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Poesias

de Soares de Passos

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Poesias
de Soares de Passos

1858 (1ª ed. em 1856)

SOARES DE PASSOS

(ESCORÇO BIOGRÁFICO)

POR TEÓFILO BRAGA

A nova época literária do Romantismo, iniciada em Portugal por Garrett e


Herculano, depois de cooperarem como cidadãos nas lutas da implantação do regime
liberal, ficara bem definida nos seus dois aspectos: o Romantismo liberal, que se
inspirava das tradições e do sentimento nacional, e o Romantismo emanuélico, em que
o espírito religioso, suscitado pelos quadros da vida da Idade Média, favorecia, pela
emoção poética, a reacção clerical que vinha a revelar-se desde que Chateaubriand
publicou o Génio do Cristianismo. Toda a obra de Garrett, acordando o sentimento da
nacionalidade, torna-o um dos grandes corifeus do Romantismo liberal na Europa;
Herculano, na Harpa do Crente e na sua predilecção pela Messíada de Klopstock, é
um poeta emanuélico, que na idade da crítica se torna um polemista teológico.
O Romantismo, esgotado na sua emotividade, recorria aos estímulos da sobre-
excitação, aos exageros da frase, aos quadros tétricos, ao pessimismo subjectivo da
passividade apática ou dos ímpetos da revolta Por estes extremos denunciou-se uma
tal degenerescência ou Ultra-Romantismo. A Idade Média foi então representada pela
sua exterioridade pitoresca, com um guarda-roupa cavalheiresco da extinta sociedade
feudal. O romance histórico, da vida dos castelos medievais, dos torneios e das
vinganças hereditárias, tem como forma poética correspondente a balada, a xácara, o
solau, que se foram apagando na banalidade inexpressiva dos imitadores medíocres. A
sentimentalidade tornou-se melancólica, dando ao romance uma forma subjectiva,
numa geração de tristes, representada nesses tipos de René, Werther, Jacopo Ortiz,
Obermann, Manfredo, Lélia; também o correspondente lirismo tornou-se a expressão
de uma sentimentalidade depressiva, umas vezes convencional como nos Laquistas,
outras patológica, como em Millevoye, ou filosófica como em Novalis. Numa
tendência geral dos espíritos, que se compraziam na admiração das falsificações
literárias de Mac Pherson, dando relevo a este sentimentalismo com devaneios em
nome de Ossian, um bardo bretão do século sexto!
Soares de Passos também traduziu, depois da Marquesa de Alorna, alguns
trechos épicos do melancólico Ossian. Na transição da poesia romântica cavalheiresca,
das xácaras e solaus, lírica na forma, mas na essência objectiva e descritiva como as
baladas do Norte, para a poesia sentimentalista, verdadeiramente pessoal e subjectiva,
vendo na natureza uma expressão moral da melancolia fatídica da alma, cabe a Soares
de Passos o lugar proeminente como representante desta corrente lírica na literatura
3

portuguesa. Esta corrente estética, que foi geral na Europa, é explicada pelo estado de
depressão dos espíritos depois dos grandes abalos morais da sociedade moderna,
depois da explosão temporal da Revolução Francesa. Compreende-se isto: passada a
catástrofe, vem a emoção como reacção da sensibilidade, chora-se depois do perigo.
Pela época em que nasceu Soares de Passos, e pelas crises tremendas da nação
portuguesa em que desabrochou a sua vida, o seu espírito devia naturalmente pender
para a reconcentração subjectiva. Esses acontecimentos influíram na sua constituição
orgânica; fizeram dele um doente, um débil, com um retraimento que lhe agravou a
sensibilidade com uma tristeza de incompreendido. A poesia apareceu-lhe como um
recurso de expressão para esse subjectivismo melancólico, que a fatalidade da doença,
que o vitimou no esplendor do seu talento, tornou de uma sempre impressionante
verdade. Esse lirismo pessoal de Soares de Passos, aparece isento do artifício e mesmo
da pecha de atrasado ultra-romantismo, conhecendo-se a sua biografia. É uma
condição imprescindível para bem avaliar os seus versos.
António Augusto Soares de Passos nasceu na cidade do Porto em 27 de
Novembro de 1826; foram seus pais Custódio José Passos, estabelecido na Praça
Nova, nº 111 a 113, com um armazém de drogas, em cujo prédio habitou sempre a sua
família, e D. Ana Margarida do Nascimento Soares de Melo. Deste consórcio nasceu
um outro filho, também de nome Custódio José Passos, que seguiu o comércio e
continuou a casa, e uma menina. Esse ano de 1826 era o início de uma nova época de
perturbação terrível: inaugurava-se o regime constitucional parlamentar com a Carta
outorgada por D. Pedro IV, mas ia desencadear-se a mais tremenda reacção dos
absolutistas apostólicos e realistas, começando pela regência pérfida da devassa Isabel
Maria e pelo governo de D. Miguel, que atraiçoou a causa constitucional que jurara,
proclamando-se rei absoluto, e exercendo a soberania pela violência canibalesca das
forcas, dos confiscos, das perseguições, dos cárceres e dos caceteiros assalariados. O
Porto foi o ponto escolhido para o absolutismo miguelino se impor pelo terror rubro; a
fuga dos chefes da resistência liberal no Belfast justificava a repressão. O honrado
negociante Custódio José Passas, pelo seu espírito liberal, foi um dos inúmeros
perseguidos, tendo de fugir, escondendo-se e homiziando-se para não ser preso e
sucumbir no cárcere. Sob a pressão destes terrores, a mãe do poeta contraiu os
sofrimentos, que nunca mais a abandonaram; e diante da sua casa, na Praça Nova,
foram levantadas as duas forcas, em que a Alçada miguelina mandou executar os nove
liberais, com que entendeu cimentar o prestígio do realismo brigantino. Numa carta de
Rodrigues Cordeiro ao jornalista Martins de Carvalho, vem uma nota pessoal deste
quadro tremendo, contado por Custódio Passas, irmão do poeta: «O irmão de Soares
de Passos disse-me que defronte da janela da casa da sua família, na Praça Nova,
estiveram levantadas duas forcas durante três anos; que o irmão se lembrava delas
com horror; e que isso influíra bastante para o seu espirito liberal.
Na poesia – Ao Porto – escreveu ele, referindo-se ao que vira, quando os
soldados de D. Pedro chegaram à Praça:

Ei-los à Praça chegados,


E os cadafalsos alçados
Lá baqueiam derribados
Aos gritos da multidão. 1

1
Carta de 17 de Junho de 1874, perguntando a Martins de Carvalho sobre as execuções
políticas da Praça Nova de 1828 a 1831 (Conimbricense, nº 5 131 (1896); e nº 5 394 (1899).
4

Na Praça Nova, em 1829, levantaram-se as duas forcas, onde se trucidaram as


nobres vítimas de um sentimento liberal burlado pela outorga da Carta de 1826, que o
Porto festejara. As cabeças das vítimas furam decepadas a esses nove cidadãos sem
crime, e mandadas colocar em postes nas terras de suas naturalidades, para
intimidação e escarmento de quantos se não conformassem com a rara felicidade do
absolutismo paternal. Quando na véspera dos enforcamentos, à noite, se batiam os
postes das forcas, julgaram nas casas vizinhas que esses estalos eram de foguetes,
supondo alvorecer do dia seguinte campearam as forcas, e a cidade do Porto apareceu
encerrada, como se em cada família houvesse luto. A execução realizou-se com todos
os seus horrores, mas o absolutismo ferira-se a si mortalmente. A liando-se por isso a
concessão da amnistia. Ao
A linguagem dos periódicos mais graves proclamava o rigor, classificando esse
inolvidável acto do canibalismo de 7 de Maio:
«A sociedade, o estado, o trono e a espécie humana não podem existir sem que
pereçam os inimigos da espécie humana, do trono, do estado e da sociedade; e eis aqui
onde fulgura a justiça de Deus e de El-Rei, e ande a natureza não geme!» Parece-nos
estar lendo o preâmbulo de João Franco à lei de 3l de Janeiro de 1908! O trono e o
altar nunca hesitaram diante do sangue. Convulsionado por estes actos bestiais do
terror realista, o Porto tornou-se o apoio de toda a resistência para a reconquista da
liberdade; sem muralhas, teve a firmeza de suportar um terrível cerco, e de triunfar
sem recursos, apesar da fome e da peste. E consideram os historiógrafos oficiais, que
todo este sacrifício de um povo, e heroísmos incomparáveis foram motivados para a
restauração do trono da jovem D. Maria da Glória! dessa rainha D. Maria II, que
levada pelo germanismo do seu segundo marido, fazia a Belenzada em 1836, e em
1842 violava a Constituição de 1839, e em 1847 chamava a intervenção armada
estrangeira, para segurar-se no trono, tendo ainda para isso de submeter-se, depois de
nova traição, ao movimento de 1851, chamado da Regeneração!
Mas, a que vêm estes factos políticos, que tanto convulsionaram a nação
portuguesa? Foi através destas tremendas crises que Soares de Passos cresceu, estudou
e se fez homem, actuando no seu temperamento sombrio, valetudinário e retraído. No
meio destes abalos que perturbaram profundamente a família, e das tristezas e
misérias domésticas de um cerco desesperado, Soares de Passos, criança e sem
perceber os espantosos acontecimentos, vendo lágrimas e mortes em volta de si, sentiu
duramente as consequências sofrendo uma doença prolongada, que o predispôs para a
tuberculose, que o vitimou aos trinta e quatro anos, quando o seu talento atingiu o
máximo esplendor.
A primeira educação de Soares de Passos foi-lhe ministrada até aos catorze anos
no Colégio do Corpo da Guarda, com destino para a vida comercial, na própria casa
paterna; aí adquiriu o conhecimento das línguas francesa e inglesa. Desde 1840 a 1845
Soares de Passos esteve efectivamente ao balcão do armazém de drogas de seu pai e
encarregado também da escrituração da casa. Neste período angustioso em que se lhe
acordava no espírito a paixão literária, ele ensinava, nos momentos vagos, a língua
francesa a sua irmã, e o inglês a seu irmão Custódio Passos. A leitura das novas obras
do romantismo mais lhe desvendava a vocação literária. No Porto é frequente esta
aliança da prática do comércio com o interesse pelas letras, como já o notava o célebre
erudito João Pedro Ribeiro dando notícia da preciosa livraria de um negociante do
século XIV. Soares de Passos revelou ao pai a aspiração de seguir os estudas
superiores; conseguiu essa aquiescência em 1845, começando a frequentar a aula de
5

latim do celebrado professor José Rodrigues Passos, e lições de filosofia racional de


António Fernandes da Silva Gomes, pai do poeta portuense Henrique Luso da Silva,
falecido prematuramente, e Augusto Luso da Silva, ambos íntimas amigos de Soares
de Passos e de Custódio Passos, que também cultivava com o maior segredo a poesia.
Terminados estes preparatórios de latinidade e de filosofia elementar em 1848, e
hesitando ainda em seguir o Curso matemático ou o jurídico, ele partiu para Coimbra,
matriculando-se em Outubro de 1849 no primeiro ano da Faculdade de Direito.
Circunstância digna de reparo: neste mesmo curso apareceu matriculado João de
Deus, o que se revelou como o renovador do Lirismo português depois de Garrett. Os
dois poetas não se conheceram nesse primeiro ano de Universidade: João de Deus era
um boémio, vivendo com os estudantes conterrâneos seus do Alentejo e Algarve;
Soares de Passos, naturalmente reservado, morava na Rua dos Militares, numa casa ou
pequena república, em que tinha por companheiros outros poetas portuenses,
Alexandre Braga, o autor das Vozes da Alma, Silva Ferraz e Aires de Gouveia,
planeando com eles o continuarem a tradição académica do jornal de versos O
Trovador, de 1844, em que brilhavam João de Lemos e Couto Monteiro, António
Pereira da Cunha, António Xavier Rodrigues Cordeiro, os dois Serpas (José e
António), Augusto Lima, Evaristo Basto, Henrique O'Neil, Luís Augusto Palmeirim e
Correia Caldeira. Era legítima a empresa de reatar a tradição poética; esse grupo da
Rua dos Militares empreendeu em 1851 a publicação do Novo Trovador. João de
Deus, com a sua tendência apática, deixara-se ficar em Messines em 1850,
regressando a Coimbra para matricular-se no segundo ano em 1851-1852; esta
circunstância explica como ficou atrás da curso de Soares de Passos, não tendo por
isso ensejo para se aproximarem. É, certo que esses dois vultos, que a vida de
Coimbra ali juntou em 1849, tinham no seu talento os destinos da poesia lírica
portuguesa. Era o influxo daquela encantada Coimbra, de que falava Antero de
Quental com saudade.
Assim como a Provença foi para a Europa do fim da Idade Média a capital de
onde irradiou a poesia lírica do Amor, que todas as nações imitaram na forma
trovaderesca, e que a Itália transformou na norma definitiva do Lirismo moderno,
idealista e humano, também Coimbra, desde a Renascença, tornou-se para Portugal o
centro fecundo de elaboração poética, e todos os génios portugueses ali foram receber
a sugestão emocional e ali idealizaram, em estrofes imperecíveis, as emoções com que
ainda nos encantam. A mudança da Universidade para Coimbra em 1537 determinou
este concurso permanente da mocidade de todas as províncias de Portugal; pela
cultura humanista, e predilecção literária, em Coimbra se manifestaram
constantemente as vocações poéticas, muitas das quais deixaram um traço luminoso
na história. Em Coimbra inicia Sá de Miranda a transformação do gosto poético, o
dolce stil nuovo que ele soube encontrar através dos provençais nos líricos italianos;
foi em Coimbra que Luís de Camões e o seu amigo Jorge de Montemor, na livre
expansão da mocidade, nas margens do Mondego, acharam os primeiros acentos da
harmonia, com que imortalizaram a sua afectividade pessoal. No ruído das Escolas, e
no fervor dos estudos de Humanidades e da Jurisprudência, o Dr. António Ferreira
continua o impulso dado por Sá de Miranda, e compreende o valor artístico da lenda
sentida dos amores da D. Inês de Castro, para modelar a primeira tragédia moderna
segundo a estrutura da tragédia clássica directamente conhecida na forma grega. Em
Coimbra, Vasco Mouzinho de Quevedo e Francisco Rodrigues Lobo continuam a
tradição quinhentista, mau grado o Culteranismo, que assoberbou todo o século XVII.
Enfim, cada escola acha em Coimbra os melhores representantes da emotividade
6

poética, como no século XVIII Garção, Dinis, Tolentino e José Anastácio da Cunha,
árcades e proto-românticos, e no princípio do século XIX os autores das tragédias
voltaireanas, que precederam a revolução liberal, os poetas didácticos como Castilho,
os românticos como Garrett, os ultra-românticos como João de Lemos, os
sentimentalistas como Soares de Passos e João de Deus, os revolucionários como
Antero de Quental, parnasistas como Gonçalves Crespo, simbolistas, decadistas,
nefelibatas, de uma exuberante seiva da mocidade.
Para Soares de Passos, a poesia foi um refúgio, a Turris eburnea em que se
confinara. Era nesse meio turbulento da Coimbra das grandes troças, que ele passava
absorvido e alheio a toda a expansão da mocidade, mal conhecendo os condiscípulos,
resguardando-se na intimidade quase exclusiva de Silva Ferraz e de Alexandre Braga.
Em Março de 1852 começou-se a publicar no Porto um jornal de versos intitulado O
Bardo, de que eram fundadores o poeta satírico Faustino Xavier de Novais, e o
ncgociante metrificador António Pinheiro Caldas. Pela sua amizade pessoal obtiveram
de Soares de Passos a distinção de publicarem poesias suas. Aí apareceram pela
primeira vez a balada do Noivado do Sepulcro, as odes À Pátria, Rosa Branca (no
álbum da Exª Srª D. J. Maria de Figueiredo), Canção, Desejo, Saudade, com variantes
que merecem estudar-se, porque revelam o seu processo artístico. No texto definitivo
da mais popular das suas composições, o Noivado do Sepulcro, em geral as
modificações que adoptou na edição de 1854 são inferiores à redacção primitiva d'O
Bardo (Março de 1852). Confrontemos esta lição com as variantes ulteriores:

Mulher formosa, que adorei na vida,


E que inda adoro neste chão de horror,
Porque tão cedo foi assim traída
Tua promessa de constante amor? 2

Depois que em leito sepulcral repousa


Inda há três dias não vieste aqui...
Ai! quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti. 3

Caí exausto neste abismo fundo


Que em tua morte me cavou a dor. 4
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor!

Saudosa ao longe vês no céu a Lua?


– Ai, se a vejo? Bem a vejo, sim...
Foi à luz dela que jurei ser tua,
Na vida e morte, com amor sem fim. 5

2
(2) Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Porque atraiçoas, desleal, mentida,.
O amor eterno que te ouvi jurar?
3
Abandonado neste chão repousa
Há já três dias não vieste aqui...
4
Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor...
7

Em seguida a estas estâncias aparece uma estrofe, que o poeta omitiu na edição
de 1856; não se compreende porque a desprezou; ei-la:

Se em vida, ai triste, não no quis a sorte,


Hoje eis cumpridos os protestos meus;
Oh, dá-me, dá-me que no chão da morte
Meus frios ossos eu reúna aos teus.

O Noivado do Sepulcro é cantado numa melopeia, que o vulgarizou entre o


povo, sem ter contudo condições de popularidade; no Porto ouvimo-lo bastantes vezes
cantado pelas ruas, em noites de luar, mas deturpadas as palavras cultas pelos mais
deploráveis plebeísmos. A extrema vulgarização desta balada chegou a produzir a
ilusão mental de um poeta provinciano, que protestava tê-la escrito e recitado à
família nas férias escolares em 1853, acusando Soares de Passos, depois de morto,
como indigno plagiário.
Adiante analisaremos este caso psicológico.
Numa outra poesia intitulada A Pátria, inspirada pelo verso de Camões: – Esta é
a ditosa Pátria minha amada – acham-se no texto d'O Bardo de 1852 estrofes
inteiramente diversas da lição do texto definitivo de 1856, e outras omitidas.
Confrontemo-las, para a melhor compreensão do processo artístico de Suares de
Passos:

Esta é a ditosa pátria minha amada,


Ditosa noutro tempo, hoje abatida;
Foi grande, foi potente... hoje coitada
Ao mundo apenas dá sinais de vida. 6

Segue-se-lhe esta estrofe desprezada:

Portugal! Oh, perdoa se o meu canto


Em lugar de exaltar-te um ai suspira:
Sou teu filho... nos olhos geme o pranto
Banhando as cordas trémulas da lira.

Pátria, pátria, que tens que em desalento


Vergas a fronte que alterosa ergueste!
Porque, às bordas do gélido moimento
Teus brios e valor adormeceste? 7

5
Saudosa, ao longe, vês no céu a Lua?
Ah, vejo sim... recordação fatal;
Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final,
6
(6) Esta a nação de laureada frente,
Esta a ditosa pátria minha amada,
Ditosa e grande, quando foi potente,
Hoje abatida, sem poder, sem nada.
7
Pátria minha, que tens, que em desalento
Vergas a fronte que alterosa erguias?
Porque fitas o gélido moimento
8

Onde está esse génio de teus filhos,


Que outrora avassalando o mar profundo
Abria sobre as ondas novos trilhos,
Mostrando ao mundo antigo um novo mundo? 8

Que fizeste do império desse Oriente


Onde raiaram teus formosos dias,
Quando sentado em trono refulgente
O ceptro a imensos povos estendias. 9

Então eras tu grande! os reis da terra


Vinham deixar-te aos pés ricos tesouros,
O mar tinto de sangue em dura guerra
Gemia sob o peso dos teus loiros. 10

Não apontamos todas as outras variantes; revelam um trabalho intenso de


modificação de uma frase sempre enfática, que não era a expressão de um verdadeiro
sentimento. Henriques Nogueira, que vira essa miséria da intervenção armada
estrangeira, pedida por D. Maria II em 1847, teve rasgos de suprema eloquência
proclamando a doutrina do Federalismo peninsular; Palmeirim vibrou por um
momento, para calar-se depois; Soares de Passos sofria intimamente, mas a retórica
era então uma forma imperiosa. Notaremos apenas esta estância omitida:

Tudo o mais acabou... cem fortalezas


Com sangue de teus filhos cimentadas,
Baquearam por terra, ou indefesas
Choram de teus heróis sobre as ossadas.

O fenómeno da desnacionalização actuava na depressão tremenda em que se


afundou Portugal, por forma que aquele único espírito que acordava nas almas o
sentimento da nacionalidade, Garrett, era torpemente caluniado pelos políticos
palacianos, e odiado por D. Maria Libânia (pseudónimo usado por D. Maria II) na sua
correspondência com os espiões cabralistas.
Numa visita a Coimbra, António Xavier Rodrigues Cordeiro, um dos poetas do
Trovador, procurou em 1851 Soares de Passos, movido pelo interesse que lhe
suscitara o pensamento do Novo Trovador; morava ele então na Rua do Corpo de

Perdida a força dos antigos dias?


