair de sua própria pele e nem
sequer de sua pele conseguem sair, porque lhes falta a energia espiritual necessária, porque por
assim dizer ainda não descobriram o espírito, nem aquele que os circunda nem aquele neles
próprios, e portanto não deram nem sequer o primeiro passo, que é pressuposto do segundo.
Então de repente eles ficam a nenhum, como meu cunhado agora, sem a menor idéia do que
fazer com o mundo e consigo mesmos, e nessa condição dão nos nervos de todo mundo.
Wolfsegg simplesmente tem um novo personagem cômico, disse comigo observando meu
cunhado, mas nem por isso a farsa tornou-se mais suportável e interessante. Esse personagem
cômico infelizmente não diverte, só perverte, pensei, e a partir do jogo de palavras logo construí
um quebra-cabeça filosofante. Por um instante pensei, se ao menos houvesse trazido Gambetti
comigo, mas Gambetti sem dúvida não se prestaria a atuar em Wolfsegg como escudo espiritual
contra todos os reveses. Provavelmente, pensei agora, Gambetti me seria até um peso, ainda que
se interpusesse a tudo, só teria abacaxis com ele, quando de abacaxis já estou até o pescoço. Isso
porque aqui em Wolfsegg com Gambetti tudo seria bem diferente do que em Roma, em
Wolfsegg jamais poderia dedicar-me a ele com tanto rigor e desvelo como em Roma, aqui tudo o
que faz de sua companhia um prazer não seria possível, o ar de Wolfsegg não é o de Roma, a
atmosfera de Wolfsegg absolutamente não é a de Roma, Wolfsegg, numa palavra, não é Roma,
eu teria cometido o maior dos erros ao trazer Gambetti a Wolfsegg comigo. A peça de roupa
adequada para o enterro, levando em conta o clima, seria sem dúvida minha gabardina, pensei,
mas não vou vestir minha gabardina, vou vestir um dos meus casacos romanos que tenho aqui
em Wolfsegg, quando menos para me distinguir dos outros, que só usam todos gabardinas nos
enterros, todos, incluindo os gauleiter, mesmo os bispos comparecerão com gabardinas, que eles
enfiam por sobre seus paramentos ao menor sinal de corrente de ar, o que sempre é o caso no
cemitério. Os príncipes da Igreja, pensei, sempre têm medo de resfriados, nos ofícios ao ar livre
vestem sempre gabardinas por sobre seus paramentos, e todos os demais com certeza. Num de
meus casacos romanos vou me distinguir de todos eles, pensei, de cara vou demonstrar que não
sou mais um wolfseggense, mas um romano, vou logo me apresentar como romano, como já me
definem faz anos, farei meu ingresso como o ingresso de um romano. Pensei no casaco que
comprara o ano anterior em Pádua. Tenho de me comportar amanhã como um metropolitano,
pensei. Vou usar sapatos romanos e enrolar no pescoço um cachecol romano. Assim já me
previno exteriormente contra a sociedade das gabardinas, que no fundo odeio, que sempre odiei.
A sociedade das gabardinas fará de tudo para me esmagar, mas saberei como me defender,
pensei. O romano de amanhã será forte e não se deixará engabelar pela sociedade das gabardinas.
Ainda sentado com meu cunhado na cozinha, ouvi que as primeiras visitas fúnebres haviam
chegado, não só condolentes, como de imediato disse comigo, mas algumas entre aquelas que
pernoitariam em Wolfsegg, levantei-me, meu cunhado também, ainda meio aturdido pela leitura
dos jornais, já batiam à porta, só agora pensei onde diabo estavam as moças da cozinha e a
cozinheira, onde diabo foram parar minhas irmãs, as primeiras visitas fúnebres que pernoitariam
seguiram até o fim do átrio sem que ninguém as recebesse e bateram à porta. Isso me deixou
prontamente constrangido, e mais tarde, aliás, pedi explicações a minhas irmãs, como é possível
não receber as primeiras visitas já lá fora diante do portal, eu lhes disse, deixá-las seguir até o
fim do átrio sem cumprimento, já que antes minhas irmãs haviam se prontificado a receber as
visitas, fossem só condolentes ou aquelas que pernoitariam, a última vez que as vira estavam
depositando numa das mesas do vestíbulo uma chamada lista de pernoite, na qual se assinalava
com precisão quem, dos convidados para o enterro, pernoitaria onde, aquela noite ou, se
necessário, por mais tempo, se no vilarejo lá embaixo ou, tratando-se de parentes próximos ou
amigos íntimos, tal como Spadolini, no prédio principal ou quando menos no pavilhão dos
caçadores ou na casa dos jardineiros, onde todos os quartos, diziam, haviam sido arrumados.
Spadolini elas queriam alojar no prédio principal, isso eu descobri de imediato ao bater os olhos
na lista. Os primeiros a chegar eram parentes de minha mãe que eu mal conhecia, tive até mesmo
de me apresentar, porque não se recordavam mais de mim, embora os tivesse visto uma vez, em
Munique, onde moravam, não me lembro mais em que ocasião. Vieram todos de preto, lançaram
a sua volta, segundo pensei, olhares algo arrogantes no átrio, logo quiseram saber onde era a
capela e se os corpos estavam sendo velados na capela, não, eu lhes disse, na orangerie. De
pronto quiseram ir até lá para ver os finados, essas pessoas não estiveram no casamento de
Caecilia, pensei, senão as teria notado. Não tinha a intenção de conduzi-las à orangerie, meu
cunhado, tão logo viu essas pessoas, no mesmo instante desaparecera de novo na cozinha, assim
olhei ao redor em busca de minhas irmãs, que incompreensivelmente me haviam deixado de todo
sozinho, e dei a entender a essas pessoas que se dirigissem sozinhas à orangerie, eu as
acompanharia, se minha presença não fosse urgentemente requisitada no primeiro andar, disse,
era uma desculpa, mas essas pessoas já de cara me deram uma impressão tão ruim que não queria
mais estar junto delas, uma depois da outra elas me estenderam suas mãos e essas mãos eu tive
de apertar, procurei ocultar minha aversão a essas pessoas, não sei se consegui, nem sempre se
consegue, sobretudo quando se trata de gente tão manifestamente contrária a meu gosto, o que
mais repugnava nelas era o ar presunçoso, as roupas caras, que claramente foram compradas só
para esse enterro e que agora elas logo ostentavam, por assim dizer como num ensaio geral,
empoladas, ao mesmo tempo extremamente arrogantes e com uma segurança de si repulsiva, eu
indiquei onde era a orangerie, ao todo eram cinco pessoas, pais com filhos adolescentes na casa
dos vinte, já completamente estragados, segundo pensei, nada mais que superficiais, estúpidos,
insolentes, nem um pingo de reserva caracterizava essas pessoas, que ainda por cima falavam tão
alto como se estivessem em casa, não sei nem se algum dia já estiveram aqui, mas
provavelmente sim, minha mãe tinha uma verdadeira predileção por gente assim, pensei, dessa
laia, seus iguais. A orangerie fica do outro lado, disse, e deixei que se dirigissem à orangerie.
Meu cunhado refugiara-se na cozinha e brincava com as moças da cozinha, ocupadas enquanto
isso em preparar um bufê que minhas irmãs já haviam encomendado de manhã, de todos os
cantos eram trazidos grandes tabuleiros com toda espécie de pães e grandes travessas com toda
espécie de saladas, mesmo da capela, que era sempre fresca e portanto particularmente adequada
para conservar alimentos, elas traziam essas travessas repletas de molhos e cremes e bandejas em
que se empilhavam os pães. Afinal era preciso dar de comer aos hóspedes. Naturalmente eles não
esperavam, como se diz, uma refeição quente, mas pelo menos um bufê frio, e minhas irmãs
eram versadas na preparação de tais bufês frios, se bem que não saibam cozinhar. Os bufês frios
de minhas irmãs foram sempre apreciados. Não sei quem os prepara melhor, Caecilia ou Amalia,
as duas foram sempre elogiadas por causa de seus bufês frios, eu, de minha parte, sempre fui um
tanto indiferente a esses bufês frios, aliás como à comida em geral, mas que a cozinha austríaca
não é das melhores, disso estou convencido, naturalmente não tem comparação com a romana.
Todo o átrio cheirava agora a esse bufê frio. Enquanto as pessoas de Munique, que de fato eram
meus parentes próximos, dirigiam-se à orangerie, da feitoria já chegavam outros, e na seqüência,
desde por volta das cinco até noite adentro, a cadeia dos que chegavam não se interrompeu mais,
chegaram as pessoas mais diversas, de todos os países imagináveis, muito mais, afinal, do que no
casamento de Caecilia, e era só a véspera do enterro, muito mais que cem, provavelmente uns
cento e vinte ou cento e trinta, acabei por perder a conta e aliás desisti de me ocupar com cada
um que chegasse, transmiti essa tarefa, que no fundo me era extremamente desagradável,
repulsiva mesmo, a minhas irmãs, que ao fim e ao cabo plantaram-se junto ao muro do portão lá
embaixo para receber quem chegasse, nas mãos a lista em que estava assinalado onde alojar
quem. Pouquíssimos, em todo caso, estavam hospedados no prédio principal, a maioria no
pavilhão dos caçadores, poucos na casa dos jardineiros e grande parte também no vilarejo lá
embaixo, nas mais diversas hospedarias. A maioria vinha de preto, o que criava um quadro
bonito, austero. Justo Spadolini não apareceu de preto, ele vestia um casaco cinza-esverdeado,
chamado de meia-estação, que eu sabia ter sido comprado em Roma com minha mãe. Na Via
Condotti, é claro. Mas de Spadolini volto a falar mais tarde. O fabricante de rolhas para garrafas
de vinho não tardou a misturar-se aos muitos que chegavam, com insistência era procurado por
Caecilia, sua mulher, com insistência ouvia Caecilia chamar seu nome, no meu entender sempre
alto demais, em vista da situação, e esse contínuo chamado de minha irmã causou uma impressão
cômica nos convidados do enterro, que em grande parte circulavam pelo parque lá fora, pois o
tempo era propício, que agora tinham oportunidade de travar conhecimento uns com os outros, já
que a maioria ainda não se conhecia, como logo pude constatar. Mas muitos também
permaneceram no átrio, sobretudo os velhos e velhuscos, que apreciavam a proximidade da
cozinha e a proximidade da capela. Naturalmente muitos acreditavam que os corpos estivessem
sendo velados na capela, e a primeira coisa que faziam era dirigir-se à capela, seguindo portanto
pelo átrio, e muito se surpreendiam que os corpos não estivessem sendo velados na capela, havia
muito não organizávamos um enterro, desde o enterro de meu avô paterno, e assim a maioria não
fazia idéia de nosso costume de velar nossos defuntos na orangerie, grande parte entrava
primeiro no átrio e na capela e só então cruzava para a orangerie, que agora, já diante da entrada,
estava enfeitada com tantas coroas e buquês que os jardineiros tinham dificuldade em arrumar
todas essas coroas e buquês, que aumentavam de hora em hora, tais coroas e buquês não paravam
de ser entregues na feitoria, do outro lado. Nesse meio tempo todas as velas foram acesas na
orangerie. As moças da cozinha solicitadas a tanto, e que não fossem indispensáveis na cozinha,
serviam aos hóspedes água e vinho até no parque, também dois caçadores foram encarregados de
prover bebidas aos hóspedes, até mesmo com lanchinhos, como se diz. No crepúsculo, o quadro
desses convivas lá fora no parque, só conversando sempre em tom bem baixo, era belo, elegante,
sobretudo se vistos de minha janela no primeiro andar. Subira a meu quarto para não ter de me
expor sem trégua a toda essa gente, logo se tornara insuportável para mim ter de repetir sempre
as mesmas coisas, ter de escutar sempre as mesma frases, aproveitei a primeira ocasião para me
recolher a meu quarto. De cima eu tinha mais ou menos um panorama do todo. Nesse meio
tempo minhas irmãs haviam encarregado meu cunhado de postar-se junto ao portão do muro e
dizer aos hóspedes onde passariam a noite. Enterros sempre me atraíram mais que casamentos,
agora de fato tudo me agradava mais que no casamento da semana anterior, mas no fundo,
olhando de minha janela o parque lá embaixo, via agora em grande parte as mesmas pessoas que
oito dias antes. Só que elas haviam mudado nitidamente, contidas, por assim dizer, pela lógica
das circunstâncias. Formavam grupos lá embaixo e batiam papo, como se se tratara de uma festa
numa noite de verão, pensei por um instante. O preto de suas roupas encobria seu mau gosto, do
contrário insuportável. Uma pena, pensei, que a ocasião de um quadro tão belo e elegante seja
tão triste, uma tal roda de pessoas lá embaixo no parque, tal como ele se mostra agora a minha
vista, caberia ser reunido de vez em quando por amor desse quadro belo e elegante, assim repeti
à meia voz, o lado absolutamente estético é seu atrativo, pensei. Mas Deus nos livre ouvir o que
essa roda de pessoas diz, pensei. Imaginei o tempo inteiro, de pé defronte da janela, que as
pessoas perguntassem por mim, pelo filho, pelo irmão portanto, pelo herdeiro, pelo novo patrão
etcétera, que não se achava entre eles e também não dera as caras, embora se dissesse sem parar
que ele estava lá, é claro. Não acendera a luz de meu quarto, para poder observar as pessoas lá
embaixo completamente despercebido, para não ser descoberto. Até esse momento Spadolini não
havia chegado, eu o aguardava ansiosamente, mas ele só chegou bem mais tarde e, como se pode
imaginar, causou grande sensação. Como já estivesse cheio, saí de meu quarto e entrei no de meu
pai. Sentei-me à mesa de jogos, que meu pai sempre usara como penteadeira. À porta ainda
estava pendurado o chambre de meu pai. Levantei-me e enfiei-o, porque de repente sentira frio.
Amarrei o chambre e me olhei no espelho da parede. O cansaço de que antes não fizera caso,
sentado lá embaixo na cozinha com meu cunhado, agora de fato se dissipara, como se diz, não
estava mais cansado. Mas não tinha vontade de mostrar-me em público. Sentei-me assim na
poltrona da penteadeira de meu pai e estiquei as pernas. Nessa hora notei que haviam passado
ordem no quarto de meu pai, que de fato, num piscar de olhos, ele estava tinindo de limpo. Sobre
a mesa diante da janela havia flores num vaso, não sei dizer que tipo de flores, já estava muito
escuro, no mesmo instante pensei, o quarto foi arrumado para Spadolini. Ocorreu-me o que
dissera a Gambetti por telefone, que não era só provável, mas certo, que Spadolini viria ao
enterro e pernoitaria no quarto de meu pai. Não me enganei, pensei. Ao pé da cama estavam as
pantufas inglesas que minha mãe comprara a meu pai em Viena, mas que meu pai jamais usou,
porque, como sempre dizia, lhe pareciam muito decadentes. Pantufas bem macias de cabritilha,
pretas, de grande elegância, como minha mãe as descrevera, intactas, à espera agora de
Spadolini. E o chambre que estou vestindo também, pensei. Levantei-me e despi o chambre e
pendurei-o novamente à porta. O gancho na porta, pensei, foi parafusado de próprio punho por
meu pai contra a vontade de minha mãe, ela se opunha, ele não se deixou dissuadir de desfigurar
a porta com esse gancho, como minha mãe se expressava. No banheiro de meu pai tudo também
fora limpo, por todo lado estavam penduradas toalhas novas, as torneiras cintilavam, as moças da
casa fizeram um bom trabalho, pensei, enquanto em meu quarto não fizeram absolutamente nada,
meu quarto foi largado como eu o deixara uma semana atrás, na atmosfera colérica, por assim
dizer, da despedida, irado, no fundo, com meus pais, que no último dia de minha visita
cumularam-me de censuras a respeito de meu estilo de vida em Roma, ainda tenho suas frases
nos ouvidos, mas não queria mais repeti-las. Agora descobri também sobre a penteadeira de meu
pai o serviço de banho prateado que minha mãe trouxera a meu pai de Paris, ela sempre lhe trazia
alguma coisa, mas desse serviço de banho meu pai só dizia sempre que era feminino demais,
feminino demais para mim, ele dizia sempre, eram essas as exatas palavras que usava para
depreciar o serviço de banho prateado de Paris. Ele nunca o usou. Agora ele fora retirado da
cômoda e posto sobre a penteadeira para Spadolini, pensei. Minha mãe fez gravar as iniciais de
meu pai nesse serviço de banho, coisa que meu pai resumiu-se a definir como uma afetação
ridícula, como me lembro. Minha mãe não conseguiu de todo fazê-lo perder o bom gosto que
afinal ele tinha, pensei. E pensei, sentado de novo na poltrona, que eu sempre admirara
Spadolini, sobretudo sua vida extraordinária, que teve início numa cidade do norte da Itália, nos
arredores do lago de Como, filho de um advogado, cedo ele foi destinado ao sacerdócio, dos
cinco irmãos, que todos estudaram e todos se tornaram alguém, como se diz, Spadolini é sem
dúvida o mais extraordinário. Logo o padre chegou a Florença e depois, com apenas vinte e
cinco anos, a Roma, e lá fez carreira. Ele era bem-visto e lhe prestavam ouvidos, e onde
comparecesse a atmosfera subia de tom, o nível de toda reunião, por assim dizer, logo se elevava,
aos trinta era conselheiro junto à nunciatura de Viena, aos trinta e oito lhe foi confiado um cargo
financeiro no alto escalão do Vaticano, aos quarenta era núncio no Leste asiático e depois na
América do Sul, espanhol e português ele fala sem acento, bem como inglês e francês, e com ele
se pode em verdade falar de tudo, não há nada que lhe apresente a mínima dificuldade. Foi numa
recepção na embaixada belga em Viena que ele conheceu minha mãe. Para Spadolini minha mãe
talvez sempre tenha sido de fato a filha da natureza, tal como ele sempre a descrevia para mim,
agora a filha da natureza está morta, pensei, a filha da natureza que tanto amava era velada na
orangerie, deixara-o sozinho. Mas Spadolini nunca esteve sozinho, sempre esteve entre gente e
sempre nos centros do mundo, de cara se percebe isso nele, pensei. Sua presença domina
instantaneamente a cena, seja onde for, seja qual for a companhia. Em toda parte, pensei, a toda
hora, disputam sua companhia, como se diz. A mesa à qual ele se senta é a mais divertida. Minha
mãe o convidava a Wolfsegg pelo menos duas vezes ao ano, mas não só a subir até Wolfsegg,
mas também às mais diversas costas mediterrâneas para jornadas de diversão que duravam vários
dias ou mesmo várias semanas, e Spadolini, até onde me lembro, nunca se recusou, o príncipe da
Igreja, viajava para onde quer que minha mãe o aguardasse, obviamente nos melhores hotéis das
paisagens mais agradáveis, primeira classe e de avião. Ora meu pai sabia a respeito, ora não, no
fim passou a não se importar quando e onde minha mãe se encontrava com Spadolini, e com
freqüência viajavam os três juntos, por exemplo a Badgastein ou a Taormina ou a Sils Maria na
Suíça, onde se hospedaram no Waldhaus, o hotel com a mais bela vista. Lá Spadolini calçava
esquis de cross-country e por assim dizer remava da maneira mais elegante no lago de Sils rumo
ao passo de Maloja, na direção da pintura, por assim dizer, que celebrizou Segantini. O
arcebispo, que tem três passaportes, um vaticano, um italiano e um passaporte diplomático, como
o chamam, e que utilizava um ou outro desses passaportes segundo a necessidade, sempre se
sentia melhor do que nunca, é preciso que se diga, na presença de minha mãe, isso ele dizia
muitas vezes e era digno de crédito, pensei. Como são simplórios, em comparação, nossos bispos
austríacos, pensei sentado na poltrona, como é simplório nosso próprio cardeal de Viena.
Spadolini é por assim dizer um príncipe nato da Igreja. Basta ouvir como ele fala, basta ver
como ele come, pensei. E como se veste. Ele não é um clérigo vindo do povo, que escalou a
hierarquia eclesiástica com ingênuo suor, ele é, como disse, um príncipe nato da Igreja, sentado
na poltrona disse várias vezes à meia voz esse um príncipe nato da Igreja. Sua influência no
Vaticano é enorme, com os papas ele sempre teve uma relação distante, distante demais, como
ele próprio dizia de vez em quando, o que lhe custou até agora o chamado capelo cardinalício.
Spadolini, o cosmopolita, pensei. Quem sabe, disse comigo, a morte de minha mãe me dê agora a
oportunidade de renovar a amizade com Spadolini, de consolidá-la ainda mais, de torná-la
perfeitamente livre para mim. Pois Spadolini não foi a última das razões pelas quais me mudei
para Roma, que me apresentou a Zacchi, o qual me arranjou o apartamento na Piazza Minerva,
que me levou a passear por Roma, que por assim dizer me introduziu à sociedade romana, sendo
o primeiro a abrir as portas de Roma para mim? Pois primeiro eu só tinha Spadolini em Roma,
fiava-me inteiramente em Spadolini, a quem aliás meu tio Georg tinha em altíssima
consideração, embora soubesse que ele se relacionasse com minha mãe de uma forma bastante
curiosa, como dizia sempre tio Georg. Spadolini também estivera muitas vezes em Cannes, e
com o tio Georg esteve uma vez no Senegal, onde os dois organizaram uma exposição de
pintores do sul da França e ao mesmo tempo conversaram semanas a fio de coisas filosóficas,
assim dizia meu tio Georg. Spadolini é também artista, pensei sentado na poltrona, é artista em
alto grau, ainda que não pinte, ainda que não faça música. Com muita freqüência caminhamos
por Roma e ele me salvou de humores malignos de todo tipo, de toda espécie de desespero,
sobretudo em meus primeiros tempos de Roma, nos quais não sabia muito o que fazer comigo e
passei a ser atormentado por obsessões e por meses de insônia, pensando mesmo em suicídio.
Até que Spadolini fez com que eu despertasse, sobretudo com que me abrisse novamente a meus
esforços intelectuais, e afinal foi também Spadolini que me pôs em contato com Gambetti.
Spadolini é amigo da família de Gambetti há décadas. Comigo Spadolini fez muitos passeios no
Pincio, com o único objetivo de tirar-me de meu desespero com exercícios intelectuais, como ele
sempre os chama. Ele me recordava minhas aptidões, por assim dizer meu capital intelectual,
que eu próprio já esquecera, com que fim eu viera afinal de contas para Roma, dizia, se não para
seus fins intelectuais. Minhas paixões intelectuais já estavam atrofiadas, quase de todo mortas,
quando Spadolini as redespertou em mim, Spadolini, ninguém mais. Fazíamos juntos exercícios
intelectuais e saíamos com muita freqüência para uma boa refeição no Trastevere, pensei, comer
bem de um lado, pensar bem de outro, tais eram com muita freqüência as palavras de Spadolini,
que ele me inculcou. E que sem dúvida me salvaram. Muitas vezes ele se deu ao trabalho de
viajar comigo ao campo, pela Via Appia afora, por assim dizer até o infinito, com o único e
exclusivo objetivo de me salvar, e devo dizer que Spadolini foi o único de quem tive
reconhecimento. A minha mãe ele sempre procurou esclarecer o que e quem eu era, que tipo de
espírito eu tinha, por assim dizer, mas ela nunca prestou ouvidos a esses seus esforços a meu
respeito, a filha da natureza o deixava falar sem escutá-lo, pensei sentado na poltrona,
observando o aparelho de banho de Paris. Como era possível que Spadolini fosse tão apegado a
minha mãe, que de fato a tivesse mais ou menos amado e claramente a compreendido e
compreendido a mim, e minha mãe não, ela nunca quis me compreender, disse comigo sentado
na poltrona. Spadolini me compreendia, compreendia minha mãe, mas minha mãe sempre esteve
contra mim, ainda que Spadolini sempre estivesse a meu favor, pensei. Spadolini não conseguiu
induzir minha mãe nem a preocupar-se comigo, uma vez ele me disse, ela não tem nenhuma
relação com você, você é absolutamente estranho a ela. Mas como minha mãe aceitava
incondicionalmente tudo quanto viesse de Spadolini, não deixa de ser incompreensível que não
tenha aceito tudo o que Spadolini, por assim dizer, sempre lhe repetia a meu respeito, ela não o
escutava porque não queria escutá-lo. Eu gosto de você e gosto de sua mãe, mas sua mãe não te
compreende, disse Spadolini, ela te odeia mesmo, e por outro lado você também não gosta de
sua mãe, você odeia sua mãe. Spadolini nunca hesitou em proclamar fatos e verdades. Spadolini
tinha mesmo de ser um príncipe da Igreja para poder se permitir isso, para ter uma visão toda sua
da Igreja Católica, pensei. Os Spadolinis são todos espíritos independentes, pensei. Até mesmo
Spadolini, o príncipe da Igreja. O elemento spadoliniano, monárquico, pensei, encontra sua
realização mais perfeita no seio da Igreja Católica, pensei. Mesmo hoje. No quarto de meu pai
ainda havia o cheiro de meu pai. Levantei-me e abri o armário de roupas e de um único relance
contei doze ternos pendurados no armário. Todos confeccionados por seu alfaiate vienense
Knize, mas como meu pai é muito mais baixo que eu, era, corrigi-me, não posso usar esses
ternos, pensei, e refleti a quem serviriam os ternos de meu pai. Dá-los aos jardineiros seria um
despropósito, pensei, aos caçadores não vou dar nem a nenhum dos parentes, disse comigo e
fechei novamente o armário. Na sapateira meu pai sempre teve uns trinta pares de sapatos, abri a
sapateira, o tamanho quarenta e dois não serve em ninguém aqui, pensei, e fechei novamente a
sapateira. Mas suas melhores camisas vou guardar para mim, pensei. Elas têm bom corte, servem
em mim. Para Spadolini elas arrumaram um armário próprio, pensei. Sobre a escrivaninha meu
pai tem fotografias da família, de cada um de nós um retrato, nessas fotografias temos todos o
mesmo ar insignificante, inofensivo. As fotografias serenam, não assustam, não davam ensejo à
mínima reflexão, quando muito a como era possível que todos esses retratados nas fotografias
tivessem o mesmo ar insignificante. Meu pai levantava às cinco da manhã, sentava-se às cinco e
meia à escrivaninha para trabalhar, tocar os negócios, como ele chamava, para então por volta
das sete e meia tomar café da manhã com minha mãe, no chamado salão grande, como minha
mãe chamava o antigo quarto verde, com as janelas da sacada escancaradas se fizesse tempo
bom. A maioria das vezes eles passavam esses cafés da manhã decidindo os afazeres do dia, e ali
surgiam as primeiras desavenças e mal-entendidos. Nos primeiros anos esses cafés da manhã de
meus pais transcorriam quase sempre em perfeito silêncio, nada mais se ouvia senão o tilintar
dos talheres. Meu pai não era de falar muito, a faladora era a minha mãe, a palradora, mas nos
últimos anos ela desistira de sua falação, de sua palração, pelo menos com meu pai. Meu pai
estava doente e em segredo ela contava com sua morte para breve. Ela sempre pensou que em
breve ele morreria. Décadas a fio ela pensou isso, acreditava poder lê-lo nos traços de seu rosto.
Quando meu pai era submetido a algum aborrecimento, ela dizia sempre, deixem-no em paz, ele
está doente e morrerá em breve. Tanto ela se habituara a esse comentário que não o continha
mais mesmo na presença dele, mesmo na nossa presença ela repetia sempre, deixem papai em
paz, ele está doente, porém o e morrerá em breve ela reprimia, não pronunciava, só pensava, a
todo instante ouvia-se pela casa, quando ele estava ausente e sobrecarregado, deixem papai em
paz, ele está doente e morrerá em breve, estivesse ele presente, deixem papai em paz, ele está
doente. À menor oportunidade ela corria aos braços de Spadolini, o ilustre, como meu pai
intitulou-o certa vez. Nada mal para uma descrição, pensei agora. A cada duas ou três semanas
ela ficava cheia de seu marido sem lustre e doente, que morreria em breve, e juntava-se ao
ilustre, para depois, quando o ilustre não tivesse mais tempo para ela, regressar ao doente sem
lustre, que em breve morreria, a maioria das vezes à noite, às escondidas, para que os criados não
notassem, mas que, como sei, sempre notavam tudo, pois os criados sempre notam tudo, afinal.
Acredita-se que os criados não notam nada, mas notam tudo, até o que há de mais discreto, até
aquilo que não se os julga capazes de notar. E por isso eles também sabem de tudo. Sempre
somos da opinião de que os criados não estão por dentro, que em toda ocasião os ludibriamos, os
passamos para trás, mas na verdade eles notaram tudo. Spadolini, o ilustre, foi o constante anseio
de minha mãe, por tantas décadas, pensei. No fim meu pai nem fazia mais caso desse anseio, nos
últimos tempos nem perguntava mais a minha mãe onde afinal ela estivera, quando de noite ela
retornava, pois ela só lhe respondia, sardônica, com Spadolini. Mas em última análise, ao
contrário do príncipe da Igreja, do ilustre, fora sempre o fazendeiro sem lustre que sempre a
serenara, que lhe servira de esteio. Às vezes minha mãe se reclinava em meu pai e dizia que
estava plenamente ciente do que tinha nele. E que lhe era grata por ele lhe perdoar tudo. Meu pai
simplesmente a deixava falar. Ele já se retirara do palco no qual se encenava Spadolini, essa
comédia ridícula, como ele próprio chamava. Fazia muito tempo que se tratava apenas de uma
peça de dois atores. Minha predileção por quartos quase totalmente às escuras eu a guardei até
hoje, pensei, mas não acendi a luz também por uma razão absolutamente imperiosa em Wolfsegg
nessa época do ano, por causa das muriçocas que, atraídas de imediato pela luz, transformam os
quartos de Wolfsegg num inferno. Não estou vendo quase nada, disse comigo, isso é o que mais
me agrada. Depois do café da manhã meu pai ia até a feitoria para dar uma olhada, subia então a
maioria das vezes num trator e desaparecia nos bosques, ninguém sabe o que lá procurasse, nada
além de paz longe de sua mulher e do restante dos seus, pensei. Tarde da manhã alguém via num
lugar qualquer o trator, que ele simplesmente abandonava para andar quilômetros a pé em sua
propriedade, o que sempre lhe dera o maior de todos os prazeres. Afinal ele sempre quisera ser
só um camponês. Jamais teve ele ambições mais altas, como as chamam. Quando se impôs a
questão da sucessão, a questão da herança, ele se casou com uma garota de província, filha de
um atacadista de verduras, que por assim dizer envasilhava os campos de Wels em vidros e
garrafas para vender esses vidros e garrafas em Viena. Mesmo depois do casamento com minha
mãe, meu pai continuou a estar mais à vontade no chiqueiro que no quarto verde com sacada,
por ela rebatizado de salão grande, a companhia que preferia estava mais na feitoria, no pavilhão
dos caçadores, pensei. Mas o camponês, é claro, tivera sempre um porte senhorial. Justo o
primeiro filho era quem desejava, que a tempo herdaria a propriedade, Johannes. De mim ele
tomou nota, como disse, a título de herdeiro substituto, de minhas irmãs também ele teria
preferido prescindir, as retardatárias nunca tiveram uma chance com ele, por isso também logo se
prenderam, como é bem natural, à saia de minha mãe. Ambas, Caecilia e Amalia, foram crianças
bonitas, como as chamam, que depois, exatamente como quer a voz do povo, tornaram-se com o
tempo cada vez mais feias. Pouco atraentes. Ao menos para mim. Mas de todos os filhos sempre
estive na posição mais difícil, pensei agora. Não cabia, por assim dizer, no coração de nenhum de
meus pais, e com o tempo também desisti em definitivo de insinuar-me à força em seus corações,
já que me dera conta de que não havia espaço para mim. Mas desde o princípio meu pai foi mais
próximo de mim do que minha mãe, de quem tive medo desde criança bem pequena, enquanto
por meu pai sempre tive confiança, primeiro como criança, depois como adolescente, depois
como adulto, até o fim. Em todo caso meu pai sempre foi para mim, a vida inteira, uma chamada
autoridade paterna, seja lá o que isso for, minha mãe nunca pude deixar de senti-la como
prejudicial para mim. Toda minha vida tive a sensação de que eu só existisse para que um belo
dia eles pudessem, como se diz, recorrer a mim. E não se enganaram, como demonstra a
tragédia, pensei agora sentado na poltrona, mas não haviam contado com sua própria morte. Se
Johannes estivesse sozinho no carro, disse comigo, agora eles teriam podido recorrer a mim, sua
previdência teria sido justificada. Mas eles foram mortos, por assim dizer, junto com seu
primogênito, sem entrar no gozo do segundo herdeiro. Sentado na poltrona, pensei, sou o
segundo herdeiro deixado por eles, e aliás me sentia como tal. Na palavra segundo herdeiro
farejei minha chance. Mas como aproveitá-la? pensei. Pensar que Spadolini estivesse vindo me
agradava. Em Spadolini tenho afinal uma pessoa com quem posso falar sobre tudo, pensei. Em
Spadolini tenho uma cabeça lúcida, mais clara que a minha, turvada por essa lúgubre catástrofe,
segundo pensava. Nos próximos dias, provavelmente já nas próximas horas, Spadolini será meu
interlocutor, pensei. Ele deve isso a mim, que me indique agora a saída que não vejo sozinho.
Idéias sobre o futuro imediato eu tinha, mas ainda não sabia como fundi-las numa única que
fosse razoável. De Spadolini posso esperar o que não espero de mais ninguém, pensei, que me
diga o que fazer agora. Mas por outro lado não sei qual Spadolini chegará aqui, se chegará em
Wolfsegg aquele que me é útil ou o que me é prejudicial, pois que Spadolini também pudesse
agora ser prejudicial a mim não estava fora cogitação, pelo contrário, era dessa possibilidade que
eu tinha medo. Mas se é assim, devo estar completamente enganado a respeito de Spadolini,
pensei então. Provavelmente, disse comigo sentado na poltrona, Spadolini está ruminando já
agora, enquanto viaja, os mesmos pensamentos da perspectiva oposta, que já agora, enquanto se
aproximava de Wolfsegg, refletia sobre o futuro de Wolfsegg a seu modo, como essa Wolfsegg
deveria superar a tragédia. Mas será que preciso mesmo de Spadolini? pensei de repente, não
tenho cabeça própria? Não tenho a menor necessidade de Spadolini, disse agora comigo, depois
de levantar e ir até a janela, observando as pessoas lá embaixo no parque, a reunião fúnebre, que
não aumentara nesse meio tempo, senão diminuíra, pois a maioria dos que chegaram já havia