8
Onde está esse vasto capitólio
De tuas glórias, o soberbo Oriente,
Lá onde erguida em triunfante sólio,
Empunhavas teu ceptro refulgente?
9
Que fizeste do génio destemido
Com que douravas esse mar profundo,
E sorrias das vagas ao rugido,
Ignotas praias descobrindo ao mundo?
10
Então eras tu grande! os reis da terra
Derramavam-te aos pés os seus tesouros,
O mar saudando teus pendões de guerra
Gemia ao peso de teus verdes louros.
9

Deus, tendo por companheiros de casa os portuenses Alexandre Braga e António


Aires de Gouveia. Deixou-nos em poucas linhas o retrato do poeta: «Era de estatura
mediana, franzino, fronte larga, e de olhas rasgados, com cabelo castanho liso e pouco
espesso, bigode aloirado; e quanto ao aspecto moral de uma vaga tristeza, pouco
comunicativo». 0 engenheiro Eduardo Falcão, que igualmente o tratara com
intimidade, conversando sobre as modernas doutrinas científicas, também representa
Soares de Passos com traços realistas: «Acanhado entre desconhecidos, e modesto
diante de amigos, preocupando-se com os problemas do homem e da humanidade. Era
apático, passando quase sempre deitado, no seu quarto, dando apenas um pequeno
passeio ao cair da noite». Apontamos estes factos para se reconhecer quanto absurda é
a afirmativa de que esse tímido se apropriara de certas poesias que alguém declarou
ter escrito em 1853, quando Soares de Passos as publicara n’O Bardo em Março de
1852. Também tornam inexplicável a lenda, de que o poeta sofrera em Coimbra uma
agressão violenta, às Olarias, por causa de uma aventura amorosa; nega-o
terminantemente Aires de Gouveia.
É certo que nas férias de 1853 ( Junho a Setembro ) Soares de Passos jazeu
doente em casa, indo tarde e ainda convalescente matricular-se no quinto ano jurídico.
Erguendo-se dessa grave doença, não se lhe proporcionava ensejo para qualquer
actividade literária; tal era o seu estado que só pôde começar a frequência às aulas no
mês de Novembro. Nesta situação, quebrantado da viagem de estafete, difícil e
acidentada para Coimbra, escreveu Soares de Passos a inimitável elegia Partida,
publicada pela primeira vez em 1855 na Grinalda (vol. I, pág. 99), jornal de versos de
Nogueira Lima. Os pressentimentos da morte atravessavam-se por meio das
recordações e saudades, prevalecendo sobre todos os outros sentimentos como uma
obsessão permanente:

Mas se as flores do campo voltarem


Sem que eu volte co'as flores da vida,
Chora aquele que em tumba esquecida
Dorme ao longe seu longo dormir;
E cada ano que o sopro do Outono
Desfolhar a verdura do olmeiro,
Lembra-te ainda do adeus derradeiro,
Deste adeus, que te disse ao partir.

O ano da formatura findava; mas ficava assinalado esse ano de 1854 pelo
estrondoso conflito entre os estudantes da Universidade e a população de Coimbra,
que é conhecido pelo nome da Tomarada. Os estudantes resolveram abandonar
Coimbra, e retiraram-se em tropel para Tomar, onde o governo os sustou sem
violência, mas por acordo, fazendo-os, sob promessa, voltar a Coimbra. Essa energia
transformou-se então num sistema de resistência organizada na Liga Académica, sob a
forma de associação secreta. Começava assim a iniciar-se entre os académicos o
espírito associativo, criando-se nesse ano de 1854 a Sociedade Civilizadora, de que
eram membros os dois companheiros de Soares de Passos, Silva Ferraz e Aires de
Gouveia, Ernesto Marecos e Tomás Ribeiro, também poetas, e outros que lhes
sucederam, como Silva Leal, Correia Harcourt, Filipe de Quental e Ernesto do Canto.
O poeta deixava Coimbra no período mais turbulento da vida académica, que
retomava todo o seu espírito de revolta medieval.
10

Quem entra em Coimbra, ao ver os estudantes desfilando unidos, em grupos,


com as longas capas negras, batina e gorro, crê-se momentaneamente transportado a
uma cidade da Idade Média, do tempo em que o Poder real protegia com privilégios
excepcionais as corporações escolarescas, e quando o clericus andava sempre em
conflito com o laicus, ou o burguês. O que parece uma ilusão torna-se uma realidade,
porque, à medida que se toma conhecimento da organização íntima da Universidade,
transparece ali o espírito medieval em todas as suas feições. A grande corporação
escolar, embora hoje submetida ao centralismo administrativo, persiste em ter uma
jurisprudência sua, não reconhece a base moderna do direito constitucional da
igualdade perante a lei, fortifica-se num anacrónico ou fantástico foro académico, e
nas suas deliberações soberanas manda pôr fora de Coimbra, em vinte e quatro horas,
o cidadão sobre quem, pela disciplina da matrícula, se arroga o poder de exercer uma
acção despótica. Pelo seu lado, os estudantes não se mostram mais adiantados; ao
envergarem a capa e a batina apossam-se do velho espírito da classe, da época em que
o clericus vivia na bambochata dos Goliardos e da tuna, dos sopistas e martinets, e ei-
los durante os anos da formatura entregues com todo o desplante e audácia da
mocidade aos arruídos das antigas Soiças e Investidas a que chamam – as troças.
Ninguém há em Portugal que não conheça as troças de Coimbra: a troça é a
alma da Universidade, a tradição escolaresca na plena inconsciência; é uma orientação
secular, com que o corpo catedrático transige paternalmente, contanto que não roce
pela gravidade doutoral.
O uso da troça encasou-se tão profundamente em Coimbra, que a população
burguesa da cidade fala com o calão da Universidade; tudo o que se diz ou faz é
sempre em ar de troça, operando-se a transição para a seriedade por um modo brusco e
instantâneo, como se se puxasse um cordel ou se pusesse uma máscara. O bom dito é
a piada, que persiste até na linguagem dos conselheiros de Estado, que conservam
essa prega de Coimbra. Daqui provém esse fenómeno psicológico singular do tipo
coimbrão, mantido desde o que chegou a ministro da Coroa até ao mais anónimo
barbeiro: apresenta-se com uma gravidade olímpica na linguagem e nas maneiras, e de
repente, quando menos se espera, enfia as mais pitorescas piadinhas da gíria com uns
gestos faiantes, que desconcertam o observador. Não existe uma transição natural
entre a troça do estudante e a autoridade catedrática do doutor; de modo que, quando
este quer assumir a altura da respeitabilidade do seu grau, só tem o meio violento, a
reprovação no fim do ano no acto, ou a resolução absurda de um conselho de decanos.
O lente, que começou por ser estudante e obedeceu à orientação tradicional da
troça escolar, sofre desde o dia em que toma capelo uma vesânia de respeitabilidade;
adquire na fisionomia um ar meditabundo; emprega no andar o passo cadenciado do
séquito, na conversa usa o tom dogmático, enfim todos as característicos exteriores de
uma seriedade superior a que internamente não corresponde a própria consciência.
Põe-se imediatamente em antinomia com os estudantes, a quem só fala como seu
julgador. Esta moda doutoral é conhecida em Coimbra pela frase de gíria: – Aquele já
botou a albarda aos ombros – com que designam a cerimónia do capelo. Quebra-se
toda a relação moral do mestre com o discípulo; aquele julga-se três vezes mais do
que o estudante (magis ter), e este, na sua situação degradada, revoca-se ao passado e
fortifica-se com o espírito sarcástico, mofador e irreverente da Idade Média, mantendo
a independência intelectual pela troça.
Observando estes costumes, pode-se recompor todo o viver íntimo das antigas
Universidades da Europa, ainda persistente em Coimbra. Além do hábito talar do
clericus, subsiste ali a antiga hostilidade entre o estudante e o burguês (scandala ac
11

dissentiones), que motivou uma legislação privilegiada; para o estudante, o filhote ou


cidadão de Coimbra é um ente desprezível, a que dá o nome de futrica; e para o
burguês o bacharel que se vai deixa uma argola em Coimbra. O conflito da Tomarada
de 1854 proveio desta hostilidade imanente. Em geral, a lente que é natural de
Coimbra ou casado com filha de lente, que o anichou na Universidade, é a favor do
futrica e contra o estudante.
Muitos dos costumes da vida académica de Coimbra, são em tudo semelhantes
ao das Universidades francesas do século XIV, tais como se propagaram na Alemanha
e para a Suécia. ainda hoje os estudantes em Coimbra se dividem em três classes,
correspondentes às designações medievais: os Recentiores, a que equivalem os
Caloiros; os Juniores ou Novatos, e os Seniores ou Veteranos, que compreendiam os
terceiranistas ou Pés-de-banco, sendo esse ano denominado a ponte dos asnos, as
quartanistas ou Candeeiros e os quintanistas. As relações destas diferentes classes
regulam-se pelos velhos cerimoniais da Idade Média, por uma tradição automática,
que nem os próprios doutores saberiam explicar.
É esse o drama da troça, conhecido nas antigas Universidades dos séculos XV e
XVI pelo nome de Depositio, com o Vejamen e a Prise de la pierre. O personagem
objectivo da troça escolar é o Caloiro, da classe dos Bancorum ou Becjaunes, que
vem da casa paterna como o jumentinho ainda coberto de pêlo. É preciso tosquiá-lo,
cortar-lhe a trunfa, torná-lo gente. Às vezes a reacção da vítima produz consequências
mortais. Leva-se depois o Caloiro a uma casa para lhe serem propostas as Captiosae
quaestiunculae da Idade Média, em que sumulam do modo mais grotesco as
cerimónias da defesa de teses e do doutoramento. O encarregado desta troça é sempre
um secundanista, verdadeiro Depositor, que faz a Vexatio e que dá o grau no
Cornutus. Nas Universidades espanholas conservou-se o costume dos Vejamens; nas
poesias de Soropita vem um Vejamen a um lente zarolho de Coimbra no fim do século
XVI. As teses são os mais fantásticos Quod libetus.
O grau é conferido tendo por borla um capacho das pernas, e por vezes um
bispote de barro vidrado, conforme as cores simbólicas das Faculdades. Os graus
degeneraram em violentas brutalidades na Alemanha, no século XVI; o Novato que
entra na Universidade é recebido à Porta férrea com pontapés, chamados na gíria
coimbrã canelão, e quando protegido sob a pasta do quintanista apenas é permitido
desmanchar-lhe o penteado e atirar-lhe algumas chufas.
Em todas as vésperas das férias do Natal, Páscoa, ou do encerramento das aulas,
renovam-se as troças, que reflectem dos Novatos sobre os Caloiros. O fim do ano
escolar assinala-se com o gáudio do toque das latas, espécie de grande Sabath, ao qual
concorrem todos com panelas, tachos, chocalhos, búzios, percorrendo até de
madrugada as ruas de Coimbra. É a libertação do toque da Cabra, espécie de couvre-
feu ou sino corrido da gente escolaresca.
No meio deste tropel, os estudantes agrupam-se ainda pela antiga forma de
Nationes, a que chamam repúblicas: associam-se entre si os ilhéus, os beirões, os
minhotos, lisboetas, alentejanos e algarvios; nas suas choldras, há um que faz de
bolsa, como nas colegiaturas. Aos estudantes medíocres dão-lhes o nome de músicos,
formando a coelheira; cábulas aos que não abrem livro, e urso ao que alcançou a
benevolência do lente que o faz premiado. Esta notável persistência dos costumes
escolares de Coimbra ressente-se nos métodos e no espírito pedagógico da
Universidade; ali subsiste o vicio dialéctico e da ostentação banal do tempo em que as
Universidades eram exclusivamente teológicas; ali impera a Sebenta, representante da
época em que não havia livros impressas e se apostilava o que o Lente ditava lendo
12

pelo seu caderno; e se ensebava passando de mão em mão. Quando se uniformizará a


Universidade de Coimbra, no plano integral da instrução pública portuguesa, aberta ao
livre magistério, mundificada dessa crusta medieval da sua organização interna?
Desse agitado ano de 1854 deixou Soares de Passos uma recordação no Álbum
do seu condiscípulo Gaspar de Queirós Botelho de Almeida e Vasconcelos, um
Soneto bocagiano, o único que escreveu, talvez por não lhe ser simpática esta forma
poética. A primeira estrofe merece transcrever-se:

Nossa lidas findaram. Chega o dia


De deixar estas margens bonançosas,
Onde colhemos as purpúreas rosas
Da ciência, do amor e da poesia. 11

Antes de atirar-se à luta da existência como bacharel formado, Soares de Passos,


ao terminar o acto de formatura, fez uma excursão ao Buçaco e ao Mosteiro da
Batalha, acompanhado de seu irmão Custódio José Passos, de Silva Ferraz e Augusto
Luso; as poesias que lhe inspiraram a floresta secular do monumento histórico são
frias, enfáticas, falhas de pensamento, no estilo característico da plêiade de João de
Lemos. Era preciso que a sua sensibilidade se exacerbasse para tornar a achar a
eloquência do sentimento. 0 regresso ao Porto, onde a vida prática prepondera em
absoluto, forçava-o a empenhar-se desde logo no exercício da sua formatura. Lançou-
se à acção, inscrevendo-se como advogado na secretaria da Relação do Porto, para
contar os dois anos exigidos para despacho na carreira judiciária. Repugnavam-lhe os
processos, as tricas forenses; mais facilmente se lhe votou de alma e vida o seu
condiscípulo e também poeta Alexandre Braga, que deixou nome no foro português.
Uma ocupação sedentária, que honraria com a sua índole artística e tendência apática,
ter-lhe-ia prolongado a vida. Soares de Passos concorreu à vaga de segundo
bibliotecário da Biblioteca Municipal do Porto; como os lugares públicos servem para
pagar os que intrigam nos partidos políticos, o ministro que fez o despacho de um
outro candidato, nem suspeitava que feria mortalmente aquela pobre alma na sua
última aspiração. O poeta caiu na impotência moral, numa tristeza que o levava a
evitar todas as relações, confinando-se entre alguns poucos amigos, e chegando a
permanecer perto de quatro anos fechado no seu quarto. A vida de Coimbra deixa esta
prega de atonia moral em muitos bacharéis que se anulam no isolamento da província.
Em casa não era um ocioso; no artigo intitulado Os Dois Irmãos, escreveu Augusto
Luso: «António Augusto Soares de Passos, formado em Direito na Universidade de
Coimbra, e poeta conhecido, não se recusava a auxiliar seu pai, e seu irmão nos
trabalhos comerciais, quando a necessidade o exigia». 12
Em Setembro de 1854, tendo Castilho ido ao Porto, aí celebrou um sarau
poético; era esse árcade póstumo um exímio recitador, dando um relevo
impressionante a todas as composições que exibia. Para esse sarau convidou Castilho
a Soares de Passos, já bastante conhecido pelas poesias publicadas n'O Bardo.
Passava-se então no seu espírito uma crise profunda, entrando na sua plena floração
ou idealização poética. Esse estado de alma apresentava-se sob dois aspectos: um
elegíaco, pessoal, exprimindo na forma a mais dolorosa e bela, o desânimo de quem
11
Foi publicado este soneto pela primeira vez no Almanaque de Lembranças de 1883, pág.
151, peio possuidor do álbum condiscípulo e íntimo amigo. Está incorporado na sétima edição das
Poesias, pág. 197.
12
Museu Ilustrado, vol. I, pág. 10.
13

5e sente morrer, como no Desalento, Anelos, a Vida e Consolação; o outro era uma
tendência para a Ode filosófica, a alta contemplação que dá a visão subjectiva mas
científica do Universo, como síntese racional, fase que deixou esboçada no
Firmamento e na Visão do Resgate. Explica-se esta fase de idealização científica por
sugestão de conversas do seu último ano de Coimbra. O Firmamento é a manifestação
de uma nova maneira, em que a intenção filosófica e a forma sintética do quadro dão
ao lirismo uma grandeza de ideal, mais verdadeiro e belo do que o tema da
imaginação individual.
Para esta alteração do processo estético houve decerto uma forte sugestão
exterior. No Almanaque de Lembranças de 1875, contou Rodrigues Cordeiro: «Depois
de uma conversa que se travou entre Soares de Passos e o seu amigo o Sr. Eduardo
Augusto Falcão, que nas suas ambiciosas, por não dizer exageradas teorias, queria a
poesia da ciência na arte moderna, e quase que não admitia outra, levou-lhe este um
dia o Système du Monde de Laplace. O poeta leu-o, e daí a muito pouco tempo, diz-me
o Sr. Falcão, apresentou-lhe a ode ao Firmamento, perguntando-lhe se havia ali poesia
da ciência». A história psicológica de todas as obras belas provoca o mais vivo
interesse; e no Firmamento, além da sua beleza estrutural, há os novos recursos de
idealização do poeta. O Sistema do Mundo é uma grandiosa síntese cosmogónica, que
tem dominado e ainda prevalece na astronomia, e dá vontade de convertê-la numa
Epopeia, num hino. O génio surpreendente de Edgar Poe converteu essa alta hipótese
cosmogónica no seu belo quadro fantástico Eureka! Era plausível que um poeta
elaborasse algumas estrofes eloquentes sobre a visão subjectiva da formação e
destruição do universo sideral, saindo da grande Nebulose central pela condensação e
voltando a ela pelo predomínio das forças repulsivas. Suares de Passos não era
repentista; e a leitura rápida do Sistema do Mundo só depois de uma laboriosa
assimilação poderia sugerir ao seu deísmo uma nova idealização poética. Pelo menos
a obra de Laplace serviu-lhe para sistematizar ideias vagas recebidas nas conversas
científicas de Coimbra, no meado do ano de 1854.
O ano de 1856 foi-lhe tormentoso; quatro meses sucessivos velou à cabeceira de
seu irmão Custódio Passos, durante uma grave doença. Na biografia do Poeta, este
irmão deve ocupar o lugar luminoso que lhe compete; conhecemo-lo ainda quando
residimos no Porto; mas para o retratar condignamente, a ele, também tão reservado,
transcreveremos alguns traços do estudo Os Dois Irmãos, do professor Augusto Luso,
que assim o define: «Este era dotado de um espírito claro e pensador; pouca gente o
conhecia bem. A sua honradez aparecia em todos os actos da sua vida... Conhecia o
latim, entretendo-se mesmo em ler os clássicos nesta língua; havia estudado o grego;
lia, escrevia e falava o francês, conhecia o inglês, o alemão e o italiano. Tinha
estudado os três primeiros anos de matemática na Academia desta cidade (Porto), bem
como a física e a química... Os seus conhecimentos em história, geografia e literatura
eram em geral muito vastos, e sobrepujavam aos de seu irmão, apesar de este se tornar
mais conhecido.
Amava em extremo a Poesia, e tinha um fino tacto e delicado para a critica, que
era sempre justa, baseada e segura. Viveu quase sempre desgostoso, vendo
desaparecer-lhe, roubada pela morte, toda a sua família, com quem vivia e a quem
amava extremosamente: sua tia, seu caro irmão, a sua querida irmã, sua terna mãe e
seu bondoso pai; mas forte pela resignação, pôde sobreviver a tudo, porque nunca
desamparou esta virtude. – Custódio José Passos, desde que deixou as aulas da
Academia, viveu sempre doente, aumentando-se-lhe o sofrimento até sucumbir
também. – Escreveu alguns versos e algumas traduções, mas nada publicou, porque a
14

muita modéstia lho proibiu. 13 E Foi nesta crise da doença de seu irmão que Soares de
Passos elaborou as poesias O Mendigo, o Filho Morto, Infância e Morte, Amor e
Eternidade, a Mãe e a Filha, e Tristeza. Neste mesmo ano colige o seu livro Poesias,
publicado pelo tacanho livreiro alfarrabista Cruz Coutinho. O pequeno volume de
versos produziu uma grande impressão no público, cansado das banalidades de
impertinentes versejadores. Em carta de 5 de Agosto de 1856, Alexandre Herculano
felicitou Soares de Passos pela sua obra, considerando-o como sucessor de Garrett,
dizendo também de si: «Fui poeta até aos vinte e cinco anos». 14 Numa carta do grande
tribuno Passos Manuel ao pai do poeta, afirmava-lhe com entusiasmo: «O jovem poeta
era o primeiro, o maior e mais ilustre dos poetas da nova geração...» Depois de 1856
parece que nada mais escreveu, além de uma tradução da Monja de Uhland, e ainda
três versões de Heine, que apareceram em alguns números da Grinalda de Nogueira
Lima, incorporadas na sétima edição das Poesias de 1890. O entusiasmo provocado
pelo livro fez que logo em 1858, o tacanho editor fizesse uma reprodução, retocada e
ampliada. A doença de sua mãe influiu também para esta apatia. Fechado quase
sempre no seu quarto, junto dele reuniam-se alguns amigos íntimos, entre eles Gomes
Coelho (Júlio Dinis), o autor d'As Pupilas do Senhor Reitor e de outros romances no
tipo das novelas inglesas. Gomes Coelho fala dessas reuniões, «nas sempre lembradas
noites em que, entre poucos mas escolhidos amigos, víamos na sua casa correrem as
horas como instantes, e passarem as longas noites de Inverno como um sonho». A
família de Júlio Dinis, também se extinguiu completamente vitimada pela tuberculose,
sendo o insigne romancista derrubado quando estava no apogeu do talento e da glória.
Sob o peso desta fatalidade morreu-lhe seu irmão José Joaquim Gomes Coelho;
Soares de Passos consagrou-lhe estas duas quadras até hoje ainda não incorporadas
nas suas Poesias:

Vinte anos! Ai, bem cedo arrebatado,

13
Eis uma pequena Elegia de Anastacius Grün, traduzida por Custódio Passos:

AS LÁGRIMAS DO HOMEM

Tu viste minhas lágrimas um dia.


Escuta; em vossas faces são os prantos
Como o orvalho que o Céu à flor envia
E que em seu cálix só derrama encantos.
Ou o distile a noite húmida e escura,
Ela, sorrindo, a manhã clara e formosa,
Sempre à flor vem dar vida e cor mais pura,
Fazendo-a erguer mais bela e mais viçosa.
Porém os prantos que derrama o homem
São a estimada goma do Levante
Que os arbustos no seio, avaros, somem
E não deixam correr a cada instante.
Mas firam um na casca ressequida,
Se o golpe o coração do arbusto vara,
Vê-se correr então da larga f'rida
Aurea resina, gotejando, rara.
Breve, é certo, essa fonte não transuda,
Esse arbusto persiste e frutifica,
Mais duma primavera inda saúda;
Mas o sinal do golpe esse lá fica.
14
Lemos esta carta, de que era possuidor o Sr. Leal Barroso.
15

O guardaste no seio, oh campa fria!


Flor passageira, sucumbiste ao fado,
E seus perfumes, exalou num dia.

Quanta ilusão desfeita em seu transporte,


Sonhou glórias talvez! sonhou amores!
Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte;
Derramai-lhe na tumba algumas flores. 15

Castilho estava trabalhando na versão parafrástica dos Fastos de Ovídio, e


entendeu anotar esse poema com notas ilustrativas por vários escritores portugueses;
escreveu, pediu, e alcançou diversas monografias mais ou menos valiosas com que
ampliou em três os volumes da sua tradução. Tendo conhecido Soares de Passos, na
visita ao Porto em 1854, escreveu-lhe pedindo para que lhe redigisse uma memória
sobre Tibur; essa nota efectivamente foi escrita pelo poeta, e está publicada no tomo
III dos Fastos, página 522, devendo ficar também ligada à sua obra. 16 É um exemplar
da sua prosa desataviada mas pura. Transcrevemos aqui a carta que em 23 de
Dezembro de 1859 escreveu a Castilho, dando conta do desempenho do seu pedido; é
um documento inédito valiosíssimo:

Il.mo e Ex.mo Snr.

Estou envergonhadíssimo do modo por que me tenho havido para com V.


Exª, deixando de cumprir até hoje a promessa que lhe fiz de contribuir com o
meu ténue contingente para os comentários à sua tradução dos Fastos de Ovídio;
mas eu espero que V. Exª se dignará desculpar-me acreditando que a omissão
proveio não de descuido ou desatenção para com um objecto que dizia respeito a
V. Exª, e em que havia um compromisso da minha parte, mas da falta de saúde
por um lado, e por outro de ocupações. que me impediram de ser pontual corno
desejava. Bem sei que às mais urgentes ocupações devia antepor esta por todos
os motivos; mas a consideração de que V. Exª ampliava o número dos
convidados para esta obra (comum – riscada esta palavra) e por isso de que a
execução desta talvez se prolongaria, fez-me cometer o que eu reconheço ter
sido um atrevimento. (Finalmente – riscada esta palavra.) Por último é menos
em razões, do que na bondade de V. Exª que eu ponho a esperança. de obter a
remissão desta falta.
Permita-me agora V. Exª que lhe peça um grande favor. Depositando em
suas mãos a nota que V. Exª (riscadas as abreviaturas) me encarregou de redigir,
(intercalada a palavra anterior) reconheço quanto está longe de corresponder ao
pensamento que V. Exª me indicou. Lembrou-me V. Exª que a escrevesse em
verso ou em prosa entremeada de verso; tentei-o, mas não pude achar meio de
realizá-lo de modo que ela fosse poesia e ao mesmo tempo (sem deixar de ser –
riscado) esclarecimento do texto, condição que V. Exª decerto me impunha.
O que pois consegui escrever foi uma colecção de apontamentos em forma
de artigo bem singelo e bem insignificante. Se V. Exª entender que o que fiz é
uma coisa inútil, peço-lhe encarecidamente queira pô-la de parle sem

15
Citada no Discurso de Rodrigues de Freitas na Abertura da Academia Politécnica em 1
de Outubro de 1867.
16
Foi publicada dois anos depois da sua morte; Nota quadragésima dos Fastos de Ovídio,
tomo I, pág. 167, § 21. Traz esta versão anotações de mais de cem escritores portugueses
contemporâneos, 1862.
16

contemplação, porque me resultaria eterno remorso de haver lançado este joio no


meio dos frutos e das flores do seu precioso livro. Eis o favor que lhe roga quem
é

De V. Exª
O mais ard.te adm.or e
respeitoso discípulo

A. A. Soares de Passos. 17

Porto, 23 de Dezembro de 1859.

O estado do poeta, aparentemente satisfatório, encobria um inesperado


desenlace; entrava na crise dos projectos, que irisam a imaginação dos físicos.
Projectava ir passar o Inverno em Lisboa, no Dezembro de 1859. Talvez que Castilho
o estimulasse para isso; mas um ataque de hemoptise em 6 de Janeiro de 1860, e
repetições sucessivas, anunciaram-lhe um fim breve, falecendo às 8 horas da manhã
do dia 8 de Fevereiro de 1860.
Em carta de seu irmão Custódio José Passos a Rodrigues Cordeiro, vem a
narrativa do seu falecimento:
«Pelas 8 horas da noite do dia 6 de Janeiro ainda ele conversava largamente e
bom na aparência comigo e com o seu amigo Dr. Miguel Teixeira Pinto. Das 10 para
as 11 sobreveio-lhe uma hemoptise. A esta sucederam-se outras. Nunca mais pôde
estar deitado; o seu estado foi piorando dia para dia, até que, conhecendo que o seu
fim estava próximo, aceitou a sua morte com a maior resignação e coragem. Pelas 8
horas da manhã do dia 8 de Fevereiro expirava Soares de Passos nos braços de sua
mãe e irmãos, e no meio da família, que tanto o amava. Realizaram se nisto os nossos
e os seus desejos.»
Passos Manuel, o iniciador das maiores fundações do constitucionalismo,
escrevia então ao pai do Poeta, em carta de 17 de Dezembro de 1860: «Um dos
grandes sentimentos que tenho, é o de não ter abraçado em vida esse glorioso filho
que V. Exª perdeu e com tanta razão pranteia».
A morte prematura de Soares de Passos, e a sua organização débil para entrar na
luta, não o deixaram elevar-se acima das emoções da personalidade; a sua bela
organização artística, não pôde por essa fatalidade orgânica atingir a plenitude
criadora e consciente. A obra de arte não pode ser unicamente elaborada pelo poeta
com os elementos que constituem a sua subjectividade; há um factor alheio a ele e
com quem tem de colaborar é a multidão, o povo, a sociedade, a colectividade
nacional, enfim, que lhe fornecem o elemento morfológico da tradição, que o artista
idealiza, dando-lhe a expressão com que é renovada e mais vigorosamente
universalizada. Em geral os grandes artistas modernos esquecem-se deste facto natural
– a tradição – concentram-se no seu espírito, tiram tudo de si, e assim como os
organismos se tornam mais pequenos quando a sua evolução morfológica se exerce no
sentido interno, também os artistas são mais pessoais e mais limitados nos intuitos,
exercendo a sua actividade nos detalhes do estilo, da metrificação, da rima, das
imagens, nos calculados recursos do efeito. São como as lindas plantas de estufa,
alentadas num meio artificial; falta-lhes a grande comunicação do ar livre, o estro
vivificante da multidão. Os talentos novos deviam procurar o modo de restabelecer

17
Ms. 449 da Biblioteca Nacional (Inventário).
17

esta aliança natural, que em tempos antigos produziu todas as formas esplêndidas da
Arte grega, e ainda na Idade Média provocou um original vigor estético, que não saiu
do seu estado rudimentar em virtude da instabilidade política dessa época fecunda e da
posterior direcção erudita dos espíritos que iniciaram a Renascença pela imitação de
obras que correspondiam a um outro estado social. É certo que o estado mental
moderno produz um novo estado de consciência humana, e que esta modificação que
se revela pelas noções morais, actua sobre os costumes e formas da actividade social.
Enquanto se fez a transição, nesse período da Revolução Francesa e nas reacções
inconscientes da Santa Aliança, apareceu um espírito superior, Byron, que idealizou
os seus cantos dando expressão ao mal-estar moral de uma época perturbada por
forças repressivas, e a sua eloquência e sublimidade vem-lhe da oportunidade do
protesto. Byron, como o notou Comte, admiravelmente (Cours de Phil., IV, 366), foi o
génio que deu uma enérgica expressão de revolta contra este estado de retrogradação
transitória, como o grito de uma consciência atropelada. Essa fase passou;
preponderam as forças propulsivas dos dois grandes poderes espiritual e temporal que
se afirmam por novas manifestações, a unificação moral pelo regime da Ciência; e a
cooperação social dirigida ao bem-estar de todas pela Indústria. É desta fase
organicamente construtiva que provém a missão de uma nova Poesia. Porém, como?
Pondo a ciência em verso, como considera o boçalismo retórico? Não. Compreenda-se
a orientação social correspondente a estes progressos intelectuais, e formule-se a
aspiração aí implícita, esboçando a futura síntese do estado normal humano. Assim se
estabelecerá o acordo entre a multidão e o artista, e só assim se conceberá e realizará a
nova poesia, suprema pela sua missão construtiva.
A poesia não consiste nos versos bem medidos, mas na verdade do sentimento
humano, tão complexo nas suas manifestações individuais e sociais. A falta de
conhecimento da realidade das coisas, não deixa o poeta impressionista ver para
dentro do mundo moral, cobrindo esse vácuo com o efeito da frase, com os símiles e
comparações, com rimas imprevistas e pitorescas as desvairadas correntes literárias. A
individualidade do poeta é também uma obra faceada pela acção forte da sua época.
Disse Milton: The life of Poet is a true poem – a vida do poeta é um verdadeiro
poema. O que quer isto dizer? A vida acidentada, complicada pelo conflito dos
interesses e das aspirações ideais é que faz os Poetas, como Dante banido de Florença
nas lutas políticas, como Milton envolvido na Revolução de Inglaterra, como Byron
quebrando o convencionalismo inglês de uma aristocracia hipócrita e verberando o
retrocesso da Santa Aliança, como Vítor Hugo protestando contra os vinte anos de
traição e infâmia do segundo Império; e se olharmos para a nossa península como
Camões desterrado da corte beata de D. João III, escrevendo a Epopeia da nação
portuguesa nos cruzeiros doentios, nos cárceres e misérrimos hospitais, nos naufrágios
e perseguições, como Cervantes escondido no convés de uma nau na batalha de
Lepanto, e escrevendo o Dom Quixote no cárcere de Argamasila, ou ainda Garrett,
colaborando na legislação que renovou as instituições portuguesas, e acordando a
consciência da nacionalidade nas lutas do cartismo e do cabralismo. A vida destes
poetas é na realidade um verdadeiro poema; não viveram em si e para si, e é por isso
que foram grandes na sua obra.
18

NOTA BIBLIOGRÁFICA

Quando a memória de Soares de Passos estava consagrada, reconhecendo-o


como um talento primacial, sucedeu um estranho caso: um contemporâneo seu dos
tempos de Coimbra, veio, anos depois da sua morte, increpá-lo de plagiário,
reclamando insistentemente na imprensa periódica a paternidade das melhores
composições de Soares de Passos. É o Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, bacharel
formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, proprietário rural, vivendo há
longos anos na sua quinta da Fermelã. Em carta que nos escreveu em 4 de Julho de
1886, queixando-se-nos de que Soares de Passos se apropriara da ode O Firmamento,
acrescenta: «E não me roubou só isto; na noite a que me refiro, confiei-lhe todos os
assuntos sobre que tencionava exercer-me, dei-lhe indicações, glosou a parte que lhe
expliquei com mais clareza, e assim fez o Anjo da Humanidade, os Anelos, o
Desalento; roubou-me ainda mais, até estâncias desgarradas de outras poesias que já
esboçara, como da Noite, do Camões –estragou estes assuntos por não lhe alcançar a
ideia principal ou não saber tratá-la!»
Até aqui o tremendo libelo acusatório; na continuação carta, apelando para o
nosso critério, termina: Faço v. juiz...
Como todas as composições de Soares de Passos lhe eram assim extorquidas,
em 1886, pelo Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, suspeitei logo de uma vesânia, a
que já me tinham aludido, e aceitei o mandato, para que me fornecesse dados
positivos da sua afirmação e reivindicação poética.
Enviou-nos um artigo que publicara no Distrito de Aveiro em 1886, com a
narrativa da palestra literária que tivera com Soares de Passos na Rua dos Militares,
em Coimbra, em 1854, única vez em que se encontraram; é desse momento que
derivam todos os plagiatos; transcrevemos esse trecho:
«Em Coimbra, no ano de 1854, alguns dias antes de se fecharem as aulas,
querendo recitar ao meu amigo o Sr. Aires de Gouveia, hoje bispo de Betsaida, O
Firmamento e o Noivado do Sepulcro, dirigi-me a sua casa na noite de uma quarta-
feira, por ser o dia seguinte feriado para os estudantes de Direito.
Morava o Sr. Aires de Gouveia na Rua dos Militares. Encontrei-o na sala de
jantar com os seus comensais Soares de Passos, Silva Ferraz e o Sr. José Carlos
Lopes.
Acalorado um pouco, o Sr. Aires de Gouveia disputava com Soares de Passos, e
perguntei-lhe eu qual era o assunto discutido; vira-se para mim rapidamente depois de
alguns momentos de silêncio e disse-me: – As Folhas Caídas, de Garrett.
E desta maneira instando-me a expor o meu conceito sobre aquelas pérolas da
nossa literatura, ainda que não desejasse ser desagradável a nenhum dos
interlocutores, pois era claro que discutiam o mérito dessas poesias, não ocultei que as
julgava, como todos as julgam, a• par da nossa época, com a sua índole e modo de
sentir, de uma forma espontânea, mas que é muito artística, nova, admirável, e além
disso elevada e ao mesmo tempo um mimo, que ninguém até hoje excedeu ou igualou.
A isto respondeu Soares de Passos: – Pois eu creio que se em vez do nome de
Garrett, as firmasse um outro que não fosse conhecido, ninguém faria caso delas.
Um silêncio constrangido sucedeu a esta observação, pela qual ninguém
esperava.
Daí a pouco levantou-se o Sr. Aires de Gouveia, e eu com ele fui para o seu
quarto, onde não tardou que aparecesse o Sr. José Carlos Lopes com uma arte de
19

inglês, língua que presumo lhe andava ensinando, e ouvi ao Sr. Aires de Gouveia: –
Hoje não pode ser; hei-de entregar amanhã uma dissertação, e só tenho esta noite para
escrevê-la.
– Também eu vinha tirar-lhe o tempo, disse eu; e visto isso, retiro-me.
Insistindo em que me demorasse, supondo ser algum escrito, rogava-me que lho
desse.
– São versos, que trago de memória, mas o assunto precisa de longas
explicações, e hoje não há tempo, nem ocasião para elas; e despedi-me.
Ao sair, topo com Soares de Passos e Silva Ferraz defronte do quarto de Miguel
Teixeira Pinto, para onde entrámos.
Este quarto era, por sinal, esquinado; eu sentei-me perto da janela, numa das
duas cadeiras que tinha, Soares de Passos na outra, Silva Ferraz debruçou-se sobre a
mesa de estudo, e assim se conservou quase todo o tempo que ali estive com eles.

1 – FIRMAMENTO

Quando em direcção à minha casa, que era na Rua do Correio, passei na que
corre por detrás do Observatório, de cujo nome me não recordo, soava uma hora na
torre da Universidade.
No começo da conversação observei que o estudo das ciências e da filosofia
muito devia convir aos poetas.
Então o Sr. Soares de Passos atalhou-me com a seguinte pergunta:
– O Sr. Almeida nunca fez versos?
A esta pergunta deve Soares de Passos uma parte da sua glória, e eu alguns
dissabores de que podia ter-me dispensado; respondi:
– Tenho apenas duas poesias em estado de poder recitá-las, mas uma delas ainda
está incompleta, e a outra desejo corrigi-la em algumas passagens. Esta versa sobre
um assunto tão original e inesperado, que receio, publicando-a, me chamem louco ou
extravagante. Imagine o Sr. Passos, é a destruição de todo o universo suposta como
provada pela ciência.»
Até aqui a narrativa da palestra da Rua dos Militares antes das férias de 1854,
que durou até à uma hora da noite. É natural que o Sr. Lourenço de Almeida, que por
esse tempo se graduara na Faculdade de Filosofia, fantasiasse um quadro poético,
contrário às doutrinas de Laplace e de Marcel de Serres, e sugerido pelas novas
teorias baseadas no cálculo, que demonstrava o encurtamento à órbita do cometa
de Encke; é portanto improcedente o seu argumento: «Que as estâncias do
Firmamento se baseiam em suspeitas e induções só minhas, mas de um carácter
científico bastante para se afirmar – que só quem soubesse reflectir sobre certos factos
astronómicos e outros geológicos os podia conceber e depois desenvolver em formas
poéticas». 18
Versos que trago de memória foi o que declarou a Aires de Gouveia; admitida a
hipótese, que recitasse esses versos sobre a destruição de todo o universo, que
desejava corrigir em algumas passagens, não é aceitável, que por uma simples audição
de uma conversa muito complexa, Soares de Passos retivesse de memória uma Ode
constando de dezoito estrofes em oitavas. E demais sabendo-se o estado de doença
nesse ano final de formatura. Quando o Dr. Lourenço de Almeida quer recorrer à
prova, cai em contradições que anulam a sua afirmativa; assim na aludi4a carta de 4

18
Distrito de Aveiro, no 1498 (ano XV), 1886.
20

de Julho de 1886, escreve: «Aqui estão minha irmã e meu cunhado, que nas férias de
1853 me ouviram na minha casa em Fermelã recitar o Firmamento, e as primeiras
quadras do Noivado».
É assombrosa a inconsciência! Em Março de 1852 publicou Soares de Passos,
no número 4 d'O Bardo, pág. 50, o Noivado do Sepulcro, de que Lourenço se dá como
autor, compondo em 1853 as primeiras quadras.
Num dos seus artigos de Reclamação das Poesias, confessa que só no fim do
ano de 1854 achou a verdadeira forma do Firmamento completando a concepção:
«Explicarei primeiro a ideia original do Firmamento. Do contraste da natureza, que
supomos eterna, imensa, sempre jovem, sempre bela, com o homem, o mais nobre dos
seres, mas efémero, que decai e não se remoça, e por fim se extingue, formara-se-me
no intimo da alma uma dolorosa impressão, que nunca me largava. Eis aí o gérmen da
poesia. Como se vê, estava ela pedindo para o seu começo um rápido esboço do
universo – o sublime espectáculo da noite, em que se mostra o espaço cheio de sóis e
de mundos, as suas multidões, as suas distâncias prodigiosas, e de envolta o mistério
das origens e dos destinos que encerra o insondável abismo, ofereciam-me o assunto
das primeiras estrofes.
Estava pois no meu plano fazer sentir a grande mágoa do homem, pela sua breve
decadência em face dos seres que a não conhecem, em face da eterna juventude da
natureza. Mas o supor-se um como resumo da imensidade, segundo uma teoria que
não consegui tornar acessível a Soares de Passos, o atingir pela razão o infinito, o
sentir a beleza das coisas, o eternizar-se pelas gerações sucessivas, vinham consolá-lo
e minorar-lhe aquela mágoa.
Aqui rematava o Firmamento, na sua primeira concepção.
Aproxima-se o fim do 4º ano de Filosofia, que eu então cursava. Indagando
como a Terra se constituiu (sobre o que o ensino e os livros do curso passavam mui de
leve), concebi a suspeita de que assim como o nosso globo, no princípio diverso do
que hoje é, só depois de longas modificações chegou à sua forma e modo de ser
actuais, da mesma sorte era provável que em época mui distante viesse a decompor-se,
alterando pouco a pouco as condições de equilíbrio e de harmonia, que naquele tempo
da Universidade e ainda muito depois se julgavam perpétuas.
A Terra será sempre o que é agora? Durará com ela eternamente a humanidade?
A estas interrogações dá hoje a ciência uma resposta negativa...
Vem daí toda a parte do Firmamento, que a esse assunto se refere. E com isto a
ideia da poesia se completou». 19
Como é que Soares de Passos, não falando já nas estrofes feitas, se apropria da
ideia com que o Dr. Lourenço de Almeida completava o plano da sua trilogia, a que
chegou depois da palestra da Rua dos Militares?
É sobre estas bases: assuntos em que tencionava exercer-se, indicações, que
Soares de Passos glosou no pouco que compreendeu, e estâncias desgarradas de
poesias esboçadas, que julga fundamentar os plagiatos.
Bases inconsistentes em coisas de Arte, porque na idealização estética o poder
criador e a obra genial consistem na forma, no dom da expressão em que se uni-
versaliza o sentimento. Pode qualquer indivíduo ter indicações, tencionar ou projectar
poemas, mas esses temas indeterminados só existem no mundo da Arte e só per-
tencem àquele que soube dar-lhes expressão. Quem negará a originalidade das
tragédias de Shakespeare por se encontrarem a maior parte dos seus argumentos nos

19
A Locomotiva, nº 106, Aveiro, 1884.
21

Novelistas italianos em simples esboços, sem paixões, nem caracteres, nem situações
definidas? Quem negará a La Fontaine a originalidade das suas Fábulas, embora
venham os seus temas de Esopo, de Fedro ou dos Fabliaux da Idade Média, se a forma
é incomparável, pelo cunho de individualidade crítica, pelas alusões ou intenções
morais ou históricas da época de Luís XIV?
Quando muito, só podemos conceder qualquer influxo sugestivo de uma
exposição científica da cosmogonia, ainda assim menos poderosa do que a leitura do
Sistema do Mundo, de Laplace, provocada pelo engenheiro Eduardo Falcão em 1854.
A forma vesânica da Reclamação das Poesias, verifica-se na insistência
continua do Sr. Lourenço de Almeida, e na complicação dos plagiatos abrangendo
mais cinco das melhores poesias de Soares de Passos. As contradições em que
escorrega mostram a inanidade das afirmações; diz que: «No Porto, em 1858, a
primeira vez que soube do embuste de Soares de Passos...» (Carta de 4 de Julho de
1886.) E .antes desse ano, diz do poeta: «Humilhou-se diante de mim, e teve a fortuna
de eu não saber do seu indiscreto abuso senão em Outubro de 1860, depois da sua
morte». (Carta de 20 de Julho de 1886.)
E desde 1854 até ao presente nunca teve ensejo para publicar uma obra poética
que pelo menos justificasse a plausibilidade da delirante afirmativa.