saído à procura de seus diversos aposentos, via que a reunião começava a dispersar-se quase de
todo. Spadolini ainda não chegou, pensei. Mas certamente chega ainda hoje, pensei. Chega tarde
de propósito, para não ter de se apresentar a toda essa gente, para evitar esse embaraço, ao menos
para não propiciá-lo. No meio da reunião fúnebre que se dispersava, que não hesitara em pisar na
grama, como constatei da janela, estava o fabricante de rolhas para garrafas de vinho com um
tabuleiro. Completamente abandonado. Caecilia berrou seu nome, ao que ele foi até ela, que
provavelmente estava sob o portal. Aqui, na frente dessa janela, meu pai muitas vezes passava
metade da noite de pé, quando não conseguia pegar no sono. A vida inteira atormentou-o a
insônia, da qual minha mãe nunca se queixou. Para cansar-se ele ficava de pé defronte da janela,
mas mesmo quando cansado, depois de ficar duas ou três horas defronte da janela, não lhe era
possível conciliar o sono. Foi assim que ele se habituou, sobretudo em março e abril, a sair de
casa já às três horas da manhã e caminhar nos bosques. Sou um homem dos bosques, ele dizia
muitas vezes. Mais do que tudo adoro estar nos bosques. Mais do que tudo gostaria de morrer
nos bosques, era também uma de suas frases, pensei agora, mas esse desejo não foi realizado, ele
morreu de uma morte hoje corriqueira, o exato oposto da que esperava, tal como milhões de
pessoas, bem à maneira do homem moderno de hoje, simplesmente num átimo de distração na
estrada. Spadolini chamou-me a atenção para o caráter de Gambetti, por assim dizer explicou
Gambetti para mim, como teria de me aproximar dele, como poderia ganhar sua confiança, pois,
assim dizia Spadolini, lidar com Gambetti, esta a sua definição, era a coisa mais difícil. Gambetti
manifestara a ele, Spadolini, o desejo de ter um austríaco como professor de literatura alemã,
expressamente não um alemão. Eis que eu aparecera em Roma no momento certo, assim disse
Spadolini uma vez, a pessoa ideal. Gambetti sempre considerou Spadolini como seu pai
espiritual, seguia-o em tudo. O pai de Spadolini fora desde sempre amigo do pai de Gambetti,
pensei, sentado agora de novo na poltrona, agora com os olhos fechados, fruindo da calma no
quarto de meu pai, percebendo pela janela aberta que o número de participantes do enterro já se
reduzira a uns poucos, absortos numa conversa lá embaixo com minhas irmãs, que eu porém não
conseguia entender, só palavras soltas, que não resultavam porém num contexto, entendi as
palavras corrente de ar, angina pectoris, anarquia, medonho, tempo chuvoso, como me lembro
com exatidão, dependia só do vento como essas palavras subissem até a mim, por vezes bem
claras e nítidas, depois de novo confusas, mal-e-mal compreensíveis, mas todas eram
pronunciadas de modo reservado; desde o início Spadolini foi destinado a uma posição muito
elevada, como ele mesmo disse uma vez, o ambicioso era sobretudo seu pai, que o fizera estudar
para que avançasse rapidamente no Vaticano, ascendesse na hierarquia vaticana, assim disse uma
vez o próprio Spadolini, enquanto a mãe de Spadolini, dizem, não se interessava nesse avanço,
nessa ascensão vaticana tão dura e sistemática, mas o fato foi que Spadolini, assim dizia minha
mãe, escalou de pronto e sem interrupção a montanha, uma carreira esplêndida, como raramente
se observa, sobretudo na história da Igreja, assim dizia minha mãe. A primeira coisa que
Gambetti fez foi me examinar, não o inverso, se eu era mesmo a pessoa adequada para ser seu
professor, assim me disse Spadolini. Foi Gambetti quem concebeu um método de exame bem
preciso para mim, para minhas aptidões docentes. Mas eu passara nesses exames com sua plena
satisfação, assim me disse Spadolini citando Gambetti, pensei sentado na poltrona. Acreditamos
ser desde o início o professor do aluno e somos na realidade examinados pelo aluno meses a fio,
pensei comigo. Logo no início de minha relação com ele, Gambetti me fizera inúmeras
perguntas curiosas, insólitas, como reparara, mas não sabia por que as fizesse. A princípio
Spadolini e Gambetti e eu nos encontrávamos muitas vezes somente para jantar nas imediações
da Piazza Minerva, lá onde as mesas são servidas só por freiras, que naturalmente fazem sempre
um grande rebuliço em torno de Spadolini, coisa que mesmo a ele causa certo embaraço, num
restaurante que repugnou tanto a Maria que lá esteve uma única e só vez comigo, de fato na noite
com Maria as freiras se desdobraram numa terrível solicitude com os clérigos, que nessa noite
eram numerosos no restaurante, era óbvio que isso seria insuportável a Maria, lá me encontrara
com ela para discutir seus poemas, em particular seu chamado poema boêmio, que nesse meio
tempo tornara-se mundialmente célebre e é certamente um dos melhores e também um dos mais
belos poemas de nossa literatura. Nessa ocasião eu disse a Maria, com esse poema você escreveu
um dos mais belos e melhores poemas que uma poetisa já escreveu em nossa língua, não o
pensara como um elogio, dizia a verdade, que agora também o resto do mundo há muito tomou
nota. Sempre amei esse poema de Maria, porque ele é tão austríaco, mas ao mesmo tempo tão
impregnado, como nenhum outro, pelo mundo inteiro e pelo mundo que circunda esse mundo. E
porque foi escrito pela poetisa mais inteligente que já tivemos, incluindo todas as demais no
curso da história. Absolutamente anti-sentimentais, pensei agora, são os poemas de Maria,
absolutamente diversos do dos outros, que não tratam de outra coisa, todos, senão do
sentimentalismo austríaco, por mais selvagens e geniosos que sejam, os poemas de Maria são
anti-sentimentais e claros e têm o valor dos poemas de Goethe, e precisamente daqueles poemas
de Goethe que mais aprecio. Maria teve de mudar-se para Roma a fim de poder escrever esses
poemas, disse comigo sentado na poltrona, pensando depois novamente em Spadolini, a quem
devo Gambetti, a pessoa em Roma que me é mais cara e preciosa. O que seria minha vida em
Roma sem Gambetti? pensei, que todo dia me defronta com suas novas idéias, que todo dia me
faz novas perguntas, que me revigora diariamente porque diariamente me defronta com os
problemas efetivos de nosso mundo, Gambetti, aquele que pergunta constantemente, que sonda
ininterruptamente, aquele que não me deixa em paz, pensei, que vem a meu apartamento e me
interroga a noite inteira até o frio clarão do dia, de quem não posso me esquivar. Gambetti, que
sempre quer saber de tudo pelo caminho da literatura alemã, que só lhe serve sempre de pretexto
para aprender todo o resto, Gambetti, o anarquista, que apenas graças a mim tornou-se um
genuíno anarquista, a quem eu provavelmente eduquei a anarquista, voltando-o contra seus pais,
contra seu ambiente, contra si próprio, pensei, e que ao mesmo tempo estimulou meu elemento
anárquico, que o repôs em marcha em Roma, como pensava agora. Gambetti, que joga na minha
escrivaninha e por assim dizer na minha cara jornais como o Corriere della Sera, fazendo
perguntas sobre tudo, Gambetti, o jovem que Maria adora mais que a mim, Gambetti, o maior
dos céticos que já conheci, que me supera em muito com suas dúvidas, que fez da dúvida um
princípio e cuja dúvida começou a serrar em pedaços o mundo inteiro para de fato poder estudá-
lo, como me disse uma vez. Gambetti, que gostaria de mandar tudo pelos ares, mas que ao
mesmo tempo, vestindo apenas um pulôver vermelho, anda por Roma com os livros de Jean Paul
e Kleist e Wittgenstein debaixo do braço, horas a fio, obcecado em mandar tudo pelos ares e
serrar o mundo em pedaços. Gambetti, de outro lado, que janta com seus pais no De la Ville e
deixa seus pais em paz com suas idéias retrógradas, que só compra tudo na Via Condotti e cujo
quarto não é mais só decorado com gosto, mas dominado por um excesso de cultura. Gambetti, a
quem me apego tal como ele a mim. Gambetti, pensei sentado na poltrona, quintessência da
curiosidade intelectual bem como dos frios sentimentos calculistas, Gambetti, o jovem que
encanta o mundo a sua volta, pensei. Olhei a orangerie iluminada por dentro, um quadro que
jamais vira antes. Só alguns poucos hóspedes ainda restavam no parque lá embaixo, não
conseguia reconhecê-los. Teria sido meu dever apresentar-me a eles, pensei, descer e apertar-lhes
as mãos, disso não fora capaz, simplesmente deixara essa formalidade a minhas irmãs,
impingira-as a elas, aliás elas eram mais habilitadas do que eu para submeter-se a essa
formalidade, afinal são as filhas e sabem tratar com seus pares, pensei, o trato com seus pares eu
desaprendi há muito, disse comigo, no fundo fascinado pela orangerie iluminada somente pela
flébil luz de velas. O prólogo, por assim dizer, aproxima-se do fim, pensei, Spadolini ainda não
chegou e os outros, no fundo, também não me interessam, não tenho absolutamente nada a ver
com eles, pensei, não me dizem respeito, toda essa gente só me incomoda, eu a desprezo, ela me
despreza. De repente me pareceu que meu primo Alexander tivesse entrado no parque, sem sua
mulher, e eu pensei, claro que minhas irmãs enviaram também um telegrama a Alexander em
Bruxelas. Mas não pensara nele todo esse tempo, pensei, era Alexander que se dirigia agora à
orangerie, eu o observava, ele estendeu a mão a muitos diante da orangerie, naquele seu modo
que logo me conquistou novamente, elegante, ao mesmo tempo extremamente natural, e pensei,
Alexander, meu visionário, tem a mesma idade que eu, nos separamos trinta anos atrás, ele saiu
antes do tempo do internato, foi com seus pais para a Bélgica, mas nunca deixamos que nossos
contatos se interrompessem. O casamento com sua mulher, que primeiro considerei com
suspeita, como agora era forçado a admitir, aprofundou, ao contrário, nossa amizade, não nosso
parentesco, ao qual não ligávamos a mínima. Estive muitas vezes em Bruxelas, desde minha
primeira viagem a Londres, e depois sempre que ia a Paris, quando me hospedava em sua casa os
dois sempre me levavam para visitar seus amigos belgas no interior belga, nos arredores de
Bruxelas, em Ostende, introduziram-me à arte de Ensor e à arte de Delvaux, levavam-me aos
mais belos sítios nos arredores de Bruxelas. Mas sobretudo passei noites inteiras com Alexander
em seu gabinete, escutando seus discursos sobre deus e o mundo, como se diz. Nessas noites o
filósofo Alexander pintava-me na cabeça, por assim dizer, seu quadro filosófico, que depois não
me deixava em paz por semanas a fio. Com Alexander caminhei por Bruxelas até a casa de seus
amigos, que moravam todos em residências precárias, todos quase privados de meios, oriundos
dos mais diversos países europeus, principalmente da Polônia e da Tchecoslováquia, da Hungria,
da Romênia, eram os chamados europeus do leste, que haviam fugido de seus regimes para os
braços de Alexander, por assim dizer, na condição de refugiados políticos. Alexander travara o
primeiro contato com esses refugiados políticos num escritório ao lado da Gare du Luxembourg
em Ixelles e os livrara da prisão, do encarceramento a que estavam ameaçados por haverem
ingressado na Bélgica clandestinamente. Em suma, era seu dever ajudar esses refugiados
políticos. Ele era a pessoa justa para tanto. Como as pessoas logo vissem que ele de fato queria
ajudá-las, movido pelo seu excelente caráter e por nenhuma outra razão, ele foi por elas, como
se diz, assediado, dia e noite elas o importunavam, mas era isso mesmo que ele queria, pensei
defronte da janela do quarto de meu pai, observando-o. Chegando de Bruxelas, parecia que ele
viesse apenas de uma caminhada por trás da feitoria ou da vila das crianças, naturalmente nas
roupas mais simples, absolutamente discreto, nele não havia sombra de pretensão. Seu círculo
social com muita freqüência o chamava de louco, pois ele lhe parecia sempre natural demais,
não odiava suas formalidades, ao contrário de mim, mas sabia sempre enfrentá-las com ironia,
mas esse título lhe conferiram só por consciência pesada e porque não entendem sua filosofia,
pensei. A filosofia alexandrina, como a designo para mim, é porém dificílima, está acima das
condições corriqueiras da mente, pensei, requer, implacável, um espírito atento e incorruptível,
nunca estive à altura desse espírito, pensei, nisso sempre levei a pior, no espírito, minhas viagens
a Bruxelas, por mais belas que sempre tenham sido, naufragaram no espírito alexandrino, pensei.
Alexander lecionava, pensei, e eu não compreendia o visionário. Por um, dois minutos observei
Alexander, que obviamente será alojado no prédio principal, segundo pensei, e desci correndo ao
átrio e saí ao ar livre a seu encontro, que nesse meio tempo entrara na orangerie. Fazia anos que
não via Alexander, ele não vinha à Áustria, que não suportava mais pelas mesmas razões
políticas que eu, eu não fui mais à Bélgica, por causa das condições climáticas que lá imperam,
embora lá tenha passado semanas, meses até, tão belos e proveitosos, num ritmo que se manteve
constante por mais de duas décadas, alojado no quarto andar da casa na rue de la Croix, que meu
primo aluga já faz três décadas. Lá em cima, no quarto andar da casa de Bruxelas, eu escrevi
aliás algo sobre Pascal, que na época adorava como a ninguém mais, e sobre a poesia de Maria,
sobre os versos daquela poetisa que ainda não conhecia pessoalmente. Também sobre meu tão
querido Bohuslav Martinu escrevi um pequeno ensaio lá em cima no quarto andar, mas logo em
seguida joguei o ensaio fora. Alexander por assim dizer introduziu-me à sociedade de Bruxelas,
com ele caminhei meias jornadas a pé pelos magníficos bosques nos arredores de Bruxelas.
Nessa época ele tivera os primeiros ataques de sua ulterior doença crônica, como a chamam,
procurara combatê-la não só com cortisona, mas também com corridas de duas horas que fazia
duas vezes por semana na praia de Ostende, corridas cansativas, de fato excessivas para ele, em
muitas das quais tomei parte. Mas essas corridas na praia, ao ar salgado, que deveriam ter sobre
ele um efeito salutar, acabaram por não ser a terapia que ele esperava, encorajado por um
daqueles médicos belgas que, como se sabe, são os piores de todos, os médicos belgas têm fama
de ser os mais estúpidos de toda a Europa, como soube mais tarde. Meu primo vive já faz duas
décadas à base de cortisona e mais nada, como ele próprio sempre repete. Ao lado de meu tio
Georg e antes de meus anos em Roma, meu primo Alexander, embora da mesma idade, foi meu
professor de filosofia. Bem no momento em que estava para entrar atrás dele na orangerie, ele
saiu, não ficara mais que meio minuto na orangerie. Apertou minha mão na sua e por uns
instantes caminhamos de lá para cá diante da orangerie, de todo indiferentes àquela gente que
ainda estava diante da orangerie, que provavelmente conhecia a mim e a meu primo, o que
porém não nos interessava, porque no fundo ela não nos dizia respeito. Ele partira prontamente
de Bruxelas, disse Alexander, sozinho, porque sua mulher estava adoentada. Aliás ele estava
contente de caminhar agora comigo por uns instantes de lá para cá diante da orangerie, pois
tinha a intenção de recolher-se logo à hospedaria na vila lá embaixo que lhe havíamos, por assim
dizer, destinado, a fim de concluir um trabalho que trouxera consigo, uma petição, disse, que
tenho de endereçar ao governo belga e ao rei! a respeito de meus refugiados, que são tratados
feito animais pelo governo belga. O visionário perguntou-me por minhas irmãs e, depois de
ainda ter feito uma observação jocosa sobre os circunstantes, que por estes naturalmente não foi
ouvida, mas que, tivessem eles ouvido, os teria ofendido profundamente, os teria posto em cólera
contra nós, segundo pensei, desapareceu, sem acenar com uma só palavra ao acidente ou aos
corpos velados na orangerie. Ele acharia o caminho por si próprio, não precisava de ninguém, no
dia seguinte apareceria para o enterro, então regressaria instantaneamente a Bruxelas, com o
trem noturno, acrescentou ainda. Nem tive oportunidade de lhe dizer que gostaria que ele se
instalasse no prédio principal, obviamente bem perto de nós, sempre fora seu estilo retirar-se sem
nenhuma cerimônia, mas dessa vez batera um verdadeiro recorde nesse sentido. Ele não mudou,
pensei, continua o mesmo, meu querido visionário. Os circunstantes eram duas famílias de
Wiener Neustadt, como via agora, parentes meus por parte de mãe e a quem obviamente
cumprimentei, informei-me até se haviam feito boa viagem, num tom a meu entender amável
demais, que, em vista justo daquela gente, desagradou-me no mesmo instante, pois esse grupo de
pessoas me era em suma antipático. Essa gente estava ali como se exigisse agora de mim que me
dedicasse inteiramente a ela, como se por assim dizer ela fosse a única ali com quem eu tivesse
de me ocupar, mas é justamente disso que quero me livrar o mais rápido possível, pensei, e
desculpei-me com duas ou três palavras, de novo exageradas, pelo fato de ter de deixá-la sem
demora, em razão de um assunto inadiável. Simplesmente deixei o grupo de Wiener Neustadt
plantado ali e fui até à feitoria e depois ao pavilhão dos caçadores, sem saber o que lá procurasse.
Entrei no chamado escritório de meu pai, no qual eram arquivados todos os documentos relativos
a Wolfsegg, a contabilidade inteira. Esse escritório sempre foi um pesadelo para mim, como em
geral tudo o que, mesmo só de longe, lembre um escritório. O escritório de Wolfsegg tem o
cheiro que têm todos os escritórios e no qual, após alguns instantes, tenho invariavelmente a
sensação de que vou sufocar se não deixá-lo às pressas, mas agora eu até me sentara em nosso
escritório, coisa que jamais fizera; sentei-me à escrivaninha sobre a qual se achava ainda a
correspondência endereçada a meu pai. Faturas, cartas relativas à administração de Wolfsegg,
brochuras com propagandas de máquinas agrícolas. Odeio brochuras. Odeio a chamada
correspondência de negócios. Afastei a pilha de correspondência, de modo a poder assentar sobre
a escrivaninha uma folha de papel. Na folha escrevi em maiúsculas ALEXANDER, MEU VISIONÁRIO
bem no meio da folha, sem saber por que diabos escrevera na folha a palavra ALEXANDER. Sem
motivo, como me parecia. Estava, como se diz, com os nervos à flor da pele. Súbito me dei
conta, sentado na poltrona do escritório, que agora estava sentado afinal no meu escritório, não
no escritório de meu pai, acometido de um repentino cansaço, observando as paredes do
escritório, dessas paredes do escritório senti nojo. Das centenas de fichários de argolas nas
estantes das paredes, sobre os quais não conseguia ler mais que a palavra Wolfsegg repetida ao
infinito e, embaixo, a indicação do ano. Até que isso me pusesse quase louco, segundo pensei.
Meu pai foi também um pedante, pensei. Essa sua caligrafia asseada, como a chamam, sempre
me repugnou, essas frases de meu pai, primitivas em última análise. Ele se habituara a uma bela
caligrafia e a conservara, inferindo-se dela uma pessoa insuportavelmente pedante, pensei. E a
vida inteira ele procurou fazer de Johannes uma tal pessoa insuportavelmente pedante, durante a
vida toda trabalhou em seu duplo, que o sucederia. Êxito ele teve, disse comigo, em fazer de
Johannes seu duplo. Mas duplos são repugnantes, pensei. Essa bela caligrafia de meu pai foi
posta no papel por um cérebro atrofiado, pensei. Pela pessoa atrofiada que foi meu pai. Às vezes
meu pai quis romper essa atro fia, mas sem sucesso. A atrofia já ia avançada demais. Meu pai
tinha uma caligrafia típica do bom mestre, como as têm os professores de província, essa jeitosa
caligrafia embotada, pensei. Uma tal caligrafia denota também um caráter acanhado, reprimido.
Meu pai foi uma pessoa reprimida, uma pessoa reprimida sem clemência tanto por Wolfsegg
quanto por minha mãe, sua mulher. Essa caligrafia de professor primário foi o que restou de meu
pai, pensei, nada mais. Esses pensamentos me ocorreram porque sobre a escrivaninha de meu pai
dera com uma carta por ele iniciada, mas não concluída, endereçada a uma empresa de
fertilizantes químicos de Lustenau, em Vorarlberg, trata-se claramente da solicitação de uma
oferta, pensei. Um balconista escreve assim, pensei, mas não o senhor de Wolfsegg. Li diversas
vezes a carta inacabada de meu pai e nem por isso a carta tornou-se menos primitiva. Meu pai
não era dado a escrever cartas, mas escrever assim, pensei, é inadmissível a qualquer um. Mesmo
a forma como ele deixou jogado na escrivaninha o chamado material de escrita é deprimente,
pensei. Professores e balconistas deixam seu material de escrita jogado assim, mas não uma
pessoa de gabarito. Será que meu pai era uma pessoa de gabarito? perguntei a mim mesmo. O
cansaço me induziu a fazer mais algumas dessas perguntas insensatas sobre meu pai. Mas o que
é afinal gabarito? perguntei-me finalmente. A visão dos fichários de argolas, que remontam aos
primórdios do século, deprimiu-me profundamente. Você escapou desse mundo para nele ser
agora subitamente arremessado de cabeça por um golpe do destino, pensei. A expressão golpe do
destino, em toda sua asquerosidade e mentira, foi a gota d’água, como se diz, e eu me levantei e
andei até a janela. Quem olha da janela vê daqui, bem a sua frente, um quadro a óleo sobre
lâmina de zinco pendurado no muro da feitoria, o qual retrata a Virgem e o Menino. O pescoço
da Virgem nesse quadro é mais longo que qualquer outro pescoço que já vi pintado,
contradizendo cabalmente todos os dados da anatomia. O Menino Jesus do quadro é hidrocéfalo.
A visão desse quadro sempre me divertiu e me divertia também agora. Pus-me a rir alto, me era
indiferente se alguém me ouvisse ou não. Caecilia estava na soleira da porta, viera me chamar
para um jantar antecipado, como ela disse, preparado só para nós, em separado do bufê para as
visitas. Mas logo lhe pedi explicações por que instalara Alexander no vilarejo, pois justo
Alexander teria obviamente de pernoitar conosco no prédio principal, perguntei-lhe em qual das
hospedarias do vilarejo ela alojara Alexander, se temos Spadolini em casa, disse, é óbvio que
também Alexander seja instalado bem perto de nós, enquanto nos afastávamos do pavilhão dos
caçadores disse-lhe que era grotesco ter em casa o fabricante de rolhas para garrafas de vinho,
mas não Alexander. Ela não era capaz de me dizer onde instalara Alexander, realmente não o
sabia, assim disse várias vezes, o caminho inteiro lhe fiz censuras por causa de Alexander e disse
também que ela instalara no prédio principal justo aquela gente que me era insuportável, e
declinei dois ou três nomes de pessoas que já encontrara anteriormente no prédio principal, de
quem podia supor que lá pernoitariam, justo essas pessoas repulsivas, disse, da parte de mamãe,
você sabe que essa gente me dá nos nervos, e Alexander lá embaixo no vilarejo, isso é abjeto,
mal proferira a palavra abjeto e já a lamentava, não quis te magoar, disse então a Caecilia, mas
todo esse enterro já está me dando nos nervos, eu estava prestes a perder o controle, primeiro me
pus a rir do quadro da Virgem, disse, mas fora uma risada nervosa, mais até, doentia, disse, como
se quisesse com essa observação desculpar-me pelo abjeto dito antes a Caecilia, o qual me
escapara dos lábios, de fato de maneira inadmissível, pois sem dúvida não era só eu que estava
com os nervos em frangalhos, mas também minhas irmãs, e disse agora, quando chegamos ao
portal, no átrio já havia novos participantes do enterro, que lamentava tê-la ofendido, longe de
mim uma intenção dessas, na tensão extrema não me era mais possível portar-me como se
deveria exigir de mim, deveria eu dissera, então entramos no átrio e tivemos novamente de
apertar as mãos a esses recém-chegados e repetir as frases que já se tornaram hábito nos enterros,
antes que pudéssemos subir então ao primeiro andar para esse jantar antecipado. Pena, disse a
minhas irmãs, que Alexander não esteja à mesa conosco, seria sem dúvida muito mais divertido.
Como é que podemos deixá-lo sozinho numa das hospedarias lá embaixo? disse. Mas minhas
irmãs perseguiam com isso um objetivo preciso, jantar sozinhas comigo. Queriam agora, por
assim dizer sob seus olhos, assuntar meus propósitos. Mas de mim não arrancariam nada.
Enquanto lá de baixo podia-se ouvir que aqueles que pernoitariam no prédio principal
aglomeravam-se no bufê preparado na cozinha, aqui em cima comíamos mais ou menos o
mesmo a três, Caecilia aliás trancara, a meu pedido, a porta de acesso ao primeiro andar, para
que os lêmures não entrem, disse, ela caminhou sem protestar até a porta e a trancou. Não
suporto essa gente, disse, e então tornei a falar de Alexander, se bem que na verdade esperasse
Spadolini, que haveria de chegar a qualquer momento. Depois de minha última visita a
Wolfsegg, disse a minhas irmãs, não queria nunca mais voltar a Wolfsegg, disse nunca mais,
embora houvesse pensado por um bom tempo, mas o nunca mais causou maior impressão em
minhas irmãs, por isso o repeti várias vezes, minha casa é em Roma, não aqui, disse a minhas
irmãs, e que Alexander devia sem falta ter sido instalado ali em casa. Em vez de mandar lá para
baixo essa gente repulsiva de Wiener Neustadt e de Wels e Munique, mandamos Alexander lá
para baixo, isso era uma sordidez imperdoável, justo Alexander, disse várias vezes, e já pensava
se não seria o caso de descer ao vilarejo e trazer Alexander ali para cima, mas minhas irmãs nem
sequer sabiam em qual hospedaria ele se encontrava. Um desaforo, disse, estar aqui comendo do
bom e do melhor e expor Alexander àquela gororoba das hospedarias, disse. Quando na sua casa
em Bruxelas eu sempre fora recebido da melhor maneira, fora hospedado e sustentado com
extrema generosidade. Disse a minhas irmãs que elas haviam instalado Alexander de propósito
no vilarejo, porque minha relação com Alexander não lhes agradava, nunca lhes agradara, e
queriam me expor a uma desonra. Isso porém era certamente um exagero e provavelmente uma
suspeita insustentável de minha parte. Mandar uma pessoa de tanto valor como essa para o
vilarejo, disse. E alojar aqui essa gente abissalmente falsa e embrutecida de Wiener Neustadt e
Wels e Munique, por assim dizer dividindo parede-meia conosco, isso era infame. Enquanto não
parei de desfiar o rosário de Alexander a minhas irmãs, esse jantar íntimo a portas fechadas não
foi nada agradável, a nenhum de nós três. Minhas irmãs calavam e me deixavam falar e estavam
assim em vantagem, nesse pequeno jantar elas por assim dizer me deixaram cada vez mais meter
os pés pelas mãos, observaram esse processo e procuraram então tirar proveito dele, fazendo-me
várias perguntas acerca do futuro imediato e finalmente me cobrindo com uma quantidade dessas
tais perguntas a respeito do futuro de Wolfsegg. Mas não respondi a uma única de suas
perguntas, a bem da verdade porque não sabia as respostas, pois ignorava tanto quanto elas o
futuro imediato de Wolfsegg. Afinal todos nós sempre soubemos o que dispõe o testamento
paterno, depositado não só no cofre-forte de Wolfsegg, mas também com nosso advogado de
Wels. Nunca houve segredo a respeito desse testamento paterno, e portanto também nunca
pontos obscuros. Com a morte de meus pais e de meu irmão, Wolfsegg cabia automaticamente a
mim, por inteiro. Com a obrigação de outorgar a minhas irmãs seu devido quinhão, ou
simplesmente liquidar a partilha, e desde o princípio pensei mais em liquidar com elas a partilha
do que lhes outorgar Wolfsegg em quinhão. Elas queriam ouvir de mim o que pensava agora
sobre seu futuro em Wolfsegg, mas não lhes disse nada, deixei-as completamente no escuro, a
decisão cabe a mim, não a elas, pensei, e que no fundo, sou forçado a admitir, já me decidira pela
partilha, não pela outorga em quinhão, no instante mesmo em que recebera a notícia fúnebre.
Tinha ainda o telegrama em mãos e me decidi pela partilha, pensei, mal passara a vista pelo
telegrama, vejo-me de pé defronte da janela de meu apartamento em Roma olhando a Piazza
Minerva lá embaixo, na direção das janelas de Zacchi do outro lado até a cúpula do Panteão, e
dizendo comigo, sou propenso à partilha, obviamente, não à outorga em quinhão. Esse
pensamento de liquidar a partilha com minhas irmãs foi aliás o primeiro de todos os pensamentos
que me vieram à cabeça depois de receber o telegrama. Minhas irmãs me perguntavam
ininterruptamente o que haveria agora de se fazer, o que seria feito delas, e eu não dizia nada,
não me perguntavam com palavras, somente com toda sua afetação à mesa, pois na realidade o
tempo inteiro não disseram palavra, deixaram-me falar, como já descrevi. Por um bom tempo
não me dei conta da ausência de meu cunhado, para quem, como vi subitamente, também se
pusera, claro, um lugar à mesa, e perguntei pelo meu cunhado e Caecilia disse que ele descera ao
vilarejo, provavelmente a uma das tabernas, ela disse, ele, meu cunhado, nessa semana após o
casamento já se habituara, em vez de jantar com a família, a descer ao vilarejo. Isso é típico
dessa gente, disse, que não se submeta nem sequer a uma simples obrigação, nem sequer jante
com a família, se lhe agrada mais comer e se embebedar numa taberna, disse. Caecilia calou-se a
meu comentário, Amalia também. Mas não tem cabimento, disse, que esse sujeito faça o que
bem entenda, e perguntei a minhas irmãs por que não haviam impedido que meu cunhado
descesse ao vilarejo e por assim dizer se misturasse ao povo, justo num dia como aquele, disse.
Minhas irmãs calaram-se, sem resposta. O homem vai nos pôr a cara no chão no vilarejo, disse.
Simplesmente não dá, disse. É o cúmulo. Logo em seguida disse porém que podia entender, que
eu próprio não aturaria aquelas irmãs e aquela família, que agora nem existe mais, disse. Nem
existe mais, repeti, ao que minhas irmãs me lançaram um olhar de censura. Meu cunhado sentado
à toa nas tabernas, nos cobrindo de ridículo, disse. Quando voltar, vou lhe dizer umas verdades
na primeira ocasião, disse. Ao que Amalia disse que o fabricante de rolhas para garrafas de vinho
sempre retornava da vila só depois da meia-noite, quando fecham as tabernas. Caecilia não fez
comentários. Eu tirei minhas conclusões. Podia entender meu cunhado, disse, mas naquele dia de
hoje seu comportamento fora de todo modo descabido. Se mesmo quando nossos pais ainda eram
vivos ele descera à noite ao vilarejo para encher a cara, em vez de jantar com eles, perguntei,
Caecilia respondeu que sim. Mas o fabricante de rolhas para garrafas de vinho fora sarna que ela
própria arranjara para se coçar. Isso me trouxe à cabeça a tia do Titisee, e perguntei se ela já dera
as caras; a tia do Titisee chegara fazia tempo e já fora para a cama, disseram minhas irmãs,
alojada obviamente no quarto de mamãe. Sei, disse, no quarto de mamãe, claro. Mas é grotesco
que a tia do Titisee pernoite justo no quarto de minha mãe, pensei. Não a vira. Eu nem a vi,
disse. Pessoa mais descarada, disse. Nisso minhas irmãs avançaram sem piedade contra mim,
acusando-me de não ter me ocupado em nada dos que chegavam, de tê-los impingido a elas,
quando na verdade teria sido óbvio que eu os tivesse recebido, a todos, sem exceção, ouvi agora
de Caecilia, e Amalia a secundava. Todos haviam obviamente perguntado por mim logo ao
chegarem, antes mesmo de irem à orangerie a fim de por assim dizer prestar as últimas honras a
nossos pais e a nosso irmão, eu me esquivara dessas pessoas de maneira covarde, me escondera,
elas me haviam procurado ora aqui, ora ali, posto gente constantemente a minha procura, mas eu,
como sempre fora meu estilo, me esquivara aos cerimoniais naturalmente tediosos com um jogo
de esconde-esconde dos mais pérfidos. Mas talvez eu devesse ter ficado o tempo inteiro junto ao
portal para apertar a mão a todos e sempre repetir a mesma frase, disse. Era isso mesmo que
exigiam de mim, que ficasse com elas junto ao portal e recebesse os que chegassem, no rosto a
expressão austera condizente. Não dei a vocês esse gostinho, disse a minhas irmãs, não fui capaz
de tanto. Já em Roma me decidi não ficar plantado na frente do portal, disse a elas. Já em Roma
vi como se desenrolaria esse enterro, pavoroso, disse, com todas as atrocidades possíveis. Mas
passará, disse, todas as atrocidades sempre passam. Não era lugar nem hora de hipocrisia. A
coisa toda não tinha nada a ver com luto, só com teatro, disse. Nossos pais não são mais, na
orangerie jazem corpos votados à decomposição, disse, que não têm mais nada a ver, disse, com
as pessoas que uma vez encarnaram esses corpos. Tudo agora não passava de teatro. E nesse
teatro, disse, eu não tinha vontade de atuar no papel de protagonista a que todos assistem
boquiabertos, me faltava aquela vontade mínima imprescindível. Tudo, naturalmente, foi dito por
nós em voz baixa, para que não fôssemos ouvidos, para que não se compreendesse o que
dizíamos, no caso de alguém estar nos bisbilhotando, coisa bem possível, pensei. Vez por outra
batiam à porta trancada, mas depois as pessoas, embora com certeza não entendessem nosso
modo de agir, deixaram de bater à porta. Afinal o jantar a três era só um pretexto para nós três
podermos ficar a sós, imperturbados, como minhas irmãs provavelmente pensaram, o que porém
não foi o caso, pois o constante bater à porta mal nos deixou em paz, e no fundo nós três, como é
natural, estávamos agitados, pode-se imaginar. Umas oitenta pessoas já haviam de ter chegado e
pernoitariam aqui, ouvi de minhas irmãs, e eu disse que a maioria tomava parte no enterro só
com o objetivo de tirar umas férias em nossa bela paisagem, esse o único objetivo, é a estação
apropriada, disse, e que para todas elas esses dias livres também eram praticamente de graça,
pois as contas de toda essa gente quem paga afinal somos nós, disse, são os cofres de Wolfsegg
que pagam. Teria pago com gosto a toda essa gente, disse a minhas irmãs, umas férias noutro
lugar qualquer, só para não ser obrigado a vê-las, e agora as tenho em casa, não dissera, agora as
temos em casa, dissera, agora as tenho em casa, bem no estilo de proprietário exclusivo. Vamos
ser francos, disse, enterros sempre foram só um teatro. Logo em seguida, porém, percebi que
fora longe demais com minhas declarações e que haveria preferido não as ter feito, que haveria
preferido não ter dito uma única palavra, e dissera tantas palavras, tantas palavras insensatas,
fazendo de fato um papelão. Quem me ouve falar acredita que eu seja o pior caráter do mundo,
pensei, mas certamente ainda há muitos piores. Assim, tentei de súbito desviar a atenção de meus
acessos de raiva, sobretudo contra os participantes do enterro instalados em casa, e disse a
minhas irmãs que Roma era tudo para mim, que dali em diante só me era dado viver em Roma.
Nisso elas despertaram de repente, sem que me houvessem compreendido. Sério, disse, só de
pensar em Roma já não vejo a hora de estar em Roma novamente, e estou aqui só faz algumas
horas. Que de manhã eu ainda estivesse em Roma, isso é o que me parece o mais inverossímil,
disse. E, em seguida, se elas haviam falado ao telefone com Spadolini. Disseram que sim, ele
telefonara de Roma, que obviamente viria, logo, ainda naquela noite, nem ele próprio sabia
direito como, mas viria ainda naquele dia a Wolfsegg. Então todos nós esperávamos somente
Spadolini, o arcebispo, o amante de nossa mãe, o ilustre. Gambetti também sempre me censura
por não me controlar, disse a minhas irmãs, mas sempre fui o incontrolável, disse, o
imprevisível, que sempre contou com que entendessem sua falta de controle. Sua
imprevisibilidade. E a falta de consideração que vai junto. Mas isso naturalmente é exigir muito,
disse a minhas irmãs. Mas em Roma eu sou outro, disse, lá não fico tão agitado, nem tão
incontrolado, nem tão imprevisível também. Roma me acalma, Wolfsegg me exaspera. Em
Roma meus nervos se acalmam, embora seja a cidade mais agitada do mundo, em Wolfsegg
porém estou sempre agitado, embora aqui esteja sempre tão calmo. Sou vítima desse paradoxo,
disse a minhas irmãs. Em Roma tinha um modo todo diverso de me exprimir, disse a elas,
também falava com todas as pessoas de um jeito todo outro, isso foi Gambetti quem me disse
uma vez, que eu, retornando de Wolfsegg a Roma, a princípio tinha sempre um modo de falar
muito agitado, que só tinha quando havia estado em Wolfsegg. A culpa era dos meus, retrucara a
Gambetti, que achava que em Wolfsegg meu pensamento sempre saía do ritmo, do ritmo romano
por assim dizer. Gambetti dizia muitas vezes que, quando eu retornava de Wolfsegg, estava
irreconhecível, com uma pessoa como aquela que eu era quando retornava de Wolfsegg a Roma
ele jamais teria podido travar amizade, dizia, pois retornando de Wolfsegg eu era completamente
outro, oposto àquele romano, por assim dizer. De fato ele só podia conviver com o romano, não
com o de Wolfsegg. Eu precisava sempre de vários dias para, regressando de Wolfsegg, tornar a
fazer de mim a pessoa romana que a ele, Gambetti, meu aluno, era útil, de quem ele podia ser
amigo e aluno, parceiro de conversa, pois da pessoa de Wolfsegg ele não podia ser nada disso.
Wolfsegg era prejudicial a mim, dizia sempre Gambetti, disse a minhas irmãs. Bastava que
passasse dois ou três dias em Wolfsegg e perdia o equilíbrio por várias semanas, dizia Gambetti,
disse a minhas irmãs. E nunca soube o que é que sempre me fez perder o equilíbrio em
Wolfsegg, a paisagem ou as pessoas ou quem sabe o ar, que é porém o melhor que conheço,
disse, o ar de Wolfsegg é o melhor de todos. São mais as paredes ou as pessoas? perguntei, eu
não sei. É Wolfsegg como um todo, disse. Mas não só pensar tudo isso, senão também proferi-lo,
dizê-lo a elas, era mesmo um despropósito em vista do fato de que agora eu era o herdeiro de
Wolfsegg da noite para o dia e entrara na posse de Wolfsegg, como elas haviam de pensar, não
que entraria na posse, mas que já entrara, pensei comigo. Elas tinham de levar a sucessão a sério,
na verdade também não imaginavam outra coisa senão que ela fosse seguida por mim. Em todos
os detalhes e com todas as conseqüências. Sem levar em conta que elas afinal não tinham ouvido
a maior parte do que eu pensara, e portanto que não tinham podido seguir o conjunto de meu
raciocínio, súbito lhes disse agora em voz alta, mas não sou fazendeiro, não sou de me sentar no
trator como papai. Não sou homem de tratores nem tenho vontade de bater boca com gerentes
de armazém por um saco de fertilizante artificial cheio só até a metade, mas que paguei por
inteiro. Não sou Johannes, disse. Meus pais se esqueceram de que não sou Johannes. Quisera
me estender ainda em alguns pormenores sobre esse meu último comentário, mas batiam à porta
com tamanha insistência que Caecilia levantou-se e foi até a porta para destrancá-la. O fabricante
de rolhas para garrafas de vinho queria entrar. Em silêncio sentou-se à mesa, no lugar posto para
ele, você se enganou, pensei, ele não desceu ao vilarejo, não foi às tabernas. Meu cunhado estava
de fato sóbrio e sua mulher lhe pôs no prato uma fatia de carne e serviu-lhe vinho. Ele estivera na
casa dos jardineiros o tempo inteiro, disse agora meu cunhado, desculpando-se, reclinara-se por
puro cansaço na casa dos jardineiros e lá ferrara no sono. Afinal às três da manhã ele já estava de
pé, pelo menos era o que dizia, porque minhas irmãs o mandaram ao vilarejo em busca dos mais
diversos artesãos e comerciantes, tudo em conexão com a tragédia. Além disso lhe viera de
repente uma dor de cabeça. O frescor da casa dos jardineiros lhe dera algum alívio. Se tudo
andava bem, perguntou, comendo igual se tivesse uma fome de lobo, quando na verdade só duas
ou duas horas e meia antes comera comigo na cozinha, pensei. Porque não conseguisse mais
suportar a maneira de comer de meu cunhado, e porque ele se calasse, levantei-me e saí. Pensei,
se me afasto de minhas irmãs e de meu cunhado, evito distribuir insultos, e desci ao átrio, sem
me preocupar com as pessoas que se achavam por ali e logo se voltaram para mim. Fiz cara de
luto, como se diz, e entrei na capela com todo alarde e me sentei num dos bancos do meio. Na
capela estava fresco e agradável. Que por tal razão seja o mais das vezes utilizada como
despensa, é compreensível, pensei. Com total inadvertência ajoelhei-me no banco, quando dei
pela coisa tornei a sentar-me no banco. De repente tive a sensação de que a tia do Titisee entrara
na capela. Virei-me, não me enganara. Consigo ela tinha sua eterna acompanhante, uma de suas
sobrinhas, doze ou treze anos de idade. A tia do Titisee estava velada, por amor ao finado irmão
vestira-se quase completamente de preto. Como me senti observado por ela de maneira sórdida,
levantei-me e saí novamente da capela, não sem beijar a mão que a tia do Titisee estendera-me
de suas vestes. Atravessando o átrio e o parque, caminhei sozinho até a orangerie. Dois
caçadores velavam os mortos. Pareceu-me que se intensificara, nesse meio tempo, o cheiro de
decomposição. Ergui as mortalhas negras para verificar os blocos de gelo sob os caixões,
claramente os blocos de gelo haviam sido renovados nesse meio tempo. Só pudera permitir-me
um breve relance aos rostos dos mortos, não suportara mirá-los por mais tempo. Os dois jovens
caçadores assumiram, como se diz, uma postura militar quando entrei na orangerie, isso me foi
repulsivo. Ao sair achei a coisa ainda mais ridícula que antes, mas não tinha possibilidade de
alterar nada de nada em todo esse cerimonial repugnante, que minhas irmãs, sobretudo Caecilia,
dispuseram tão meticulosamente segundo as prescrições, e tudo o que vinha prescrito no
chamado plano de enterro elas tampouco haviam aberto mão de executar nos mínimos detalhes.
Por outro lado, pensei ao mesmo tempo que essa cerimônia convinha plenamente a Wolfsegg e
que não faria sentido destruí-la. Tudo aqui está conforme, pensei, quer cause escândalo ou não.
Mas sem dúvida os dois caçadores ao lado do catafalco eram figuras cômicas, como soldados de
chumbo equipados por um figurinista com queda pelo teatro. Os jardineiros, enquanto estive ao
lado dos caixões, trocaram a água das cubas de flores. Outra vez pude ver com clareza a
diferença entre os caçadores e os jardineiros, os caçadores eram os ridículos, os artificiais, os
jardineiros os naturais. Isso outra vez logo desencadeou em mim uma reflexão comparativa que,
de todo indiferente ao fato de que estivesse ao pé dos corpos velados, desenvolvi de imediato
com o maior prazer, o que são os caçadores à diferença dos jardineiros, o que representam em
sua diferença. De fora, disse comigo, não é reconhecível o que penso, e muito menos que estou
refletindo sobre a diferença entre caçadores e jardineiros, sobre o modo de ser dos caçadores e
sobre o modo de ser dos jardineiros e como se comportam mutuamente esses dois modos de ser.
As pessoas pensam que meus pensamentos giram em torno do enterro, pensei, mas não pensei
minimamente no enterro enquanto estive ao pé dos caixões, bem diante dos cadáveres. Os
jardineiros são gente de nervos sensíveis, pensei, os caçadores representam o mundo brutalizado.
Muito do fascínio de Wolfsegg vem naturalmente do fato de se pôr uns em contato com os outros
sob as contingências de Wolfsegg, pensei. Wolfsegg exerce grande fascínio naqueles que estejam
dispostos a ver nela somente esse fascínio. As pessoas sempre vêm para cá e dizem, mas que
grande, que singular fascínio Wolfsegg exerce nelas. Wolfsegg também pode ser vista assim,
como a propriedade mais fascinante que se possa imaginar. Mas para mim essa maneira de ver
não é mais possível, nunca me foi possível, pensei. Não posso mais tê-la. Tornei-lhe inviável,
pensei ao sair. O parque estava deserto. O resto da família ainda está jantando, pensei erguendo a
vista às janelas sobre a sacada. Também eles estão em três, disse comigo, meu cunhado, Caecilia,
Amalia. E provavelmente se trancaram. Essa contínua irritação, como faço para me livrar dela?
perguntei comigo. Meu comportamento decerto ofende a todos, não só a minhas irmãs, não só a
meu cunhado, a todos eu ofendi, pensei. Mas na verdade não sou o ofensor que eles me chamam
desde criança, pensei, mas logo em seguida, sou, sim, esse ofensor. A Gambetti eu disse, agora
vou discutir tudo com minhas irmãs com a máxima cautela, vou ser obrigado a incluir meu
cunhado nessas discussões, vou abordar tudo com cautela, Gambetti, dissera a ele em Roma, e o
mesmo também a Zacchi, e também a Maria repeti seguidas vezes que agora em Wolfsegg
haveria de proceder com cautela, mas não procedi com a mínima cautela até agora, pensei, pelo
contrário, não tomei nada em consideração, ninguém, e que não era de admirar que eles me
achassem inconsiderado, sórdido mesmo, pela minha conduta, que nada mais é senão
inconsiderada. Mas simplesmente não pude me conduzir de outra maneira, disse comigo,
simplesmente não tive outra possibilidade com eles. Não estou à altura de toda essa situação,
aliás dessa situação não sou o culpado, não a provoquei, pensei. Nesse momento chegou
Spadolini. Logo o conduzi a minhas irmãs lá em cima, Caecilia acompanhou-o até o quarto de
meu pai, onde ele, expressão sua, queria fazer a toalete. Enquanto isso mantive-me na biblioteca
superior esquerda, ela havia sido fechada e eu recolhera de Caecilia as chaves de todas as nossas
bibliotecas, amanhã de manhã vou abrir todas as cinco bibliotecas, pensei, antes mesmo que as
chamadas cerimônias fúnebres tenham início. Sentara-me com o Siebenkäs na poltrona da janela,
mas naturalmente não tinha a calma necessária para tanto, Spadolini também não me saía da
cabeça, a impressão inusitada que de novo ele causara em mim era mais forte que o Siebenkäs,
pus o livro de lado. Que o Siebenkäs se encontrasse nessa biblioteca eu sabia, aqui eram
mantidos os livros do período de Jean Paul, em algum momento um de nossos ancestrais pusera
em ordem os livros das bibliotecas, ninguém mais sabe dizer quem. Mas eles deviam ainda ter
tido cultura, pensei, os de agora nem cultura têm. Mas o que significa isso, ter cultura? perguntei
comigo. Se dizemos, esses têm cultura, aqueles não, isso não faz sentido, pensei, dizemos isso
sem pensar. Spadolini trazia somente uma pequena mala de viagem na mão, pensei sentado na
poltrona da janela. Então ouvi que ele tomava uma ducha, pois a biblioteca confina com o quarto
de meu pai, imaginei-o, Spadolini, sob o jato d’água, Spadolini o hedonista, conheço apenas
Spadolini o hedonista, pensei. Estiquei as pernas, apaguei a luz e pensei em meu próximo
encontro com Maria, a quem dera um manuscrito para exame. Como todos meus manuscritos,
este foi escrito com desleixo, quando voltar a Roma, ela irá discuti-lo comigo, dissecá-lo, ao que
o jogarei fora, como tudo de mim que já dei para que ela lesse. Joguei fora manuscritos mais do
que os guardei, pensei, os que guardei não posso mais olhar, eles me deprimem, refletem o que
pensei só de maneira ridícula, não vale a pena falar. Meus manuscritos não valem nada, disse
comigo, mas não desisti de tentar seguidamente pôr as coisas por escrito, de por assim dizer
profanar o espírito, pensei. Maria é a incorruptível que trata meus manuscritos como eles
merecem, pensei. Tendo jogado fora o manuscrito por ela examinado, vem-me o alívio, pensei.
Então abraço-a e ficamos os dois a olhar o manuscrito arder em sua estufa. Este é sempre, junto
de Maria, um momento culminante, um estado de ventura, pensei. Ninguém além de Maria está
em condições de me esclarecer que meus manuscritos não valem nada, que devem ser lançados
ao fogo. Aquele que profana a filosofia, ela me definiu uma vez, que peca contra o espírito. Ela
só queria fazer uma brincadeira, mas tomei essa declaração de sua parte como a amarga verdade.
Mas não desisti, disse comigo. De novo já tenho algo na cabeça. Provavelmente se chamará
Extinção, pensei, tentarei com ele extinguir tudo o que me vier à cabeça, tudo o que estiver
escrito nessa Extinção será extinto, disse comigo. Criara gosto por esse título, desse título
emanava para mim um grande fascínio. Onde ele me ocorrera, não sabia mais. Creio que seja de
Maria, que uma vez me definiu como alguém que extingue. Sou alguém que extingue, ela
afirmou. E aquilo que ponho no papel é aquilo que extingo. Em Roma farei a tentativa de
escrever a Extinção, mas ela me absorverá por um ano e não sei se terei forças para ficar por um
ano à disposição exclusiva dessa Extinção, pensei. Para concentrar-me nela. Vou escrever a
Extinção e continuar a debater com Gambetti a respeito da Extinção, e com Spadolini e Zacchi e
naturalmente com Maria, pensei, sem que saibam que tenho a Extinção na cabeça, discutir com
eles tudo o que respeite à Extinção. Minha saudade de Roma era maior que tudo o mais. O que
mais gostaria era de retornar logo a Roma com Spadolini, pensei. Doía-me ter de me dar uma
resposta negativa. Spadolini regressa amanhã de manhã a Roma, você fica em Wolfsegg. Essa é
sua sentença de morte, pensei. Jantar com Maria, disse comigo, isso é que sim, falar com ela de
seus novos poemas. Escutá-la. Confiar nela. Servir-lhe vinho. Tomei de novo o Siebenkäs nas
mãos, abri-o, acendi a luz e pensei se não fora um engano, um completo equívoco, ter dado o
Siebenkäs a Gambetti. Fiz bem em lhe ter dado O processo, mas não em lhe ter dado o
Siebenkäs. E em vez de Esch ou A anarquia, deveria lhe ter dado outra vez Schopenhauer. Agora
já terá se entranhado no Siebenkäs, para saber o Siebenkäs de cor e salteado, pensei. Imaginei-o
em seu gabinete, ao refúgio de seus pais, podendo entregar-se por inteiro à sua paixão, a
literatura alemã, sem que ninguém o importune. E nada mais tendo na cabeça senão serrar o
mundo em pedaços e lançar tudo pelos ares. Talvez um dia ouça um terrível estrondo, pensei, e
Gambetti terá de fato lançado o mundo pelos ares, que portanto ele levava a sério suas idéias.
Até agora ele se limitou a sonhar que lança o mundo pelos ares, que o serra em pedaços e o
manda pelos ares. Mas gente como Gambetti, disse comigo, logo me corrigi e disse, pessoas
assim, um dia realizam o que apenas fantasiaram durante décadas, quando lhes é dada a
possibilidade para tanto. Gambetti não é somente um fantasista nato, é também o realizador nato
de suas fantasias. Espero sempre o grande estrondo, pensei, as pernas eu esticara, apurei os
ouvidos e escutei Spadolini sob o jato d’água. Na biblioteca havia milhares de moscas presas,
todas mortas, jaziam no chão, acumuladas por muitos anos em várias pilhas debaixo de meus
pés. Ninguém jamais as varrera do caminho, não punham os pés na biblioteca, agora tenho essas
chaves na mão e vou abri-las, pensei, mas não hoje, hoje estou muito cansado, amanhã, bem
cedinho, antes mesmo do romper do sol. Vou abrir para sempre todas as cinco bibliotecas,
pensei, e com esse pensamento me levantei e me acheguei à janela e olhei a orangerie do outro
lado. Para Maria essa visão seria absolutamente majestosa, pensei, inspiração não só para uma
poesia. Os jardineiros continuavam a ir da feitoria à orangerie carregando novas coroas e
buquês, hoje não param de trabalhar, pensei. A noite inteira terão o que fazer. A cena era teatral
como quê. E porque estivesse certo de que Spadolini faria toalete pelo menos por mais meia
hora, saí da biblioteca e desci ao átrio. Eram oito e meia, não havia ali mais ninguém. Entrei na
capela, a tia do Titisee recolhera-se a seu quarto fazia tempo. Sentei-me exatamente no lugar em
que antes se sentara a tia do Titisee com sua jovem e, devo dizer, bela acompanhante. A bruxa e
a donzela, pensei, a protetora e a protegida, e vice-versa. Ajoelhei-me novamente, com a igual
inadvertência de antes, tornei a sentar-me e pensei que os príncipes da Igreja fazem todos um
jogo sujo, pois consideram a Igreja somente como um monstruoso espetáculo universal em que
desempenham os papéis principais. E todos esses príncipes da Igreja se acotovelam até a boca de
cena e se pavoneiam. Digam o que disserem, naturalmente sabem muito bem que se trata do
maior, do mais mentiroso espetáculo já encenado. Spadolini só atua sempre na ribalta, sempre
bem perto do protagonista, o papa. Mas não tão próximo que possa com ele morrer e cair. Ele
sobreviveu a três papas, pensei ajoelhado no banco da capela, e visto que o presente também
sofre, como se sabe, de uma doença mortal, sobreviverá também a esse quarto e voltará à cena
ainda mais ilustre que antes. Spadolini é alguém completamente obcecado pelo espetáculo
eclesiástico. Primeiro pensei, tenho tempo para caminhar até a feitoria, ver os estábulos, coisa
que, quando faço, faço sempre a essa hora, quando os animais se aquietaram por completo, mas
depois pensei, não posso ofender Spadolini deixando-o a sós, a princípio quisera também descer
ao vilarejo para procurar Alexander, mas disso logo desisti, pois não queria me expor aos olhares
dos aldeões, não naquele dia, não naquela noite. Uma vez em Bruxelas promovi o encontro de
Spadolini e Alexander, mas o experimento, que consistia em fazer que os dois conversassem, o
príncipe da Igreja e o visionário, até se porem de acordo, não teve sucesso, eu por assim dizer
apostara comigo mesmo e perdera a aposta. Uma hora Spadolini era superior a Alexander, outra
hora Alexander a Spadolini, fora um prazer escutá-los, ver um dando quinau no outro, a batalha
espiritual, como quero denominá-la, terminou em empate. Spadolini declarou muitas vezes que
queria encontrar de novo Alexander, e Alexander, por sua vez, que também lhe agradaria rever
Spadolini. Infeliz circunstância, essa, pensei, que Spadolini, o príncipe da Igreja, pernoite em
nossa casa, e Alexander, o visionário, tenha sido banido ao vilarejo lá embaixo pelas minhas
irmãs. Por um instante ocorreu-me a idéia de, estando Spadolini pronto, descer com ele ao
vilarejo para procurarmos juntos Alexander, mas outra vez desisti dessa idéia, não podia esperar
que Spadolini, já nessa primeira hora, antes mesmo de haver comido sequer uma garfada, se
pusesse comigo à procura de Alexander. E de resto Spadolini teria recusado minha proposta em
deferência a minhas irmãs, que nesse meio tempo sentaram-se no chamado salão à espera de
ninguém menos senão Spadolini, Sua Excelência vinda de Roma. Por um instante me pareceu
perverso estar sentado justamente na capela em que estive sentado uma vez com Maria, depois
de um passeio nos bosques, três anos atrás me encontrara uma vez aqui com Maria, quando ela
regressava de Paris a Roma, e eu a convidara. Meus pais estavam de viagem, minhas irmãs,
quando meus pais voltaram e havia muito eu já estava de volta a Roma com Maria, contaram a
eles coisas absurdas, mentirosas, pensei agora. Maria, como é natural, ficou entusiasmada com
Wolfsegg, o melhor ar que já respirei, ela disse, com ela fiz dois longos passeios pelo Hausruck,
um deles até Haag, de onde voltamos de trem. Johannes nos pegou em Lambach. De Johannes
Maria disse que era uma pessoa simplória, mas amável. As noites as passávamos no vilarejo, na
taberna Brandl, que sempre serena os nervos, mas uma vez estivemos também em Ottnang, no
Gesswagner, na modesta locanda que tanto amo, e Maria se tornara incrivelmente loquaz, logo se
familiarizou com os patrões, com todos os clientes, foi algo absolutamente extraordinário, pois
ela sempre teve dificuldades no contato com a gente simples, mais que eu, que no fundo nunca as
tive, pelo menos não com a gente simples, com os proletários o caso é outro. Ela se entendeu
bem sobretudo com a patroa do Gesswagner e contou-lhe até algo de sua vida, coisa que do
contrário jamais fazia. Ficou claro que Maria tivera uma infância semelhante à da patroa do
Gesswagner, a quem sempre vi bem-disposta. Wolfsegg, disse ela então, me agrada, o que não
me agrada é sua gente. Tenho ainda no ouvido essa frase proferida por ela. Não houve jeito de
fazê-la vir a Wolfsegg uma segunda vez. Não é do meu feitio, ela disse. Em Wolfsegg não
escreveu nada. Nem nas semanas que se seguiram à visita a Wolfsegg. Wolfsegg não é lugar para
poesia, ela disse. Não para a poesia dela, pensei agora, e levantei-me e saí da capela. Spadolini já
estava com minhas irmãs. Fora-lhe preparada até uma sopa quente pela cozinheira chamada à
cozinha, serviram-lhe um assado fumegante. Meu cunhado estava sentado a sua frente, siderado,
como logo vi, boquiaberto, essa é a verdade. Nunca em sua vida sentara-se frente a frente com
um autêntico arcebispo, uma Excelência em carne e osso, e foi condenado ao silêncio durante
todo o tempo que se seguiu a meu ingresso. Sentara-me ao lado de Caecilia, bebi um copo de
vinho, e mais um segundo, e senti verdadeiro prazer em escutar Spadolini, como ele era capaz de
iniciar uma conversa e conduzi-la. É como se seus pais, nos disse ele, fossem entrar a qualquer
momento. Como se sua mãe fosse entrar a qualquer momento. De fato, como se pode imaginar,
nada mudara desde a morte de meus pais, não se notava a mínima mudança, quando na verdade
tudo já mudara dentro de nós. E também dentro de Spadolini, era natural. Ele estimava muito
nosso pai, pessoa nobre, disse, como italiano ele podia permitir-se esse nobre, e o modo de
pronunciar esse nobre era característico dele, acentuando por igual o o e o e, ciente da palavra
pronunciada a contento, olhando em torno, saboreando o efeito. A meu pai ligara-o uma amizade
de toda uma vida, outra vez uma amizade nobre. Na boca de qualquer outro, uma tal expressão
seria insuportável, pronunciada por Spadolini não era menos que excelente. Nosso pai ele
conhecera ainda antes que nossa mãe, num jantar na Gentzgasse em Viena, no palácio do
embaixador irlandês, logo após a guerra, como disse, num tempo de extrema miséria. Entre todos
os convidados, nosso pai lhe chamara imediatamente a atenção como o mais fora do comum,
como um caráter distinto, pessoa da melhor educação. Era ele com quem mais preferia
conversar, nosso pai logo o convidara então a Wolfsegg, naquela época eu ainda era conselheiro
junto à nunciatura, disse Spadolini. Wolfsegg o fascinara, nunca antes vira algo parecido em sua
vida, edifícios de tal elegância e imponência austríacas, senhoris e ao mesmo tempo naturais,
pessoas tão cordiais e uma comida primorosa. Minha mãe o recebera como a um filho, disse
Spadolini. Nosso pai, por ocasião de uma viagem a Palermo, visitara-o em Roma com Johannes,
ele levara os dois a passear por Roma, mas sempre com Wolfsegg na cabeça, com sua
manhificência. Quando os italianos dizem magnificência, Herrlichkeit, soa como Ehrlichkeit,
honestidade, várias vezes Spadolini acreditou dizer Herrlichkeit e disse sempre Ehrlichkeit, isso
me divertiu, e a minhas irmãs também, mas não porque parecesse ridículo, senão porque era
agradável, encantador. Spadolini tem, além disso, uma fala altamente musical, pensei. Descreveu
ele nosso pai como uma pessoa cordata, que foi para os seus tudo o que havia de bom, que nunca
quis aparecer, desdobrou-se pelos seus e se fez benquisto onde quer que tenha ido. Os cavalos,
disse Spadolini, eram seus animais preferidos. Era com os animais que o pai de vocês estava
mais feliz, se pudesse apenas estar na companhia de seus animais. E caçando, disse Spadolini.
Muitas vezes ele saíra para caçar com nosso pai, ainda que nossa mãe sempre ficasse receosa. Os
caçadores são imprevisíveis, unberechenbar, disse Spadolini com um r duplo ou mesmo triplo
no final, unberechenbarrr. Nosso pai era um autêntico príncipe, um autêntico aristocrata. E uma
pessoa perspicaz. De grande cultura. Spadolini via um pai diverso do que eu via, diverso também
do que viam minhas irmãs. Cada um vê sempre alguém diverso, ainda que descreva o mesmo,
pensei. Tantos são os que descrevem quantos são os que vêem a mesma pessoa, cada um de uma
perspectiva diversa, de um prisma diverso, e portanto tantas são as visões de uma única e mesma
pessoa, disse comigo, e Spadolini tinha uma visão diversa da nossa, incomum com certeza,
pensei, fora do comum, que enaltecia nosso pai, sem dúvida também em respeito a sua morte,
muito mais do que ele pudesse de fato pensar dele, mesmo durante a presente narrativa. Nosso
pai era mais perspicaz que os outros, dotado de tantos interesses como poucos de sua classe.
Nosso pai era a pessoa mais sossegada por um lado, a mais desassossegada algumas frases
adiante. Um exemplo de pessoa decente. Um grande senhor. Um filósofo. Uma pessoa modesta.
Uma pessoa generosa. Alguém que sabia dar coesão, razoável, bom, e ao mesmo tempo contido
e benquisto. Spadolini não poupou epítetos elogiosos a respeito de meu pai. Em Cairo eles se
encontraram, escalaram juntos a pirâmide de Quéops, disse Spadolini, equilibrados em tábuas de
madeira cada vez mais altas, até se sentirem exaustos. De Alexandria eles nos enviaram uma
carta que jamais chegara. Em Roma caminhava sempre com nosso pai na Via Veneto, pois nosso
pai adorava a Via Veneto. Nosso pai adorava Roma, afirmou Spadolini. Era tão bom sair para
beber vinho com seu pai, disse. Seu pai era uma pessoa filosófica, disse. Ele tinha uma grande
cultura política. No fundo pensava que tudo aquilo que Spadolini dizia agora de nosso pai,
enquanto comia seu jantar em nossa presença, era falso, tudo aquilo que Spadolini disse agora de
nosso pai é completamente falso. Eu dizia exatamente o contrário de nosso pai, que não foi nem
uma pessoa razoável, nem contida, nem filosófica, e assim por diante. Spadolini desenhou um
pai que não existiu, que agora porém ele pensava ter de estar na cabeça de Spadolini, pensei. Mas
embora seja tudo falso aquilo que Spadolini disse de nosso pai, pensei, o ar é porém de
autenticidade. Com muita freqüência ouvimos dizer de uma pessoa absurdos deslavados e
inverdades e mentiras deslavadas, pensei, e acreditamos na autenticidade, na pura verdade das
coisas ditas daquela pessoa, porque as disse uma pessoa convincente como Spadolini. Mas nesse
caso Spadolini não me convenceu, manifestamente ele traçou de nosso pai um retrato que queria
ter dele, não aquele que correspondia à verdade e à realidade, pensei. Nosso pai era
completamente diverso daquele que Spadolini acabara de esboçar, pensei. O pai spadoliniano era
aquele idealizado com a maior naturalidade por Spadolini, e idealizado por Spadolini não com
mau gosto, pensei, pois Spadolini expusera com tamanho charme seu esboço de nosso pai, sem
descurar do tom compungido, agora oportuno em vista do fato de que nosso pai morrera havia só
dois dias, que o efetivo mau gosto de sua falsificação não podia vir à luz, como ele próprio sabia,
pois era inteligente demais para não perceber como era de mau gosto, em última análise, o retrato
que nos pintara de nosso pai, que era sem dúvida decente, como disse Spadolini, sossegado,
provavelmente também um senhor, mas todo o resto não. Minhas irmãs, porém, bebiam as
palavras de Spadolini, como se estas não proclamassem outra coisa senão a verdade e o fato,
como demonstravam seus rostos. Spadolini evitou por muito tempo passar a falar de minha mãe
e estendeu-se longamente sobre meu pai, meu pai, embora no fundo não fosse interessante o
suficiente para que ele discorresse por tanto tempo e em tamanhos detalhes, era contudo um meio
para desviar-se de minha mãe, da amante, como tive de pensar. E no entanto Spadolini sabia
muito bem que, enquanto falava de nosso pai, nós todos aguardávamos que ele falasse de nossa
mãe. Com nosso pai ele fizera certa vez uma excursão de alpinismo ao Ortler, disse, lá nosso pai
lhe salvara a vida ao lhe jogar no último momento uma corda pela parede rochosa, bem no último
momento, disse Spadolini. Não o incomodava nem um pouco comer sozinho enquanto nós só
olhávamos. Pensávamos apenas se a comida estava a seu gosto. A cozinha desdobrara-se a valer
por Spadolini, não lhe fora servida uma refeição rápida, senão uma preparada com esmero, como
logo pude ver. Em Sitten, na Suíça, portanto no vale do Ródano, ele entrou com nosso pai numa
pequena igreja, numa igrejinha românica, como disse Spadolini, nessa igreja eles viram uma
imagem de Cristo que mostrava o filho de Deus com um rosto curiosamente desfigurado, um
rosto morbidamente deformado. Nosso pai teria dito a ele, Spadolini, que a imagem lhe
impressionara como nenhuma outra imagem que já vira. Nosso pai foi um grande perito em arte,
e também um amigo dos artistas. A palavra artista causou prazer a Spadolini, e ele a repetiu
várias vezes só para regalar-se. Ele era um homem da natureza, disse Spadolini. Um homem de
justiça, disse em seguida, e que nosso pai sempre mantivera uma boa relação com sua fé. Seu pai
era um bom católico, disse olhando para minhas irmãs. Com essa observação ele concluiu sua
caracterização de nosso pai, terminando ao mesmo tempo de comer. Ninguém limpa a boca com
o guardanapo com tanta elegância quanto ele, pensei. Caecilia lhe serviu vinho, ele reclinou-se e
disse que na noite seguinte teria de estar de volta a Roma, o papa o convocara, mas com esse
papa nunca se sabia se a pessoa convocada seria recebida na hora marcada. Em Roma a situação
agora era das mais delicadas, o clima político se agravara, os comunistas e os fascistas
tencionavam ambos uma pronta tomada do poder. Mas nem os fascistas nem os comunistas vão
conseguir chegar ao poder, disse. Quando saía de casa, não sabia se tornaria para casa com vida,
os fascistas simplesmente disparavam contra as pessoas, quer elas tivessem ou não algo a ver
com a causa deles, só para chamar a atenção sobre si, disse. Eram tempos intranqüilos,
pavorosos. Por outro lado também os mais interessantes que a Itália já viu. Sou tão ligado a
Roma, disse, que nem posso imaginar deixá-la novamente, embora eu próprio não possa
determinar se permaneço ou não. Estou nas mãos de poderes superiores, disse. Perguntei-me no
que consiste minha admiração por Spadolini. Ele próprio dá a resposta, com sua simples
presença, pensei. O modo de ele dizer algo e de apresentar-se, não o que ele diz, é o que suscita
minha admiração, pensei. Ele diz tudo de modo outro que todos os outros, pensei. Sem qualquer
embaraço ele passou então de repente a falar de nossa mãe. Embora fosse impossível descrevê-
la, disse, ele a descreveu. Sempre elegante, fora ela que o levara pela primeira vez à Ópera de
Viena, para assistir ao Cavaleiro da Rosa, por intermédio dela conhecera as mais célebres
cantoras que cantavam na Ópera de Viena, e com essas cantoras mantivera até hoje laços de
amizade, por intermédio de nossa mãe descobrira a música austríaca, pois ela, quando se
encontrava em Viena, acompanhava-o aos concertos da filarmônica, ao lado de nosso pai iam ao
chamado Musikverein e ao Konzerthaus, em particular devia a nossa mãe que tivesse escutado
tanto Mahler em Viena, a quem nossa mãe chamara a atenção, e a quem ela positivamente
amava, com nossa mãe assistia a todo concerto de Mahler, disse, nossa mãe era altamente
musical e ele sempre se lamentara por ela não ter tocado um instrumento, porque provavelmente,
disse, teria se tornado uma grande pianista, ele lamentara ser transferido de Viena sobretudo