2 – O NOIVADO DO SEPULCRO

Quando nas Modernas Ideias na Literatura Portuguesa a individualidade


poética de Soares de Passos, lírico obermanista, foi estudada como representante da
fase ultra-romântica, referimos este caso de um contemporâneo da Universidade se
atribuir a paternidade das suas principais composições, destacando a balada elegíaca O
Noivado do Sepulcro, e a grandiosa ode O Firmamento. Estas acusações de plagiário
tantas vezes feitas pelo Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, em jornais da província,
como o Distrito de Aveiro e a Locomotiva, não podiam passar indiferentes para o meu
estudo crítico. Tendo falado em 1871 com o Sr. Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros,
formulou-me as suas provas, que se limitaram a afirmações verbais contra Soares de
Passos, com quem conversara antes das férias de 1854, resultando daí o publicar com
o seu nome as melhores composições que contém o livro de Poesias de 1856. No meu
assombro, o Dr. Lourenço de Almeida disse que me fazia juiz sobre estas suas
reivindicações. A apreciação do talento de Soares de Passos obrigava-me a examinar
este problema ou caso anedótico; há dados concretos de prioridades que se evidenciam
bibliograficamente, há antecedentes artísticos, e mesmo tendências vesânicas que
ajudam à solução.
Sobre o Noivado do Sepulcro declarou em jornais o Sr. Lourenço de Almeida
que o escrevera em Fevereiro de 1853, recitando-o ainda nesse ano à família e a outras
pessoas cujos nomes invoca. Infelizmente para o acusador, esta data categórica
patenteou a falsidade da imputação; porque em Junho de 1852, publicou Soares de
Passos O Noivado do Sepulcro no nº 4 do jornal de poesias O Bardo, pág. 50, do qual
eram directores Faustino Xavier de Novais e A. Pinheiro Caldas.
Depois de termos expendido esta conclusão em 1892 no livro supracitado,
escreveu-nos o Sr. Dr. Lourenço de Almeida uma carta em 24 de Outubro de 1904,
dizendo ter chegado ao seu conhecimento as Modernas Ideias e protestando: «Li a
parte que se refere ao Firmamento e Noivado...
Diz V. que já estava publicado em 1852, e que por isso dá a questão como
resolvida a seu respeito.
22

Não pode ser, protesto.


Soares de Passos não compôs em 52 a poesia que eu compus em 53.
É engano de V., e se não for corto a cabeça.
Escrevi a Magalhães & Moniz pedindo uma edição d'O Bardo. Na carta em que
a peço protesto contra este erro de data que V. me atribui, sem dúvida sinceramente,
mas que me desacredita.
Só se houve alguma reprodução d'O Bardo, onde fosse incluído o Noivado.
Espero ainda que V., reconhecendo o seu engano, o repare em qualquer das suas
publicações, porque assim o exige a minha honra. Não sei nunca em que faltei à
verdade».
À vista desta intimativa fui outra vez examinar o nº 4 d'O Bardo publicado em
1852, e lá encontrei a pág. 50 O Noivado do Sepulcro assinado por Soares de Passos,
tendo demais a mais a folha impressos na cruzeira o lugar, ano e tipografia. Para mais
confirmação fui à Biblioteca Nacional examinar os exemplares d'O Bardo e ali chamei
a atenção de dois bibliógrafos para o seu exame. Em 10 de Novembro de 1904 o
ilustre bibliotecário actual Dr. Xavier da Cunha, conhecido por trabalhos. da
especialidade, e o primeiro conservador da mesma biblioteca Alberto Carlos da Silva,
diante do exemplar. d'O Bardo reconheceram que no nº 4, de 1852, a pág. 50, estava
publicado com o nome de Soares de Passos O Noivado do Sepulcro, tendo essa folha
tipográfica, como todas as outras que constituem o volume, autenticado o local, ano e
tipografia, a que são obrigadas as publicações periódicas.
Contra este facto inegável e que imediatamente se verifica, opõe o Sr. Dr.
Lourenço de Almeida em carta de 28 de Outubro de 1904 variadas hipóteses curiosas:
«Chegou à minha mão O Bardo, isto é, uma reprodução das poesias publicadas
neste jornal desde 1852 até fim do ano de 1854.
Logo vi o engano de V., como lhe afirmei sem ainda ter visto O Bardo para
verificar a minha afirmativa.
Enganou-se V., com a data das poesias que ali antecedem O Noivado.
Repito, O Noivado ninguém o encontrará n'O Bardo de 1852, nem de 1853, nem
mesmo no de 1854, antes de Fevereiro desse ano.
Visto a fama e autoridade do autor das Ideias Modernas, fico desacreditado no
conceito de todos que as lerem, pois não têm O Bardo para examinarem e
reconhecerem o engano de V.
A data de 1852 e o nome da tipografia na reprodução d'O Bardo e na linha
vertical a pág. 64 iludiram a V., e talvez não me iludissem se o Sr. Teófilo Braga fosse
o autor do Noivado e o reclamasse atestando tê-lo composto em Fevereiro de 1853.
O Bardo primitivo é que o decidirá.
Na primeira página vê-se no alto O Bardo; trazia pois o 1º número o nome do
jornal – e devem tê-lo todos os números seguintes se fosse uma colecção de jornais
primitivos. E não pode sê-lo – porque não podia estar publicado o Noivado no nº 4 de
1852.
Agora explique V. o facto: Nas férias de 53 recitei à Sr. D. Maria do Carmo
Sousa Brandão o Noivado; eu nunca li O Bardo, não soube da sua existência senão
lendo as Ideias Modernas, como é que adivinhei?
E se li O Bardo, como adivinhei as alterações no livro de v6rsos de Passos,
publicado em 56?
– P. S. – Como se acha o Noivado na reprodução d'O Bardo em 1854, e entre as
poesias relativas ao ano de 1852?
Aí vai uma hipótese:
23

Soares de Passos trouxe de Coimbra uma cópia da poesia incompleta em 1854.


A reprodução d'O Bardo fez-se nesse ano.
Se publicou alguma poesia em 1852, sabendo da reprodução d'O Bardo, quis
substitui-la pelo Noivado com uns acrescentos e com umas correcções que rejeito.
Resta agora O Bardo primitivo.
Alguém já se incumbiu de obtê-lo.
Mas, tendo a data de 52, se tiver o Noivado essa data é falsa, não é O Bardo de
52. Indague-se bem, e a verdade há-de aparecer.
Outros, e principalmente os indiferentes, que nada examinam ou nada sabem do
assunto, podem dar razão às Ideias Modernas; mas eu, que sou o verdadeiro autor,
vejo quanto V. se engana e como a sua critica prevenida arbitrariamente me nega a
elaboração artística e a atribui a Soares de Passos.
– P. S.– Ainda uma vez. Como não é uma reprodução, se em 53 compus o
Noivado e só em 54 o recitei a Soares de Passos?
Como não é uma reprodução feita em 54, ao menos do nº 4, onde acho o
Noivado?
Como explica V. isto?
E sendo assim, que valor têm os dados bibliográficos que V. assevera serem
rigorosos.»
Depois destas argumentações contra o facto positivo e autêntico, reproduzidas
pelo Sr. Dr. Lourenço de Almeida no jornal A Vitalidade, aí dá conta das pesquisas
que mandou fazer no Porto para saber da reprodução do texto d'O Bardo que tem o
frontispício de 1854: – «Que a edição se fez reunindo-se (os Bardos) o que mais se
pudesse e imprimindo os que faltavam. (Alfarrabista da Rua Chã.)
Não preciso eu de mais para saber como o Noivado do Sepulcro feito em 1853,
aparece num suposto nº 4 d'O Bardo com a data de 1852.
Muitas vezes me rio comigo do embuste do Sr. Passos, que enganou uma
geração inteira, e do crítico prevenido a quem incumbia esclarecê-la, principalmente
depois das minhas declarações e provas». (Vitalidade, nº 502, de 26 de Novembro de
1904.)
Muito se engana quem julgar que eu afirmo um facto ou qualquer circunstância
em que possa desmentir-me.
Quando não seja pela seriedade de que me prezo, conceda-se que, pelo brio,
pelo orgulho, pelo capricho de ninguém ter motivo de vexar-me, eu ser capaz de uma
impostura.
O que diz a meu respeito o Sr. Teófilo Braga nas Ideias Modernas é um escarro
na sua obra e sobre o meu nome». (Vitalidade, nº 503, de 3 de Dezembro de 1904.)

___________

Por mais voltas que dê, o Sr. Dr. Lourenço de Almeida não invalida o facto de
ter publicado Soares de Passos em Junho de 1852, no nº 4 d'O Bardo, o Noivado do
Sepulcro, que Sua Exª há muitos anos reclama como tendo-o escrito em Fevereiro de
1853. Todas as suas hipóteses se esvaem diante da descrição bibliográfica dessa
colecção de versos:
O Bardo – Jornal de Poesias inéditas – Publicado desde Março de 1852 a
Março de 1854. (Emblema – uma Lira.) Porto. Na Tipografia de Sebastião José
Pereira, Praça de Santa Teresa, nº 28, 1854.
24

É um volume in-8º grande de 384 páginas, com mais 6 de Índice. Publicava-se


mensalmente em números avulsos de 16 páginas, tendo o titulo O Bardo só na
primeira folha, e nas folhas restantes ao baixo da página a par da indicação do nº da
folha servindo também de numeração da série. Como publicação periódica, cada folha
traz na cruzeira declarado o local, ano e tipografia em que se imprimia O Bardo.
Depois de distribuídos pelos assinantes, ao fim de 24 números foi distribuído com o
último o frontispício com a data de 1854.
O Bardo (sem frontispício) começou este 2º volume em Março de 1854 e
interrompeu-se em Fevereiro de 1855, na folha 21, pág. 192; tem ainda o mesmo tipo
e papel, com as indicações do ano, local e tipografia.
A suspensão d'O Bardo, não terminando a série dos 24 números, foi devida à
partida de Faustino Xavier de Novais para o Brasil.
Em 1857, o livreiro Francisco Gomes da Fonseca comprou todo o depósito das
folhas d'O Bardo, e brochou-as, fazendo frontispícios para os dois volumes:

O Bardo, I Parte.
O Bardo, II Parte.

Como lhe faltassem as 12 primeiras folhas do volume de 1852-1854, para salvar


algumas colecções reimprimiu em papel azulado, e noutro tipo, as 12 folhas (pág. 1 a
192) e inteirando o volume com as que abundavam; pôs-lhe o título:
O Bardo. Jornal de Poesias inéditas – Redactores A. P. C. – F. X. de Novais.
Nova edição (Emblema da Lira) Porto. Editor Francisco Gomes da Fonseca. 1857, 1
volume in-8º. I Parte.
Nesta reprodução de 1857, vem o Noivado do Sepulcro transcrito do texto de
1852, e isto quando já andava com variantes no livro das Poesias de Soares de Passos
de 1856.
O Bardo. Jornal de Poesias inéditas – Redactor F. X. de Novais. Porto, Editor
Francisco Gomes da Fonseca, 1857. In-8º. II Parte.
É um frontispício falso posto às 12 folhas incompletas de 1855, impressas na
tipografia de A. J. de Freitas e na de Sebastião José Pereira. Neste volume vêm
poesias de Soares de Passos inéditas ainda em 1855, mas não o sendo já em 1857,
depois do aparecimento do seu livro em 1856.
Deste quadro bibliográfico conclui-se, que o texto tipográfico de 1852 se
reimprimiu em 1857 em diferente papel e tipo, e sem intuito de falsificação, e que o
Noivado do Sepulcro é autenticamente de Soares de Passos. 20 Como apagar este
irrefragável testemunho? São curiosos os expedientes, que mais agravam a situação
em que se colocou o reclamante:
«O número 4 d'O Bardo foi todo ou parte reimpresso, quando se tratou de
reunir em volume em 1854.»
Quando a entrega do nº 24, Índice e Frontispício, se fez aos assinantes d'O
Bardo, já havia dois anos que o nº 4, com o Noivado do Sepulcro, lhes estava
distribuído e não era possível reavê-lo, destruí-lo e substitui-lo por outro texto; e além
disso o Índice geral enviado aos assinantes d'O Bardo, inclui o Noivado do Sepulcro
nas páginas do número respectivo. Este esforço de imaginação do Sr. Lourenço,
fazendo que Soares de Passos, que em 1854 cursava o quinto ano jurídico em
Coimbra, obrigasse Pinheiro Cuidas e Faustino de Novais a refazerem um número

20
Revista Literária, Científica e Artística, nº 320 do Século de 19.XII.904.
25

atrasado d'O Bardo, para incluir aí com antedata de 1852 o Noivado do Sepulcro, que
um sujeito que casualmente encontrou lhe comunicara, só isto basta para reconhecer
falta de sinceridade na ilusão. E nos mesmos voos da imaginação continua o
reclamante com singular hermenêutica:
«Os números de um periódico que nunca saiu do armazém da tipografia que os
imprimia, não se pode negar que fossem reimpressos, não se revestem do carácter de
autenticidade que o Sr. Teófilo levianamente lhe atribui.»
O Bardo imprimia-se para ser distribuído mensalmente aos seus assinantes, e
pelas colecções particulares e bibliotecas públicas existem exemplares, e todos eles
são uniformes, trazendo o Noivado do Sepulcro com a data de 1852 no registo da
folha. Os números que ficaram em depósito ou armazenados foram adquiridos depois
de 1855 pelo livreiro Gomes da Fonseca. Depois desta segunda fantasia vem uma
exigência verdadeiramente fenomenal:
«Apareça um Bardo de 52, ou mesmo de 53 (eu dou largas ao Sr. Teófilo) ou
anterior a 15 de Fevereiro de 1854, e só então se justificará da insolência que me
dirige. Tem obrigação de apresentá-lo. »
Não se pode saber o que entende S. Exª por um Bardo de 52, ou mesmo de 53,
ou anterior a Fevereiro de 54. O único texto do jornal O Bardo compreende os 24
números desde Março de 1852 a Março de 1854, formando um volume completo. É
neste volume, e no nº 4, distribuído em Junho de 1852, que Soares de Passou publicou
o seu Noivado do Sepulcro. Para indicar este facto não nos acusa a consciência de ter
dirigido insolência a quem só carece de piedade, refugiando-se detrás da ininteligível
exigência de um Bardo de 52. E acrescenta ainda o reclamante, torvado se não
iracundo:
«Não era bastante ser vilmente espoliado do que pensei e escrevi, mas sofrer
agora insultos como este, que sem escrúpulo deixou cair da sua pena sobre o meu
nome, o caso era para uni sério desagravo, se o riso medianeiro não viesse atenuar a
indignação que me causa. (!)
Felizmente para mim e infelizmente para o Sr. Teófilo, a falsidade do que me
imputa é que está provada». (!)
Esta cólera, estas afirmações imperativas e explicativas hipóteses, encerram o
bastante para esclarecer o problema literário que há quarenta e seis anos o Sr. Dr.
Lourenço de Almeida, a seu grado, propõe e resolve. Mas quem caiu na ingenuidade
de acusar Soares de Passos de plagiário, ficou sujeito à alçada da crítica rigorosa de
quantos estudarem a obra poética daquele espírito, e às conclusões psicológicas que
deduzirem. 21

21
Revista Literária do Século, 16-1-905.
26

POESIAS

A CAMÕES

Ai do que a sorte assinalou no berço


Inspirado cantor, rei da harmonia!
Ai do que Deus às gerações envia
Dizendo – vai, padece, é teu fadário;
Como um astro brilhante o mundo o admira,
Mas não vê que essa chama abrasadora
Que o cerca d'esplendor, também devora
Seu peito solitário.

Pairar nos céus em alteroso adejo,


Buscando amor, e vida, e luz, e glórias;
E ver passar, quais sombras ilusórias,
Essas imagens de fulgor divino:
Tais s o vossos destinos, ó poetas,
Almas de fogo, que um vil mundo encerra;
Tal foi, grande Camões, tal foi na terra
Teu mísero destino.

A cruz levaste desde o berço à campa:


Esgotaste a amargura ate às fezes:
Parece que a fortuna em seus revezes
Te mediu pelo génio a desventura.
Combateste com ela como o cedro
Que provoca o rancor da tempestade,
Mas cuja inabalável majestade
Lhe resiste segura.

Foste grande na dor como na lira!


Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto?
Um anjo viste de celeste encanto,
E aos pés caíste da visão querida...
Engano! foi um astro passageiro,
Foi uma flor de perfumado alento
Que ao longe te sorriu, mas que sedento
Jamais colheste em vida.

Sob a couraça que cingiste ao peito


Do peito ansioso sufocaste a chama,
E foste ao longe procurar a fama,
Talvez, quem sabe? procurar a morte.
Mas, qual onda que o náufrago arremessa
Sobre inóspita praia sem guarida,
A morte crua te arrojou a vida,
27

E as injúrias da sorte.

De praia em praia divagando incerto


Tuas desditas ensinaste ao mundo:
A terra, os homens, ‘té o mar profundo
Conspirados achavas em teu dano.
Ave canora em solidão gemendo,
Tiveste o génio por algoz ferino:
Teu alento imortal era divino,
Perdeste em ser humano:

Índicos vales, solidões do Ganges,


E tu, ó gruta de Macau, sombria,
Vós lhe ouvistes as queixas, e a harmonia
Desses hinos que o tempo não consome.
Foi lá, nessa rocha solitária,
Que o vate desterrado e perseguido,
À pátria, ingrata, que lhe dera o olvido,
Deu eterno renome.

«Cantemos!» disse, e triunfou da sorte.


«Cantemos!» disse, e recordando glórias,
Sobre o mesmo teatro das vitórias,
Bardo guerreiro, levantou seus hinos.
Os desastres da pátria, a sua queda,
Temendo já no meditar profundo,
Quis dar-lhe a voz do cisne moribundo
Em seus cantos divinos.

E que sentidos cantos! d'Inês triste


Se ouve mais triste o derradeiro alento,
Ensinando o que pode o sentimento
Quando um seio que amou d'amores canta:
No brado heróico da guerreira tuba
O valor português soa tremendo,
E o fero Adamastor com gesto horrendo
Inda hoje o mundo espanta!

Mas ai! a pátria não lhe ouvia o canto!


Da pátria e do cantor findava a sorte:
Aos dois juraram perdição e morte,
E os dois juntaram na mansão funérea...
Ingratos! ao que, alçando a voz do génio
Além dos astros nos erguera um sólio,
Decretaram por louro e capitólio
O leito da miséria!

Ninguém o pranto lhe enxugou piedoso...


Valeu-lhe o seu escravo, o seu amigo:
28

«Dai esmola a Camões, dai-lhe um abrigo!»


Dizia o triste a mendigar confuso!
Homero, Ovídio, Tasso, estranhos cisnes,
Vós, que sorvestes do infortúnio a taça,
Vinde depor as c'roas da desgraça
Aos pés do cisne luso!

Mas não tardava o derradeiro instante...


O raio ardente, que fulmina a rocha,
Também a flor que nela desabrocha,
Cresta, passando, coas etéreas lavas!
Que cena! enquanto ao longe a pátria exangue
Aos alfanges mouriscos dava o peito,
De mísero hospital num pobre leito,
Camões, tu expiravas!

Oh! quem me dera desse leito à beira


Sondar teu grande espírito nessa hora,
Por saber, quando a mágoa nos devora,
Que dor pode conter um peito humano;
Palpar teu seio, e nesse estreito espaço
Sentir a imensidade do tormento,
Combatendo-te n’alma, como o vento,
Nas ondas do Oceano!

O amor da pátria, a ingratidão dos homens,


Natércia, a glória, as ilusões passadas,
Entre as sombras da morte debuxadas,
Em teu pálido rosto já pendido;
E a pátria, oh! e a pátria que exaltaras
Nessas canções d'inspiração profunda,
Exalando contigo moribunda
Seu último gemido!

Expirou! como o nauta destemido,


Vendo a procela que o navio alaga,
E ouvindo em roda no bramir da vaga
D'horrenda morte o funeral presságio,
Aos entes corre que adorou na vida,
Em seguro baixel os põe a nado,
E esquecido de si morre abraçado
Aos restos do naufrágio:

Assim, da pátria que baixava à tumba,


Em cantos imortais salvando a pátria,
E entregando-a dos tempos à memória,
Como em gigante pedestal segura:
«Pátria querida, morreremos juntos!»
Murmurou em acento funerário,
29

E envolvido da pátria no sudário


Baixou à sepultura.

Quebrando a lousa do feral jazigo,


Portugal ressurgiu, vingando a afronta,
E inda hoje ao mundo sua glória aponta
Dos cantos de Camões no eterno brado;
Mas do vate imortal as frias cinzas
Esquecidas deixou na sepultura,
E o estrangeiro que passa, em vão procura
Seu túmulo ignorado.

Nenhuma pedra ou inscrição ligeira


Recorda o grã cantor... porém calemos!
Silêncio! do imortal não profanemos
Com tributos mortais a alta memória.
Camões, grande Camões; foste poeta!
Eu sei que tua sombra nos perdoa:
Que valem mausoléus antes a coroa
De tua eterna glória?
30

O OUTONO

Eis já do lívido outono


Pesa o manto nas florestas;
Cessaram as brandas festas
De natureza louçã.
Tudo aguarda o frio inverno;
Já não há cantos suaves
Do montanhês e das aves,
Saudando a luz da manhã.

Tudo é triste! os verdes montes


Vão perdendo os seus matizes,
As veigas e os dons felizes,
Tesouro dos seus casais;
Dos crestados arvoredos
A folha seca e mirrada,
Cai ao sopro da rajada,
Que anuncia os vendavais.

Tudo é triste! e o seio triste


Comprime-se a este aspecto;
Não sei que pesar secreto
Nos enluta o coração.
É que nos lembra o passado
Cheio de viço e frescura,
E o presente sem verdura
Como a folhagem do chão.

Lembra-nos cada esperança


Pelo tempo emurchecida,
Mil áureos sonhos da vida
Desfeitos, murchos também;
Lembram-nos crenças fagueiras
Da inocência doutra idade,
Mortas à luz da verdade,
Criadas por nossa mãe.

Lembram-nos doces tesouros


Que tivemos, e não temos;
Os amigos que perdemos,
A alegria que passou;
Lembram-nos dias da infância,
Lembram-nos ternos amores,
Lembram-nos todas as flores
Que o tempo à vida arrancou.

E depois assoma o inverno.


31

Que lembra o gelo da morte,


Das amarguras da sorte
Última gota fatal...
É por isso que estes dias
Da natureza cadente,
Brilham n'alma tristemente
Como um círio funeral.

Mas ânimo! após a quadra


De nuvens e de tristeza,
Despe o luto a natureza,
Revive cheia de luz:
Após o inverno sombrio
Vem a flórea primavera,
Que novos encantos gera,
Nova alegria produz.

Os arvoredos despidos
Se revestem de folhagem;
Ao sopro da branda aragem
Rebenta no campo a flor:
Tudo ao vê-la se engrinalda,
Tudo se cobre de relva,
E as avezinhas na selva
Lhe cantam hinos d'amor.

Ânimo pois! como à terra,


Também à nua existência
Vem, após a decadência,
Às vezes tempo feliz;
E a vida gelada, estéril,
Que o sopro da morte abala,
Desperta cheia de gala,
Cheia de novo matiz.

Ânimo pois! e se acaso


Nosso destino inclemente,
Em vez de jardim florente,
Nos aponta o mausoléu;
Se a primavera do mundo
Já morreu, já não se alcança,
Tenhamos inda esperança
Na primavera do Céu!
32

O NOIVADO DO SEPULCRO

BALADA

Vai alta a lua! na mansão da morte


Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe


Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste


Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto


Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,


Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

«Mulher formosa, que adorei na vida,


«E que na tumba não cessei d'amar,
«Por que atraiçoas, desleal, mentida,
«O amor eterno que te ouvi jurar?

«Amor! engano que na campa finda,


«Que a morte despe da ilusão falaz:
«Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
«Do pobre morto que na terra jaz?

«Abandonado neste chão repousa


«Há já três dias, e não vens aqui...
«Ai, quão pesada me tem sido a lousa
«Sobre este peito que bateu por ti!

«Ai, quão pesada me tem sido!» e em meio,


A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
33

«Talvez que rindo dos protestos nossos,


«Gozes com outro d'infernal prazer;
«E o olvido cobrirá meus ossos
«Na fria terra sem vingança ter!

– «Oh nunca, nunca!» de saudade infinda


Responde um eco suspirando além...
– «Oh nunca, nunca!» repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,


Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

«Não, não perdeste meu amor jurado:


«Vês este peito? reina a morte aqui...
«É já sem forças, ai de mim, gelado,
«Mas inda pulsa com amor por ti.

«Feliz que pude acompanhar-te ao fundo


«Da sepultura, sucumbindo à dor:
«Deixei a vida... que importava o mundo,
«O mundo em trevas sem a luz do amor?

«Saudosa ao longe vês no céu a lua?


– «Oh vejo sim... recordação fatal!
– «Foi à luz dela que jurei ser tua
«Durante a vida, e na mansão final.

«Oh vem! se nunca te cingi ao peito,


«Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
«Quero o repouso de teu frio leito,
«Quero-te unido para sempre a mim!»

E ao som dos pios do cantor funéreo,


E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,


Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido


Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
34

Foram achados num sepulcro só.


35

DESEJO

Oh! quem nos teus braços pudera ditoso


No mundo viver,
Do mundo esquecido no lânguido gozo
D'infindo prazer.

Sentir os teus olhos serenos, em calma,


Falando d'além,
D'além! duma vida que sonha minha alma,
Que a terra não tem.

Eu dera este mundo, com tudo o que encerra


Por tal galardão:
Tesouros, e glórias, os tronos da terra,
Que valem, que são?

A sede que eu tenho não morre apagada


Com tal aridez:
Pudesse eu ganhá-los, e iria seu nada
Depor a teus pés.

E só desejando mais doce vitória,


Dizer-te: eis aqui
Meu ceptro e ciência, tesouros e glória:
Ganhei-os por ti.

A vida, essa mesma daria contente,


Sem pena, sem dor,
Se um dia embalasses, um dia somente,
Meu sonho d'amor.

Isenta do laço que ao mundo nos prende,


A vida que vale?
A vida é só vida se o amor nela acende
Seu doce fanal.

Aos mundos que eu sonho pudesse eu contigo,


Voando, subir;
Depois que importava? depois no jazigo
Sorrira ao cair.
36

BOABDIL

ÚLTIMO REI MOURO DE GRANADA

De Granada nas torres já se ergue


O pendão de Castela temido;
Boabdil, o rei mouro vencido,
Deixa a terra em que há pouco reinou.
Do Padul às alturas chegado,
Fez parar o seu tímido bando,
E o corcel andaluz volteando
Tais adeuses à pátria mandou:

«Ai, Granada, lá ficas entregue


«Para sempre aos guerreiros de Cristo!
«Quem teus fados houvera previsto,
«ó sultana de tanto poder?
«Acabou-se o domínio dos crentes
«Neste solo tão belo de Espanha;
«Não há força de heróica façanha
«Que nos possa da ruína erguer:

«De Toledo, de Córdova, e Murcia,


«De Jaên, de Baêza, e Sevilha,
«Eras tu, ó gentil maravilha,
«Que inda as glórias fazias lembrar.
«E perdemos-te, ó flor do Ocidente.
«Do Xenil, ó princesa formosa!
«E curvamos a frente orgulhosa
«Nós, os filhos valentes d'Agar!

«Deus o quis! nossa raça punindo


«Fez baixar o seu anjo da morte,
«E das iras d'Alá no transporte
«Baqueou nossa altiva nação!
«Nossos ódios civis nos perderam,
«Neste abismo fatal nos lançaram,
«E nem mesmo o valor nos deixaram
«De morrermos com nosso pendão.

«Ó guerreiros das eras passadas,


«Vencedores da Espanha descrida,
«Lá nesse Éden feliz da outra vida
«Vossas faces cobri de rubor!
«Este braço, que ousou vossos louros
«Arrastar ante os pés de Fernando,
«Não ousou neste peito nefando
«Embeber um punhal vingador!
37

«Desonrado, do trono banido,


«Que me resta por sorte futura?
«Uma vida cobarde e obscura
«No país em que outrora fui rei...
«Nunca, nunca! o destino contrário
«Dalém-mar nosso berço me aponta:
«Lá irei resgatar-me da afronta,
«Lá dos bravos a morte haverei.

«Para sempre adeus pois, ó Granada!


«Adeus, muros, e torres vermelhas,
«Que brilhais como vivas centelhas
«Nas verduras de tanto jardim!
«Adeus, paços e fontes d'Alhambra!
«Adeus, altas, soberbas mesquitas!
«E vós, tronos das luas proscritas,
«Ó Comares, ó forte Albaicim!

«Para sempre, ai, adeus! té à morte


«Viverás neste peito, ó Granada!
«Mas debalde, ó mansão adorada,
«Que estes olhos jamais te hão-de ver...
«Acabou-se o domínio dos crentes
«Neste solo tão belo de Espanha;
«Não há força de heróica façanha
«Que nos possa das ruínas erguer.»

Disse, e o pranto nas faces corria


Do rei mouro, dos seus que restavam.
Longe, ao longe as trombetas soavam
Em Granada já feita cristã:
Era o canto d'alegre triunfo
Em redor dos pendões de Fernando;
Era o grito d'Alá desterrando
Das Espanhas os crentes do Islã.
38

CANÇÃO

Que noite d'encanto!


Que lúcido manto!
Que noite! amo tanto!
Seu mudo fulgor!
Oh! vem, ó donzela;
Não temas, ó bela,
Que a noite só vela
Quem sonha d'amor.

A luz infinita
Dos astros, crepita,
Arqueja e palpita,
Serena a brilhar:
Assim o teu seio,
De casto receio,
De tímido enleio
Costuma pulsar.

A lua, qual chama,


Que os seios inflama,
Fanal de quem ama,
Desponta no céu;
E a nítida fronte
Retrata na fonte
E estende no monte
Seu cândido véu.

E a fonte murmura
Por entre a verdura,
E ao longe d'altura
Lá desce a gemer:
Que sons, que folguedos!
Parece aos rochedos
Dizer mil segredos
D'infindo prazer.

Silêncio! o trinado
Lá volta enlevado,
Das noites o amado,
Da selva o cantor;
E o hino que entoa
No bosque ressoa
E ao longe revoa,
Gemendo d'amor.

O facho da lua
39

Coa sombra flutua,


Avança e recua
No chão do jardim;
Nas asas da aragem,
Que agita a folhagem,
Recende a bafagem
Da rosa e jasmim.

Que noite d'encanto!


Que lúcido manto!
Que noite! amo tanto
Seu mudo fulgor!
Oh! vem, ó donzela;
Não temas, ó bela,
Que à noite só vela
Quem sonha d'amor.
40

À PÁTRIA

Ao meu amigo A. C. Lousada

(1852)

Esta é a ditosa pátria minha amada.

CAMÕES – Lusíadas.

«Esta é a ditosa pátria minha amada!»


Este o jardim de matizadas flores,
Onde os céus com a terra abençoada
Rivalizam nas galas e primores.

Este o país das tradições brilhantes,


Onde cresceu a palma da vitória,
Onde o mar conta às praias sussurrantes
Longínquos feitos d'extremada glória.

Esta a nação de laureada frente,


Esta a ditosa pátria minha amada!
Ditosa e grande quando foi potente,
Hoje abatida, sem poder, sem nada.

Pátria minha, que tens, que em desalento


Vergas a fronte que alterosa erguias!
Porque fitas o gélido moimento,
Perdida a força dos antigos dias?

Que fizeste do génio destemido


Com que domavas esse mar profundo,
E sorrias das vagas ao rugido,
Ignotas praias descobrindo ao mundo?

Onde está esse vasto capitólio


De tuas glórias, o soberbo Oriente,
Lá onde erguida em triunfante sólio
Empunhavas teu ceptro refulgente?

Então eras tu grande! os reis da terra


Derramavam-te aos pés os seus tesouros;
O mar, saudando teus pendões de guerra,
Gemia ao peso de teus verdes louros.

Então de lanças e d'heróis cercada,


Avassalando a Índia e a África ardente,
41

A cada golpe da valente espada


Mais uma palma te adornava a frente.

Então prostradas mil hostis falanges,


Retumbava o fragor de teus combates
Desde as praias de Ceuta além do Ganges
Fazendo estremecer o Nilo e Eufrates.

Então eras tu grande! hoje esquecida,


Um eco apenas do teu nome soa;
Nos braços da vitória adormecida,
Perdeste o ceptro e a majestosa c'roa.

Os fortes pulsos entregaste aos laços


Da tirania e rude fanatismo,
E descaídos os potentes braços,
Caminhaste sem forças ao abismo.

Um livro apenas te ficou, ó triste,


Por epitáfio da passada glória;
Tudo o mais acabou, já nada existe
De tanto resplendor mais que a memória.

Das quinas os pendões já não revoam,


Águias altivas, sujeitando os mares;
Teus gritos de vitória, ai! já não soam
Na Líbia e nos gangéticos palmares.

Nações obscuras, quando o mundo inteiro


Já tua glória aprendido tinha,
Vendo apagado teu ardor guerreiro,
Arrancaram teu manto de rainha.

E repartindo entre elas seus pedaços,


E soltando depois feroz risada,
Disseram ao passar, cruzando os braços:
«Oh! como essa nação jaz aviltada!»

E teus heróis na tumba inquietos,


Vendo insultadas tuas altas glórias,
Agitaram seus frios esqueletos,
Despedaçando as lápides marmóreas.

E cada qual das pregas do sudário,


Erguendo a dextra que empunhara a lança,
De pés sobre o jazigo funerário,
Com torva indignação bradou: vingança!

Debalde! ao verem sem valor as quinas,


42

Eles murmuram nas geladas campas:


Tu, quem sabe? ditosa te imaginas,
E em tua história mil baldões estampas.

Não que dormes do sepulcro à borda,


Ergue-te, surge como outrora ovante!
Teu génio antigo, teu valor recorda,
E aprende nele a caminhar avante!

Se longos anos d'opressão funesta


Te pesaram na fronte hoje abatida,
No seio de teus filhos inda resta
Fogo bastante para dar-te vida.

Longe da senda que gerou teu dano,


Desata o voo por espaços novos;
E o ardor que te levou além do oceano,
Além te levará dos outros povos.

Ah! possa, possa ainda a meiga aurora


Desse dia feliz brilhar-me pura!
Possa esta lira, que teus males chora,
Dar-te cantos de alegria e de ventura!

Mas ah! se negra página sombria


Tens de volver em teus cruéis fadários,
Se o arcanjo das ruínas há-de um dia
Pairar sobre os teus restos solitários:

Terra da minha pátria ouve o meu brado,


Se inda da vida me restar alento,
Tu que foste meu berço idolatrado,
Sê minha tumba em meu final momento!
43

ROSA BRANCA

Eu amo a rosa branca das campinas,


A branca rosa, que ao soprar do vento
Lânguida verga para o chão pendida.

Como a rosa dos vales, pura e bela


Nos campos da existência ela floria,
Como a rosa dos vales que inda envolta
No orvalho da manhã, desdobra o cálice
Ao sol nascente, perfumando as auras.
A idade das paixões mal despontava
Em seu meigo horizonte. Estava ainda
No declinar da melindrosa infância,
Dessa quadra feliz em que a existência
E sonho encantador em que os momentos
Se deslizam na vida como as águas
De brando arroio, humedecendo os prados.
Mas quão formosas já, quão sedutoras,
Por entre as graças da mimosa infância,
As graças juvenis lhe transluziam!

Com as sócias da infância ao vê-la às tardes


Vagando em seu jardim, vós a disséreis
A açucena viçosa entre as boninas,
Ou, entre os lumes da sidérea noite,
A estrela da manhã. E, todavia,
Ignorava o poder de seus encantos:
No mundo que a cercava, outras imagens,
Outros amores não sonhava ainda,
Além de sua mãe que a idolatrava,
De seu pequeno irmão, de suas flores.

E eu amava aquele anjo como se amam


Os sonhos d'inocência doutra idade,
Ou como essas visões que nos enlevam,
De mundos d'harmonia a que aspiramos.

Vi-a uma vez ao descair da tarde,


No jardim assentada ao pé da fonte,
Olhando o tenro irmão; que em seu regaço
Depusera as boninas que ajuntara.
No regaço também, junto das flores,
Repousava, serena dormitando,
A pomba que ele amava, e que sem medo
Viera procurar tão doce ninho:
Nunca a meus olhos se mostrou tão bela,
Tão cheia d'inocência. D'alvas roupas
44

Suas formas angélicas cingidas,


Se desenhavam, em gentil contorno,
Nas verdes murtas que o jardim ornavam:
Parecia qual cisne repousando
Entre a verdura, do seu lago à beira.

Uma rosa nevada, como as roupas,


Lhe adornava as madeixas cor da noite,
As formosas madeixas que nessa hora
Contrastavam mais negras e mais belas,
Coa leve palidez que reflectia,
Em seu rosto adorável e sereno,
O clarão melancólico da tarde.
Com terna languidez a face meiga
Recostava na mão, curvado o braço,
Enquanto com a outra ora afagava
Sua pomba querida, ora os cabelos
Compunha ao doce infante, que, sorrindo,
Uma após outra lhe mostrava as flores.

Ao vê-la assim formosa, ao ver o grupo


Que fazia com ela um par mimoso,
A mente arrebatada figurou-ma
Celeste arcanjo que baixara ao mundo
A recolher as orações da tarde,
E que o infante e a pomba achando juntos,
E a inocência do céu vendo na terra
Dos irmãos se esquecera e ali ficara.

Arcanjo da inocência, ai foge, foge!


Não te iluda este mundo onde pousaste,
Este mundo falaz, de ti indigno,
Que tuas asas de brancura estreme
Com seu veneno talvez manche um dia.
Arcanjo d'inocência, ai foge! foge!
Procura teus irmãos, revoa à pátria!
E fugiu, e voou. No mesmo sítio,
Uma tarde também junto da fonte,
A mãe a foi achar sozinha e triste.
Em suas plantas uma rosa branca
Jazia desfolhada: era das flores
A flor que mais queria. Ao ver ao lado
A mãe que idolatrava, estremecera.
Pobre inocente! receou acaso
Não poder por mais tempo disfarçar-lhe
Seu cruel padecer. A ardente febre
Lhe devorava o seio, e não gemia.
Mas seu dia chegava... A exausta fronte
Lhe pendeu sem alento, e imersa em pranto,
45

No regaço da mãe sumiu a face,


Que já cobria a palidez da morte.
Três dias depois deste a flor mimosa
Que as grinaldas celestes invejavam,
Caía desfolhada no sepulcro.

Eu amo a rosa branca das campinas,


A branca rosa, que ao soprar do vento
Lânguida verga para o chão pendida.
46

ENFADO

Dos homens, ai quem me dera


Longe, bem longe viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.

Que vista! cede a inocência


À voz do crime traidor;
Folga a devassa impudência,
Nas faces não há rubor.
Traz o vício a fronte erguida,
E a virtude, sem guarida,
Geme transida de dor.

Vão ao templo da cobiça,


Vão todos sacrificar:
Consciência, fé, justiça,
Tudo lhe deixam no altar.
Devora-os a sede d'ouro;
O seu deus é um tesouro,
Porque o viver é gozar.

E que importa que o infante


Morra à fome, e o ancião?
Que importa que gema errante
O proletário, sem pão?
Oh! que importa que o talento
Esmoreça ao desalento?
Que vale do génio o condão?

Proclamou-se a lei do forte:


A lei do fraco é gemer.
Ai do triste a quem a sorte
Fez entre espinhos nascer!
É um dogma a tirania,
A liberdade heresia,
A servidão um dever.

Que tempos, que tempos estes!


Quem há-de viver assim
No mundo que rasga as vestes
Do justo; no seu festim?
Quem há-de? mas esperança!
Um dia foge; outro avança,
47

E a redenção vem no fim.

Hoje, porém, quem me dera


Longe dos homens viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.
48

ANELOS

Que imenso vácuo neste peito sinto!


Que arfar eterno de revolto mar!
Que ardente fogo, que jamais extinto
Somente afrouxa para mais queimar!
Ai, esta sede que meu peito rala,
Talvez a apague mundanal prazer:
Ali ao menos poderei fartá-la,
Ou num letargo sem paixões viver.

Mas dessa taça já provei... não quero!


Quero deleites que inda não senti...
A luta, os riscos dum combate fero!
Talvez encantos acharei ali.

A luta, os riscos, em acção travadas


Guerreiras hostes disputando o chão;
O sangue em jorros, o tinir d'espadas,
O fogo e o fumo do voraz canhão!
Ali os gozos dum feroz delírio,
À luz das armas, sentirei em mim,
Ou numa delas o funéreo círio
Que à paz dos mortos me conduza enfim.

Mas não, não quero sobre a terra escrava


A vis tiranos imolar o irmão...
O mar, o mar, que em sua fúria brava
Ninguém domina com servil grilhão!

O mar, o mar! sobre escarcéus revoltos


Em frágil lenho flutuar me apraz,
Ao som das vagas e dos ventos soltos,
E das centelhas ao clarão fugaz.
Ali sorrindo da feroz tormenta,
E dos abismos que me abrir aos pés,
Dentro desta alma de prazer sedenta
Sublime gozo sentirei talvez.

Mas o mar livre tem um leito ainda


Que os meus anelos poderá suster...
O espaço, o espaço! na amplidão infinda
Talvez que possa o coração encher.

O espaço, o espaço! qual ligeiro vento


Irei lançar-me nesse mar sem fim,
E a longos tragos aspirar o alento,
Sentir a vida que desejo em mim...
49

Ora águia altiva, desprezando o solo,


O rei dos astros buscarei então
Ora entre as neves do gelado pólo
Voarei nas asas do veloz tufão.

Mas solitário, sem cessar errante,


De que valera na amplidão correr?...
A glória, a glória, que em painel brilhante
Me of'rece a imagem dum maior prazer!

A glória, a glória! mil troféus ganhados,


Mil verdes palmas e lauréis também;
Triunfos, c'roas e sonoros brados
Da turba – é ele! – repetindo além...
Então em sonhos duma vida infinda
Verei a chama d'imortal farol,
Que eu meu sepulcro resplandeça ainda,
Bem como a lua, quando é morto o sol.

Mas não, que a inveja com a voz mentida


A luz em sombras poderá tornar...
O amor, o amor, que redobrando a vida,
A vida noutrem me fará gozar!

O amor, o amor, celestial perfume


Que a mão dos anjos sobre nós verteu,
Doce mistério que num só resume
Dois pensamentos aspirando ao céu!
O amor, o amor, não mentiroso incenso
Que em frios lábios só no mundo achei,
Mas imutável, mas sublime e imenso
Qual em meus sonhos juvenis sonhei...

O amor! só ele poderá nesta alma


Risonhas crenças outra vez gerar,
De minha sede mitigar a calma,
E inda fazer-me reviver, e amar.
50

O FILHO MORTO

No povo d'além da serra


Vai a noite em mais de meio,
E a pobre mãe velava
Unindo o filhinho ao seio.

«Acorda, meu filho, acorda,


«Que esse dormir, não é teu;
«E como o sono da morte
«O sono que a ti desceu.