porque, de súbito, especialmente por via de seus postos d’além-mar, fora separado da música.
Nossa mãe subira com ele o Danúbio até Dürnstein, em Wachau, levara-o passear por Salzburgo,
mostrara-lhe o Salzkammergut e, pouco depois de seu primeiro encontro, convidara-o a Paris,
onde então ele ainda nunca estivera. Como conselheiro junto à nunciatura ainda não tivera as
oportunidades de viagem de que desfrutou mais tarde na condição de núncio, ainda era, palavras
dele próprio, um tanto limitado. Nossa mãe o convidara a Florença, onde ela passava com meu
pai várias semanas de outono, e fora em verdade ela que lhe mostrara a cidade, ele já estivera
muitas vezes antes em Florença, mas nossa mãe o ensinara a amar a cidade dos Uffizi. Que ele
conhecesse tão bem a Alta Áustria era mérito de nossa mãe, esses manhíficos lagos e montanhas,
o Totes Gebirge, o alto Priel, disse. E todos esses manhíficos castelos, como não se acham em
lugar algum. Toda essa manhífica região da Alta Áustria, a mais bela das regiões austríacas,
achava. Nossa mãe ele sempre venerara profundamente, só podia mesmo amar seu extraordinário
modo de ser. Uma amizade ímpar, que durou mais de trinta anos. Nossa mãe o tornara saudável,
disse, sempre lhe dera os melhores remédios, sempre o visitara nas horas mais difíceis, quando
ele estava de cama, em condições mais ou menos desesperadoras, abandonado pelos médicos.
Sua mãe sempre foi meu melhor médico, ela me levava a Roma essas ervas da Alta Áustria que
me curavam, disse. Talvez deva minha vida só a essas ervas da Alta Áustria, afirmou, que sua
mãe me levava a Roma, ela não poupava esforços para visitá-lo, mesmo sob as circunstâncias
mais difíceis viajava a Roma para salvá-lo. Com suas ervas da Alta Áustria ela me salvou a vida,
exclamou Spadolini, e declarou que as ervas medicinais de minha mãe, as ervas da Alta Áustria,
haviam-no conservado para a humanidade, exclamou ele literalmente e de maneira bastante
patética, mas com tanto charme que não causou o menor constrangimento. Em sendo necessário,
disse, recomendarei essas ervas medicinais da Alta Áustria ao papa, disse. Ao que fez seguir
minutos de silêncio, que nenhum de nós atreveu-se a interromper. Meu cunhado estava sentado
na frente de Spadolini absolutamente perplexo, como se diz. Minhas irmãs haviam se submetido
inteiramente a esse silêncio de Spadolini, imposto no momento justo. Disse então Spadolini que
ainda na semana anterior combinara com nossa mãe uma viagem à Calábria, que agora se
frustrara. Para ver os trulli, disse. A Calábria era um antigo sonho de nossa mãe, que ela
pretendia realizar no início do verão. Mas de golpe, disse Spadolini, tudo mudou. Passou então a
falar da excursão ao Etna que ele fizera vários anos atrás com minha mãe e comigo partindo de
Taormina, cinco ou seis anos atrás, creio, minha mãe viera a Roma visitar-me, dias inteiros
rodara com ela em Roma à procura de um par de sapatos que não lhe saía da cabeça, tinham de
ser azuis e de uma pele de porco toda especial, tão delgada e macia como pelica de luva, e de
fato, após dias de procura, encontramos um par de sapatos que lhe convinha. Dos quais comprou
três pares. A vários jantares com pessoas dela conhecidas, mas não aparentadas a nós, ela
praticamente me arrastou, só para forjar um álibi aos olhos de nosso pai, para poder encobrir sua
convivência diária com Spadolini, coisa que no fundo ninguém lhe censurava e que em última
análise era de todos conhecido, porém que ela se esforçava sem trégua por manter em segredo.
Levava-me consigo a esses jantares pavorosos, dos quais não retornava comigo para casa, porque
queria passar, e passava, as noites com Spadolini. Eu não censurava minha mãe por esses
encontros com Spadolini, só me condoía dela por ser dependente desses encontros, como tive de
constatar. Após aqueles jantares, Spadolini sempre a aguardava em algum ponto no Trastevere,
como sei, encaminhavam-se a um apartamento de amigos de Spadolini, permaneciam juntos até
de manhã. Condoía-me não só de minha mãe, condoía-me também de Spadolini. Por outro lado
desprezava a ambos. Mas a excursão ao Etna, em fins de janeiro, eles a fizeram comigo. Em
Taormina nos hospedamos, claro, no Timeo. Alugamos um táxi que nos levou até o limiar das
neves perpétuas. De lá subimos de teleférico ao platô do Etna. A cratera central estava
completamente envolta em névoa, não se via nada. Os três éramos as pessoas mais felizes que se
pudesse imaginar. Spadolini agora descrevia assim essa excursão ao Etna: tomamos o teleférico
até o alto e entramos no restaurante. Mas lá fazia tanto frio que não quisemos nos deter mais que
o necessário para beber uma xícara de chá. Então eu e sua mãe, disse para mim, decidimos
descer o Etna a pé, ao passo que você se recusou, disse estar com medo, lembra? perguntou.
Lembro, disse, estava com medo. Você estava com medo, disse Spadolini, mas nós não tínhamos
medo. Tomei a sua mãe pela mão e começamos a descer o Etna, disse. Você voltou de teleférico.
Nós te vimos de baixo no teleférico, do teleférico você nos viu, disse. De repente irrompeu uma
nevasca, disse. A nevasca foi tão violenta que não pudemos mais te ver, nem nós a você nem
você a nós, disse Spadolini, o teleférico não era mais visível para nós, nós não éramos mais
visíveis para você, que estava no teleférico. Você disse que o teleférico balançou tanto que você
teve medo de ele ser arrancado dos cabos, disse Spadolini. Você disse que nos procurou na neve
debaixo do teleférico, mas não nos viu mais. O teleférico balançava tanto que você acreditou ter
chegado a sua hora, disse Spadolini. Nós também não pudemos ver mais nada na nevasca, e nos
esprememos numa fenda de gelo. Em poucos minutos o vento quase nos cobriu de neve. Como
nos Alpes, disse Spadolini, como nos Alpes. Pensamos que fôssemos morrer, como as pessoas
morrem nos Alpes. Não vimos absolutamente mais nada, disse Spadolini. Mas se não quisermos
morrer congelados, pensei, temos de seguir em frente. Agarrei assim a sua mãe e segui adiante.
Mas logo depois me senti exausto e sua mãe me agarrou e seguiu em frente, disse Spadolini.
Você já estava havia tempos na estação no vale, e a nevasca não parava. Então você comunicou
o fato à polícia. Mas a polícia não subiu, porque a nevasca estava muito forte. Estávamos numa
fenda de lava, disse Spadolini, e achávamos que cairíamos, não nos mexemos. Mas sua mãe
repetia sem parar, temos de seguir em frente. Ela me agarrou e me impeliu adiante, sempre mais
adiante, sempre mais adiante, disse Spadolini. Por fim nos agachamos numa fenda de lava e
pensamos, agora estamos para morrer. Eu rezei, disse Spadolini, no meu íntimo, sem que a mãe
de vocês soubesse. Bem no meu íntimo. Então a nevasca amainou, disse Spadolini, e fomos
salvos. Você nos preveniu, disse Spadolini agora para mim, não devíamos ter descido a pé do
Etna para o vale. Muitos já morreram desse modo, disse Spadolini. O Etna é uma montanha
assassina, disse pateticamente. Mas sua mãe e eu tivemos muita sorte, disse. Nunca vou esquecer
dessa excursão ao Etna, disse Spadolini. Depois retornamos a Taormina. Meio congelados, disse,
fomos nos deitar de tão exaustos. De noite então aparecemos de gala no salão de jantar, disse
Spadolini, como se nada tivesse acontecido. Deveria ter te dado ouvidos, disse Spadolini, mas o
amor por sua mãe me subiu à cabeça. Se sua mãe não tivesse insistido em me agarrar e impelir
adiante, disse, se não tivesse simplesmente me impelido Etna abaixo, disse. Sua mãe, quando
preciso, era uma mulher desassombrada, como se diz. Enérgica, disse Spadolini, dinâmica. E à
noite apareceu em toda sua elegância. Usava um vestido persa, um cor de creme, disse, você
decerto sabe qual é. Meu Deus, como a mãe de vocês ficava bem nesse vestido! disse. Talvez
vocês não tenham sua mãe na lembrança como eu, disse. Dela eu tenho as melhores lembranças.
Foi para mim uma notícia terrível, disse Spadolini, a notícia mais terrível em muito tempo.
Quantas vezes a mãe de vocês me salvou da morte, falo sério, convidando-me a Wolfsegg. Aqui
tinha a paz necessária para me salvar, disse. Essa casa e essa paisagem me são queridas como
nenhuma outra. Essa cultura elevada, disse Spadolini, que se acha por toda parte, que salva a
pessoa do desespero. Quando núncio em Peru, só pensava sempre em Wolfsegg, em vocês e em
sua mãe. Foi esse pensamento que me permitiu sobreviver lá. Mas o Peru é um país manhífico,
disse Spadolini, manhífico, manhífico, manhífico. Essa notícia é realmente a mais triste de todas,
disse, e levantou-se e deu a entender que agora estava decidido a ir à orangerie, aos finados. A
mim ele se dirigiu mais uma vez, antes que os cinco deixássemos o salão, e disse que a morte de
minha mãe era sua maior perda. Não perca o controle, ele disse, e que agora eu era o senhor de
Wolfsegg. Para Spadolini agora era exatamente o momento justo de visitar a orangerie. Todos os
demais hóspedes haviam se recolhido fazia tempo a seus quartos, somente da cozinha ouviam-se
ruídos, de resto tudo estava em silêncio. Caecilia ia à frente como quem corre, mas na verdade
não corria, abria todas as portas, foi a primeira a chegar à orangerie, uns dez, doze metros antes
da orangerie diminuiu o passo, depois, bastante controlada, terminou de dar esses derradeiros
passos até a orangerie, sem entrar direto, pois naturalmente esperava Spadolini, que a seguira,
sem perder a compostura, bem entendido. Usava ele os sapatos mais elegantes que já vi, esses
seus sapatos já me haviam chamado a atenção quando o acompanhara ao primeiro andar
caminhando atrás dele, Spadolini sempre deu grande valor aos sapatos mais elegantes, era
sempre um prazer vê-lo comprar sapatos, naturalmente também só na Via Condotti, nunca no
Corso, onde sempre comprei os meus sapatos, admirei seus sapatos na relva tenra,
particularmente salientes à luz dos fachos fúnebres que, da orangerie, iluminavam também um
pedaço do parque, de resto imerso na escuridão. Spadolini quis deixar que eu entrasse primeiro
na orangerie, ou pelo menos Amalia, mas lhe cedemos o passo. Spadolini tomou o braço de
Caecilia e entrou. Postou-se diante dos caixões, estreitou Caecilia contra si. Atrás de Caecilia se
pusera meu cunhado, atrás de Spadolini, Amalia, atrás de todos, no fundo, eu. A guarda fúnebre
não se mexeu, os dois caçadores de guarda não piscaram os olhos, como se se tratasse de um
velório do alto escalão militar. A cena me lembrou o monumento ao Soldado Desconhecido em
Varsóvia, que visitei uma vez com Johannes, com quem me encontrara em Varsóvia para visitar
então Cracóvia, ele estivera caçando perto de Zakopane, eu visitara parentes nos arredores de
Wilanow. Por uns minutos ficamos todos ali, imóveis. De repente quis ver os rostos de minhas
irmãs, de meu cunhado e de Spadolini, não mais os rostos defuntos, já totalmente estranhos de
meu pai e de meu irmão, e me aproximei dos caixões e fiz como se quisera verificar os blocos de
gelo. Olhei debaixo das mortalhas, erguendo-as e largando-as de novo, enquanto porém só me
interessavam os rostos de Spadolini, de minhas irmãs e de meu cunhado. Mas em seus rostos não
vi nenhum sinal do que se passava no momento com os donos daqueles rostos. Eles não traíam
nada. Estavam perfeitamente imóveis e eram como cortinas por trás das quais, por assim dizer,
haviam escondido tudo. Esperara que esses rostos traíssem tudo o que por trás estivesse, quando
na realidade esconderam perfeitamente tudo o que por trás estava, esconderam tudo o que teria
sido interessante para mim. Todos pessoas espertas, muito controladas, pensei ainda postado
diante deles, por um instante na suspeita de que talvez houvessem descoberto meu propósito.
Spadolini era capaz disso, bem como minhas irmãs. O único que mostrara seu verdadeiro rosto,
por assim dizer sem cortina baixada, era meu cunhado, o fabricante de rolhas para garrafas de
vinho, que não baixara nenhuma cortina sobre sua imbecilidade, a quem essa imbecilidade nem
era consciente, pensei, todos os outros haviam baixado suas cortinas faciais, mas meu cunhado, o
fabricante de rolhas para garrafas de vinho, também era o único, entre os que se postavam diante
dos caixões, que no momento absolutamente não me interessava. Por trás de suas cortinas faciais
baixadas eles têm certamente pensamentos dos mais interessantes para mim, disse comigo. E sei
que tipo de pensamentos, não preciso nem rasgar suas cortinas para saber o que pensam atrás
delas, o que se passa atrás delas, pensei. Com cuidado, em respeito à ocasião, ergui mais uma vez
uma das mortalhas para de novo depositá-la com toda calma sobre os blocos de gelo, enquanto
tinha porém consciência de minha infâmia, só averiguar o quanto de sórdido e infame houvesse
por trás dessas cortinas faciais baixadas. Óbvio que Spadolini tenha tomado o braço de Caecilia,
pensei. Uma cena de cinema, pensei. Rostos de cinema, pensei. Rostos de atores de cinema. Dei
rapidamente um passo atrás, como se naquele instante tivesse me dado conta de que perturbava
um ato solene com meu passo adiante, e postei-me novamente atrás do grupo em luto. Os
caçadores estavam irritados, mas tentavam não perder o controle nessa sua irritação. Uma cena
de cinema, pensei. Os corpos velados já estavam agora como cera, de um cinzento sujo. Deviam
é ser lavados, esses rostos encovados, de um cinzento sujo, de manhã, pensei, vou dar a ordem,
não posso esquecer. De repente Spadolini ajoelhou-se à frente do caixão de minha mãe. A cena
era embaraçosa. Minhas irmãs não tiveram escolha senão ajoelhar-se elas próprias. Eu
naturalmente permaneci de pé. Por dois ou três minutos, um tempo longo numa tal situação,
Spadolini e minhas irmãs ficaram de joelhos diante dos caixões. Uma cena de cinema, pensei de
novo. Antes do ingresso na orangerie, o arcebispo Spadolini fortificou-se com um jantar, pensei.
Primeiro jantar, depois render preito, pensei. Com quanta elegância ele se põe de pé, pensei
então, à diferença de minhas irmãs, que se desengonçaram todas. Spadolini virou-se para mim
como quem perguntasse, e agora? Dirigi-me à saída. Spadolini deixou a orangerie. Fora estava
de súbito completamente escuro. Minha mãe havia de ter sofrido ferimentos tão graves, declarou
Spadolini num murmúrio, que não pôde ser velada como meu pai e Johannes. E depois, uns
passos adiante, no caminho do edifício principal, como ocorrera afinal o acidente? Minhas irmãs
foram incapazes de dar uma explicação. Mas eu disse a Spadolini o que lera nos jornais, em
frases curtas, como se me resumisse a alistar as manchetes das folhas. Depois de um concerto, eu
disse. Ah, depois de um concerto, disse Spadolini. Nossa vida está nas mãos de Deus, disse ele.
E naturalmente não O compreendemos. Não dispomos da força para compreendê-Lo. Que Deus
lhes dê forças para fazer frente a suas vidas, disse ele. Tudo o que queria então era recolher-se a
seu quarto, até a hora do enterro. Vou rezar pelos mortos, disse ele. Pelos queridos mortos.
Como minhas irmãs houvessem pensado que Spadolini permaneceria conosco até tarde da noite,
muito se surpreenderam quando simplesmente foram deixadas plantadas por Spadolini.
Abruptamente se viram de novo às voltas comigo, e propuseram que bebêssemos mais um copo
de vinho, lá em cima, no salão. Meu cunhado era a favor. Mas eu queria encerrar o dia a meu
modo e não saber mais dos meus. Disse que iria para meu quarto, deixei minhas irmãs e meu
cunhado simplesmente plantados, tal como Spadolini antes de mim, e subi a meu quarto. A
primeira coisa que fiz foi me trancar, mas não tinha intenção de ir direto para a cama, isso aliás
seria a maior estupidez, pois nem pensar que pegaria no sono. O que Spadolini disse de minha
mãe é superficial, pensei, ele descreveu minha mãe como queria nos mostrá-la agora, vista de sua
atual perspectiva, pensei, a observação superficial de sua parte mostrou minha mãe tal como a
queria agora, sentado à mesa conosco, não como a via realmente, a mãe que amava a Áustria,
que amava a música, que era humana, a mãe protetora até dos artistas, tanto que eu mesmo senti
embaraço pelo próprio Spadolini, não minhas irmãs, que levaram a sério as palavras de
Spadolini, as quais porém não deviam ser levadas a sério, ainda que ele houvesse feito uma
descrição bastante boa da excursão ao Etna, pensei, tenha se dado ao trabalho de descrever a
excursão ao Etna de modo tal que eu não tivesse praticamente nada a objetar, mas a descreveu
também de modo que pudesse ser definida como um simples episódio superficial por aqueles que
ouviram sua descrição, que afinal não foram testemunhas desse episódio como eu, que tenho na
cabeça o caráter demoníaco desse episódio no Etna, pensei sentando-me na poltrona, não
acendendo a luz, deixando que a escuridão agisse sobre mim, o episódio no Etna ele o descreveu
como uma trivialidade mais ou menos insignificante, relatou-o como se não tivesse nada de
diabólico, segundo pensei, quando na verdade diabólico ele foi, diabólico como quê, pensei
agora. Spadolini relatou uma excursão inocente de Taormina a Catania e ao Etna, mas foi tudo
menos uma excursão inocente. A descida de ambos do platô do Etna fora diabólica, maquinada
por ambos, pensei, por minha mãe como por Spadolini. Eles se aproveitaram da nevasca, pensei.
Aproveitaram-se das fendas no gelo. Calcularam a neve acumulada pelo vento e se aventuraram
de propósito naquela nevasca, pensei, deixaram-me descaradamente a sós no platô do Etna sem
que desse pela coisa, como pensavam, pois ambos, afinal, sempre foram tudo menos inocentes,
pensei, sempre fizeram do cálculo um princípio. Spadolini sentado à mesa descreveu minha mãe
como se de fato ela fosse inocente, uma amante inocente, alguém que o venerava, mas isso nossa
mãe não era, pensei. Não era a inocente que fez com Spadolini uma excursão inocente ao Etna,
mas a astuciosa, cuja astúcia não ficava a dever à de Spadolini, pelo contrário, a astúcia de nossa
mãe era muito mais sonsa, pensei, pois minha mãe sempre fora sonsa. Essa palavra feia me
pareceu no momento a mais pertinente, e não hesitei em usá-la no momento. Os dois foram
sempre sonsos. Minha mãe fora descrita por Spadolini como se fosse uma mulher superficial,
que só tivesse aspectos positivos, não conhecesse o mal, contra o mal se pusesse de guarda, mas
minha mãe era completamente diversa, ela era o mal, pensei, não hesitando em alongar ainda o
pensamento, em ruminá-lo, sentando-me agora na poltrona. Minha mãe era o mal em pessoa,
pensei, Spadolini não pode ter ignorado esse mal em pessoa que era minha mãe, ele era muito
inteligente para tanto, muito escolado no espírito, como disse comigo, para usar um termo
cunhado pelo próprio Spadolini. Durante o breve jantar ele descreveu minha mãe até como uma
cidadã do mundo, por assim dizer, coisa que ela nunca fora, pois minha mãe foi uma típica
provinciana, uma nova-rica, alguém absolutamente anticultural, pensei, esse conceito pareceu-me
de súbito convir mais do que qualquer outro a minha mãe, que naturalmente nunca adorou
Mahler, esteve longe de venerar qualquer compositor, que sempre se serviu da música só como
meio que lhe permitia exibir suas mais novas roupas, todas de mau gosto, a uma sociedade que
ela venerava, embora nada houvesse nela para venerar, pois é a mais repugnante que existe,
pensei. A quem nenhum quadro significava algo, nenhuma obra de arte, que desprezava tudo o
que tivesse a ver com arte. Spadolini nos pintou uma mãe que o ensinou a amar Florença, e no
entanto nossa mãe só ia a contragosto a essa cidade antiga, só a contragosto às igrejas antigas que
são por assim dizer obras de arte, só a contragosto a todo concerto, a toda exposição, e aliás ela
também nunca leu um bom livro, coisa sintomática, disse comigo. Spadolini nos dourou uma
mãe completamente deturpada, disse comigo. Como de súbito me pareceu de mau gosto o
discurso de Spadolini sobre minha mãe, hipócrita do início ao fim, mentiroso, do início ao fim
talhado para a ocasião, que ele não parava de definir como triste ocasião sentado à mesa, sem no
entanto sentir realmente tristeza, disso ele não era capaz. Minha mãe era de súbito, não aos olhos
de Spadolini, mas como ele a descrevera, uma pessoa de gosto, cheia de vida, como ele se
exprimiu, otimista, uma mulher interessada em tudo, uma boa mãe, uma educadora nata. E ainda
por cima uma dona de casa nata, pensei. Spadolini definiu-a várias vezes como a alma de
Wolfsegg, pensei. Como funda observadora da natureza, como senhora hospitaleira, sinhora
hospitaleira, disse. Spadolini falava de uma pessoa que, com o tempo, fez de Wolfsegg um
paraíso para todos nós, notável pela bondade e pelo viço, de uma pessoa que tínhamos de amar.
Spadolini falava de uma pessoa a quem o ser amada pelo seu círculo era por assim dizer a coisa
mais natural do mundo. A mãe de vocês foi a bondade em pessoa, disse-nos Spadolini, era ela
que mantinha tudo coeso. A mãe de vocês era uma santa criatura, disse literalmente, e agora
ainda me pergunto de onde ele foi tirar essa expressão de mau gosto. No discurso de Spadolini
uma mentira por assim dizer se encadeava a outra, pensei. Mas Spadolini não é um mentiroso,
senão uma pessoa que calcula tudo, de fio a pavio, pensei. O modo com que ele disse esse santa
criatura é de fato inimitável. Ninguém que eu conheça, pensei, seria capaz de proferi-lo com
uma brandura e nobreza tão naturais. Somente o arcebispo Spadolini, pensei sentado na poltrona,
sorvendo a escuridão. Sentia mesmo prazer em repisar comigo, palavra por palavra, o calculismo
de Spadolini, sua entonação, estudando a retórica de Spadolini. Com Spadolini posso aprender
muito, pensei, sempre coisas novas. O modo de ele pronunciar a palavra Caecilia quando viu
Caecilia pela primeira vez após sua chegada, a palavra Amalia, a palavra cunhado, que lhe veio
aos lábios com uma falta de jeito incrivelmente calculada, pensei. O modo com que se voltou,
junto à orangerie, mirando o prédio principal, para dizer: esse edifício manhífico, essa
extraordinária obra de arte. O modo com que disse a Amalia: sua mãe me falava tanto de você,
sempre só coisas boas. E a Caecilia: sua mãe sempre te elogiou. E a mim: sua mãe depositou
tudo em você. Também de Johannes ele falara, falou dele como de uma pessoa temente a Deus,
de uma imponência que jamais conhecera, o mais puro caráter, o parceiro de conversa mais
reservado. O irmão mais sereno, mais desprendido, disse Spadolini. Ele se afeiçoara a Johannes,
como também a meu pai, aos dois ele se afeiçoara desde o princípio. Uma vez conduzi Johannes
pelos palácios do Vaticano, disse Spadolini, e o apresentei ao Santo Padre, disse. Há um súbito
vazio aqui, disse também Spadolini, mas logo em seguida, que novas pessoas tomariam
Wolfsegg nas mãos e tudo iria pelo melhor. Nesse meio tempo provavelmente lhe passaram sua
jaqueta a ferro, como ele pedira, pensei, suas calças, minhas irmãs estão lhe passando a ferro as
peças de roupa, enquanto no quarto de meu pai ele reza por tudo que nos diga respeito, pensei.
Antes ele ia à capela rezar, pensei, mas hoje teme lá ser importunado pelos hóspedes que
pernoitam em casa com ele. O luto é uma bela virtude, ele disse, pensei. O Todo-Poderoso fecha
uma porta para abrir outra, ele disse. Súbito me enojaram suas palavras, que, embora estivesse
cansado de ouvi-las, nunca antes me causaram nojo com tamanha clareza. Depois de ter comido
seu assado, depois da história do Etna, pensei, ele dissera também que da última vez minha mãe
o visitara em seu escritório chorosa e desolada, palavras suas. Chorosa e desolada ela veio me
ver em Roma, disse, em busca de ajuda. Até hoje ele não sabia a razão de seu desespero. Se
sabíamos a razão do desespero de nossa mãe, ele quis saber. Alguma coisa relacionada a nosso
pai, disse ele. Alguma coisa que o afligia, a nosso pai, no tocante a Wolfsegg. Ela, nossa mãe,
sempre teve o maior dos cuidados por Wolfsegg, o maior dos cuidados por seus filhos, por nós.
Com ninguém ele podia conversar melhor do que com nossa mãe, que era também uma boa
ouvinte, justamente o contrário disso é que ela era, pensei, minha mãe nunca foi capaz de ouvir,
sempre cortava a palavra, nunca deixava que alguém acabasse de falar, interrompia sempre toda
conversa logo no início. Ela não suportava conversas. Não deixava surgirem conversas, pensei.
Roubava a cena com a maior falta de escrúpulos, estragava toda a conversa. De tão estúpidos que
eram os apartes, pensei, com que ela aniquilava toda a conversa. Era uma de suas características
mais insuportáveis, que odiasse toda a conversa, tanto mais quando se tratasse de uma chamada
conversa intelectual, por assim dizer de nível mais elevado, essa ela não suportava e praticamente
a tiranizava com sua estupidez. Ela era a tirana de nossas conversas, pensei. Todos sofriam com
isso. Spadolini traçou seu retrato de mi nha mãe, pensei, do modo descarado que traçam os
sobreviventes para causar de si boa impressão. Ele disse que ela escutava Mahler como um anjo,
e no entanto ela se entediava até a morte em todos os concertos, seja lá o que constasse do
programa, só quando era música das mais superficiais os seus traços se transfiguravam, pensei.
Só quando era o mais superficial dos livros ela lia umas duas ou três páginas, não mais que isso,
pois ler lhe era odioso como o diabo. Era fingido tudo o que fizesse e tudo ela usurpava, pensei,
deturpava tudo sem piedade e ao mesmo tempo o degradava, não tinha o mínimo respeito pelos
produtos do espírito, pensei. Por isso ela odiava meu tio Georg, por esse motivo odiava a mim,
odiava tudo o que tivesse a ver com o espírito, pensei. Spadolini fora longe, longe demais,
pensei, ao dizer que nossa mãe se interessava por todas as coisas do espírito, algo incomum para
uma mulher, acrescentara ainda com a paixão que lhe é própria, uma pessoa afeita às artes,
disse. Na verdade nossa mãe não se interessava em nada pelo espírito e estava muito longe de ser
uma pessoa afeita às artes, até meu pai, a quem no fundo era indiferente se sua mulher tinha ou
não interesses intelectuais, se era ou não uma pessoa afeita às artes, a todo instante chamava-a
traste sem espírito, e meu pai, pensei, seu companheiro de toda a vida, deve tê-la conhecido
melhor que ninguém. Spadolini enriqueceu ainda sua apoteose de minha mãe com a observação
de que ela possuía uma veia filosófica, eine philosophische Ader, Aderrr, repetiu ele algumas
vezes, o que emprestou a sua falsidade até um acento amável, quando pronunciou a palavra
Aderrr pensei que ele pronunciara a palavra Aderrr de modo singularmente amável, sem refletir
no que houvesse realmente pronunciado justo com a palavra Aderrr. A forma sempre encobria
nele o conteúdo, pensei. Era inevitável que também chamasse ainda nossa mãe uma pessoa
devota, uma fiel seguidora da Igreja, uma boa cristã. Em Roma minha mãe lhe comprara,
naturalmente na Via Condotti, um camisolão de seda, que ele porém vestia somente nos
verdadeiros dias de festa. Fora ela que o escolhera, disse, e escolhera o melhor e o mais bonito.
A mãe de vocês serviu de mãe para mim, disse de repente. Com muita freqüência ela se sentia
infinitamente só, abandonada por todos, disse. Em Wolfsegg, entre vocês, disse Spadolini,
sozinha de todo, realmente solitária. Uma pessoa solitária também, disse ele de minha mãe, mas
o que não sabia é que, mais do que tudo, ela buscava refúgio da solidão num mundo por ela
odiado porque tedioso. De Spadolini passei então curiosamente a Goethe: a Goethe o burguês
distinto, a quem os alemães adaptaram e adotaram como príncipe dos poetas, disse a última vez a
Gambetti, a Goethe o homem de bem, o colecionador de insetos e aforismos com sua mixórdia
filosófica, disse a Gambetti, que naturalmente não compreendeu a palavra mixórdia, a qual então
lhe expliquei. A Goethe, o pequeno-burguês da filosofia, a Goethe, o eterno oportunista, de quem
Maria sempre disse que não pôs o mundo de cabeça para baixo, senão fincou sua cabeça no
pomar alemão. A Goethe, o taxionomista de minérios, o astrólogo, o chupa-dedo filosófico dos
alemães, que lhes encheu os vidros de conserva caseira com a geléia da alma deles, para toda
eventualidade e todo fim. A Goethe, que coligiu para os alemães lugares-comuns e os fez vender
por Cotta como bem intelectual supremo e lhes atochou os ouvidos por intermédio de mestres-
escolas, até entupi-los definitivamente. A Goethe, que traiu o espírito alemão mais ou menos por
séculos e podou-o à mediocridade dos alemães com aquela diligência que defini a Gambetti
como a diligência goethiana. A Goethe, o flautista de Hamelin da filosofia, como disse a última
vez a Gambetti. Goethe era o alemão de uso corrente, disse a Gambetti, eles, os alemães, tomam
Goethe como remédio e acreditam em seus efeitos, em seu poder de cura; Goethe no fundo nada
mais é que o curandeiro dos alemães, dissera a Gambetti, o primeiro homeopata alemão do
espírito. Eles por assim dizer tomam seu Goethe e ficam saudáveis. Todo o povo alemão toma
seu Goethe e sente-se saudável. Mas Goethe, disse a Gambetti, é um charlatão, tal como os
curandeiros são charlatães, e a poesia e filosofia goethianas são a maior charlatanice dos
alemães. Tome cuidado, Gambetti, disse a ele, ponha-se de sobreaviso contra Goethe. A todos
ele escangalha o estômago, menos aos alemães, eles crêem em Goethe como numa das
maravilhas do mundo. E no entanto essa maravilha do mundo não passa de um pomareiro
filosófico filistóide. Gambetti desatara uma risada sonora quando lhe expliquei o que é um
pomareiro. Ele não sabia. No todo, disse a Gambetti, a obra de Goethe é um pomar filosófico
filistóide. Nada do que fez Goethe atingiu o vértice, disse, em tudo não ultrapassou a
mediocridade. Ele não é o maior dos líricos, não é o maior dos prosadores, disse a Gambetti, e
suas peças teatrais, comparadas por exemplo às peças de Shakespeare, são como um mirrado
bassê dos arrabaldes de Frankfurt diante de um imponente cão pastor suíço. Fausto, dissera a
Gambetti, que megalomania! Um experimento totalmente fracassado de um escrevinhador
megalomaníaco, disse a Gambetti, a quem o mundo inteiro subiu a sua cabeça frankfurtiana.
Goethe, o frankfurtiano e weimariano megalomaníaco, o distinto burguês megalomaníaco no
mundo das mulheres. Goethe, que revirou a cabeça dos alemães, a quem eles pesam na
consciência faz já cento e cinqüenta anos por lhes ter feito de bobos. Goethe é o coveiro do
espírito alemão, disse a Gambetti. Se o comparamos por exemplo a Voltaire, Descartes, Pascal,
disse a Gambetti, a Kant, e naturalmente também a Shakespeare, Goethe é assombrosamente
pequeno. Príncipe dos poetas, que conceito ridículo, mas bem ao gosto tedesco, dissera a
Gambetti. Hölderlin é o grande lírico, dissera a Gambetti, Musil é o grande prosador e Kleist o
grande dramaturgo, não Goethe, três vezes não. Então passei novamente ao que Spadolini dissera
de minha mãe, que ela era uma pessoa especial, e pensei, nisso Spadolini tem razão, já que toda
pessoa é especial, minha mãe inclusive, ele, Spadolini, não dissera porém nesse sentido,
Spadolini falsificara-nos nossa mãe de maneira oportunista, apresentara-a a nós, durante o
jantar, como especialmente boa, como especialmente cultivada, como especialmente interessada
em tudo, coisa que não era, pois no fundo minha mãe era bem comum, em nada especial, nada
tinha de extraordinário, para não dizer que era especialmente insensível e especialmente estúpida
a meu juízo, especialmente fútil, da maneira mais primitiva, e, pensei também, especialmente
cobiçosa. Mas talvez Spadolini não o soubesse, não pudesse sabê-lo. Só de pensar nos muitos
apartamentos condominiais, como chamam, que nossa mãe adquiriu secretamente, em todas as
cidades possíveis, em grande parte por trás das costas de meu pai, que de sua verdadeira cobiça
provavelmente nem sabia, a opinião que tinha dela não era tal que o fizesse presumir sua cobiça,
pensei. Só de pensar em seu entusiasmo perverso pelas ações! Nesse jantar Spadolini nos
falsificou nossa mãe de uma maneira inadmissível, apresentou-nos uma mãe por assim dizer
oposta à verdadeira, de maneira sedutora, como é sua arte, pensei, idealizou minha mãe ainda
mais que meu pai, a quem antes já idealizara do modo mais insuportável, por cálculo. E o que
nos disse, a mim e a minhas irmãs, pensei agora, no fundo também só redunda numa idealização
de nós, numa idealização do início ao fim inadmissível, mas que foi por mim desmascarada,
pensei, que não me escapou, porque agora já tenho um ouvido bom para as inflexões de
Spadolini. Spadolini o calculista é que se sentara à nossa frente nesse jantar, Spadolini o
calculista é que fora conosco à orangerie, para então na orangerie nos exibir uma cena de luto
igualmente calculada, pensei. E que idealizara Wolfsegg, pois a Wolfsegg que nos descreveu não
tem nada a ver com a Wolfsegg real. O homem da Igreja fez desabrochar, já nas poucas horas
que passou aqui, sua indescritível arte do cálculo, pensei, sua calculada arte da falsificação,
perante nossos olhos e ouvidos, por assim dizer, converteu imbecis em inteligências e malvados
em santos, analfabetos em filósofos e gente na verdade abjeta em modelos de caráter. A feiúra
em beleza, a baixeza e mesquinharia em grandeza interior e exterior, os monstros em seres
humanos, para sermos precisos. Um país atroz em paraíso e um povo obtuso num povo