«Tarda-me já um sorriso
«Nos teus lábios de rubim;
«Acorda, meu filho, acorda,
«Sorri-te ledo pra mim.»

Mas o infante moribundo


Em seu regaço expirou;
E a mãe o cobriu de beijos,
E largo tempo chorou.

Em seu pequeno jazigo


Dois dias chorou também;
Ao terceiro o sino triste
Dobrou à morte dalguém.

E à noite no cemitério
Outro jazigo se via:
Era a mãe que ao pé do filho
Na sepultura dormia.
51

SÓCRATES

Já próximo do ocaso vai descendo


O sol ao mar inquieto,
Os moribundos raios estendendo
Nas alturas do Hymeto;
E Sócrates, sentado sobre o leito,
Inda aos alunos fala,
No silêncio geral notando o efeito
Da razão que os abala.
A verdade sublime lhes revela
Em palavras ignotas,
Suaves como a voz de Filomela
Ou do cisne do Eurotas.
Cebes, o próprio Cebes emudece,
Simias já não duvida:
Nus olhos do inspirado resplandece
Um Deus e a eterna vida!

Mas o sol expirava: era o momento


Que Atenas decretara:
Cumpre os deuses vingar: o sábio atento
À morte se prepara.
Os discípulos tremem, contemplando
O dia já no resto;
Eis o servo das onze entra chorando
No cárcere funesto.
O círculo cruzando, a brônzea taça
A Sócrates estende;
O filósofo a empunha com a graça
Que nos festins resplende.
«Ergamos, disse, nossa prece Aquele
«Que ao longe nos convida,
«Por que seja feliz por meio d'Ele
«A viagem temida.»
E aproximando intrépido e sereno
A líquida cicuta,
Como néctar a esgota, e do veneno
Entrega a taça enxuta.

Um lamento geral, um só transporte


Percorre em torno o bando
Dos alunos fiéis, chorando a sorte
Do mestre venerando.
Apolodoro geme; sucumbindo,
Críton lhe responde;
Fédon abaixa os olhos, e carpindo
No manto o rosto esconde.
52

Ele sem vacilar, ele somente,


Sorrindo á turba ansiada:
«Amigos, que fazeis? um sol fulgente
«Me luz em nova estrada.

«De presságios felizes rodeemos


«Os últimos instantes!
Chore quem não tem fé – nós que já cremos,
«Nós sejamos constantes!»
Disse, e deixando o leito em que jazia,
Sereno move o passo,
Que o veneno letárgico devia
Obrar pelo cansaço.
Das grades se aproxima, olha o Pártenon,
Olha os muros d'Atenas,
O Falero, o Pireu e as que lhe acenam,
Regiões tão serenas;
Olha os céus, olha a terra, a luz do dia
Expirando nas vagas,
E de harmonias tais se ergue à harmonia
De mais ditosas plagas.
Depois, volvendo ao leito, diz a tudo
O adeus de despedida:
Cobre o rosto co manto e aguarda mudo,
O instante da partida.

O veneno progride, e já do efeito


Redobra a intensidade;
Dos membros se apodera, sobe ao peito,
E o coração lhe invade.
Estremeceu! do gélido trespasse
Era enfim a agonia...
O executor lhe descobriu a face:
Sócrates não vivia!

Triunfa, cega Atenas, ao martírio


O sábio condenaste,
E d'olímpicos deuses no delírio
A razão enjeitaste;
À voz do Areópago, à voz de ferro
Sufocaste a doutrina:
A verdade sucumbe, a sombra do erro
No mundo predomina.

Mas que estrela futura se levanta


Rasgando a escuridade?
Que palavra ressoa, e o mundo espanta
Pregando a alta verdade?
E ele, e ele, o prometido às gentes
53

Na voz das profecias!


Curvai, ó gerações, curvai as frentes
Ao Verbo do Messias!
54

O GÓLGOTA

(fragmentos inéditos)

Vede-o na cruz erguido! sobre o peito


Pendida a fronte na agonia extrema;
Que sublime painel, que alto poema
De sofrimento e amor!
Um Deus, um Deus à terra se apresenta
A resgatá-la dos grilhões do vício
E a terra ingrata lhe fulmina o exício,
Dá-lhe em troca o rancor!

Ódio por afeição! tormento e morte


Por vida e gozo prometido ao mundo;
Noite escura por dia! um véu profundo
Por luz de tanto sol!
Martírio pela ideia! alto martírio
A quem ao mundo proclamara o verbo
Que às gerações em seu destino acerbo
E qual doce farol.

Mas que ideia e que sol jamais aos homens


Surgiu benigno sem que a vista afeita
À sombra escura, que o fulgor rejeita,
Lhe não temesse a luz?
Que vulto grandioso sobre a terra
Ao soltar da verdade a voz tremenda
Na sagrada missão não vê a senda
Que ao martírio conduz?

Oh! mas o teu foi tão grande! o que era a terra?


Sangrento circo de leões raivosos,
Mãe d'abominações, festim de gozos
Dissolutos e vis.
....................................
....................................

E ei-lo surge, e o fulgor da luz celeste


Derramando na terra corrompida,
Lhe regenera a fatigada vida
Inspirando-lhe o amor.
Existe um Deus somente: filhos todos
Somos iguais, do Criador do mundo;
Amarmo-nos, eis o profundo
Verbo do Redentor.
....................................
....................................
55

Mas faltava morrer, faltava ainda


Na extrema angústia proclamar seu Verbo,
Do passamento no sofrer acerbo
Ensinar-nos a amar,
Ensinar-nos a dor, a crença viva
Co próprio sangue assinalar na terra,
Firmar a paz onde reinava a guerra,
Erguer da cruz o altar!
....................................
....................................

Ó Cristo! foi sublime a tua vida


Mas foi mais que sublime a tua morte,
Provando ao mundo no tremendo corte
Tua origem dos céus.
No amor, na crença, doutrinando o mundo
Foste o Messias d'inspirado alento;
Ensinando o perdão e o sofrimento
Foste inda o homem Deus!
56

A***

Acaso és tu a imagem vaporosa


Que me sorriu nos sonhos doutra idade,
Como a luz da manhã sorri formosa
Nos espaços azuis da imensidade?
Es tu esse astro que minha alma anela,
Que debalde busquei no mar da vida,
Qual busca o nauta bonançosa estrela
No meio da procela enfurecida?
Ah! se és esse ente que meu ser domina,
Se és essa estrela que meu fado encerra,
Se és algum anjo da mansão divina
Pairando sobre a terra;
Já que baixaste a mim, já que a meu lado
Me apontaste sorrindo o etéreo véu,
Não me deixes na terra abandonado,
Transporta-me ao teu céu!
57

ÚLTIMOS MOMENTOS DE ALBUQUERQUE

Ao meu amigo A. Aires de Gouveia.

Companheiros, sinto a morte


Pairando já sobre mim;
Cessaram vaivéns da sorte,
Desço à terra donde vim...
Do cálice da desventura
Eis esgotada a amargura;
No leito da sepultura
Terei descanso por fim.

Terei: a campa é um asilo


Que ao ímpio deve aterrar,
Mas eu dormirei tranquilo
Sob a lájea tumular.
Eu... desgraçado, que digo!
Nem lá espero um abrigo,
Que os meus restos no jazigo
Irão talvez insultar.

Murmurando: «aqui repousa


Um desleal português»,
Irão partir minha lousa,
Meu nome calcar aos pés;
E o guerreiro que descansa
Não poderá, por vingança,
Brandir na dextra uma lança,
Cingir ao peito um arnês...

Quais foram, rei, os meus crimes


Para haver tal galardão?
Porque a fronte assim me oprimes
Com a tua ingratidão?
De vis intrigas cercado
Ouviste seu ímpio brado,
E sobre as cãs do soldado
Lançaste negro baldão.

Não merecia tal prémio


Quem debaixo deste céu,
Da roxa aurora no grémio
Um novo império te deu;
Quem à custa duma vida
Nas batalhas consumida,
Ante as quinas abatida
A Índia inteira rendeu.
58

Por dar-te a c'roa brilhante


Que em tua fronte reluz,
Fiz a meus pés arquejante
Cair a opulenta Ormuz:
Malaca sentiu meu raio,
E em Goa, roto o Sabaio,
Entre o sangue, entre o desmaio,
Alcei o pendão da cruz.

Então desde o Nilo ao Ganges


Cem povos armados vi,
Erguendo torvas falanges
Contra mim e contra ti;
Vi os filhos do deserto
Em ondas rugindo perto;
Mas com ferro em campo aberto
Às suas iras sorri.

Contra as lanças portuguesas


A Índia lutou em vão,
Que em troca d'ouro e riquezas
Veio comprar seu grilhão.
Aos golpes dos meus soldados
Vi seus tronos abalados,
Vi ante mim ajoelhados
Reis d'Onor e de Sião.

Mas d’Ásia não pôde o ouro


Cegar-me com seu fulgor,
Porque a honra ó o tesouro
Dos meus passados, senhor.
Eu quis adornar-te a frente
Cum diadema refulgente:
Ganhei o ceptro do Oriente,
E a teus pés o fui depor.

Nesses campos de batalha,


Onde audaz o conquistei,
Das armas sob a mortalha
Porque exangue não findei?
Entre os louros da vitória
Morrera ao menos com glória;
Do teu soldado a memória
Não a mancharas ó rei.

Eu desleal?! se meus brados


Podem chegar até vós,
Erguei-vos, restos sagrados
59

De meus extintos avós!


Erguei-vos da campa fria,
E com sangue, à luz do dia,
Lavai a nódoa sombria
Que arrojaram sobre nós!

Eu desleal?! mas ao mundo


Que vale queixas mandar?
As vozes dum moribundo
Não vão na terra ecoar...
Surge, ó morte!... e vós, amigos,
Sócios de tantos perigos,
Vinde... nem só inimigos
Me restam ao expirar.

No reino vos deixo um filho –


N ossos feitos lhe ensinai;
Dizei-lhe qual foi o trilho
Que em vida seguiu seu pai...
Dizei-lhe qual foi meu norte;
Mas, enquanto à minha sorte,
Oh! não lhe aponteis a morre,
A vida só lhe apontai...

E se falardes um dia
A dom Manuel, o feliz,
Dizei-lhe que na agonia
Albuquerque o não maldiz;
Que à beira da sepultura,
Para um filho sem ventura,
Invoco sua ternura,
Se alguns serviços lhe fiz.

E vós... e vós, portugueses,


Nossa pátria defendei;
Dai-lhe os peitos por arneses,
Seja a pátria vossa lei.
Num trono que ela não tinha
Eu vo-la deixo rainha,
Mas não sei o que adivinha
Meu pensamento... não sei...

Entre as sombras do futuro,


Meu Deus! a pátria em grilhões!...
Pelo mar em vão procuro
Seus orgulhosos pendões...
Coberta d'amargo pranto,
Lá se envolve em negro manto...
Lá roja a face em quebranto...
60

Ela, a grande entre as nações!...

Oh! se este braço pudera


A fria lousa quebrar,
Este braço inda se erguera
Da tumba, para a salvar;
Apontando-lhe a vingança;
Inda lhe dera esperança,
E empunhando a antiga lança,
À morte a fora arrancar.

Mas eis marcado o momento


No livro d'além dos céus...
Eis a morte... o passamento...
São findos os dias meus...
Companheiros da vitória,
De tantos dias de glória,
Guardai... guardai na memória,
D'Albuquerque o extremo adeus...

A morte... a morte... que anseio!


Sinto um gelo sepulcral...
Abre-me, ó terra, o teu seio,
Quero o repouso final.
Desce, guerreiro cansado,
Desce ao túmulo gelado...
Mas a afronta... desonrado...
Índia... filho... Portugal!...
61

A TI

Oh! quão formoso me surge o dia


Lá quando a noite se inclina ao mar,
Quando na aurora que me extasia,
Teu belo rosto cuido avistar!
Não sei que esp'rança jamais sentida
Então me adeja no peito aqui;
E que na aurora saúdo a vida,
Outrora escura, sem luz, sem ti.

Correm as horas, a noite avança,


A lua brilha com meigo alvor;
Então minha alma, que em paz descansa
Divaga em sonhos d'ignoto amor.
No véu d'estrelas, na branca lua
Meus olhos buscam olhos que eu vi,
E o pensamento longe flutua,
E uma saudade revoa a ti.

Eis que adormeço, e um anjo assoma


Todo cercado d'etérea luz;
De seus cabelos recende o aroma
Das castas rosas que o céu produz.
O céu me aponta, sorri-lhe a face;
Acordo, e o anjo foge dali;
Mas em meu peito logo renasce
Doce esperança que vem de ti.

Já pela terra surgem verdores,


Auras serenas baixam do céu,
As aves cantam novos amores,
Tudo se cobre dum glóreo véu;
E céus c terra, montes, paisagem,
Tudo a meus olhos, tudo sorri;
É que ali vejo só Lua imagem,
É que hoje vivo, mas só por ti.

Talvez que eu sinta meu pobre enleio


Passar qual brilho de luz fugaz:
Que importa? ao menos dentro em meu seio,
Já morta a esperança, tu viverás.
Oh! sim, que os dias são mais serenos
Com tua imagem gravada ali;
Té mesmo a morte custará menos,
Junto ao sepulcro pensando em ti.
62

INFÂNCIA E MORTE

«Ó mãe, o que fazes? em cama tão fria


«Não durmas a noite... saiamos daqui...
«Acorda! não ouves a pobre Maria,
«Pequena, sozinha, chorando por ti?

«Porque é que fugiste da nossa morada,


«Que alveja saudosa no monte dalém?
«Depois que tu dormes na terra gelada,
«Quão só ficou tudo, mal sabes, ó mãe.

«A nossa janela não mais foi aberta,


«O fogo apagou-se na cinza do lar,
«As pombas são tristes, a casa deserta,
«E as flores da Virgem se vão a murchar.

«Oh! vamos, não tardes... mas tu não respondes...


«Em vão todo o dia meu pranto correu;
«No fundo da cova teu rosto me escondes,
«Não ouves, não falas... que mal te fiz eu?

«Escuta! na torre de frestas sombrias


«O sino da ermida começa a tocar...
«Acorda! que o toque das Avé-Marias
«À imagem da Virgem nos manda rezar.

«A lâmpada exausta de Nossa Senhora


«Ficou apagada, precisa de luz:
«Oh! vem acendê-la, e à Mãe que se adora
«Ali rezaremos, e ao Filho na cruz.

«Depois à costura, sentada a meu lado,


«Tu hás-de contar-me, bem junto de mim,
«Aquelas histórias dum rei encantado,
«De fadas e mouras, dalgum querubim.

«A d'ontem foi triste, pois triste falavas


«De vida e de morte, dum mundo melhor;
«E o rosto cobrias, e muda choravas,
«Lançando teus braços de mim ao redor.

«Depois em silêncio teus olhos fechaste,


«Tão pálida e fria qual nunca te vi;
«Chamei-te era dia, mas não acordaste,
«E enquanto dormias trouxeram-te aqui.

«Oh! vamos, não tardes, que as noites sombrias.


63

«Sem ti a meu lado, me causam pavor!


«Acorda! que o toque das Avé-Marias
«Nos diz que rezemos à Mãe do Senhor.»

Tais eram as queixas da pobre Maria...


O sino da ermida cessou de tocar...
E a mãe entretanto dormia, dormia;
Do sono da morte não pôde acordar.

Três dias, três noites a filha sozinha


No adro da igreja por ela chamou...
Ao fim do terceiro já forças não tinha;
Da mãe sobre a campa, gemendo, expirou.
64

O CANTO DO LIVRE

Ao meu amigo Alexandre Braga.

Gema embora a terra inteira


Acurvada a iníquas leis;
Esta fronte sobranceira
Jamais de rojo a vereis.
Oh! ninguém, ninguém a esmaga,
Que eu sou livre como a vaga,
Que sacode sobre a plaga
O jugo d'altos baixéis.

Liberdade é o mote escrito


No céu, na terra, e no mar!
Di-lo a fera no seu grito,
E as aves cruzando o ar;
Di-lo o vento da procela,
A vaga que se encapela,
E nos espaços a estrela
Em seu contínuo girar.

Di-lo tudo! mas ainda


Mais livre me criou Deus
Que os astros da altura infinda,
Os ventos, e os escarcéus.
Eu tenho mais liberdade
Desta alma na imensidade,
Pois tenho nela a vontade,
Tenho a razão, luz dos céus.

Eu sou livre! erguendo a fronte


Diz-mo uma voz na amplidão,
Quando de pé sobre o monte
Me elevo rei da soidão;
Quando além do firmamento
Alçando meu pensamento,
Solto nas asas do vento
Meu canto d'inspiração.

Eu sou livre! eis minha crença,


Nem força contra ela vale.
Que um tirano enfim me vença –
Triunfarei por seu mal.
Triunfarei, que algemado
E diante dele arrastado,
Sou livre! será meu brado
Té ao momento final.
65

E que importa que o tirano,


Jurando vingança atroz,
Faça erguer, sorrindo ufano,
Um cutelo à sua voz?
Minha fronte sempre erguida
Há-de encará-lo atrevida,
E só cair abatida
Ao rolar aos pés do algoz.

Mas nunca! pois fora um preito


Dar os pulsos ao grilhão.
Tenho um ferro, e neste peito
Tenho um livre coração!
Não! jamais serei cativo!
Se vencido restar vivo,
Cairei, sorrindo altivo,
Sob o punhal de Catão!
66

SAUDADE

Assim, pálida lua, assim teu rosto


Fulgurava tranquilo nessa noite
Em que o adeus lhe murmurei sentido;
Quando, após os momentos preciosos
Em que inda pude vê-la, inda escutá-la,
Afoutando meu ânimo indeciso,
Sua trémula voz me disse: parte...
Entanto que uma lágrima furtiva
Lhe escorria na face melindrosa,
Mais pálida que a tua...

Astro saudoso
Astro da solidão, quanto me aprazes!
Eu amo o teu silêncio, amo o teu brilho,
Mais que do sol os importunos raios.
Que me importa desse astro a luz e a vida,
Se a luz e a vida me ficaram longe?
Se em meio do rumor que o dia espalha,
A voz não ouço que responde à minha?

Estes vales, e selvas, estes montes,


À luz do dia, são talvez formosos;
«ias não é este o ar que ela respira,
Não são estes os sítios que ela encanta
Com seu mago sorriso. O dia é mudo;
Porém tu surges, solitária amiga,
Tu vens falar-me dela, astro saudoso.

Lua, desse áureo trono onde campeias,


Tu vês os sítios caros. Que faz ela?
Acaso; como pomba fatigada,
Repousa adormecida? Verte, ó lua,
Verte-lhe em torno o perfumado alento
Que a noite rouba às orvalhadas flores.
«ias não; talvez agora em mim pensando,
Agora mesmo sobre o teu semblante
Ela fixa também os olhos tristes,
« nossos pensamentos, nossas vistas
Se confundem em ti. Oh! não podermos,
Adejando como eles nesse espaço,
Embora por momentos, confundir-nos
Em teu regaço, deslembrando a ausência!
Ao menos, astro amigo, ordena, ordena
Que o anjo da saudade, que em ti mora,
Desça, e lhe diga o que minha alma sente.
67

Oh! quando solto d'importunos laços,


Demandando outros céus, hei-de já livre
Vê-la, ouvi-la, falar-lhe? Quem o sabe?
Mas tu entanto, confidente meiga.
Em cada noite vem falar-me dela;
E em meu peito sombrio e solitário
Derrama, envolto no teu doce brilho,
O bálsamo suave da esperança.
Assim possas tu ser, benigna deusa,
A invocada dos tristes; e se acaso
Amas também. se algum remoto lago
Entre floridas margens escondido
Te prende as feições, possas tu sempre
No cristalino azul das suas águas
Sem nuvens espelhar teu rosto ameno!
68

AMOR E ETERNIDADE

Repara, doce amiga, olha esta lousa,


E junto aquela que lhe fica unida:
Aqui dum terno amor, aqui repousa
O despojo mortal. sem luz, sem vida.
Esgotando talvez o fel da sorte,
Puderam ambos descansar tranquilos;
Amaram-se na vida, e inda na morte
Não pôde a fria tumba desuni-los.
Oh! quão saudosa a viração murmura
No cipreste virente
Que lhes protege as urnas funerárias!
E o sol, ao descair lá no ocidente,
Quão belo lhes fulgura
Nas campas solitárias!
Assim, anjo adorado, assim um dia,
De nossas vidas murcharão as flores...
Assim ao menos sob a campa fria
Se reunam também nossos amores!
Mas que vejo! estremeces, e teu rosto,
Teu belo rosto no meu seio inclinas,
Pálido como o lírio que ao sol posto
Desmaia nas campinas?
Oh! vem, não perturbemos a ventura
Do coração, que jubiloso anseia...
Vem, gozemos da vida enquanto dura;
Desterremos da morte a negra ideia!
Longe, longe de nós essa lembrança!
Mas não receies o funesto corte...
Doce amiga, descansa:
Quem ama como nós, sorri à morte.
Vês estas sepulturas?
Aqui cinzas escuras,
Sem vida, sem vigor, jazem agora;
Mas esse ardor que as animou outrora,
Voou nas asas de imortal aurora
A regiões mais puras.
Não, a chama que o peito ao peito envia
Não morre extinta no funéreo gelo.
O coração é imenso: a campa fria
E pequena de mais para contê-lo.
Nada receies, pois: a tumba encerra
Um breve espaço e uma breve idade!
E o amor tem por pátria o céu e a terra,
Por vida a eternidade!
69

O ESCRAVO

Tremes, escravo? baqueias


Entre os muros da prisão?
Vergado sob as cadeias
Rojas a fronte no chão?
Já da turba ao longe o grito
Pede teu sangue maldito:
Sentes, escravo proscrito,
Vacilar teu coração?

Não sinto! nada perturba


Minha alegria feroz –
Nem o bramir dessa turba,
Nem a lembrança do algoz.
Vinguei-me! nada me aterra,
Curvai-vos, homens da terra!
Contra mim juraste guerra;
Guerra jurei contra vós.

Eu era livre sem meta


Como as ondas lá no mar;
Era livre como a seta
Quando sibila no ar:
Em vossa avidez tirana
Que me algemou desumana...
Ó minha pobre choupana!
Ó florestas do meu lar!

Além, além nas florestas,


Foi além onde eu nasci;
Onde sem prisões funestas
Já venturoso vivi.
Foi dos bosques na espessura
Que eu tive amor e ternura;
Mas liberdade e ventura,
Pátria, amor, tudo perdi.

Perdi tudo! além da morte


Já não me resta ninguém.
Tinha um pai: a negra sorte
Do filho sofreu também.
Trouxe da pátria distante
O férreo jugo aviltante,
Inda eu era tenro infante
Nos braços de minha mãe.

Minha mãe!... oh! quantas vezes


70

Me vinha a triste abraçar,


E carpindo os seus reveses
Fitava os olhos no mar!
Seu pranto caía ardente,
Em bagas na minha frente;
E eu, pobre infante inocente,
Chorava de a ver chorar.

Mais tarde, quando o navio


Me trazia à escravidão,
Nas praias do mar bravio
Eu a vi cair no chão;
Vi-a através dos espaços,
Morrendo, estender-me os braços...
Sacudi meus férreos laços;
Mas, ai de mim! era em vão!

Perdi-a! só me restava
A virgem do meu amor,
Que a mulher que eu adorava
Quis partilhar a minha dor.
Mas tinha sua beleza
Só dum escravo a defesa...
Devia, oh raiva! ser presa
Do meu infame senhor.

E eu, soberbo vezes tantas,


Curvei-me daquela vez;
Arrastei às suas plantas
Minha feroz altivez.
Debalde! que o vil tirano
Escarneceu do africano;
Maldição! vaidoso, ufano,
Meu amor calcou aos pés.

– É minha, só minha a escrava:


A ti, pertence o grilhão: –
Disse, e o sangue me escaldava
No fundo do coração.
Da vingança a torva imagem
Me sorriu, me deu coragem –
No meu gemido selvagem
Rugiu irado o leão.

Era noite! – negro sonho


Que destes olhos não sai!-
Era noite! um céu medonho
Vi tua sombra, ó meu pai...
Rojando um grilhão pesado,
71

Teu espectro ensanguentado


Se ergueu sombrio a meu lado,
Sem dar um gemido, um ai...

Té que alçando a voz: – meu filho!


Meu filho! – bradaste enfim,
E os olhos turvos, sem brilho,
Tinhas cravados em mim...
Eu quis lançar-me em teus braços,
Quis cingir-te em doces laços;
Mas fugindo aos meus abraços,
Volvias a olhar-me assim.

Foste escravo... teu destino,


Tua morte compreendi,
E um nome, o do assassino,
Delirando te pedi;
Mas sem atender a nada,
Erguendo a dextra mirrada,
– Vingança! – com voz irada
Bradaste, e não mais te vi.

Sim, vingado foi teu sangue


Por este braço afinal,
Que um deles caiu exangue
Aos golpes do meu punhal.
Era amargo o fel da taça –
Vinguei a nossa desgraça
Num dos tigres dessa raça,
No sangue do meu rival.

Vinguei o meu e teu jugo!


Que importam férreos grilhões,
O cadafalso e o verdugo,
O suplício e as maldições?
Entre os gozos da vingança
Reluz enfim a esperança;
Já não receio a lembrança
De seus cruentes baldões.

Sinto correr-me nas veias


O fogo que lhe ateei...
Quebrai-vos, duras cadeias,
Escravo não mais serei...
Sou livre! a morte o proclama
Neste peito que se inflama...
Já nele circula a chama
Do veneno que eu tomei!
72

O ANJO DA HUMANIDADE

Era na estância cristalina e pura,


Que além do firmamento rutilante
Se ergue longe de nós, e está segura
Em milhões de colunas de diamante;
Jerusalém celeste, onde fulgura
Do eterno dia o resplendor constante,
E onde reside a glória e majestade
D'Aquele que povoa a imensidade.

Na mansão mais recôndita e profunda


A soberana Essência o trono encerra,
Donde a fonte de amor brota fecunda,
Os astros animando, os céus e a terra;
Um mar de luz seus penetrais circunda,
Que o próprio arcanjo deslumbrado aterra,
Luz que em triângulo ardente se condensa
Quando o Eterno os oráculos dispensa.

Por toda a parte o azul e as pedrarias


Na cidade divina resplandecem;
Mil arcadas de sóis, mil galerias
De brilhantes estrelas a guarnecem;
Os anjos em lustrosas jerarquias
Nas harpas d'ouro melodias tecem,
Outros em coros adejando voam
E d'aromas e canto o céu povoam.

Eis de repente nos umbrais divinos,


Sobre as asas pairando, um anjo entrava,
Parecendo de sítios peregrinos
Que às regiões celestes assomava;
Cruzando o empíreo, as legiões, e os hinos,
Qual rápido luzeiro perpassava,
Té que chegando ao trono do Increado,
Nus últimos degraus ficou pousado.

Pelos ebúrneos ombros o cabelo


Em aneladas ondas lhe caía;
A safira das asas sobre o gelo
Das roupagens reluzentes refulgia.
Mais brilhante não é, não é mais belo,
Comparado com ele, o astro do dia,
Ou a estrela que brilha quando a aurora
De purpurina luz o céu colora.

Ao trono augusto levantou a frente,


73

Mas com as asas a toldou ansioso,


Não podendo suster o brilho ardente
Que despedia o foco luminoso.
A milícia dos anjos resplendente
Fixou atenta seu irmão formoso;
Os concertos pararam, e ele entanto
Assim falou entre o geral espanto:

«Eterno Ser, que as divinais moradas


«Enches de glória em majestoso assento,
«Fonte de vida e criações variadas,
«Que dás ao mundo poderoso alento;
«A cujo aceno tremem abaladas
«As colunas do etéreo firmamento,
«E cujo nome, que o universo entoa
«No céu, na terra, e nos abismos soa!

«Por teu mando supremo destinado,


«A conduzir a humana descendência,
«Desde que a mancha do cruel pecado
«A fez cair da primitiva essência –
«Venho afinal, Senhor, de teu mandado
«Dar-te conta fiel, após a ausência;
«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,
«E aguardar teus preceitos sacrossantos.

«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre atento


«Prosseguisse na terra a lei sob'rana
«Que rege, na amplidão do firmamento
«A criação que de teu seio emana:
«Essa lei do progresso e movimento
«Tenho cumprido na família humana,
«Desde que ao mundo, a combater seu fado,
«O desterrado do éden foi lançado.

«Primeiro, sobre a terra esclarecendo


«Seus duvidosos passos vacilantes;
«Depois, o justo c seu baixel sustento
«Nas águas do dilúvio sussurrantes:
«De novo à terra de pavor tremendo,
«Conduzindo mais puros habitantes:
«Mais tarde junto ao berço do Messias,
«Anunciando ao mundo novos dias.

«Agora, sobre as ruínas dum império


«Outro império de novo edificando;
«Agora, as povoações dum hemisfério
«Sobre as doutro hemisfério derramando:
«Já do teu Verbo o divinal mistério,
74

«Com as santas doutrinas propagando;


«Já mostrando por fim à humanidade
«Nova luz de justiça e de verdade.

«Quantos velhos sofismas desterrados!


«Quantos ídolos falsos em ruínas!
«Quantos sábios triunfos alcançados!
«Quantas conquistas imortais, divinas!
«Calcando o pó dos séculos passados,
«O homem corre ao fim que lhe destinas;
«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta
«Seu amor esmorece e desalenta.

«Seu valor esmorece! tantas lidas,


«Tanto lutar contínuo das idades,
«Tanto sangue e martírios, tantas vidas,
«Tantas ruínas d'impérios e cidades:
«E o homem sofre, e as gerações perdidas
«Se revolvem num mar de tempestades,
«Sem ver luzir esse fanal jucundo
«Que por teu filho prometeste ao mundo.

«Quantos males ainda! a lei sublime,


«A lei d'amor que derramou teu Verbo,
«Sobre a face da terra, à voz do crime,
«Sucumbe e morre por destino acerbo.
«O férreo jugo que as nações oprime,
«Os humildes abate, ergue o soberbo,
«E o rei da terra, sobre a terra escravo,
«Sofre mesquinho seu eterno agravo.

«Por toda a parte, em lastimoso acento,


«Se ouve gemer a humanidade aflita.
«A terra, a mãe comum, nega alimento
«Dos filhos seus a à multidão proscrita:
«Enquanto folga em vícios o opulento.
«A indigência cruel na choça habita,
«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,
«Aperta morto à fome o seu filhinho.

«Entanto a guerra, que a ambição ateia,


«Ensanguenta as campinas e as cidades;
«A crua peste, que ninguém refreia,
«Converte as povoações em soledades;
«Destes males cruéis a terra cheia,
«Cobre-se inda de mil iniquidades;
«O vício, o crime, a corrupção devora
«A pobre humanidade, como outrora.
75

«Ao ver tanta miséria, o bom padece,


«O mau blasfema de teu nome santo,
«A voz dos inspirados esmorece,
«O futuro se envolve em negro manto...
«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece
«Que a humanidade te dirige em pranto,
«Subi confuso ao eternal assento,
«A depor a teus pés meu desalento.»

Disse, e um gemido d'aflição pungente,


Semelhante a dulcíssona harmonia,
Soltou do peito, reclinando a frente
Com celeste e ideal melancolia:
Assim pendendo ao longe no ocidente,
Se reclina saudoso o astro do dia;
Assim reclina a pálida açucena,
Açoutada do vento, a fronte amena.

Depois, continuando: «Ó Deus, quem há-de


«Sondar mistérios que teu seio esconde?
«Tuas leis divinais, tua vontade
«Cumprirei sobre a terra. Eia, responde:
«Os passos da mesquinha humanidade
«Aonde os levarei, Senhor, aonde?"
Uma voz retumbou do céu radiante.
Que ao anjo respondeu, dizendo: – AVANTE!
76

PARTIDA

Ai, adeus! acabaram-se os dias


Que ditoso vivi a teu lado;
Soa a hora, o momento fadado:
É forçoso deixar-te e partir.
Quão formosos, quão breves que foram
Esses dias d'amor e de ventura!
E quão cheios de longa amargura
Os da ausência vão ser no porvir!

Olha em roda estas margens virentes:


Já o outono lhe despe os encantos;
Cedo o inverno com gélidos mantos
Baixará das montanhas dalém.
Tudo triste, sombrio, e gelado,
Ficará sem verdura nem flores:
Tal meu seio, privado d'amores,
Ficará de ti longe também.

Não sei mesmo, não sei se o destino


Me dará que eu te abrace na volta...
Ai! quem sabe onde a vaga revolta
Levará meu perdido baixel?
Sobre as ondas, sem norte, e sem rumo,
Açoutado por ventos funestos,
Sumirá por ventura seus restos
Nas voragens d'ignoto parcel.

Mas ah! longe esta ideia sombria!


Longe, longe o cruel desalento!
Após dias d'amargo tormento
Virão dias mais belos talvez.
Dá-me ainda um sorriso em teus lábios,
Uma esp’rança que esta alma alimente,
E na volta da quadra florente
Eu coas flores virei outra vez.

Mas se as flores dos campos voltarem


Sem que eu volte coas flores da vida,
Chora aquele que em tumba esquecida
Dorme ao longe seu longo dormir;
E cada ano que o sopro do outono
Desfolhar a verdura do olmeiro,
Lembra-te ainda do adeus derradeiro,
Deste adeus que te disse ao partir!
77

CANTO DE PRIMAVERA

Eis surge a quadra florida,


A quadra dos amores,
Vertendo almos fulgores
Do seio juvenil.
Tudo revive ao hálito
Que a natureza aquece;
Tudo rejuvenesce
À luz do ameno abril.

Os bosques odoríferos
Se cobrem de verduras:
Nos montes e planuras
Renasce a tenra flor;
Dos perfumados zéfiros
As músicas suaves
Se juntam das mil aves
Os cânticos d'amor.

Salve, estação esplêndida,


Ó luz apetecida,
Que à terra dando vida,
A tudo dás prazer!
Minha alma em doces êxtases
Festeja a tua vinda,
E se ergue à luz infinda,
Manancial do ser.

D'onde. ó calor benéfico,


Derivas teu alento?
E d'onde o movimento
Que dás à criação?
Do foco sempre vivido
Que anima a natureza
Por toda a redondeza
Da terra, e da amplidão.

Como nos campos fulgidos


Espalha essas estrelas,
Assim as flores belas
Nos campos terreais:
Quão belo, ó Providência,
É teu poder fecundo
Enchendo o vasto mundo
D'alentos imortais!

Debalde o imenso vórtice


78

Retoma quanto gera:


Tudo se regenera
No perenal crisol,
E tudo canta harmónico
O Ser que, das alturas,
Aos gelos dá verduras,
Às sombras novo sol.

Cantai, ó aves módulas,


Cantai em coro ledo!
Murmúrios do arvoredo,
Cantai a Jeová!
Campinas aromáticas,
Erguei-lhe os mil perfumes
Das flores em cardumes
Que a primavera dá!

Abriu-se o tabernáculo
Da terra florescente;
Todo sorri fulgente,
Todo respira amor:
Ressoem nele os cânticos
De mística harmonia,
Dizendo noite e dia:
– Hossana ao Criador!
79

***

Voltai, voltai, ó flores das campinas!


Revesti-vos de galas, ó colinas!
Aves, cantai d'amor!
E vós ó minhas caras esperanças,
Voltai-me ao coração; das áureas tranças
Derramai-lhe fulgor!

Expulsou-vos do peito o desalento,


Como no outono o proceloso vento
As folhas do vergel;
Mas como os dias da estação formosa,
Novo dia surgiu, e cada rosa
Da vida com seu mel.

Oh! quem pudera em sua quadra triste


Pensar que a alegre no futuro existe,
Que existe a sombra e a luz!
Que nos prantos do orvalho ri a aurora;
Que a natureza, que imortal labora,
Na ruína a flor produz;

Da inconstância geral nada se esquiva;


Toda a existência para o mar deriva
Do incógnito porvir!
Agora o riso, ou dor, logo outra sorte;
Aqui a vida, mais além a morte;
Depois o ressurgir!
80

CATÃO

Como em tarde anuviada


Em tarde de negros véus.
Para a terra contristada
Sorri o íris dos céus;
Mas quando o sol esmorece,
O íris desaparece,
Tudo é negra escuridão;
O mar ruge e se encapela,
E nas asas da procela
Corre bramindo o trovão:

Tal ao sol da liberdade


Que sobre Roma luziu,
Qual íris em tempestade,
Catão à pátria sorriu.
Mas esse astro que fulgente
Das águias brilhara à frente,
Do Capitólio baixou;
E ele, o íris da bonança,
Ele, de Roma a Esperança,
Com seu fulgor expirou.

Contra as iras da tormenta


Ó forte lutaste em vão:
Que pode a virtude isenta
Contra a geral corrupção?
Já não luziam virtudes
Como nos séculos rudes
Dessa Roma consular;
O templo da tirania
A seus ministros abria
As portas de par em par.

Inda infante, viste Mário


De Roma o sangue beber;
E envolvida num sudário
A pobre Itália gemer.
Viste Sila, o monstro infando,
Entre as cabeças folgando,
Qual tigre, no seu festim;
E, infante, bradaste ufano:
– Dai-me um ferro, e o tirano
Livremos a pátria enfim! –

Não to deram: que lucrava


O teu valor juvenil?
81

Dum tirano outro brotava,


Nascia a guerra civil.
Enxuto de Roma o pranto,
Eis que envolto em negro manto
Lá surge um conspirador:
Cintila a morte, a ruína
No punhal de Catilina,
De Catilina, o traidor,

Surge, víbora gerada


Dos vícios do lodaçal!
Sobre Roma descuidada
Lança o veneno fatal!
Eia, empunha o facho ardente!
Entrega a pátria inocente
Aos punhais da tua grei!
E entre o sangue, à luz do incêndio,
Num trono de vilipêndio
Vem sentar-te como rei!

Mas treme! lá soa o brado


De Marco Túlio, orador.
Treme! Catão no senado
Já dos teus vence o furor.
Sucumbiste, algoz ferino!
Oh! mas vinga-te o destino
Que Roma jurou perder.
Catão, cobre-te de luto,
Que da Gália já escuto
A guerra civil descer.

Gerou-a o triunvirato,
Esse monstro d'ambição;
Que as eras de Cincinato,
Essas eras já lá vão.
D'olhos fitos sobre a Itália
Eis desce o leão de Gália,
E Arimino já tomou.
É César! ei-lo que assoma:
Abre-lhe as portas, ó Roma,
Que às tuas portas chegou!

Ei-lo parte, e já na Espanha


Os três legados venceu!
Só em Dyrrachio lhe ganha
A espada do grão Pompeu.
Os mortos jazem aos centos:
Sobre os seus restos sangrentos
Um homem chora: é Catão.
82

É ele que ali deplora


Essa guerra assoladora,
Guerra d'irmão contra irmão.

A liberdade expirava:
O coração lho prediz.
Roma, a livre Roma escrava
Ia dobrar a cerviz.
Não se enganou: lá troveja
O fragor d'alta peleja
Em Farsália inda uma vez;
Pompeu vacila e fraqueia;
A liberdade baqueia
De Júlio César aos pés.

Ei-la que expira, ei-la morta...


Oh! que não! ressurge além!
Catão é vivo: que importa
Quanto César ganho tem?
De Farsália aos naufragantes
Sobre as areias distantes
Da Líbia surge um fanal:
São dele, dele as bandeiras
Juntando as rotas fileiras
Para um combate final.

Mas César lá corre ovante,


Vence Juba e Cipião;
Tudo ante ele vacilante
Se prostra enfim maldição!
Não tarda a hora funesta:
De liberdade só resta
Dentro d'Utica um fulgor.
Inda Catão lá impera:
É lá que o vencido espera
As iras do vencedor.

Que venha, que ao seu aceno


Curvado não há-de ver
Aquele rosto sereno,
Que nunca soube tremer.
Caminha, César altivo,
E acharás em teu cativo,
Em vez de preito, o desdém!
Sabes vencer, porém corre
Vem saber como se morre,
Aprende a morrer também!

Catão, Catão, eis chegado


83

O momento de partir!
Com que rosto sossegado
Te vejo à morte sorrir!
Antes do golpe supremo
Tu paras inda no extremo
A meditar com Platão:
Assim a águia alterosa
D'alta penha cavernosa
Mede sublime a amplidão.

E depois, assim como ela,


Das nuvens rompendo o véu,
Adeja sobre a procela,
Deixa a terra, e busca o céu:
Tal coa dextra sempre ousada
Cravando no seio a espada,
Partiste d'alma os grilhões;
E dentre os vaivéns da sorte
Voaste, calcando a morte,
Às etéreas regiões.

César vence, e ao Capitólio


Lá sobe triunfador;
Roma cai do altivo sólio,
Rojando aos pés dum senhor.
Catão, o livre, expirara...
No suspiro que exalara
A liberdade voou.
Começava o negro império
Que um Calígula, um Tibério,
Um Nero, monstro, gerou.

Ele, entanto, sepultado


Nas praias junto do mar,
Lá dormia descansado
Sob a lájea tumular.
Ali a queixosa vaga
Vinha, rolando na plaga,
Beijar do livre a mansão;
E inda falar com saudade,
Da pátria, da liberdade,
à estátua de Catão.
84

AMO-TE

Da aurora que surge com mantos lustrosos


Eu amo os sorrisos d'encanto sem fim;
Mas inda mais amo teus lábios formosos,
Teus lábios sorrindo d'amor para mim.

Eu amo as estrelas, dos plainos infindos


Vertendo num lago sereno fulgor;
Mas inda mais amo teus olhos tão lindos
Vertendo em minh'alma seus raios d'amor.

Em serras, ao longe, cobertas de gelos,


As ondas eu amo d'argênteo luar;
Mas inda mais amo teus louros cabelos
Que em ombros de neve costumas soltar.

Da brisa das tardes eu amo os lamentos,


Dos bosques sombrios adoro o cantor;
Mas inda mais amo teus brandos acentos
Em termos descantes, em quebros d'amor.

Eu amo a florinha d'ao pé da corrente,


E o cálice puro da nívea cecém;
Mas inda mais amo tu'alma inocente,
Tão pura que os anjos mais pura a não tem.

Eu amo dos astros a luz palpitante


E as vagas longínquas arfando no mar;
Mas inda mais amo teu seio d'amante,
Unido a meu seio, d'amor a pulsar.

Eu amo na brisa, que doce murmura,


Colher os perfumes da rosa em botão;
Mas inda mais amo sorver a doçura
Dos beijos que, ardendo, teus lábios me dão.

Eu amo-te, eu amo-te, ó virgem celeste,


Meus dias na terra, minh'alma, são teus;
Eu amo-te, ó anjo que à terra vieste,
O amor ensinar-me dos anjos dos céus.
85

IMITAÇÃO DO ISLANDÊS

Um dia eu te dizia: – se roubada


Me fores, vem buscar-me – e tu não crias
Que eu pudesse abraçar-te inanimada,
Beijar teus olhos, tuas mãos já frias.

Mas eu não te amaria, se inconstante


Te pudesse esquecer na sepultura;
Desbotou-se o frescor de teu semblante,
Mas inda adoro tua imagem pura.