admirável. Spadolini enalteceu os defuntos a uma altura que não lhes condiz em nenhum sentido,
pensei. Falsificou-os radicalmente, pensei, e nos impingiu essa falsificação, de modo
absolutamente inadmissível, como real e verdadeira. Abusou, por assim dizer, de nossos olhos e
ouvidos ao iludi-los de caso pensado, somente para causar de si próprio a melhor impressão
possível, para na medida do possível sair incólume, cativar-nos para seu lado, mas acabou por
equivocar-se totalmente na conta, pois foi longe demais com esses falseamentos e falsificações.
Spadolini nos subestimou, pensei, até a minhas irmãs, que em última análise não são tão
estúpidas para agora se deixar inculcar e impingir, por Spadolini, pais grandiosos e louváveis, e
de quebra um irmão, coisa que eles não foram nem para elas, não eram estúpidas o bastante para
caírem na conversa de Spadolini, para morder a isca, por assim dizer, de suas falsificações,
pensei, minhas irmãs decerto também tiveram a sensação que Spadolini disparatava, que não
dissesse outra coisa senão disparates superficiais e oportunistas, como é costume em tais
situações, quando de súbito, em face da morte, como se diz com tanto mau gosto, se quer fazer
com que os mortos tornem-se palatáveis aos vivos, muito embora em vida tenham sido
intragáveis e insuportáveis. Também ele submeteu-se à regra, disse comigo, de colocar os mortos
sob uma luz que não lhes condiz, pensei, Spadolini colocava os defuntos sob uma luz tão
fulgurante que dava asco. O morto levou uma vida de verdade, disse agora comigo, seja lá quem
fosse, ninguém tem o direito de falsificá-la, desnaturar de súbito a natureza que ela tinha, só
porque isso lhe seja útil, porque com isso queira fazer boa figura. Spadolini quis fazer uma
performance de encher a vista com a descrição de minha mãe, e com a descrição de meu pai, e
com a descrição de meu irmão, pensei. O homem da Igreja fez uma performance de encher a
vista, tanto que o tempo todo me causou horror, essa é a verdade, pensei. Spadolini
provavelmente acreditou sermos primitivos o bastante para cair em sua conversa, tanto que se
sentiu na obrigação de pintar os defuntos, tal como nos pintou à mesa, deformados, invertidos,
pensei. Spadolini pintou pessoas que ele próprio jamais viu, não hesitou em despejar abertamente
uma mentira após outra em nossos ouvidos, perante nossos olhos, que porém sempre ouviram
bem e enxergaram bem, como penso, portanto ouviram e enxergaram coisas totalmente diversas
das de Spadolini. Spadolini é o falsificador nato, disse-me agora, o oportunista nato, o príncipe
da Igreja nato, portanto. Súbito compreendi por que Spadolini fizera uma carreira tão incrível,
por que progredira em rapidez tão vertiginosa, até o topo dos topos. Maria tem essa vantagem
sobre mim, pensei, o olhar de fato incorruptível, que não se deixa enganar por exterioridade
alguma, ela nunca se deixou enganar pelas exterioridades de Spadolini, sobretudo pela sua
refinada arte da persuasão, pensei. Nunca, pensei. Maria sempre apreciou Spadolini
corretamente, não o admirou como eu, dele sentiu sempre repugnância. Spadolini me é repulsivo,
para você ele é perigoso, dizia-me com muita freqüência. Spadolini é perigoso para tudo em que
põe a mão, ela sempre o definia como o perigoso Spadolini. Hoje tivemos esse perigoso
Spadolini à mesa, pensei. Temos em casa o perigoso Spadolini, assim definido por Maria,
pensei. Os mortos são logo santificados por nós para estarmos seguros deles e deles termos nossa
paz, essa também é uma frase de Maria, pensei. Como tantas vezes, pensei ter me enganado com
Spadolini. Com o repugnante Spadolini. Em Roma também me acho seguidas vezes nessa
situação, pensei, Spadolini me repugna e depois, no dia seguinte, na hora seguinte, volta a me
fascinar. As pessoas constantemente repugnam e voltam a fascinar, pensei. Spadolini é um
exemplo de uma pessoa repugnante e fascinante, e com muita freqüência não estamos certos se
agora ela nos fascina ou nos repugna, se devemos, se podemos agora nos deixar fascinar por ela
ou se por ela temos de sentir repugnância. De uma tal pessoa não podemos porém abrir mão,
dizemo-nos, e eu jamais pude abrir mão de Spadolini. Depois, em Roma, pensei, vou voltar a
procurá-lo e me deixar repugnar e fascinar, mas sempre me deixar mais fascinar do que repugnar,
para mim ele é o indispensável, pensei. Para mim ele só foi sempre o indispensável Spadolini,
pensei, mas, ao mesmo tempo, que naquele instante o Spadolini repugnante estava alojado no
quarto de meu pai, à sua maneira, à maneira spadoliniana, provavelmente ocupado em avançar o
máximo possível, até extremos, seus cálculos acerca do mundo. Em seus cálculos Spadolini
sempre vai a extremos, não poupa nem a si próprio, pensei, antes de ir para cama engole meia
dúzia de comprimidos, observa-se no espelho. Provavelmente trouxe o camisolão de seda que
minha mãe lhe comprou, dorme com ele, o mau gosto de Spadolini é oposto ao de nossa mãe,
mas ainda assim é mau gosto. Durante o jantar ele fez das tripas coração, como se diz, para não
lembrar, por um lapso seu, os numerosos encontros secretos com minha mãe, embora quase
todos esses encontros me sejam conhecidos, e a minhas irmãs também. O tempo inteiro pensei,
com que habilidade ele fala de uns, dos encontros conhecidos, e passa ao largo dos outros, por
assim dizer desconhecidos, simplesmente passando por cima deles, com isso lhe foi possível
simplesmente apagar os encontros secretos. Mas ele não deveria tê-los apagado, pensei, muito
mais embaraçoso, como se diz, foi apagar justamente esses encontros secretos do que falar deles
abertamente, Spadolini teria se poupado assim muita tensão nervosa, pensei, teria exposto tudo
com muito mais calma, não teria de nos exibir seus esboços com tal excesso de cautela, já que
provavelmente sabemos mais sobre seus encontros secretos com minha mãe do que sobre
aqueles por assim dizer públicos. Mas Spadolini sempre foi uma pessoa excessivamente
cautelosa, e justamente por isso admirável, olhado não só por mim com espanto, pensei, não só o
diplomata nato. Spadolini falou da excursão ao Etna, pensei, que foi interessante, mas não tão
interessante como a excursão a Siracusa, como a excursão a Trapani, para não falar da viagem a
Malta, que fez com minha mãe pelas minhas costas. Relatar essas excursões e viagens teria sido
sem dúvida mais interessante, ao menos para mim, ainda que muito mais embaraçoso para ele,
Spadolini, pensei. Fui incapaz de não pensar nas muitas contas de hotel que minha mãe seguidas
vezes deixava largadas em seu quarto, nas quais constavam sempre duas pessoas, essa segunda
pessoa era Spadolini, que em todas essas excursões e viagens minha mãe obviamente mantinha,
como se diz. O arcebispo viajava às expensas dela, e ela triunfava. Ao mesmo tempo pensei que
era bastante comovente considerar que, por mais de trinta anos, ela tenha feito excursões e
viajado com Spadolini e que nesse tempo nem Spadolini tenha se cansado dela nem minha mãe
de Spadolini, a relação deles, como sei, nunca esmoreceu, ao contrário, intensificou-se à medida
que os dois foram envelhecendo. Para meu pai essa relação sempre foi vantajosa, pensei, graças a
ela pudera refrear cada vez mais minha mãe. Meu pai era o mártir consciente, e sentia-se
grandioso, como sei, nesse papel que desempenhava em segredo, às ocultas até daqueles dois.
Meu pai nunca tivera nada contra essa relação, bem no início talvez, quando deve ter pensado ser
ele próprio o culpado, pois fora ele que apresentara minha mãe a Spadolini, e deveria ter sabido
com quem estava lidando. Por trinta anos, com a maior naturalidade, meu pai assistiu a essa
turbulenta relação infame evoluir para uma necessidade vital, como ele deve ter pensado, para
uma relação pacificada, que se devia deixar em paz. Durante o jantar, perante nós, Spadolini foi
reticente a respeito de tudo o que de fato lhe foi mais caro na relação com nossa mãe, mencionou
e exaltou somente os aspectos acidentais, lançou-nos as migalhas, por assim dizer, deixou que as
catássemos, o que lhe era precioso não. Mas Spadolini teria podido tranqüilamente dizer e
portanto admitir tudo, pensei, afinal já estávamos a par do segredo fazia anos e só podíamos
sentir outra vez seu comportamento como embaraçoso, quando há tempos não havia mais para
nós nenhum motivo de embaraço. Porém a Spadolini não ocorreu que soubéssemos mais do que
ele pensava, disse comigo, que, sabendo mais, já houvéssemos tirado fazia muito nossas
conclusões, cada um por si, eu a minha maneira, minhas irmãs à delas, que para nós já era ponto
pacífico o que para Spadolini continuava um motivo de reserva, quer dizer, de retração e
retraimento, de segredo. Nesse sentido também foi ridículo ser testemunha das reminiscências
spadolinianas sobre minha mãe. Spadolini se arranjará muito bem sem minha mãe no futuro,
pensei agora, no fundo ela é para ele coisa do passado, só lhe restam ainda pendentes as
formalidades do enterro, pensei. Em Roma ele me contará ainda muitas fábulas de minha mãe,
pensei, tomará minha mãe como pretexto para continuar recebendo dinheiro também de mim,
como pensei de súbito, para arrancá-lo de mim em nome de minha mãe. Mas imediatamente
execrei esse pensamento e execrei a mim mesmo profundamente, e teria sido uma felicidade não
havê-lo pensado, mas na esteira de minhas reflexões acerca do jantar com Spadolini não pudera
mais contê-lo, jugulá-lo. Ele tinha de ser pensado, disse comigo, como tantos outros
pensamentos que não querem ser pensados, mas têm de ser pensados por nós. Em dormir, nem
pensar, e naturalmente também não queria tomar nenhum comprimido por ter de madrugar no
dia seguinte, procurei então passar o tempo lendo, o método experimentado milhões de vezes, ao
qual já me habituei há décadas. Pensei em Kierkegaard e em sua Doença de morte e, porque eu
fosse da opinião de que o livro se encontrasse na biblioteca superior direita, a mais próxima de
mim, saí o mais silenciosamente possível de meu quarto para apanhar o livro de Kierkegaard,
muitos anos antes eu lera a Doença de morte, pelo menos vinte anos antes. A caminho da
biblioteca pareceu-me ridículo, porém, querer ler justamente a Doença de morte e justamente um
livro de Kierkegaard em vista das circunstâncias e consciente de que Spadolini encontrava-se
bem perto, é de fato uma idéia perversa querer ler agora Kierkegaard e sua Doença de morte,
pensei, e voltei atrás antes mesmo de entrar na biblioteca, porque me pareceu um completo
absurdo ler agora qualquer livro; também não podia imaginar qual livro tivesse de fato podido
me interessar, ou mesmo me prender a atenção, talvez um Jean Paul, pensei, um Börne, e depois,
talvez um Kleist, e depois, talvez um Heine, pensei, ou logo um Schopenhauer, pensei uma vez
mais, mas não fora boa a idéia de querer ler alguma coisa em vez de sentar-me quieto em meu
quarto e simplesmente refletir; há quanto tempo não paro quieto e simplesmente reflito, disse
comigo, e retornei a meu quarto, sentei-me e fechei os olhos com as pernas esticadas. Mas já
estava muito inquieto para poder ficar sentado quieto por mais tempo na poltrona, perdera a
chance, isso não era mais possível, então me levantei e comecei a andar de lá para cá em meu
quarto, mas nem andando de lá para cá pude me aquietar, porque não me saía da cabeça o
pensamento de como venceria essa noite, sem dúvida a noite mais terrível de todas as noites,
pensei comigo, que se estenderá no tempo sem poder ser abreviada, posso pensar o quanto
quiser, não poderei abreviá-la, nada me enche de tanto medo como essas noites que se estendem
no tempo, que não podem ser abreviadas, a mim, que me controlo e que há muito tempo não
tomo mais comprimidos, que não posso me esquivar da noite; mal acabo de pensar que não
conseguirei pegar no sono, que já é meia-noite e meia ou uma e meia da manhã, decido de vez
que não tomo nenhum comprimido e o problema está resolvido, porque agora não posso tomar
um comprimido em hipótese alguma, pensei comigo, pois tinha de estar de pé no mais tardar às
quatro da manhã e dar início à jornada do enterro. Abri a janela para deixar ar fresco entrar, mas
não entrou nenhum ar fresco, o ar que entrou era quente e pesado. Curiosamente, no quarto o ar
estava melhor que lá fora, fechei de novo a janela. Spadolini pode se dar ao luxo de tomar um
comprimido, pensei, invejei-o por isso, ele pode ficar deitado até às oito ou nove, pensei. E
minhas irmãs sempre tiveram sono bom, as bestalhonas, pensei. Nunca tomaram um comprimido
em todas suas vidas. Mas como não podia nem tomar um comprimido nem queria ler nada,
porque naquele momento sentia nojo também por toda espécie de literatura, até mesmo pela
francesa, mesmo pela inglesa, segundo pensei, da qual de hábito, quando não suportava mais a
alemã, abusava sem rodeios, por assim dizer como meio para vencer a noite, segundo pensei, eu
tinha de inventar algo diverso, pois simplesmente ficar sentado ou andar de lá para cá por um
lado não era suficiente, e por outro era impossível, como já vira. Pensei se não seria melhor sair
do quarto, sair de casa, e enfiei meu casaco e saí do quarto e desci ao átrio. Dei uma olhada na
cozinha, onde as moças da cozinha nem ordem haviam passado na bagunça deixada no bufê
pelos hóspedes, isso me deu o que pensar, porque revelava uma negligência das moças da
cozinha e naturalmente, de forma indireta, uma negligência de minhas irmãs, na condição de suas
patroas, ou em todo caso um desleixo generalizado, que cabia emendar, e descobri que a pilha de
jornais ainda estava sobre a mesa. Sentei-me à mesa e apanhei os jornais que me vieram às mãos,
acreditando agora poder ler e folhear os jornais com o mesmo desembaraço de meu cunhado
algumas horas antes, o qual já me mostrara com que desembaraço e descaro esses jornais podiam
ser lidos, mas para tanto eu não estava em condições. Enquanto meu cunhado ficara literalmente
absorto pelos jornais, e isso com o maior dos descaros, eu de imediato senti pelos mesmos
jornais repugnância, o que acabara de imaginar como prazer de repente não era mais que
nauseante, e pus os jornais de lado e saí da cozinha. No átrio, segundo me pareceu, havia o
cheiro das pessoas que agora pernoitavam ali, sobretudo o cheiro da tia do Titisee. A capela tinha
o cheiro da tia do Titisee quando entrei na capela. Provavelmente já era por volta da meia-noite,
não me lembro mais. Sempre tive medo da capela, porque ela, como se diz, me pareceu sempre
uma sala de tribunal, não só como criança, também mais tarde, como adulto, e agora eu tinha a
mesma sensação, que não podia permanecer muito tempo nela sem ser por ela agredido, então
tive de sair. O casaco me dava agora muito calor, tirei-o, joguei-o sobre os ombros e atravessei o
parque em direção da orangerie. A orangerie naturalmente estava aberta e eu pensei, o parque
inteiro já está imerso no cheiro de decomposição exalado pelos corpos. Simplesmente vou entrar
na orangerie, pensei, e entrei. Os caçadores, que ainda continuavam lá, que ainda não haviam
sido rendidos, de imediato assumiram posição de sentido quando me viram entrar, minha
chegada os pegara inteiramente de surpresa, porque me aproximara em surdina da orangerie.
Essas pessoas são a vida inteira personagens de teatro, pensei ao vê-los, quem os tenha nas mãos
pode fazer com eles o que quiser, em última análise executam toda ordem, mesmo a mais
insensata, a mais absurda, essa é sua índole militar, pensei, são ordenados para sair e obedecem,
são ordenados para entrar e obedecem, são enviados à morte e obedecem. Meu pai sempre foi e
continuou a ser para eles o senhor coronel, pensei, que ele fora na guerra, no período nazista.
Mas o senhor coronel não caiu no chamado campo de batalha, como seria condigno a sua
categoria, mas foi morto ao colidir sua cabeça contra o pára-brisa de seu carro no trevo de
Lambach, pensei. Quis saber outra vez se os blocos de gelo haviam sido trocados e se havia
blocos de gelo suficientes, mas para esse fim não acenei, como teria sido natural, a um dos
caçadores, mas fui até um deles e perguntei se os blocos de gelo haviam sido trocados e se havia
blocos de gelo suficientes, ao que o caçador de guarda fez que sim com a cabeça. Dirigindo a
palavra ao caçador, sujeitara-me por inteiro ao cerimonial organizado pelas minhas irmãs,
solícitas afinal de contas. Consoante nosso tradicional plano de velório e enterro. Outra vez não
pude me conter e tentei erguer o tampo do caixão de minha mãe, mas o tampo estava de fato
firmemente parafusado. O constrangimento de ser observado pelos dois caçadores ao tentar
erguer o tampo já me era agora indiferente, fechei os olhos a ele. Não sabemos mais nem o que
estamos fazendo, disse comigo, quando nossos nervos, de tão extremamente tensos, parecem que
vão rebentar a qualquer instante. Dando um passo atrás, e só para não fazer triste figura aos
caçadores por deixar de supetão a orangerie sem o menor embaraço, postei-me uma vez mais
diante dos caixões, pensando apenas, porém, que os caçadores eram gente repulsiva, a mais
repulsiva de todas, que não suportava mais a visão de seus uniformes, que execrava seus rostos e
que suas fisionomias sempre me haviam sido repulsivas, e de súbito tive medo do dia seguinte.
Mas tudo vai correr às mil maravilhas, disse comigo logo em seguida com as palavras de minha
irmã Caecilia, que nas últimas horas já repetira várias vezes o mil maravilhas, segundo pensei, a
propósito das cerimônias fúnebres. Posso confiar plenamente em minhas irmãs, disse comigo,
sobretudo em Caecilia. Que decerto não está dormindo, que está deitada em sua cama e passa
mentalmente em revista o cortejo fúnebre, inspecionando-o a fundo. E não lhe escapa nada que
seja incômodo ou mesmo só pareça incomodar, pensei. O dom da organização, do arranjo,
Caecilia herdou-o de minha mãe, pensei, o dom da encenação, por assim dizer. E ela encenará o
enterro exatamente como minha mãe o teria encenado. E sempre com a sensação de que minha
mãe zela para que tudo realmente seja encenado a seu modo, e não outro. Será representado um
enterro, pensei, o enterro ainda por cima de nossos pais e nosso irmão, dirigido por Caecilia, num
instante me vi diante de um cartaz de teatro com a indicação precisa do programa. O título é, os
atores são, a direção é de, e assim por diante, pensei. Os caçadores não perderam o controle, eu
também não, pois fiquei bastante tempo diante dos caixões, imaginando, saboreando mesmo, a
estréia do espetáculo marcada para a manhã seguinte, sob a direção de minha irmã. De repente
pensei o que ocorreria se o tampo do caixão de minha mãe fosse mesmo aberto e Spadolini fosse
obrigado por mim a examinar o conteúdo do caixão, mas interrompi esse pensamento, com
violência. Para não deixá-lo ressurgir, saí da orangerie. Mas lá fora o ar estava agora ainda pior
que antes, abafado, quase insuportável. Se agora for até a vila das crianças, supus, pela primeira
vez sozinho depois de tanto tempo, minha disposição de espírito vai melhorar, e fui até a vila das
crianças, mas antes dei ainda um pulo na feitoria. Os animais estavam deitados feito mortos nos
estábulos, a visão era nauseante, não suportava a morrinha dos corpos dos animais, não era como
Johannes, que sempre fora atraído pelo cheiro dos animais, que amava esse cheiro. Eu não sou
Johannes, pensei. Para mim também não manava quietude dos animais, toda gente sempre afirma
que se aquieta na presença de animais, eu pelo contrário sempre logo me irritava quando estava
na presença de animais e era obrigado a inalar o cheiro deles. Nunca soube o que fosse o
chamado amor pelos animais, nem o aprendi com o correr do tempo. Os animais sempre me
deram medo. Meus sonhos eram sempre povoados de animais que me atacavam e devoravam,
minha infância foi fértil desses terríveis sonhos de animais. Seguidas vezes constatei que, ao
contrário de Johannes, a quem eles sempre aquietaram, os animais sempre me inspiraram
inquietação, medo e pavor, como se diz. Mesmo hoje os animais me afligem, me atacam, me
devoram em meus sonhos. Mas seguidas vezes fiz a tentativa de me aquietar na presença dos
animais, porque isso funciona para todos os outros, segundo pensei a respeito, mas minhas
tentativas nesse sentido, posso dizer, a vida inteira fracassaram. Os animais sempre me foram
pelo menos sinistros, mesmo os menores, os mais insignificantes, e sempre tive medo também de
qualquer contato com insetos, por exemplo, para não falar dos peixes, que meu irmão capturava
com as próprias mãos, exultante de prazer, agarrava-os pelo rabo para lhes despedaçar a cabeça e
jogá-los fora, ainda hoje vejo muitas vezes os peixes massacrados pelo meu irmão descerem o
riacho atrás da vila das crianças, os flancos voltados para a luz do sol, refulgindo prateados. Os
filhos dos empregados nunca se importavam de decepar a cabeça aos frangos no cepo, pelo
contrário, exultavam de prazer, e Johannes também, a quem isso era proibido por meus pais, mas
que justamente por isso o fazia com muita freqüência para seu próprio prazer, decepar a cabeça
às galinhas. De um só golpe ele era capaz, desde pequeno, de decepar a cabeça a uma galinha e
observar como o tronco da galinha seccionado da cabeça ainda voava pelos ares uns vinte ou
trinta metros, em seus desvairados estertores. Johannes também sempre exultava de prazer ao
observar os porcos sendo degolados, quando as vacas eram abatidas no matadouro anexo a
Wolfsegg, para nosso caldo de carne, como sempre dizia meu pai. Eu olhava fascinado, tomava
parte também, mas aquilo nunca me deu o mesmo prazer que a Johannes, aquilo tudo sempre me
estarreceu, pensei. Eu não sou Johannes. No estábulo das vacas contei de uma só olhada noventa
e duas reses, o número ideal, dizia meu pai. Pelo menos aqui as atividades ainda continuam
intactas, pensei. Os condutos de leite por sobre a cabeça das vacas custaram trezentos e oitenta
mil xelins, pensei, isso me ocorrera, minha mãe o salientara expressamente certa vez.
Naturalmente, pensei, a fábrica de leite impressiona bem. Então fui até a vila das crianças. De
fato elas deixaram abertas todas as janelas da vila das crianças, pensei, mas não porque eu disse
que as janelas deviam permanecer abertas por dias a fio, senão porque esqueceram de fechá-las.
Não veio nenhuma tempestade, pensei, mas uma tal tempestade sem dúvida pairava no ar. Agora
é que você não pode mais procurar Alexander, pensei, e sentei-me no banco diante da vila das
crianças. Se Alexander tivesse ficado para o jantar, Spadolini não teria sido tão expansivo,
pensei. O jantar transcorreria de modo inteiramente diverso, Spadolini teria se mostrado bem
diferente. Alexander simplesmente desataria a rir de muitos comentários de Spadolini e exporia
Spadolini ao ridículo, que na presença de Alexander haveria de ter seguido uma tática toda outra.
Spadolini me parecia agora o mau caráter, Alexander o bom. Mas quando digo, Alexander é o
bom caráter, Spadolini o mau, pensei, isso também não é correto. No que tange a Alexander, a
boa pessoa que ele é encobre por assim dizer muita coisa ruim que jamais veio à luz. Por
exemplo, a impiedade francamente obtusa que Alexander manifesta quando quer impingir suas
idéias a alguém, o modo que ele castiga quem lhe oponha resistência, guardando silêncio por
dias a fio, trancando-se em seu quarto, ameaçando suicidar-se, essa boa pessoa é um ameaçador,
uma pessoa impiedosa, que em virtude de uma idéia por ele concebida, ridícula sem dúvida, é
capaz de levar uma pessoa ao desespero e quem sabe matá-la, pensei. Mas esse Alexander
demoníaco é encoberto por aquele benquisto, sempre amável, sempre disposto a ajudar, pensei.
Se, mesmo que seja só em nossa cabeça, observamos por um tempo uma pessoa, por amável que
ela seja, e não importa o quão distante de nós esteja a pessoa por nós observada, de boa ela se
torna pouco a pouco má, não sossegamos enquanto da pessoa boa, amável, não tenhamos feito
uma pessoa má, indigna, se isso nos for conveniente, porque estamos dispostos a um tal abuso,
estamos dispostos a qualquer abuso para por exemplo nos salvar de estados de ânimo
terrivelmente aflitivos, nos quais nos precipitamos sem saber como. De fato, pensei,
provavelmente porque Spadolini não me bastasse mais, porque todos os outros também não me
bastassem mais, abusei nesse momento de Alexander a fim de me salvar, simplesmente me
apossei do bom Alexander e, para meus fins, fiz dele pouco a pouco uma pessoa má, malvada,
como todos aqueles que antes me pareceram adequados a tanto. Sem nos arranjar mais com a
leitura, com o andar de lá para cá, com o olhar pela janela, temos então de recorrer a nossos
amigos mais próximos e íntimos para nos salvar de um impiedoso estado de ânimo, pensei.
Observo isso repetidas vezes em mim, que eu, quando esse impiedoso estado de ânimo toma
posse de mim mais ou menos por completo, simplesmente chamo de parte, uma após a outra,
todas as pessoas possíveis para dissecá-las e massacrá-las em minha cabeça, para arrasar tudo o
que haja nelas, a fim de me salvar e delas não deixar praticamente o menor resquício positivo, a
fim de poder finalmente respirar de novo. Não fossem mais meus pais e minhas irmãs, porque
não me bastassem mais, pensei, nem Johannes nem todos os outros, então eu próprio, com
desespero e coerência extremos, era por mim arrasado a minha maneira, que só posso definir
como a mais implacável de todas. E agora, nesse momento, era justamente Alexander, porque
minhas irmãs e Spadolini e meu cunhado não bastavam mais para meus abusos. Essa é a verdade.
A fim de nos aliviar, passamos de fato por cima de todo o mundo, pensei agora. Na vila das
crianças procurei a infância, mas naturalmente não a encontrei. Em todos os aposentos entrei à
procura da infância, naturalmente não a encontrei. Com que propósito, na verdade, pensei, vou
restaurar a vila das crianças? Quando não há mais ninguém que possa desfrutar da vila das
crianças, aproveitá-la, pensei, e logo em seguida que seria afinal um absurdo restaurar a vila das
crianças, tal como até esse momento era meu intuito, torná-la de novo a vila das crianças que
fora uma vez para nós crianças, pensei, só de pensá-lo é um absurdo, pois não se pode mais
restaurar a infância restaurando a vila das crianças, pensei, acreditara que mandando restaurar a
vila das crianças de cima a baixo, mandando renová-la, como dizem minhas irmãs, restauraria a
infância, a renovaria por assim dizer de cima a baixo. Minha infância agora já está tão
abandonada quanto a vila das crianças, pensei. Os quartos da infância foram igualmente
esvaziados e dilapidados, foram pilhados como a vila das crianças, minha infância, porém, não
por minha mãe, como a vila das crianças, senão por mim mesmo, eu pilhei e dilapidei minha
infância com uma impiedade ainda muito maior que minha mãe a vila das crianças, dilapidei
sobretudo os mais belos objetos da infância, exatamente como minha mãe os mais belos objetos
da vila das crianças, e de nada mais adianta que agora eu escancare as janelas da infância, seria
tão ridículo quanto escancarar as janelas da vila das crianças, pensei. Minha infância foi
completamente gasta e consumida por mim, pensei, vendida a troco de banana, pensei. Minha
infância eu a explorei até a última gota. Procuramos por toda parte a infância e só encontramos
por toda parte o célebre vazio hiante, pensei, quando entramos numa casa na qual passamos
horas ou até mesmo dias tão felizes na infância, acreditamos olhar infância adentro, mas olhamos
apenas esse famigerado vazio hiante, pensei. Eu entro na vila das crianças significa apenas eu
entro no vazio hiante, exatamente como se entrasse no bosque em que fui tão feliz na infância,
não significaria nada mais senão entrar no célebre vazio hiante, como se entrasse onde quer que
tenha sido feliz quando criança e só me deparasse com o vazio hiante. Dilapidamos nossa
infância como se ela fosse inesgotável, mas ela não é, pensei, logo ela se esgota e não deixa nada
mais senão esse célebre vazio hiante. Mas isso não acontece só comigo, pensei, acontece com
todos, e senti um consolo instantâneo por ninguém ser poupado desse conhecimento, naquele
instante concedia esse conhecimento a todos. Visitar a infância, quando ficamos velhos ou
velhuscos, nada mais significa senão olhar esse famigerado vazio hiante, que nos enche de pavor
como nada mais. Nesse sentido foi bom haver tido a idéia de entrar na vila das crianças na crença
de que entrasse também na própria infância, de que tal fosse possível, o que se revelou agora
como um erro salutar, pois de ora em diante não acreditarei mais que só preciso entrar na vila das
crianças para entrar na infância. Que só preciso entrar no bosque da infância e ato contínuo entro
na infância, entrar na paisagem de infância e acreditar que entre de novo na infância, pois agora
entro apenas nesse famigerado vazio hiante. E não me exporei mais a essa pavorosa confrontação
com esse famigerado vazio hiante, pensei. Em Roma, cada vez que penso em Wolfsegg, parece-
me que só preciso ir a Wolfsegg para entrar na infância. Sempre se revelou um erro esse
pensamento, um erro bem sórdido, abjeto, pensei. Você visita seus pais, pensei muitas vezes em
Roma, e visita os pais de sua infância, mas no fim só visitou esse famigerado vazio hiante ao
visitar seus pais. A infância você não pode mais visitá-la, porque ela não existe mais, disse
comigo. A vila das crianças te mostra sem indulgência que a infância não é mais possível. Você
tem de se resignar a isso. Agora tudo o que você vê quando se volta para trás é somente esse
vazio hiante, pensei, e não só no que respeita à infância, seja lá o que pertença ao passado agora
é apenas o vazio hiante, disse comigo. Por isso é bom que você não se volte mais para trás, você
não deve, quando menos por motivos de resguardo, voltar-se para trás, isso você deve saber,
pensei agora. Ao voltar-se para o passado, você só vê o vazio hiante, pensei, ao olhar para a
véspera, já não há nada mais senão o vazio hiante, pensei, mesmo se olhar em retrospecto o
instante apenas transcorrido, você só olha agora o vazio hiante. Você quis entrar na vila das
crianças para entrar na infância, pensei, que décadas a fio você jogou pela janela como se
inesgotável, e com isso esgotou-a completamente, você a gastou sem escrúpulos, pensei. Você
cedeu a um sentimentalismo de todo primitivo e, após ter esgotado inteiramente as outras
possibilidades, teve essa idéia da vila das crianças. Mas essa idéia mostra-se agora em todo seu
horror e terror, a vila das crianças é de súbito um pesadelo. Ao pensar, e ainda por cima ao dizer
a suas irmãs, que mandará restaurar a vila das crianças, você de fato acreditou que fosse possível
mandar restaurar, junto com a vila das crianças, também a infância. Por assim dizer você
acreditou de fato poder mandar repintar, tal como a vila das crianças, também a infância, mandar
por assim dizer passar reboco novo na infância, refazer-lhe o telhado etcétera. Quando na
verdade com esse pensamento você já assistiu centenas de vezes à derrota de sua infância,
pensei, pois não é a primeira vez que te ocorre essa história de mandar restaurar a vila das
crianças e ao mesmo tempo sua infância, pensei. Você já a entreteve várias vezes, impingiu essa
idéia aos outros e viu como eles fracassaram ao pôr em prática essa idéia, essa mais absurda de
todas as idéias. Você os impeliu de caso pensado a esse pensamento condenado ao fracasso,
calou sobre sua experiência cruel com essa mais absurda de todas as idéias e, calando,
abandonou-os. Infame. Deixei a vila das crianças para trás e fui ao escritório. O pavilhão dos
caçadores não estava trancado, provavelmente para que os caçadores pudessem entrar e sair
livremente em vista da guarda montada junto aos caixões, pensei. Que com certeza eu não viria,
como meu pai, todos os dias ao escritório nem me sentaria para despachar a correspondência de
negócios, para conversar com o feitor que houvesse mandado chamar, com a criadagem em
geral, nesse ar sufocante. No futuro não vou ter de considerar o escritório, como meu pai, o meu
verdadeiro espaço vital, pensei. Os fichários de argolas não vão tolher minha existência como
tolheram a existência de meu pai, acabando por esmagá-lo. Os fichários de argola primeiro
tolheram a existência de meu pai, pensei, então um dia despencaram sobre ele e o esmagaram.
Não é uma visão, pensei, é a realidade. A correspondência de negócios fez de meu pai um
escravo dos negócios, ele subordinou sua existência inteiramente a essa correspondência diária
de negócios, pensei. Primeiro seus pais, meus avós, encerraram-no neste escritório, e então o
escritório simplesmente o esmagou, pensei. A mim não esmagará, não vou me deixar esmagar
por ele. O escritório é disposto de tal forma que esmaga qualquer um, pensei. Não acendi a luz,
para não ser descoberto. Mas naturalmente os caçadores perceberam há muito que estou no
escritório, pensei. Jamais porei os pés no escritório como fazendeiro, não sou fazendeiro, a
fazenda absolutamente não me interessa. Num dos fichários de argola consta também quando e
quanto me foi enviado de Wolfsegg durante todas essas décadas que estive longe de Wolfsegg.
Levantei-me e procurei o respectivo fichário, mas não encontrei nenhum com meu nome. Todos
os nomes possíveis estavam escritos nos diversos fichários de argolas, o meu não. A quanto
monta, de fato, a quantia imensa de que sempre falou meu pai, a quantia imensa pela qual minha
mãe e minhas irmãs, estas porém com maldade tanto maior, sempre me repreenderam? Eu tinha
sempre me feito sustentar por Wolfsegg, disseram, não hesitara em exigir sempre mais dos cofres
de Wolfsegg, os tinha pouco a pouco extorquido, como diziam, pensei. Aqui, dizia comigo, aqui
deve estar o fichário de argola em que está registrada a quantia imensa, aqui, aqui, aqui, mas não
o encontrava. Retirei vários fichários de argola, folheei-os, mas não encontrei aquele que me
seria fatal, pois minha mãe, ocorreu-me, certa vez me dissera que cairia morto se visse a quanto
já montava a soma que haviam gasto comigo. Com o imprestável, pensei, como elas sempre me
definiram, aquele que abusa de Wolfsegg para seus propósitos dúbios, asquerosos, para seus
asquerosos propósitos intelectuais, pensei comigo. O sinhômoço vai passear em Roma enquanto
a gente aqui dá duro, dizia meu pai a todo o mundo caso se indispusesse comigo, e nos últimos
anos, quando ficou claro que eu não tinha mais a intenção de retornar a Wolfsegg, que
permaneceria em Roma, ou pelo menos bem longe de Wolfsegg, numa terra de espírito, por
assim dizer, também meu pai só fazia se indispor comigo, pensei. Ele não hesitava em me
rebaixar na frente de todo o mundo por causa da mesada que me enviava e a que eu fazia jus,
como pensava agora. E eles próprios, por quantos absurdos não jogaram sempre pela janela
aquela dinheirama toda, pensei, só de pensar na mania de vestidos de minha mãe, na mania
hipócrita de meu pai subvencionar associações e na mania de Johannes por barcos a motor e a
vela, que custavam uma dinheirama que eu jamais gastei. É verdade, pensei, minhas irmãs
sempre foram as que custaram menos, mas também não valem mais que isso, pensei. É pena
cada centavo que lhes puseram nas mãos, pensei. Meu pai esteve mais ou menos em casa nesse
pavoroso escritório bolorento. Esse tampo de escrivaninha era por assim dizer o tampo de
refúgio, diante do qual ele se refugiava dos seus, para escapar aos seus escrevendo essas
absurdas cartas de negócios, como aquela que ainda se achava sobre a escrivaninha, escrita de
próprio punho. De um lado ele se sentava ao trator e fechava os olhos ao fedor e aos solavancos
infernais do trator para escapar aos seus, de outro lado, pela mesma razão de fuga, ia todo dia ao
escritório. Nesse final horrendo de sua vida, meu pai foi uma pessoa completamente sozinha,
pensei. Lastimável. Mas logo em seguida pensei que ele próprio se acomodara a tal situação
lastimável, com plena consciência, sem fazer nada contra ela. Meu pai nunca fez nada contra ela,
era muito fraco para contra ela fazer algo, seja lá o que fosse, o contra nunca foi o forte de meu
pai, pensei, ele preferiu trilhar esse caminho lamentável da atrofia total, sórdida, pensei. Uma
natureza tão colossal, pensei, e uma propriedade de fato tão colossal, e meu pai levou essa vida
lamentável, agarrado à escrivaninha. O escritório fez de seu rosto aquela máscara inexpressiva
que ele exibia no fim, pensei. O escritório em última análise o aniquilou. De nada mais
adiantaram as chamadas viagens culturais feitas duas vezes ao ano. Era só cansado, a
contragosto, que ele as empreendia, era cansado que delas retornava, nauseado pela tentativa
malograda de escapar a si próprio. Então o escritório era outra vez seu refúgio, pensei. Pouco a
pouco e sem chamar a atenção ele foi de um lado destruído pelos seus, que tinham em vista sua
destruição, pensei, e de outro lado por esse escritório, no qual toda a imbecilidade burocrática
acumulou-se com o único fim de esmagar meu pai e sua existência. Mas foi também nessa
imbecilidade burocrática que meu pai, pensei, buscou refúgio de sua mulher histérica, nossa mãe,
correndo para o escritório, no qual se trancava a maior parte do tempo, pensei. Somente os
caçadores tinham acesso irrestrito ao escritório, ninguém mais. Os familiares tinham de se fazer
anunciar, se batessem à porta sem antes se fazer anunciar não eram recebidos, meu pai lhes
proibia o ingresso, a seus implacáveis destruidores, por assim dizer. Não vou deixar que esse
escritório nem me destrua nem me aniquile, pensei, meu refúgio é que ele não será. Não farei dos
fichários de argolas, como meu pai, meus companheiros secretos e silenciosos por meias
jornadas ou jornadas inteiras e muitas vezes ainda, da maneira mais repulsiva, por meias noitadas
ou noitadas inteiras. Minha ponte de comando, como meu pai chamava o escritório com muita
freqüência, é que ele não será, pensei, e ainda naquele instante sentia como uma humilhação
pessoal, infame, o fato de meu pai, com consciência ou não, definir o escritório como sua ponte
de comando, quando na verdade ele jamais exerceu um poder de comando efetivo em Wolfsegg,
porque o comando aqui só foi exercido sempre por nossa mãe. Ela deixava que nosso pai
pronunciasse sem rodeios a expressão ponte de comando, até mesmo em público, porque sabia o
quanto a expressão ponte de comando por ele pronunciada naquele instante sempre fora ridícula
para ela. Não, não, meu é que esse escritório não será, pensei. Não vou me deixar dominar pelos
fichários de argola. Milhões são dominados por fichários de argola e não se livram mais deste
humilhante domínio, pensei. Milhões são oprimidos pelos fichários de argola. Há um século toda
a Europa deixa-se oprimir pelos fichários de argola, e a opressão dos fichários de argola se
agrava, pensei. Em breve toda a Europa não será só dominada pelos fichários de argola, mas
aniquilada. Isso eu também disse uma vez a Gambetti, que sobretudo os alemães se deixaram
oprimir pelos fichários de argola. Mesmo a literatura dos alemães é uma literatura oprimida pelos
fichários de argola, disse uma vez a Gambetti. Cada livro alemão que abrimos, e que tenha sido
escrito nesse século, disse a Gambetti, é um livro oprimido pelos fichários de argola. Oprimida e
quase inteiramente aniquilada pelos fichários de argola, essa é a literatura que produzem os
alemães, disse a Gambetti. Na Alemanha tudo é governado pelos fichários de argola, disse a
Gambetti. E essa literatura de hoje, oprimida pelos fichários de argola, é naturalmente por isso a
mais lamentável, nunca houve antes uma literatura tão incapaz e lamentável, disse a Gambetti. É
uma ridícula literatura de escritório, ditada pelos fichários de argola, ao menos essa é minha
impressão toda vez que leio um livro escrito hoje. Todos esses livros eram de uma miséria sem
tamanho, disse a Gambetti, porque vêm da cabeça de pessoas que se deixam dominar
completamente pelos fichários de argola, a vida inteira, Gambetti, disse. Uma literatura pequeno-
burguesa é o que temos diante de nós quando temos diante de nós a literatura alemã, mesmo os
grandes exemplos dessa literatura alemã não são outra coisa, Gambetti, Thomas Mann, o próprio
Musil, disse, que de todos esses produtores de literatura de burocratas é quem ainda coloco em
primeiro lugar. Mas mesmo Musil não escreveu outra coisa senão uma lamentável literatura de
burocratas. Essa literatura é burguesa até a medula, em grande parte pequeno-burguesa, disse a
Gambetti no Pincio, mesmo a de Thomas Mann, mesmo a de Musil, que se deixaram dominar
completamente pelos fichários de argola em cada linha que escreveram. Quando lemos essa
literatura vemos escrever um burocrata, um burocrata ora mais, ora menos pequeno-burguês, a
quem no fundo e em última análise só os fichários de argola guiaram a pluma. O burguês distinto
Thomas Mann escreveu uma literatura pequeno-burguesa até a medula, disse a Gambetti, que em
termos absolutos é aliás concebida e escrita para os pequeno-burgueses, os pequeno-burgueses
devoram essa literatura com gosto, Gambetti, disse a ele. Há pelo menos cem anos só existe uma
literatura que chamo de escritório, uma burocrática literatura pequeno-burguesa, disse a
Gambetti. E seus mestres foram Musil e Thomas Mann, para não falar dos outros. Se deixarmos
Kafka de lado, disse a Gambetti, que foi de fato um funcionário, mas o único a não ter escrito
uma literatura de funcionários e burocratas, todos os outros não escreveram outra coisa, pois de
outra coisa não foram capazes. O funcionário Kafka, disse a Gambetti, foi o único a não ter
escrito uma literatura de funcionários e burocratas, senão uma grande literatura, o que não se
pode afirmar dos grandes escritores alemães desse século, a menos que se queira fazer causa
comum com os milhões de escrevinhadores das páginas culturais, que nesses últimos cem anos
fizeram dos jornais uma sopa dos pobres da cultura, na qual fervem e refervem até a saciedade
seus erros de deixar os cabelos em pé, Gambetti. Afinal de contas, disse a Gambetti, nesse século
os alemães só produziram uma literatura dominada pelos fichários de argola, que não hesito em
definir como uma simples literatura de fichários de argola, para não me comprometer aos olhos
de uma época que um dia irá desmascarar essa literatura de fichários de argola como uma
literatura de fichários de argola e despejá-la onde merece estar, na lata de lixo da história da
literatura, Gambetti. Por outro lado, essa literatura escrita hoje é a nossa literatura, disse a
Gambetti, e, gostemos ou não, teremos de conviver com ela, porque a ela nos consagramos,
como disse a Gambetti de maneira um tanto patética, não nos resta outra alternativa. É fato que
temos vários vértices por assim dizer imponentes em nossa literatura, disse a Gambetti, mas não
podemos compará-los a Shakespeare, por exemplo. Gambetti ouviu-me com atenção, pensei,
deu-me ouvidos, como se pode dizer, mas não me levou a sério, como acredito, e eu pensara, é
pena que justo nesse ponto, a respeito da literatura alemã contemporânea, ele não me leve a sério.
No fim de meu discurso aliás, como que para consolá-lo, eu lhe dissera, Maria é uma exceção,
querendo dizer com isso que Maria escreveu poemas que, em suma, são melhores do que tudo o
mais produzido no seu e portanto no nosso tempo em língua alemã. Pode ser que ele tenha
tomado isso como um gracejo sedutor meu, inspirado pela amizade, mas eu pensara, estou lhe
dizendo a verdade, tenho plena convicção de que os poemas de Maria são um ponto culminante
de nossa literatura, e não só dessas nossas míseras décadas, senão desse nosso século, que, assim
disse a Gambetti, provavelmente transcorrerá sem nos brindar mais com nenhum ponto
culminante na literatura, essa é minha opinião, Gambetti, disse a ele, os alemães e nós estamos
tão debilitados que, pelo menos nos próximos cinqüenta anos, não conseguiremos mais, nem eles
nem nós, produzir um tal ponto culminante. Pois em milagres, Gambetti, eu desisti faz tempo de
acreditar. E muito menos num milagre literário. Aliás, disse a Gambetti, é improvável que no
final desse século esse mundo, tal como o conhecemos hoje e temos de digeri-lo a cada dia,
ainda exista, isso eu duvido seriamente, tudo parece indicar que muito em breve o mundo estará
tão modificado que não será mais reconhecido, será um mundo modificado pela raiz e de fato
destruído pela raiz. Tudo o leva a crer, disse a Gambetti. Mas essa minha visão, disse a Gambetti,
contém implicitamente meu erro. Ao que Gambetti riu, a risada sonora, solta e desbragada de
Gambetti, pensei. Muitas vezes somos levados a tal ponto por um exagero, disse mais tarde a
Gambetti, que acabamos por considerar esse exagero como o único fato lógico e não percebemos
mais o fato real, só o exagero levado desmedidamente ao extremo. Sempre me satisfiz com esse
fanatismo do exagero, disse a Gambetti. Essa é às vezes a única possibilidade, quando faço desse
fanatismo do exagero uma arte do exagero, de me salvar da miséria de meu humor, de meu tédio
espiritual, disse a Gambetti. Aprimorei a tal ponto minha arte do exagero que posso me definir
sem rodeios o maior artista do exagero de que tenho notícia. Não conheço outro. Ninguém
jamais levou sua arte de exagero a tais extremos, disse a Gambetti, e em seguida, que eu, se me
perguntassem à queima-roupa o que verdadeira e secretamente eu era, só poderia responder, o
maior artista do exagero de que tenho notícia. Ao que Gambetti irrompeu novamente em sua
risada de Gambetti e me contagiou com sua risada de Gambetti, e assim nessa tarde no Pincio
nós dois rimos como jamais havíamos rido antes. Mas mesmo essa frase é naturalmente de novo
um exagero, penso agora, enquanto a escrevo, e índice de minha arte do exagero. Naquele dia eu
disse a Gambetti que a arte do exagero era uma arte da superação, da superação da existência na
minha acepção, disse a Gambetti. Suportar a existência por meio do exagero, por meio enfim da
arte do exagero, disse a Gambetti, torná-la possível. Quanto mais envelheço, mais me refugio em
minha arte do exagero, disse a Gambetti. Os grandes mestres em superar a existência foram
sempre grandes artistas do exagero, seja lá o que tenham sido, o que tenham criado, Gambetti,
eles afinal só o foram por meio de sua arte do exagero. O pintor que não exagera é um pintor
ruim, o músico que não exagera é um músico ruim, disse a Gambetti, tal como o escritor que não
exagera é um escritor ruim, podendo ocorrer também que a verdadeira arte do exagero consista
em subentender tudo, então temos de dizer, ele exagera o subentendido e faz assim do
subentendido exagerado sua arte do exagero, Gambetti. O segredo da grande obra de arte é o
exagero, disse a Gambetti, o segredo da grande filosofia também, a arte do exagero é como um
todo o segredo do espírito, disse a Gambetti, mas depois abandonei esse pensamento absurdo,
que a um exame mais detido sem dúvida teria se revelado o único correto, e me afastei do
pavilhão dos caçadores em direção da feitoria e me dirigi à vila das crianças, pensando que fora a
vila das crianças que me levara a esses pensamentos absurdos. Extinção, pensei no caminho de
volta da vila das crianças para a feitoria, por que não? Mas não será para logo. Vou precisar de
muito tempo. Mais que um ano. Talvez dois, talvez mesmo três anos. Vez por outra nos supomos
perfeitamente habilitados a um trabalho intelectual, mesmo a um destes que tenha de ser posto no
papel, como a Extinção, mas então recuamos apavorados, de contínuo, porque sabemos bem que
provavelmente não lhe resistiremos, que quando talvez já o tivermos levado bastante adiante, de
súbito fracassaremos, e então tudo estará perdido, não só o tempo que teremos gasto nele, que
teremos desperdiçado, como se evidenciará implacavelmente, mas além disso o papelão que
teremos feito, se não perante todo o mundo, perante nós mesmos, da maneira mais pavorosa.
Essa frustração não queremos cá provocá-la e, embora com a sensação de que pudéssemos dar
início a um tal trabalho intelectual, recusamos iniciá-lo, o adiamos, como quem quisesse adiar
um imenso fiasco, um imenso fiasco para si mesmo, pensei. Exigimos dos outros que ao menos
façam bem seu trabalho, que no fundo o executem extraordinariamente, pensei, e nós mesmos
não realizamos nada, nem lançar por escrito o mais ridículo produto intelectual, mas o fato é este,
pensei, exigimos de todos mundos e fundos e nós próprios não alcançamos nem sequer o
mínimo. Não queremos nos expor a essa temível humilhação de nosso próprio fracasso, e assim
adiamos de contínuo nossa idéia de lançar por escrito esse produto intelectual, com todos os
meios, com todos os subterfúgios, com todas as baixezas que julgamos úteis. Somos de súbito
muito covardes para lhe dar início. Mas por outro lado temos sempre na cabeça um tal trabalho
intelectual e queremos realizá-lo custe o que custar. Nós nos propusemos a ele, dizemos conosco,
e andamos de cima para baixo com esse propusemos na cabeça, dias a fio, semanas a fio, meses a
fio, anos a fio, quem sabe décadas a fio, mas não nos sentamos para efetivamente lhe dar início.
O que temos em propósito é algo tremendo, dizemos conosco, e quem sabe o dizemos porque
somos vaidosos demais para calar a respeito, também a outros o dizemos, mas de fato só somos
capazes de algo absolutamente ridículo. Vou escrever uma obra tremenda, digo comigo, e ao
mesmo tempo tenho medo dela e nesse instante de medo já terei fracassado, na absoluta
impossibilidade de sequer lhe dar início. Dizemos bombasticamente que temos em propósito
algo tremendo e ímpar, não hesitamos em absoluto a uma tal declaração, mas ao mesmo tempo
vamos para a cama cabisbaixos e tomamos um sonífero, em vez de dar início ao tremendo e ao
ímpar. Assim somos nós, disse uma vez a Gambetti, nos gabamos de ser capazes de
absolutamente tudo, mesmo do que há de mais excelso e sublime, e não temos nem sequer
condições de tomar a pena na mão a fim de pôr no papel uma palavra sequer dessa nossa
proclamada obra tremenda e ímpar. Nós todos sofremos de megalomania, disse a Gambetti, para
não termos de pagar nossa ininterrupta baixeza. Extinção, pensei, mas, para ser sincero, mesmo
depois de anos só tinha dela uma vaga noção, não penso em algo tremendo, disse a Gambetti,
nem em algo ímpar, porém em algo mais do que um mero esboço, mais do que um esboço de
existência, em algo que tenha bom êxito. Só em algo que tenha bom êxito e do qual não tenha de
me envergonhar, disse a Gambetti. Considero-me apto e habilitado a escrever aquilo que me
parece digno ser escrito, porque tal é importante para mim e ainda por cima me propicia um
grande prazer, segundo penso. Não sou propriamente um escritor, disse a Gambetti, apenas um
corretor de literatura, e alemã, só isso. Uma espécie de corretor de bens literários, disse a
Gambetti, faço corretagem de imóveis literários, por assim dizer. E se hoje qualquer um que
escreva cartões-postais se intitula escritor, disse a Gambetti, eu próprio, mesmo depois das
centenas de escritos que já ensaiei e que já compus, não me denomino escritor. Aliás odeio a
maioria dos escritores, disse a Gambetti, amo pouquíssimos, mas estes com todo o fervor de que
disponho. Evitei minha vida inteira os escritores, os escriturários, como prefiro defini-los,
sobretudo os alemães, disse a Gambetti, minha vida inteira também não me sentei com eles à
mesma mesa, pois, assim disse a Gambetti, conhecer um escritor e sentar-se com ele à mesma
mesa, isso eu imagino como a coisa mais repulsiva que se possa conceber. A obra sim, disse a
Gambetti, mas seu autor, não, disse a Gambetti. A maioria tem mau caráter, quando não um
caráter francamente repulsivo de tão extravagante, e, quem quer que sejam, pelo menos no
contato pessoal, acabam por aniquilar a própria obra, extinguem-na, disse a Gambetti. As
pessoas se acotovelam para conhecer os escritores por elas amados ou venerados, ou também
odiados, e com isso aniquilam por completo sua obra, disse a Gambetti. O melhor método de se
livrar da obra de um escritor, a qual por uma razão ou outra não te deixa em paz, seja porque
você a tenha em alta estima, seja porque a odeie, é conhecer seu autor. Vamos ter com o autor de
uma obra literária e nos livramos dela, disse a Gambetti. Os escritores como um todo são a gente
mais repulsiva que existe, disse a Gambetti, nos meus primeiros anos de estudo eu de fato
procurava os escritores, os importunava, como tenho de admitir, os surpreendia e por fim os
tomava de assalto, como tenho de admitir, disse a Gambetti, me insinuava em sua presença a fim
de espreitá-los. Depois de minhas visitas eu os odiei sem exceção e não pude mais ler nenhuma
de suas obras, Gambetti. Todos esses escritores a quem visitei e mais ou menos espreitei, hoje os
considero pessoas baixas, sórdidas mesmo, estúpidas mesmo, que alcançaram uma certa fama
literária, disse a Gambetti, mas cuja companhia posso dispensar, pois não me oferecem nada
além de sua mediocridade. Tudo nessa gente é medíocre, disse a Gambetti. Tudo nessa gente é
pequeno-burguês e lamentável. Tudo nessa gente fede a maldade sórdida e a baixeza filistéia,
cumulada ainda com megalomania. Toda essa gente é em última análise filistina até a medula, tal
como aquilo que ela escreve e lança no mercado, disse uma vez a Maria. É como se há cem anos
os provincianos venham metendo a mão na literatura alemã. Uma literatura provinciana é o que
temos hoje, nada mais, disse a Maria, pensei a caminho da feitoria, só a sua, Maria, é grande,
ímpar, duradoura, da qual não teremos de nos envergonhar nem daqui a cem anos. Não, disse a
Gambetti, nunca quis ser escritor, isso nunca me passou pela cabeça, mas sempre tive a idéia de
pôr alguma coisa por escrito, só para mim. Que meus escritos tenham sido então publicados aqui
e acolá é algo de que me arrependo. Mas não sou propriamente escritor, Gambetti, disse a ele,
em absoluto. Pela janela entreaberta da feitoria ouvi de passagem a respiração das vacas e pensei
que é muito freqüente nos recordarmos com precisão dos detalhes, dos chamados pormenores,
quando os captamos e penetramos em nossa observação. Quando nos devotamos a esses
pormenores e detalhes, quando primeiro olhamos para eles, depois através deles, por exemplo,
que no caminho da vila das crianças ao escritório eu tenha observado com precisão como as
nuvens atrás da vila das crianças assumiram a forma de um dragão de fauces bem abertas.
Mesmo na lembrança um tal pormenor pode surgir com clareza, vemos então semanas mais
tarde, meses, talvez anos mais tarde o movimento preciso dessa formação de nuvens, penso, o
trazemos à memória sem a menor dificuldade, lhe damos por assim dizer remate sob as ordens de
nosso cérebro, como por exemplo também o movimento de um rosto que vimos certa vez, anos
antes, não nos oferece a menor dificuldade, e assim não me oferece a menor dificuldade ver
agora os rostos dos meus postados diante dos caixões, precisamente como eles se mostraram a
mim quando os vi, em todos os seus movimentos precisos, pois também o rosto dito impassível é
cheio de movimento, porque não está morto, e também assim o rosto morto, porque na verdade
não está morto, e assim por diante. Podemos ainda ver e ouvir com precisão depois de anos, se
dominarmos esse mecanismo que nos torna isso possível. O mesmo acontece com o olfato, como
sabemos. Andamos pelas ruas de Paris e um cheiro nos chama a atenção para algo que de fato
remonta a vinte ou a trinta anos, e vemos esse objeto ou esse acontecimento ou esse encontro em
todos os detalhes, ainda que há vinte ou trinta anos não o tenhamos mais visto. Desse mecanismo
natural eu fiz uma arte, penso, que exercito todos os dias, e nessa arte ainda vou me aperfeiçoar.
As vacas na feitoria respiravam e, de repente profundamente exausto, fui para meu quarto. Era
uma e meia. Fechei as cortinas. Naturalmente não consegui pegar no sono, e durante minha
insônia pensava apenas, o que será agora de tudo? De Wolfsegg e tudo ligado a ela. Por mais de
duas horas estive ocupado somente com esse pensamento, não o que será de Wolfsegg? pensei
então, mas o que farei de Wolfsegg? que, com a morte de meus pais, de fato e no sentido mais
próprio da expressão caiu-me agora sobre a cabeça, que agora ameaçava esmagar-me, Wolfsegg
caiu-me sobre a cabeça com todo seu peso tremendo, pensei. Era loucura me convencer de que,
virando-me na cama ora de um lado, ora de outro, pudesse me acalmar, o beco sem saída de que
subitamente me dera conta em todo seu horror não me deixava em paz, não me deixava formular
um único pensamento razoável e eu não era capaz nem sequer de ficar deitado de um lado por
muito tempo, um minuto que fosse, pois meu coração estava numa agitação dos diabos. Passei
assim o resto da noite a observar compenetrado meu coração, contando sem parar as batidas, as
irregularidades que repetidas vezes quebravam o ritmo dessas batidas em intervalos cada vez
mais breves, o que me pôs apavorado. Meu clínico em Roma me incutiu, de fato, um temor
incurável, pensei, me convenceu de que teria pela frente uma vida curta, não longa, com um
descaramento e uma impiedade sem iguais, como pensava agora, sem a menor sensibilidade. Os
médicos querem, assim pensei, ver confirmados seus prognósticos e preferem falar de um fim
iminente a prometer um mais afastado no tempo, para não fazerem má figura, pois não há nada
que infunda tanto medo nos médicos senão o fiasco de uma morte brusca, repentina, por eles não
prognosticada, então preferem prognosticar continuamente não mais que uma vida breve,
brevíssima mesmo, para se pouparem esse fiasco, como meu clínico romano. Mas devo dizer que
os médicos romanos são melhores que os austríacos, que só posso definir como inescrupulosos e
completamente insensíveis. Assim meu clínico romano previu-me não mais que uma vida breve,
e assim eu, deitado na cama, sem conseguir pegar no sono, pensava, o que vou fazer realmente
de Wolfsegg, coisa que naturalmente não me podia ser clara, muito menos nessas circunstâncias,
o tempo inteiro atentava na velocidade de meu batimento cardíaco, na sua irregularidade.
Ouvimos naturalmente o que o médico, nesse caso o clínico, diz, mas não lhe damos crédito,
ouvimos o que ele disse, mas não damos crédito, ignoramos. Talvez esse ignorar seja o melhor
método, penso agora, mas naturalmente sofremos sem trégua pelo fato de o médico nos haver
dito que não nos resta muito de vida, e assim fugimos sem parar a suas palavras, a suas frases
aniquiladoras, pois afinal queremos viver, nos agarramos à vida, por mais que a rebaixemos e
possivelmente a desprezemos, e queremos de fato tê-la para sempre. Esse tempo todo, semanas,
pensei, meu verdadeiro estado de saúde não me viera à consciência, mas agora o fazia com uma
impiedade tanto maior, enquanto estava deitado na cama, insone, irritado com tudo. Justo quando
tinha de fazer de tudo para me poupar, fosse só da idéia, de talvez um dia escrever essa Extinção
que se radicara em minha cabeça, agora me deixo levar por uma agitação tamanha que só pode
ser, se não fatal, decerto perniciosa para nós, pensei. Que eu me habituara em Roma a um ritmo
benéfico a minha doença, pensei, até mesmo no tocante às aulas a Gambetti, adequando
rigorosamente esse ritmo a minha condição de saúde, e que agora me deixava levar por uma
agitação tamanha que em hipótese alguma me seria dado permitir, pensei. Mas sempre, toda vez
que vinha a Wolfsegg nos últimos anos, eu ficava agitado e sobrecarregava meu coração, pensei,
o que sempre lhe foi extremamente prejudicial. Após minhas visitas a Wolfsegg eu de fato
sempre consultava meu médico romano e ele constatava que eu havia sobrecarregado meu
coração pela simples visita a Wolfsegg, pela simples visita à Áustria, como eu precisava comigo.
Todas essa visitas à Áustria e a Wolfsegg nos últimos anos foram extremamente prejudiciais a
meu coração, sempre o levaram ao limite de suas possibilidades. Mas também nunca tomei
cuidado com meu coração, pensei, por isso meu coração chegou a esse ponto, porque nunca
tomei cuidado com ele, desde criança, um coração não suporta uma natureza como a minha,
disse comigo, cedo ele adoece, enfraquece, porque desde criança foi abusado, desde criança
pequena abusei de meu coração e sempre exigi demais dele, pensei, nunca lhe dei paz. Meu
coração nunca conheceu a paz que devia ter tido, pensei, agora está acabado. Mas em vez de
poupá-lo, de poupá-lo em Roma, com meu ritmo que lhe é subordinado, pensei comigo, viajo a
Wolfsegg prejudicando-o ao extremo e volto a botá-lo numa agitação terrível. Mas é só por esse
dia, disse comigo, e retorno a Roma o mais rápido possível, quando mais não seja por causa de
meu coração, para casa, como disse comigo, pois em Roma estou em casa, não aqui em
Wolfsegg, e torno assim a poupar meu coração, sem lhe exigir demais, como disse meu clínico e
como sempre me repete Maria, você exige demais de seu coração, ela diz sempre, cuide de seu
coração, sempre a escuto quando ela diz isso, mas não lhe dou ouvidos, embora ela esteja com a
razão, pensei. Maria, minha doutora romana, minha grande poetisa, minha grande médica, minha
grande mestra na arte da vida, estou agitado, corro a Maria, pensei. Porque não conseguisse mais
ficar na cama com meu coração agitado, levantei-me, refresquei-me num banho e sentei-me,
ainda de roupão, na poltrona da janela, da prateleira apanhara uma chamada monografia sobre
Descartes. Contra as expectativas, Descartes conseguiu num estalo distrair-me de todas minhas
angústias, desde as primeiras frases de Descartes, e não sobre ele, eu fui salvo. Lia aquelas frases
e me distraía, não digo me acalmava, mas me distraía. Que os grandes filósofos eram meus
salvadores, pensei, seja lá o que leia deles, distrai-me, salva-me, pensei. Aparentemente nenhum
conhecimento certo é possível enquanto não se conhece o artífice da própria existência, li, e fui
distraído, salvo. Com essa frase pude vencer, ao lado da janela, umas tantas horas, até que tive de
levantar e descer, porque o enterro tinha seu início. Observava já havia algum tempo, da janela,
minhas irmãs postadas na frente da orangerie, conversando com os caçadores e jardineiros e com
inúmeros outros já presentes, que por assim dizer tinham uma função a cumprir no enterro,
incluindo meu cunhado, mas não desci até elas, tinha a impressão de que me aguardavam, mas
não desci até elas, porque não queria interromper minha observação, que de minha janela podia
intensificar de maneira ideal, perfeitamente imperturbado. Seu corre-corre já era grande fora da
orangerie, e o corre-corre dentro era sem dúvida ainda maior, elas haviam carregado duas
carroças com pilhas enormes de coroas e buquês, essas carroças haviam sido empurradas pelos
jardineiros e por dois palafreneiros, tais ainda os temos em Wolfsegg! até o muro do portão, de
modo que o préstito fúnebre pudesse transitar sem obstáculo, tudo o que eu via de minha janela
dava a impressão de proceder exatamente conforme o plano de enterro de que sempre falara
nossa mãe, como se nada ocorresse fora desse plano, e muito menos contradissesse esse plano,
lhe contraviesse. Era um dia chuvoso, mas não chovia, e eu pensei, nem vai chover. As pessoas
estavam todas mais ou menos de luto, por assim dizer, ainda que não vestidas todo de preto,
muita gente do vilarejo lá embaixo já se pusera na frente da orangerie. Vi também os primeiros
músicos da banda de sopro do vilarejo tomarem posição. Os instrumentos cintilavam, os
uniformes da banda de música eram verde-escuro, minha cor favorita. Caecilia, como podia ver
da janela, tinha as rédeas do espetáculo que agora aos poucos assumia dimensões imponentes. A
todo instante ela sussurrava algo na orelha de Amalia ou mesmo de seu marido, o fabricante de
rolhas para garrafas de vinho, ao que estes se dirigiam à orangerie, sem dúvida para executar
ordens, de quais ordens se tratava, não pude verificar. As luzes na orangerie haviam sido
evidentemente apagadas. Chegara a hora de dar início ao enterro, de por assim dizer soprar mais
uma vez a todos suas deixas, de repassar mais uma vez seus papéis. A diretora agora já
saboreava seus grandes momentos, ainda que não os pontos culminantes, mas esses pontos
culminantes, pensei, já estão bem próximos. Como se num ensaio, os músicos haviam se postado
na frente da orangerie, para então voltarem a dispersar-se, os jardineiros e os caçadores haviam
empurrado as duas carroças com as coroas e os buquês, voltando logo a estacar, também como se
num ensaio, tudo controlado por minha irmã Caecilia, como eu podia ver. Amalia estava sempre
atrás dela, meu cunhado também. Chegava cada vez mais gente da feitoria, do pavilhão dos
caçadores, do vilarejo. Mas dos chamados notáveis ainda não havia sinal, eles ainda tinham
tempo, porém. Por fim Caecilia veio correndo ao prédio principal, dando-me a entender que
tinha de deixar meu quarto e encontrá-la lá embaixo. Descendo topei com a tia do Titisee,
cumprimentei-a, mas depois a evitei, durante todo o enterro evitei-a o quanto pude. Na cozinha
haviam me preparado um café da manhã que comi mais ou menos às pressas com meu cunhado,
que me fez companhia. Que pessoa mais imbecil, pusilânime mesmo, pensei, e o observava
apanhando o pão, espalhando manteiga por cima e geléia com seus movimentos pesadões, mas
essa gente não tem culpa, pensei o tempo inteiro em que o observava, não tem a mínima culpa,
pensei tanto que essa gente não tinha culpa que me dei conta de que pensava isso, e sustei esse
pensamento e toda essa observação, porque num instante ela me pareceu indecente, não injusta,
indecente, esse pensamento enchera-me de profunda repulsa por mim mesmo. Não devíamos
observar constantemente essas pessoas, vigiá-las continuamente, disse comigo, isso não leva a
nada, só a um profundo desprezo por nós mesmos. Caecilia disse-me que eu deveria pôr uma
gravata preta, o que fiz sem protestar, porque me parecia óbvio aparecer no enterro, se não com
um terno preto, pelo menos com uma gravata preta. Antes havia posto sapatos pretos e um terno
cinza, porque de fato nunca possuí um terno preto e também nunca me passou pela cabeça
comprar um terno preto, nem nesses dois dias terríveis. Ela já estaria satisfeita se eu pusesse uma
gravata preta, disse Caecilia. Ao dizê-lo não me passou uma impressão de malevolência, pelo
contrário, de compreensibilidade, como pensei. Minha irmã pareceu-me de súbito compreensiva,
é compreensiva comigo, pensei, porque agora está em seu elemento. As mais diversas pessoas,
cuja presença eu nem supusera, de súbito encheram a cozinha para comer alguma coisa, mas não
falei com nenhuma delas. Embora eu fosse o personagem principal desse acontecimento, não me
considerava a mim mesmo como tal. As pessoas me fitavam, mas eu lhes virava a cara. A muitos
deveria ter dado a mão, pensei, mas não dei a mão a ninguém. A troco de que apertar a mão de
toda essa gente? pensei. Bancar o hipócrita, o que não era minha intenção. Bebi uma xícara de
chá e comi um pedaço de pão e saí para o átrio, minhas irmãs estavam lá com o burgomestre, que
só agora chegara para as condolências, como podia ver, muitas dessas frases de mau gosto,
habituais quando se trata de condolências, foram ditas pelo burgomestre a minhas irmãs, que se
portaram como delas se esperava, ao contrário de mim, que o tempo inteiro, fiel a minha
natureza, não me portei como de mim se esperava. Minhas irmãs receberam ainda uma série de
condolências no átrio, de toda espécie possível e impossível de pessoas importantes, como as
chamam, dignitários, como pensava, durante esse tempo mantive-me completamente à parte, no
canto escuro diante da porta da capela, onde se pode ficar sem ser reconhecido. Que pelo menos
não me reconheçam, pensei, se eu ficar aqui, e de fato não me reconheceram, pois do contrário
toda aquela gente teria se precipitado sobre mim, pensei, e não sobre minhas irmãs, sobre o filho,
como mandava o figurino, não sobre as filhas. Mas naquelas circunstâncias todos logo se
precipitaram sobre as filhas e me deixaram em paz. Seguidamente perguntaram de mim, mas
essas perguntas minhas irmãs não respondiam, pois receavam que mais tarde, após o enterro, eu
pudesse lhes pedir explicações dessas respostas, como pensei, embora, ou porque, elas
soubessem que estava diante da capela. Perdi a vontade de contar as pessoas que entravam, como
fizera a princípio, breve elas se tornaram muitas. Bandos inteiros espremeram-se para dentro, do
meu ângulo tinha a possibilidade de observar imperturbado toda essa gente. Mas eis que a
multidão abriu-se de súbito, porque chegara o bispo de Linz. Com esse eu devo ir ter, pensei, não
me resta alternativa, então fui ter com ele e cumprimentei o bispo de Linz. Atrás dele estava o
bispo de Salzburgo. Agora tinha de fazer companhia aos bispos. Conduzi-os ao primeiro andar.
O hábil Spadolini aparecerá só no último momento, pensei, e assim foi. Conversei pelo menos
meia hora com os bispos até que entrasse Spadolini, acompanhado de Caecilia. Os bispos
cumprimentaram Spadolini como se ele fosse hierarquicamente muito superior a eles, não se
levantaram para cumprimentá-lo, levantaram-se num pulo. Uma triste ocasião, disse o bispo de
Linz, e Spadolini em seguida: uma terrível tragédia, ao que todos se sentaram. Conversavam
eles entre si, sem que eu tivesse de tomar parte em sua conversa, falavam de Roma, o que causou
grande impressão nos bispos austríacos, tudo o que Spadolini dizia era uma novidade para eles, e
Spadolini sabia o que dizer para causar admiração nos bispos. O abade de Kremsmünster, que
aparecera nesse meio tempo, sentara-se em silêncio, sem nenhuma formalidade. Ele era gordo e
parecia um taberneiro bem nutrido do Innviertel. Spadolini falara por cerca de meia hora sobre
Roma e o Vaticano, dissera tudo e ao mesmo tempo nada, por assim dizer, então Caecilia pediu
aos bispos que descessem. No átrio os bispos, cujo líder era sem dúvida o elegante Spadolini,
aguardavam um sinal a ser dado por Caecilia quando chegasse o momento de ir à orangerie,
dando início, por assim dizer, ao enterro propriamente dito. Afora os bispos não havia mais
ninguém no átrio, a multidão já estava próxima à orangerie e agora já se estendia para além do
grande portão do muro, provavelmente, assim pensei, até o vilarejo lá embaixo, de modo que não
se podia mais falar efetivamente de um cortejo fúnebre, pois o cortejo era provavelmente tão
extenso quanto o percurso inteiro da orangerie ao cemitério. A bênção, como prescrito, não seria
dada na capela, mas na igreja do vilarejo. Os bispos conversaram primeiro sobre Roma, então
sobre Wolfsegg, depois de terem se voltado exclusivamente para mim e de Spadolini ter se
apresentado a eles como um dos meus melhores amigos, como meu primeiríssimo amigo
romano, nas suas palavras. Havia décadas ele era um grande amigo da casa, fora hóspede aqui
muitas vezes e com Wolfsegg sempre se entusiasmara, uma paisagem manhífica, um edifício
manhífico, um estilo de vida manhífico, disse. Os bispos não se cansavam de vê-lo e ouvi-lo, ele
trajava a roupa mais elegante que eles provavelmente já tinham visto. Meu papel era o do
familiar abalado, um papel que considerava dos mais vantajosos. Não tinha de falar quase nada e
só cuidar para que trouxesse a cabeça o mais baixo possível quando me observassem, o que não
significa que a coisa toda me deixasse inteiramente frio, mas de fato não sentia nada mais que em
outros enterros, o fato de ser minha família que fosse agora levada ao túmulo não me abalava,
pois o espetáculo era grande demais para sequer permitir um tal abalo, esse abalo eu porém ainda
não tivera, ele só virá, disse comigo, quando tudo estiver terminado, o choque eu tive, mas o
abalo ainda está por vir, assim pensei, em pé no átrio junto aos bispos. Eles admiraram minha
atitude, que não era porém, como eles acreditavam, a atitude de quem domina uma imensa
infelicidade, mas a atitude a que eu me propusera, ela fazia parte do meu papel. Eu próprio sentia
que, embora enojado, representava meu papel com primor, ao menos até aquele momento, o ator,
quando é bom, sente quando é bom, não precisa que lhe digam, pensei. Spadolini teve o
descaramento de chamar várias vezes a atenção dos bispos para minha esplêndida atitude, justo
Spadolini, que decerto me desmascarara, mas que não cansava de repetir aos bispos, de maneira
ora mais, ora menos repulsiva para mim, como era esplêndido meu comportamento em vista do
fato de meus pais e meu irmão serem levados ao túmulo. Portei-me em conformidade com meu
papel. Caecilia chamou os bispos à orangerie. Lá já haviam fechado e carregado os caixões. Os
bispos seguiram os caixões que, sobre carroças puxadas por uma parelha de cavalos, cada caixão
em sua própria carroça, sem nenhum enfeite de flores, causavam a exata impressão de
austeridade prescrita no plano de enterro, as carroças se puseram lentamente em movimento, os
bispos seguiram, logo a seguir eu e a meu lado minhas irmãs e atrás de nós todos os parentes,
Alexander obviamente na primeira fila. Depois dos parentes vinham, justo como eu temera, os
antigos gauleiter e outros próceres nacional-socialistas, por quem senti uma tremenda aversão e,
como devo dizer, um tremendo pavor. Apareceram eles com todas suas insígnias nacional-
socialistas ao peito. Atrás deles tomara posição a chamada Liga dos Camaradas, uma associação
de ex-combatentes de índole positivamente nacional-socialista. Diversos outros grupos vinham
na seqüência, formou-se um cortejo de várias centenas de pessoas, que mal conseguia pôr-se em
movimento, porque de fato era tão extenso quanto o percurso inteiro, e foi só graças à arte de
organização de minha irmã Caecilia que se pôde dar ordem um tal cortejo; ela fizera com que a
multidão se colocasse atrás da feitoria e na frente da vila das crianças. As carroças com os
caixões, como é natural, só desciam ao vilarejo lentamente, não à frente do cortejo, mas a seu
largo, sob olhares pasmos, porque de outro modo não teria sido possível, as pessoas, tanto quanto
podiam, abriam alas na estrada de cascalho que subia do vilarejo para deixar passar a carroça
com os caixões e nós, o plano de Caecilia dera certo, tudo funcionava, de fato o cortejo fúnebre
pudera ser formado e posto em movimento, ela caminhava a meu lado como a inquietação em
pessoa, tremendo da cabeça aos pés, como podia sentir, pois agora, tendo ela própria de
acompanhar o cortejo, era obrigada a abrir mão da cerimônia, como se diz. Mas ela não tinha
nada a temer, o plano foi executado não obstante as muitas centenas de pessoas. Se já num
enterro de província bem trivial comparecem pelo menos cem pessoas, no nosso, pensei comigo,
havia provavelmente milhares de participantes, sei lá. O arcebispo de Salzburgo celebrou, como
previsto, a missa fúnebre. Enquanto o via dizer a missa, sendo os caixões dispostos na frente do
altar, pensei que havia mais de vinte anos abandonara a Igreja, como se diz. Podia assim
permitir-me agora observar com total independência o desenrolar religioso do enterro. Os meus
jamais me perdoaram por haver abandonado a Igreja, essa foi provavelmente a principal razão de
seu juízo condenatório a meu respeito, pensei. Mas abandonei a Igreja no exato momento em que
não tinha mais nada a ver com a Igreja, espiritualmente falando, como repetia comigo ainda
agora, e com ela também não queria ter mais nada a ver. Os bispos tinham naturalmente ciência
de que abandonara a Igreja havia mais de vinte anos. A circunstância de ter abandonado a Igreja
já tão cedo e não ser mais ligado a ela causou-me uma sensação de prazer no decorrer de toda a
missa, você assiste a esse espetáculo suntuoso, mas ele não te diz respeito, pensei o tempo
inteiro, você respira o incenso, mas ele não te atordoa. Você ouve as palavras, mas sobre você
elas não têm nenhum efeito destrutivo. Por décadas, durante toda a infância e primeira
adolescência, pensei, eu temi o clero católico, agora você não teme mais. Não há mais por que
temê-los. O espetáculo é grandioso, pensei, mas em toda a sua grandiosidade ele te dá nos
nervos, sem minimamente afetá-lo. E de seus pais e de seu irmão você já se despediu, de maneira
mais ou menos curta e grossa, ao receber o telegrama, pensei. O enterro é só um drama que lhe
impuseram e por cujo título, Prestando as últimas homenagens, você no fundo só sente repulsa,
pois se trata de um título hipócrita. Mas todo drama é uma hipocrisia, pensei. E essa espécie de
drama é a mais hipócrita de todas. Um enterro como esse é o drama mais grandioso que se pode
imaginar, pensei. Nenhum autor dramático, nem mesmo Shakespeare, pensei, escreveu um
drama tão grandioso, comparado a ele toda a literatura dramática universal é ridícula, pensei
enquanto via e ouvia o arcebispo de Salzburgo dizer a missa, com a multidão a sua frente. Que
bom eu ter escapado tão cedo da Igreja Católica, pensei. Eu estava sentado no banco da frente, a
minha esquerda Caecilia, a minha direita Amalia, exatamente segundo o prescrito, ao lado de
Amalia sentara-se Alexander. Spadolini estava sentado onde costumam sentar-se os padres, com
o abade de Kremsmünster e os bispos de Linz e Sankt Pölten, por assim dizer num pódio elevado
junto ao altar, separado da gente comum. Ele é o protagonista do todo, pensei, não o arcebispo
oficiante de Salzburgo, que perto do término da missa fez um breve discurso em memória dos
mortos, mais uma alocução, falando porém de nosso pai como do amigo desaparecido tão
tragicamente, da mãe de bom coração, do filho de coração igualmente bom. Os arcebispos têm
um modo de falar todo próprio, pensei, salmodiam tudo o que dizem, ao freqüentarem o
seminário terão ido na verdade à escola católica de arte dramática, pensei, mesmo as almas mais
simples entre os bispos, como os de Salzburgo e de Linz, falam salmodiando, como se fossem
atores consumados, atores de província, é verdade, queridos e estimados, não como Spadolini,
que em cada palavra que diz, em cada gesto que executa, é por assim dizer um gênio dramático
de que nenhum desses atores de província chega aos pés, é por assim dizer o supra-sumo do
teatro universal católico. Spadolini imergiu em seu papel silente, pensei, de cabeça baixa
sentava-se ele no banco que lhe fora exclusivamente reservado e tinha consciência de seu gênio
dramático, de seu gênio arquiepiscopal, pensei. O fato de vir de Roma lhe emprestava, em nossa
igreja aldeã, uma aura suplementar, colossal mesmo. As pessoas na igreja o admiravam, o
arcebispo vindo de Roma, não o oficiante de Salzburgo, ao lado do qual era inevitável que este
parecesse ainda mais simplório, primitivo mesmo, de quanto fosse na realidade. Depois da missa,
cantada pelos cantores do vilarejo, a banda do vilarejo tocou exatamente a peça de Haydn que
ensaiara na tarde da véspera, muito calma, sem erros, segundo pensei. Spadolini dera mostra de
ter se recolhido inteiramente dentro de si para aquela missa fúnebre, não se permitiu nem alçar a
vista. Com as mãos postas ele por assim dizer imergira completamente em luto, e quando minha
mãe foi mencionada, pareceu que este seu luto nem fosse simulado, senão autêntico, mas só por
um instante pareceu-me assim, logo em seguida voltei a pensar, ele domina seu papel com
maestria. De fato eu o amava quando o via nessa atitude, pois amava nele o grande ator
Spadolini, não conheço outro maior, outro com maior efeito sobre o público, como se diz. As
muitas viagens que ele fez com minha mãe, incluindo aquelas comigo, e portanto a três, súbito se
fizeram presentes a mim. Spadolini, que fez de todas essas viagens um prazer tão grande, que
encantou a seu modo todas essas viagens, como se diz, via o Spadolini fascinante, o cosmopolita,
a quem minha mãe se entregara de corpo e alma, pensei comigo. Enquanto o observava, e não ao
arcebispo de Salzburgo, via-o caminhar por Roma, ir às lojas mais finas, aos restaurantes mais
caros, ele entrando nessas lojas, freqüentando esses restaurantes, via-o no Pincio, na Villa
Borghese, via-o refulgir nas embaixadas e brilhar nos vernissages, como se diz, todos se
aglomeram ao redor do elegante cosmopolita católico, que pode se chamar de arcebispo e núncio
e ostentar muitas centenas de amigos, pensei. Spadolini, pensei, a quem minha mãe pagou todas
aquelas viagens, que financiou duas viagens à América, uma visita ao Cairo que ele desejava,
uma viagem a Persépolis e uma viagem à Tunísia, porque ver Cartago era seu maior anseio, que
lhe comprou boa parte do guarda-roupa e lhe proveu toda uma biblioteca. Spadolini, que sabe
segurar um livro nas mãos e beber um copo de vinho com elegância inigualável, Spadolini, que é
assediado tanto pelas senhoras da chamada alta sociedade quanto pelos funcionários comunistas
da cidade de Roma, por cujo prefeito comunista, aliás, ele é recebido cordialmente a cada duas
semanas. Spadolini, que se corresponde com todo o mundo e com toda a categoria de pessoas,
que conhece o Vaticano como a palma da mão, e também a cidade de Roma, que o venera e fez
dele o venerado e universalmente amado Spadolini. Observava-o de perfil, como se observa um
grande ator, estudando cada um de seus movimentos, sua atuação é sem dúvida uma obra de arte,
pensei, não revela fraqueza, não se permite o menor descuido. Como no teatro os papéis mais
difíceis de todos são aqueles sem texto, não os falados, os loquazes, Spadolini assumiu aqui
nesse espetáculo o papel sem dúvida mais difícil de todos, pensei, e o figurino que ele próprio
escolheu é ideal para esse espetáculo, perfeito. Ver Spadolini sem venerá-lo no mesmo instante,
ainda que sem necessariamente amá-lo, é impossível, pensei. Qualquer um que veja Spadolini é
no mesmo instante subjugado por seu fascínio, pensei. Gambetti me disse certa vez que, para ele,
Spadolini era o mais extraordinário de todos os atores, de todos os atores do mundo que ele
conhecia, o mais sedutor, e que era pena que ele se exibisse apenas na Igreja Católica, e não em
um de nossos maiores teatros. Nenhum diretor tem algo a ensinar a esse Spadolini, disse
Gambetti, ele já sabe tudo, já pode tudo, já é tudo. Lembrei-me dessa declaração de Gambetti
enquanto observava Spadolini de perfil, a meu bel-prazer, como admito, totalmente
desinteressado de meu entorno imediato. Erguia-me automaticamente, como os outros, de acordo
com o cerimonial da missa, tornava a sentar-me quando todos se sentavam, mas na verdade não
fazia mais que admirar a arte de Spadolini. Como se estivesse novamente à mercê dessa arte
spadoliniana, como tantas vezes. É como se o maior ator da época houvesse chegado a um
vilarejo desconhecido e mais ou menos também de todo insignificante para aí representar um
Hamlet arquicatólico, pensei observando Spadolini. Finda a missa os caixões foram carregados
para fora da igreja, primeiro o caixão de meu pai, depois o caixão de minha mãe, depois o de
Johannes. Meus joelhos de fato tremeram subitamente quando os jardineiros passaram por mim
carregando o caixão de Johannes. Haviam-no ombreado com muita destreza, como se
ombreassem diariamente um caixão, pensei. Os caçadores haviam carregado para fora da igreja o
caixão de meu pai e o caixão de minha mãe, por desejo explícito meu Johannes fora carregado
pelos jardineiros. Caecilia não chorava, olhar Amalia nos olhos eu não tivera oportunidade, meu
cunhado o fabricante de rolhas para garrafas de vinho por assim dizer sorria amarelo, canhestro.
Ele era de fato o personagem deslocado no todo, agora mais do que nunca reconhecível, com
nitidez tanto maior, como esse personagem completamente deslocado. Todos os olhares
dirigiam-se ora a mim, ora a Spadolini. Caecilia obrigou naturalmente seu marido, nosso
cunhado, e não a mim, que a amparasse, o fabricante de rolhas para garrafas de vinho conduziu
Caecilia para fora da igreja a meu lado, do meu outro lado ia Amalia, durante esses dias de luto
ela se habituara a trazer a cabeça baixa, pensei observando-a. Os rostos sardônicos de minhas
irmãs transformaram-se primeiro em rostos amargurados, agora em rostos enlutados, pensei.
Caecilia era naturalmente a mais contida das duas, Amalia continua a parecer muito mais jovem
do que é na verdade, pensei, sem jamais ser atraente. Afinal é por isso que está sozinha até agora,
pensei, nenhum homem sentiu-se até agora atraído por ela, nem sequer um do tipo do fabricante
de rolhas para garrafas de vinho. Por um instante senti pena de Amalia, mas logo em seguida não
pude deixar de pensar na maneira apalermada com que ela se apresenta em toda parte, não
importa onde, pensei. Amalia não será nunca uma pessoa feliz, nem sequer satisfeita, pensei, mas
Caecilia também não, agora ela está literalmente de braços dados com sua infelicidade, pensei a
olhar de perfil o fabricante de rolhas para garrafas de vinho, o rosto é de alguém abaixo da
média, pensei com meus botões, que conseguiu insinuar-se em Wolfsegg. Não pude reprimir esse
pensamento. A banda de música do vilarejo tocou de novo a peça de Haydn, melhor do que
antes, pensei comigo, o cortejo fúnebre movia-se agora rumo ao cemitério ainda mais lentamente
que antes rumo à igreja. Sempre odiei procissões, nada me repugna mais que paradas, ainda por
cima se acompanhadas de música, toda a desdita do mundo sem pre se originou em tais
procissões e paradas, pensei. O pensamento de que, não muito atrás de mim, caminhavam os ex-
gauleiter do Alto Danúbio e Baixo Danúbio, que me enxovalharam a vila das crianças e em
última análise arruinaram-na para mim, me enchia de repulsa, atrás dos ex-gauleiter caminhavam
os veteranos da Liga dos Camaradas, em parte de muletas, velhos combatentes condecorados
com a Ordem do Sangue pelos seus execráveis ideais nacional-socialistas. E atrás deles, foi o que
me sussurrou Caecilia pouco antes de o cortejo pôr-se em marcha, caminhava meu colega de
escola Eisenberg, meu irmão espiritual, o rabino de Viena, com quem falarei assim que terminar
a cerimônia, pensei. Um cortejo fúnebre como esse é grotesco, pensei. Um cortejo fúnebre como
esse é uma infâmia. Um cortejo fúnebre assim demorado não é apenas um desaforo, mas um
tremendo mau gosto, pensei, sabendo perfeitamente que ninguém naquele cortejo fúnebre
pensava como eu, ousava pensar como eu, a ninguém passaria pela cabeça pensar assim, pelo
contrário, se por assim dizer me tivessem visto e ouvido pensar, teriam todos pensado que eu,
mais que qualquer outro, fosse de extremo mau gosto. Talvez eu seja mesmo de extremo mau
gosto, pensei. Mas não senti vergonha alguma, nem diante da cova aberta. A Gambetti disse uma
vez, quando estamos ao pé de uma cova aberta só há perfídia dentro de nós. Da perversidade da
cerimônia me dei conta quando o arcebispo de Salzburgo aproximou-se da cova aberta para fazer
um discurso no qual, desde o princípio, se falava do grande e valoroso guerreiro no campo de
batalha, com o que o arcebispo de Salzburgo não se referia a ninguém menos senão meu pai.
Falou-se somente de meu pai, minha mãe nem sequer foi mencionada, nem Johannes, mas não de
propósito, senão por esquecimento, por arrogância, por egoísmo masculino e por presunção
masculina, pensei comigo. Doze alocuções foram feitas ao pé da cova aberta por aqueles homens
que se passavam todos pelos melhores amigos de meu pai, mas que naturalmente jamais o foram,
o arcebispo de Salzburgo e os bispos de Sankt Pölten e Linz afirmaram sê-lo, os dois ex-gauleiter
afirmaram sê-lo, dois SS-Obersturmbannführer afirmaram sê-lo, e também o dito chefe da Liga
dos Camaradas, e também o presidente da sociedade de caça. Por uma hora inteira nosso pai foi
sempre definido como o melhor amigo justo por aqueles que nunca teriam podido arrogar-se esse
direito, mas que, como é costume nos enterros, permaneceram incontestados. Fazia tempo que os
caixões estavam nas covas. Por último Spadolini deu um passo à frente e eu supus, ele vai dizer
algo, mas isso fugiria inteiramente ao verdadeiro Spadolini, de imediato ele tornou a dar um
passo atrás na mais completa discrição, como queria fazer crer, o que porém, justo porque fosse
o centro absoluto da cerimônia, era hipócrita; sem se comprometer com um único lugar-comum,
ele se misturou àqueles aglomerados ao pé da cova. Já ia subestimando Spadolini, pensei. O
discurso do dito chefe da Liga dos Camaradas foi sórdido, abjeto mesmo, o chefe dissera que
meu pai, na verdade, vivera somente para os fins da Liga dos Camaradas. Primeiro eu achara o
discurso do chefe sórdido e abjeto, porém uns minutos mais tarde não mais, pois fui forçado a
dizer comigo que o chefe até certo ponto dissera a verdade. Também o presidente da sociedade
de caça dissera a verdade, fui forçado a dizer comigo, também os dois ex-gauleiter haviam dito a
verdade, meu pai, o partidário, fora um deles, para todos os que falavam ali havia sido um deles.
Dizia comigo seguidas vezes que era constrangedor não terem gasto, por negligência, uma
palavra sobre minha mãe. Ainda diante da cova aberta disse a Caecilia que ninguém achara valer
a pena dizer uma palavra sobre nossa mãe. Falou o mundo dos homens, pensei, e esse mundo dos
homens não tomou conhecimento de minha mãe. E Johannes era apenas uma pessoa inteiramente
irrelevante para o todo, com sua morte precoce tornara a si mesmo uma pessoa de todo
irrelevante e também desinteressante. Dele, além de carregarem seu caixão e baixarem-no à
cova, não se fez mais qualquer menção. Meu pai era a grande personalidade que cumpria
explorar ao pé da cova e que foi devidamente explorada por todos. Mais uma vez meu pai lhes
era útil aos propósitos, ninguém mais, pensei. O arcebispo de Salzburgo e os bispos lançaram um
derradeiro olhar às covas e retiraram-se. Ao que todos desfilaram diante de nós, de mim e de
minhas irmãs, como é costume. Cento e vinte e dois lenhadores, agora são vinte, pensei, duas
dúzias de jardineiros, agora são sete, pensei ao pé da cova aberta. Gigantescos danos florestais no
norte, descendo até Gallspach, pensei, trinta e dois hectares de primeira classe perdidos só na
chamada consolidação do solo, isso enfureceu meu pai por semanas. De outro lado pensei na
gigantesca evasão fiscal a cargo do contador de Wels. O modo que este pronuncia a palavra
Wolfsegg sempre me repugna, e também o modo que a pronunciam os outros de Wels e de Linz e
de Vöcklabruck e de Ebensee. Sempre odiei o nome Wolfsegg, pensei ao pé da cova aberta, tudo
o que esteja ligado a esse nome Wolfsegg eu sempre odiei, execrei e odiei. Daí sempre odiar,
desde criança, tudo o que se prendesse a Wolfsegg, essa é a verdade, pensei. Uns descem,
hipócritas, de Wolfsegg ao vilarejo, outros sobem, igualmente hipócritas, do vilarejo e do campo
a Wolfsegg. Desde cedo me recolhi dentro de mim, com repugnância deles, pensei agora ao pé
da cova aberta. Tudo uma gigantesca impostura da parte de Wolfsegg, pensei, um conluio
criminoso velho de séculos. Primeiro eu temi a Igreja, depois a odiei, pensei, primeiro temi e
depois odiei tudo o que viesse da Igreja, com um ódio cada vez mais profundo, pensei. Nesse
país e nesse Estado a Igreja continua em última análise a dominar tudo, pensei ao pé da cova
aberta, nesse país e nesse Estado o catolicismo continua com tudo nas mãos, seja lá quem esteja
no poder. Católicos, charlatães, pensei, hipócritas pastores de almas. Não queremos ter mais nada
a ver com isso, dizemos, isso nos dá nojo. Do clero católico continua a não escapar ninguém
nesse país e nesse Estado, pensei. Fugir, fugir de tudo, pensei, não tinha mais outro pensamento.
Aturar a cerimônia e então fugir para sempre, pensei. Via como todos me odiavam, e nem sequer
secretamente. Interesse filosófico de um lado, desinteresse filosófico de outro. Fanatismo
repugnante pela arte, pensei. As pessoas de Roma não são diversas, são mais hipócritas ainda,
mas com que grau superior de inteligência, pensei. Algumas centenas de pessoas simplesmente
não bastam, têm de ser alguns milhões de pessoas, pensei, milhões de hipócritas, não só
centenas, milhões de repugnantes, não só centenas. Por assim dizer tomar um banho de espírito
numa cidade como Roma, e nesse banho de espírito submergir, pensei. Os passos dos odiados, as
vozes dos odiados, pensei ao pé da cova aberta, a absoluta repugnância dos odiados. O enterro é
o ponto final, pensei. Não me enxovalharam só a vila das crianças, tudo eles me enxovalharam,
pensei. Primeiro temi a vida, depois a odiei, pensei ao pé da cova aberta. Se acreditamos que
Roma seja a solução, também erramos, como é natural. Nós nos apegamos a uma pessoa como
Gambetti, que provavelmente já destruí, ou a uma pessoa como Maria, e apesar de tais pessoas
de caráter acabamos por nos perder, pensei ao pé da cova aberta. Ah, sabe de uma coisa,
Gambetti, disse a ele diante do Hotel Hassler, pensei agora ao pé da cova aberta, se formos
sinceros, o processo universal de embrutecimento já se acha tão avançado que não há mais
retorno. Desde a descoberta da fotografia, e portanto desde o início desse processo de
embrutecimento há mais de cem anos, o estado mental da população no globo está em
permanente declínio. As imagens fotográficas, disse a Gambetti, puseram em marcha esse
processo universal de embrutecimento, e ele atingiu essa velocidade de fato letal para a
humanidade no instante em que essas imagens fotográficas passaram a se mover. Hoje e há
décadas a humanidade não faz outra coisa senão observar estupidamente essas imagens
fotográficas letais e está como paralisada por elas. Na virada do século essa humanidade não será
mais capaz de pensar, Gambetti, e o processo de embrutecimento, que foi posto em marcha pela
fotografia e se tornou um hábito universal com as imagens móveis, estará no auge. Mal será
possível existir num mundo como esse, dominado então só pela estupidez, Gambetti, disse a ele,
pensei agora ao pé da cova aberta, e faremos bem em nos suicidar antes que esse processo de
embrutecimento do mundo se instaure definitivamente. Nesse sentido é apenas lógico, Gambetti,
que na virada do século aqueles que vivem do pensar e pelo pensar já tenham se suicidado. Meu
único conselho às pessoas que pensam é suicidarem-se antes da virada do século, Gambetti, essa
é realmente minha convicção, disse a Gambetti, pensei agora ao pé da cova aberta. Parecia
sempre que a qualquer instante fosse chover, mas não choveu. Propusera-me a não dar a mão a
nenhum dos que desfilassem a minha frente. E assim foi. Alguns fizeram a tentativa de me dar a
mão, mas a mão deles eu não tomei. Assumi com plena consciência esse constrangimento. Só de
pensar nessa Áustria mutilada e decadente e em última análise acabada, pensei, disse a Gambetti
apenas uns dias antes desse enterro de um mau gosto quase insuportável, o estômago já fica
embrulhado, para não falar desse Estado corrompido até a medula, Gambetti, cuja sordidez e
baixeza são sem paralelo não somente na Europa, mas no mundo inteiro; há décadas governos
obtusos, sórdidos e corrompidos, e um povo que esses governos obtusos, sórdidos e corrompidos
mutilaram de morte até deixá-lo irreconhecível, dissera a Gambetti, pensei agora. Primeiro esse
sórdido e baixo nacional-socialismo, e depois esse sórdido e baixo e criminoso pseudo-
socialismo, disse a Gambetti no Pincio, pensei agora ao pé da cova aberta. Essa destruição e
aniquilamento nacional-socialista e pseudo-socialista de nossa pátria austríaca, em colaboração
com o catolicismo austríaco, que para essa Áustria só foi sempre fonte de desgraça. Hoje a
Áustria é um país governado por negociantes inescrupulosos de partidos despidos de
consciência, disse a Gambetti, pensei agora ao pé da cova aberta. Esse povo austríaco defraudado
de tudo, disse a Gambetti, a quem nos últimos séculos, da maneira mais infame, o catolicismo, o
nacional-socialismo e o pseudo-socialismo extirparam a razão, Gambetti, disse a Gambetti,
pensei agora. A sordidez é a palavra de ordem, a baixeza o aguilhão, a hipocrisia a chave dessa
Áustria de hoje, Gambetti. A cada manhã que acordamos deveríamos nos envergonhar
mortalmente dessa Áustria de hoje, Gambetti, disse a Gambetti, pensei agora ao pé da cova
aberta. Vezes e mais vezes digo comigo, nós amamos esse país, mas odiamos esse Estado,
Gambetti. Em Roma ou em qualquer lugar do mundo, Gambetti, pensei agora, disse a Gambetti,
essa Áustria não nos diz mais respeito. Aonde quer que vamos nessa Áustria de hoje, topamos
com a mentira, para onde quer que olhemos nessa Áustria de hoje, encontramos só hipocrisia,
não importa com quem você fale nessa Áustria de hoje, estará falando com um mentiroso,
Gambetti, disse a Gambetti, pensei agora ao pé da cova aberta. No fundo não vale a pena falar
desse país ridículo e desse Estado ridículo, disse a Gambetti, pensei agora ao pé da cova aberta, e
todo pensamento a respeito não é mais que perda de tempo. Mas ai daquele que não é cego nesse
país, disse a Gambetti, nem surdo, e não tenha perdido a razão! Ser austríaco hoje é uma pena de
morte, e todos os austríacos estão condenados a essa pena de morte, disse a Gambetti, pensei
agora ao pé da cova aberta. Tudo o que é austríaco é sem caráter, disse a Gambetti, pensei agora.
Regressar à Áustria causa toda vez a sensação de total imundície, pensei ao pé da cova aberta. De
sua parte, os condecorados com a Ordem do Sangue, os SS-Obersturmbannführer apoiados em
suas muletas e em suas bengalas, os heróis nacional-socialistas, não me dignavam um olhar,
como se diz. As visitas fúnebres, com exceção dos arcebispos e bispos e de nossos parentes mais
próximos, foram convidadas às estalagens Brandl e Gesswagner. Lá a banda de música, instruída
por minha irmã Caecilia, pôs-se a tocar para eles ora na Brandl, ora na Gesswagner. Os
arcebispos e os bispos e os parentes foram convidados ao almoço, como se diz, em nossa casa lá
em cima. A maioria deles ficou até a boca da noite. Ainda naquela noite Spadolini viajou para
Roma, primeiro eu pensei, viajo logo com ele, mas esse pensamento, como atinei de imediato,
era o mais absurdo. Nos vemos daqui uns dias em Roma, disse a ele. Com total discrição ele
desapareceu. Recolhi-me a meu quarto com Alexander, e para esses momentos em sua
companhia tranquei meu quarto, não queria mais ser perturbado. Alexander estava novamente
obcecado por uma de suas idéias vitais, queria pedir ao presidente do Chile que libertasse todos
os prisioneiros políticos do Chile, essa mais horrenda de todas as ditaduras. Não o perturbou eu
dizer que não teria sucesso com seu pedido. Regressou a Bruxelas uma hora depois de Spadolini.
Permaneci trancado em meu quarto até o cair da noite e só o deixei depois de certificar-me que
não encontraria mais nenhuma das visitas fúnebres. Durante esse tempo refleti sobre o que faria
de Wolfsegg, que, como restara constatado sem sombra de dúvida nesse intervalo, agora
pertencia exclusivamente a mim, com todos os direitos e obrigações, como se diz em linguagem
jurídica. Já tinha na cabeça um plano para o futuro de Wolfsegg e todos os seus pertences na
Baixa Áustria e no Burgenland e em Viena quando, sem admitir a presença de meu cunhado,
coisa que eu vedara expressamente, conversei com minhas irmãs sobre o futuro de Wolfsegg até
as duas da manhã. No final da conversa não pude dizer a minhas irmãs o que aconteceria com
Wolfsegg, embora nessa hora já o soubesse, disse a elas, que ao longo de toda a conversa não
tiveram nada a me dizer, se bem que me mostrassem sempre seus rostos sardônicos e
amargurados, que não sabia o que aconteceria com Wolfsegg, que não tinha a menor idéia a
respeito, enquanto na verdade estava firmemente decidido a marcar um encontro com Eisenberg
em Viena, no qual pretendia oferecer toda Wolfsegg, tal como ela se encontra, e tudo o que a ela
pertence, como uma doação totalmente incondicional, à Comunidade Israelita de Viena. Já dois
dias depois do enterro tive essa conversa com Eisenberg, meu irmão espiritual, e Eisenberg, em
nome da Comunidade Israelita, aceitou minha doação. De Roma, onde agora estou de volta e
onde escrevi essa Extinção, e onde permanecerei, escreve Murau (nascido em 1934 em
Wolfsegg, morto em 1983 em Roma), agradeci-lhe por aceitar.
SHANE LEONARD

Nascido em Heerlen, na Holanda, em 1931, THOMAS BERNHARD se mudou cedo para a


Áustria, e é um dos maiores nomes da literatura do século XX. Sua vasta obra vai do
romance ao drama, passando pelo relato autobiográfico. Entre seus títulos consagrados
estão Perturbação, O sobrinho de Wittgenstein, Árvores abatidas e, pela Companhia das
Letras, O náufrago, Extinção, O imitador de vozes, além das memórias reunidas em
Origem. Bernhard morreu em Gmunden, na Áustria, em 1989.
Copyright © 1986 by Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main

Título original
Auslöschung — Ein Zerfall

Capa
Victor Burton

Preparação
Rosemary Lima

Revisão
Ana Maria Barbosa
Carmen S. da Costa

ISBN 978-85-5451-192-0

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
O imitador de vozes
Bernhard, Thomas
9788563397126
160 páginas

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Suicídios, crimes, tragédias, crueldade: os temas são sempre os mesmos nestas


histórias curtas de Thomas Bernhard, uma das vozes literárias mais originais do século
XX.Para quem conhece a obra do escritor e dramaturgo austríaco, o procedimento é
até certo ponto familiar: em romances como O náufrago e Extinção, a repetição de
descrições e opiniões dos personagens, a nomeação exaustiva e obsessiva de fatores
históricos e coletivos parecem ser a única forma de dar conta do desconforto no
mundo. Mas, se nesses livros o sentido era obtido por meio da ênfase, daquilo que é
dito muito mais que mostrado, O imitador de vozes se guia por um acúmulo mais
horizontal e variado de situações, uma sucessão desconcertante de incêndios,
enforcamentos, desastres naturais, excursões turísticas mal-sucedidas, brigas por
heranças e toda sorte de fatos patéticos contados por narradores que misturam
espanto e ironia nas frestas de um registro falsamente neutro. Ao final, o conjunto
acaba apontando para os tradicionais alvos de Bernhard: a sociedade regida pelas
aparências, sob as quais se esconde a memória de um tempo caracterizado por
catástrofes políticas e sociais, na qual pouco resta ao homem além da consciência e da
revolta contra sua própria condição limitada, mesquinha, muitas vezes ridícula.

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A vida invisível de Eurídice Gusmão
Batalha, Martha
9788543805658
192 páginas

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Feito raro para um romance de estreia, este livro é festejado internacionalmente antes
de chegar às livrarias brasileiras, com os direitos já vendidos para mais de dez editoras
estrangeiras.Rio de Janeiro, anos 1940. Guida Gusmão desaparece da casa dos pais
sem deixar notícias, enquanto sua irmã Eurídice se torna uma dona de casa exemplar.
Mas nenhuma das duas parece feliz em suas escolhas. A trajetória das irmãs Gusmão
em muito se assemelha com a de inúmeras mulheres nascidas no Rio de Janeiro no
começo do século XX e criadas apenas para serem boas esposas. São as nossas
mães, avós e bisavós, invisíveis em maior ou menor grau, que não puderam
protagonizar a própria vida, mas que agora são as personagens principais do primeiro
romance de Martha Batalha. Enquanto acompanhamos as desventuras de Guida e
Eurídice, somos apresentados a uma gama de figuras fascinantes: Zélia, a vizinha
fofoqueira, e seu pai Álvaro, às voltas com o mau-olhado de um poderoso feiticeiro;
Filomena, ex-prostituta que cuida de crianças; Luiz, um dos primeiros milionários da
República; e o solteirão Antônio, dono da papelaria da esquina e apaixonado por
Eurídice. Essas múltiplas narrativas envolvem o leitor desde a primeira página, com
ritmo e estrutura sólidos. Capaz de falar de temas como violência, marginalização e
injustiça com humor, perspicácia e ironia, Martha Batalha é acima de tudo uma
excelente contadora de histórias. Uma promessa da nova literatura brasileira que tem
como principal compromisso o prazer da leitura.

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Mulherzinhas
Alcott, Louisa May
9788554516208
592 páginas

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Edição da Penguin-Companhia traz as aventuras das quatro irmãs March com


prefácios de Patti Smith e Elaine Showalter.Mulherzinhas é considerado um dos livros
mais influentes de todos os tempos. Ultrapassando a barreira das idades, esse
romance é lido com a mesma paixão por adultos e jovens. A história das irmãs March
se tornou um clássico feminista que reflete sobre a tensão entre obrigação social e
liberdade pessoal e artística para as mulheres. Cada leitor terá sua irmã favorita: a
independente Jo, a delicada Beth, a bela Meg ou a artista Amy. Essas quatro mulheres
e sua mãe, Marmee, enfrentam com diligência e honra as privações da Guerra Civil
americana, e se tornaram um sucesso instantâneo já em 1868."Muitos livros
maravilhosos me fascinaram, mas, com Mulherzinhas, algo extraordinário aconteceu.
Eu me reconheci, como num espelho, naquela menina comprida e teimosa que
disputava corridas, rasgava as saias subindo nas árvores, falava gírias e denunciava as
afetações sociais. Uma menina que podia ser encontrada encostada num enorme
carvalho com um livro, ou em sua escrivaninha no sótão, debruçada sobre um
manuscrito. Ela era Josephine March. [...] Uma menina americana do século XIX que
teimava em ser moderna. Uma menina que escrevia. Como incontáveis meninas antes
de mim, vi como modelo uma que não era como as outras, que possuía alma
revolucionária, mas também noção de responsabilidade. Sua dedicação à sua arte me
deu meu primeiro vislumbre do processo do escritor e fui tomada pelo desejo de
abraçar essa vocação. Os passos em falso que ela dava, dos cômicos aos ousados,
eram invejáveis, e me concediam permissão para dar os meus." — Patti Smith

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Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 páginas

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O que significa ser feminista no século XXI? Por que o feminismo é essencial para
libertar homens e mulheres? Eis as questões que estão no cerne de Sejamos todos
feministas, ensaio da premiada autora de Americanah e Meio sol amarelo. "A questão
de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a
planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens
mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que
devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também
precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente. "Chimamanda Ngozi Adichie
ainda se lembra exatamente da primeira vez em que a chamaram de feminista. Foi
durante uma discussão com seu amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio.
Percebi pelo tom da voz dele; era como se dissesse: 'Você apoia o terrorismo!'". Apesar
do tom de desaprovação de Okoloma, Adichie abraçou o termo e — em resposta
àqueles que lhe diziam que feministas são infelizes porque nunca se casaram, que são
"anti-africanas", que odeiam homens e maquiagem — começou a se intitular uma
"feminista feliz e africana que não odeia homens, e que gosta de usar batom e salto
alto para si mesma, e não para os homens". Neste ensaio agudo, sagaz e revelador,
Adichie parte de sua experiência pessoal de mulher e nigeriana para pensar o que
ainda precisa ser feito de modo que as meninas não anulem mais sua personalidade
para ser como esperam que sejam, e os meninos se sintam livres para crescer sem ter
que se enquadrar nos estereótipos de masculinidade.

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Sobre homens e montanhas
Krakauer, Jon
9788554516154
176 páginas

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Em doze artigos, Jon Krakauer tenta compreender por que homens e mulheres se
aventuram por paredes de rocha e gelo como se procurassem voluntariamente a
morte.Você sabia que é possível escalar cachoeiras? Sabia que o monte McKinley, no
Alasca, o maior dos Estados Unidos, possui um dos ambientes mais inóspitos do
planeta e que mesmo assim cerca de trezentas pessoas o escalam a cada ano? Você
sabe qual é a segunda maior montanha do mundo? E sabe que ela é bem mais difícil
de ser escalada do que o Everest? Por que tantas pessoas arriscam a vida nas
paredes de gelo e rocha?Nesta coletânea de artigos e reportagens sobre aventuras
vividas ao redor do mundo, do Himalaia ao Alasca, Jon Krakauer, autor de No ar
rarefeito e Na natureza selvagem, mostra homens e mulheres que enfrentam paredes
de gelo e rocha por todo o planeta, revela o que eles fazem, como sobrevivem e o que
os motiva.

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