Apagou-se em teus lábios o ar da vida,


Mas um sopro imortal veio animar-te;
E tu inda és formosa, inda és querida
Ao que na terra começou a amar-te.

Não me deixes em mísero abandono;


Escuta ao longe, escuta a minha prece:
Quando uma noite a viração do outono
Gemer em nossas rochas, aparece!

E se a lua brilhar, se de passagem


Me estenderes a mão d'etérea alvura,
Eu surgirei por ver a tua imagem,
Por ouvir tua voz serena e pura.

Depois, anjo celeste, no meu seio


Repousa a fronte, aperta-me em teus braços;
Deixa que eu te acompanhe sem receio,
Desta existência desatando os laços.

Sobre a aurora do pólo arrebatados


Vamos, no seio d'imortais venturas,
Em nuvens d'ouro e púrpura embalados,
Cantar, sonhar, dormir nessas alturas.
86

LIBERDADE

UM ECO NO CATIVEIRO

Que tristeza quando penso


Nos povos em servidão!
Nos povos, gigante imenso
Rugindo humilde no chão!
Ao pensar assim comigo,
Quantas vezes eu maldigo
Essa campa de jazigo
Que pesa sobre as nações!
Quantas vezes eu deploro,
Quantas estremeço e choro,
Ouvindo o ranger sonoro
De seus pesados grilhões!

Ouvindo tão tristes queixas


Retumbando por esse ar,
Tantas sentidas endechas
Sobre a terra a suspirar;
Ouvindo-te, humanidade,
Esse gemer de saudade,
Que soltas na imensidade
Sem que te escute ninguém;
Ouvindo-te, ó malfadada,
De teus filhos rodeada,
Suspirar abandonada
Como suspira uma mãe!...

É triste a cena que vejo,


É triste, mas ei-la aí...
Aquém sofismas, sem pejo,
Férreas algemas ali;
Dum lado povos traídos,
Pelos seus escarnecidos,
Soltam queixas e gemidos
Que ninguém quer acolher;
Doutro povos humilhados,
Sob um jugo avassalados,
Por um peso recalcados
Quase nem ousam gemer...

Pobre raça deserdada


Que aí suspiras em vão,
Quando hás-de ter entrada
Na terra da promissão?
Quando hás-de resgatar-te?
87

Quando é que em toda a parte


Há-de o mundo contemplar-te
Semelhante a um homem só?
Quando raiará o dia
De cessar tua agonia?
Quando terás alegria
Erguendo a fronte do pó?

Hás-de tê-la, que o desterro,


Eia, ó triste, acabará,
Que esse jugo vil de ferro
Em pedaços cairá!
Esgota o cálice inteiro
De teu duro cativeiro;
Porém do solo estrangeiro
Fita ao longe a redenção!...
Esta crença, força e vida
Nos corações mal contida,
Pode acaso ser retida?
Acaso pode?... pode? – Não!

Debalde tentam detê-la


Porque a corrente caudal
Hão-de majestosa vê-la
Transpor o dique afinal...
Tudo no mundo descansa,
Nada progredindo avança,
Tudo avante se abalança
Num eterno caminhar...
Fitai o sol, as estrelas;
Vede se podeis sustê-las,
Se podeis, loucos, fazê-las
Ao vosso aceno parar...

Quem me dera a mim agora


Ter do fogo lá do céu,
Daquele fogo que outrora
Trouxe à terra Prometeu!
Oh! que se eu pudera tê-lo,
Eu havia de vertê-lo
Nessa montanha de gelo
Que inda dos seios não cai...
Sobre a raça amortecida
Dos homens soprara a vida,
E com voz, do mundo ouvida,
Lhes bradaria: – Acordai! –
88

ESPERANÇA

Povo! que fazes? desmaias


Sob o peso do sofrer?
Oh! nesse abismo não caias
Senão vê – tens de morrer:
O teu colo não se dobre,
Levanta essa alma que é nobre,
Tens, ó povo, um coração!
Ergue a fronte triunfante,
Ergue-a qual cedro gigante,
Não a rojes pelo chão!

Os teus irmãos sucumbiram?


Ao longe os viste expirar?
Não importa, – eles sorriram
De assim a vida exalar.
Era pela humanidade, –
Era pela liberdade:
Que lhes custava morrer?
Do céu te bradam: «esp'rança,
Irmãos, irmãos a bonança
Há-de um dia alvorecer!»

Povo! olha ainda espumante


O sangue desses heróis;
Olha as ruínas fumantes
Como sinistros faróis;
Contempla todo esse estrago,
Olha de prantos um lago,
Olha um pai órfão além,
Um amante aqui chorando,
Acolá um filho orando
Na campa de sua mãe!

Mil cadafalsos aos ares,


Repara, não vês erguer?
São teus irmãos que aos milhares,
Ai de ti! lá vão morrer!
Tu aos cruéis perdoavas,
A vida tu lhe ofertavas,
Que não tinhas mais que dar.
Eles querem tua morte...
Dá-lha, povo não te importe,
Que o teu sangue há-de medrar.

Mas chora teus irmãos, chora;


Quem é que o pranto retém?
89

Chora, sim, que escrava outrora


Já chorou Jerusalém:
Chora, sim, como chorava
O povo que suspirava
Pela mísera Sião,
Ou como na soledade
Suspirava de saudade
A corrente do Cedron.

Chora, mas em 'stragos tantos


Não apagues teu ardor;
Esgotaste sangue e prantos,
Não esgotes teu valor:
Recupera alento novo,
O lume da esp'rança, ó povo,
Não o deixes expirar;
Guarda-o vivo na tormenta,
Como a vestal que alimenta
O sacro fogo no altar!

Vossa aurora bonançosa,


Povos da terra, esperai!
Vós a vereis majestosa
Como os fogos do Sinai;
Vós a vereis radiante
Vós a vereis triunfante,
Qual no Gólgota brilhou,
Quando a toda a humanidade
Uma voz – fraternidade,
Lá duma cruz ressoou.

Um dia essa voz que encerra


O resgate universal,
Retumbará pela terra
Como a trombeta final...
Há-de ver-se o tenro infante
Sorrir à mãe nesse instante,
E ela unindo-o ao coração
Que há-de dizer com ternura:
«Filho, hás-de gozar ventura,
Que chegou a redenção!»

Povos, povos, esse dia


Será um dia sem par:
A campa que vos cobria
Se há-de então despedaçar;
As nações hão-de enlaçar-se;
Os homens hão-de sentar-se
Ao banquete fraternal,
90

E o céu olhando o mundo


Há-de em silêncio profundo
Ver o abraço universal.

Nesse dia tão formoso,


Astros! mostrai-vos sem véus!
E tu, ó mar proceloso,
Suspende teus escarcéus:
Terra, cobre-te de gala,
Os teus perfumes exala!
Povos da terra, folgai!
E entre mil nuvens d'incenso,
Um hino geral e imenso,
À liberdade entoai!
91

À MORTE DO MEU AMIGO


LICÍNIO F. C. DE CARVALHO

Morreste, amigo, partiste


Desta mansão passageira!
Bem depressa da carreira
Tocaste a meta fatal!
Com a folhagem dos bosques
Gelou-te o vento do outono,
E dormes o longo sono
Do teu leito sepulcral!

Já tua mão extremosa


Não aperta a mão do amigo
Que tantas vezes contigo
Em sonhos vãos delirou.
No seio da fria terra
Já não me escutas nem falas,
Contando lutos ou gaias
Do teu viver que passou.

Oh! quantas vezes, imersos


Nesses íntimos enleios
Que fazem um de dois seios,
Sentimos horas fugir!
Quantas, sonhando horizontes
De poesia, amor, ou glória,
Numa expansão transitória
Criamos longo porvir!

E morto jazes, ai! morto,


Sem poder de teus anelos
Realizar os sonhos belos,
Cruzar a vasta amplidão?
Morto sem ter dito ao mundo
A palavra augusta e santa
Que a turba ansiosa espanta,
E que é do génio o condão?

Morto à luz da tua aurora


Sem que à luz da tua sesta
Pudesses, na hora funesta,
Sorrir ao passado teu?
Morto, ai, morto sem ter ganho
Mais lágrimas de saudade,
Tão doces à soledade
Daquele que já morreu!
92

Deus! se a vida é campo ameno


Onde se vem colher flores,
Porque, do sol aos fulgores,
Não se hão-de as flores colher?
Se é deserto ingrato e rude,
Onde não brota uma fonte,
Porque há-de em nosso horizonte
A luz do dia nascer?

Mas dorme, descansa, amigo,


Que a vida é o deserto às vezes...
Estrada de mil reveses,
E de voragens fatais...
E que é o poeta? o viajante
Que fere os pés nos abrolhos,
Enquanto levanta os olhos
Às regiões divinais.

Ave estrangeira que passa


Neste clima proceloso,
Com seu canto mavioso
Levando as turbas d'após;
Mas que chora de saudade
Por sua pátria querida,
Té que afinal abatida
Cai sem alento e sem voz.

Descansa! no frio leito


De teu eterno repouso
Não te irá o sol formoso
Cada manhã despertar;
Mas também, da aurora à noite,
Não calcarás os espinhos
Que em teus agrestes caminhos
Verias da flor a par.

Lá não irão festejar-te


Ruidosos ecos do mundo,
Que dizem, no som profundo,
Qual é do génio o poder;
Mas também tuas coroas
Não regarás com teu pranto,
Nem a inveja em negro manto
Tua estrela há-de envolver.

Descansa! que digo! surge!


Ergue-te à luz, ó poeta,
E revoa aonde inquieta
Te levava a inspiração!
93

Sonhaste mundos brilhantes,


Sonhaste amor e poesia:
No país do eterno dia
Vai colher teu galardão!

Vai! das plagas do desterro


Eis-te afinal resgatado:
Procura regenerado
A pátria que te sorri!
Lá terás as harmonias
Que soltam milhões d'esferas,
E florentes primaveras
Quais não terias aqui.

Lá goza! lá, sacudido


Sobre a terra o térreo manto,
Desprende teu novo encanto
De novos sóis ao fulgor!
E, se lá pode chegar-te
Esta nota de saudade,
Escuta a voz da amizade
Entre os mil hinos do amor!
94

O MENDIGO

Nas turres soberbas da grande cidade


O sol desmaiado não tarda a morrer;
Recrescem as sombras: que importa? a vaidade
No manto das sombras envolve o prazer.

E u velho entretanto lá sobe a montanha,


Caminha, caminha, no cimo parou:
Em frígidas gotas o rosto lhe banha
Suor copioso, que à terra baixou.

Quis antes da morte, nas serras distantes


Fitar inda os olhos cansados da luz;
A aldeia da infância saudar por instantes,
Depois satisfeito depor sua cruz.

Olhou, e um suspiro de vaga saudade


Juntou a seus prantos em funda mudez;
Depois, ao volver-se, topando a cidade,
Que em ébrio tumulto folgava a seus pés:

«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto


«O pão da desgraça negaste cruel!
«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extinto
«Talvez lhe negaras, à tumba infiel!»

E exausto e sem forças, caiu de joelhos;


E a fronte cansada firmou no bordão:
Passados instantes, os olhos vermelhos
Ao céu levantava, dizendo: perdão!

Caíam-lhe soltas no colo vergado


As longas madeixas em longos anéis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos anos e mágoas cruéis!

«Perdão para as vozes que solta a desgraça!


«Perdão para o triste, perdão, ó meu Deus!
«Bem hajas, que aos lábios lhe roubas a taça
«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céus.

«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;


«Esposa não tenho, finou-se de dor;
«Amigos não vejo na face da terra:
«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!

«Às portas do rico bati sem alento,


95

«Eu rico n'outrora, mendigo por fim:


«O rico sem alma negou-me o sustento,
«Aqueles que amava fugiram de mim.

«Vaguei pelo mundo, nas faces mirradas


«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;
«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas
«Pousei minha fronte nas lájeas do chão.

«Que vezes a morte chamei sem alento


«Cansado dos anos, e fomes, e dor!
«A morte não veio: sofri meu tormento...
«Só hoje me ouviste! bem hajas, Senhor!

«Os homens e o mundo negaram-me os braços,


«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...
«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...
«Perdão para todos, perdão, ó meu Deus!»

E um ai derradeiro soltou d'ansiedade,


Caindo por terra nas urzes do chão;
Ao longe, no seio da grande cidade,
Brilhava das festas nocturno clarão.
96

A VIDA

A meu irmão

Que! lutar sempre em afanosa guerra


Contra os rigores dum feroz destino!
A cada passo lacerar as plantas
Nesta agra senda que nomeiam vida!
Correr após um sonho, uma esperança
Que leda nos sorria, a vê-la ao cabo
Sumir-se, desfazer-se como o fumo!
Ou, se tocamos o vedado pomo,
Arrojá-lo de nós, murcho e vazio!
Alcançar por um bem, mil dissabores!
Por uma hora de gozo, mil de prantos!
Sofrer, sempre sofrer, não vir um dia
Em que possamos exclamar: ventura!
E é este o cálice de aprazível néctar
Que ao banquete do mundo nos convida?
É este o éden que nos prende os olhos,
E nos faz recuar ante o sepulcro?

Nascemos: com que pena à luz do dia


Surgimos logo do materno seio,
Filhos da dor, obedecendo à origem,
Nos vagidos da infância a anunciamos:
E ainda assim no deslizar sereno
Dos dias infantis, a vida encanta;
A taça da existência tem doçura,
Como se o mel lhe coroasse a borda
Para mais fácil nos tentar os lábios.
O horizonte dos anos se dilata;
Vem a idade do amor. Que belos sonhos
Em mágico painel a vista iludem!
Um ser, que a mente em chama nos diviniza,
Nosso oásis feliz anima todo,
Bem como o sol anima toda a natureza,
Ou a rosa do vale os flóreos prados.
Mas quantos podem na manhã da vida
Colher a rosa de seu mago enlevo?
Quantos a estrela que adoraram crentes
Sentem passar, e desfazer-se em breve,
Não luzeiro do céu, porém da terra,
Meteoro fugaz que baixa ao solo,
E se dissipa, redobrando a noite!

As ilusões do amor se desvanecem:


Desse mundo feliz o homem baqueia
97

E devorando a mágoa segue avante.


Prometeu afanoso ei-lo procura
Dar alma e vida ás criações que inventa,
Ai! já não belas, mas de impura argila.
Honras, glórias, poder, bens de fortuna,
Ciência austera, festivais prazeres,
A tudo se abalança, aspira a tudo,
E em tudo encontra desenganos sempre,
Ao ponto que fitara jamais chega,
Ou, se o alcança, não lhe dura o gozo.
Ai do que envolto em miserandas faixas,
Embalada sentiu a pobre infância
Cos gemidos da fome! Esse à ventura
Quase nem ousa levantar os olhos:
Perpétuo desalento lhos abate
À triste condição em que nascera.
Planta gerada num terreno estéril,
Não se ergue altiva, não estende os ramos,
Vive entre espinhos, e entre espinhos morre.
Em vão se cansa o triste: raras vezes
A dura terra lhe concede o prémio
Do suor e das lágrimas que verte
No seio ingrato dessa mãe ferina
Um pão acerbo que amassou com pranto,
É o alimento que reparte aos filhos;
E o marco do caminho à cabeceira
Onde desprende o moribundo alento.
Ai dele! mas não menos desditoso
O que em púrpuras e ouro vendo o dia,
Ou conduzido pela mão da sorte,
Chegou ao cumes que a fortuna habita;
E, na posse dos bens que o mundo anseia,
Palpou tremendo seu medonho nada.
Este empunhando o ceptro, empalidece,
Sentindo às plantas vacilar-lhe o sólio;
No fastígio da glória aquele geme,
Ao ver o louro que lhe cinge a frente
Pelo bafo da inveja emurchecido.
Um as honras consegue, e as vê sem preço;
Outro as riquezas, e lamenta os dias
Que mais belos perdeu em seu alcance.
Qual, a ciência devassando ousado,
Após longas vigílias estremece
Da dúvida ante o espectro; qual ardente
Das festas no rumor despende a vida,
E a taça do prazer lhe deixa o enfado.

Feliz aquele que em modesta lida,


Isento da ambição e da miséria,
98

No regaço do amor e da virtude


A vida passa. Mas feliz ainda
Se, das turbas ruidosas afastado,
À sombra do carvalho, entre os que adora,
Sente a existência deslizar tranquila.
Como as águas serenas do ribeiro
Que as herdades pacíficas lhe banha.
Mas, que digo! nem esse. Infindos males
Comuns a todos, seu viver não poupam,
Dum lado a crua guerra lhe sacode
O facho assolador às brandas messes;

A pálida doença, doutro lado,


Dos entes que mais ama o vai privando;
E ele mesmo talvez, infausta presa
Dessa serpente que nos liga à morte,
Nos ecúleos da dor a vida exaure.
E, como se estes males não bastaram,
Sua mesma virtude lhe é suplício.
Compassivo coa dor que os outros sofrem,
A dor alheia o atormenta ainda.
Justo, adora a justiça; e, olhando em torno,
A injustiça e opressão verá reinando;
Verá a inocência vítima do crime,
A virtude humilhada, o vício altivo,
Os prantos da miséria escarnecidos,
Por toda a parte o mal, a dor; e as queixas,
Ai dele, ai dele, se um momento pára
Na atroz contemplação de tantos males!
Ai dele, que turbado e confundido,
Em maldições blasfemará terrível
Da virtude, de si, de Deus, de tudo!

Não! da vida no pélago agitado


Um abrigo não há, não há um porto
Onde possamos descansar tranquilos.
Em nós, dentro em nós mesmos, ruge irada
A tempestade que evitar queremos.
Como a serpente no cristal da linfa,
Na alma serena o sofrimento mora;
Não pode o gozo dos mais belos dias
Encher o abismo que no seio temos.
Em vão, em vão ansiamos a ventura:
Sumos na terra qual viajante exausto
Que ouve o sussurro d'escondida fonte,
E morre à sede sem poder tocá-la.

Vida, tremenda herança d'amarguras,


Eu te hei sondado nos meus próprios males,
99

E em meus irmãos na dor, nos homens todos:


Grilhão pesado que nos dá o berço,
E que depomos nos umbrais da tumba
A luta, a mágoa, eis os teus dons funestos.
Mas donde a causa do sofrer eterno
Que as gerações às gerações transmitem?
Que um século, tombando de cansaço,
Como um peso importuno lega ao outro?
Donde o crime feroz que um tal castigo
Sobre nós atraiu? Se um Deus é justo,
Que deus, que lei, sem escutar-nos, pôde
A sentença lavrar? Silêncio é tudo!
Em vão, para sabê-lo, em vão mil vezes
Interroguei confuso o céu e a terra:
O céu de bronze não me ouviu a prece,
A terra obscura não me soube o enigma.
Dos profetas na voz, na voz dos sábios,
A dúvida cruel achei somente.
Pedindo à morte a solução da vida,
Desci às tumbas; apalpei as cinzas;
Quis ver se um eco da gelada campa
Surgirá à minha voz; mas foi debalde.
Frias ossadas, carcomidos restos
De quem sofreu também, só me disseram
Que tudo acaba ali. A terra, a terra,
O seio impuro dos famintos vermes:
Eis o refúgio, a habitação amiga
Que após a luta nos espera ao cabo!

Morte, morte, bem vinda sejas sempre,


Em nome da existência eu te saúdo!
Tu reinas pela dor na espécie humana,
E, quem sabe? talvez nesse universo;
O sol, o mesmo sol envolto nas sombras,
Parece reflectir-te as negras asas;
E acaso à tua voz, a cada instante,
Um cometa voraz fulmina um globo.
Por que inda tardas a empunhar o ceptro
Que neste ao menos te pertence há muito?
Ao desterrado do éden por que deixas
O resto do poder que inda te usurpa?
Eia, desprende sobre a terra as asas,
Sobre esta criação, que abandonada
Talvez por seu autor como imperfeita,
Qual nau perdida em tormentosos mares,
Vaga sem rumo nesse espaço etéreo!

Mas que sinistra voz! Silêncio, ó lira!


Não mais prossigas teu cantar blasfemo!
100

Fanal de salvamento, luz d'esp'rança,


Que na altura do Gólgota brilhaste,
Desce à minha alma que a tristeza inunda!
Desce! de todos resumindo as dores
O cálice d'Ele foi o mais acerba.
Ele sofreu! Soframos, e esperemos!
Depois da noite escura vem o dia:
Depois deste desterro, a eterna pátria!
101

UM SONHO

Ah! si jamais le ciel j'était entre mes bras


un des songes vivants attachés à mes pas

LAMARTINE, Jocelyn.

Inefável sentir, branda tristura


Oh! quero-te sozinho aqui gozar...
Eu te amo, tu não tens essa amargura
Que nos seios, a mão da desventura
Costuma derramar.
Eu te amo qual amara a melodia
De terna e melancólica canção,
Ou o raio que o sol no fim do dia
Como um beijo d'adeus, saudoso envia
À rosa da soidão...
Oh! sim, eu te amo, ó mística saudade
Vem, quero no teu seio reclinar
A minha fronte, aqui na soledade
Como o lírio a que falta a humidade...
Sim... quero aí chorar...
Quantas vezes meu espírito elevando
Ao céu em tuas asas de marfim,
Os anjos um por um me andas mostrando!
Oh! se desse gentil, celeste bando
Tivesse um junto a mim!...
Qual fonte que em deserto ressequido
Dá conforto ao exausto viajor,
Se houvesse sobre a terra um ente qu'rido
Que terno respondesse a meu gemido
Com meigo hino d'amor!..

Que vejo? as auras fendendo


Nívea pomba eis desce a mim,
Do céu à terra descendo!...
«um génio, um querubim,
Já desceu e a mim chegando,
E meu pranto contemplando,
Já me uniu ao coração...,
E dois seios se entenderam,
E dois corações bateram
Em uma só pulsação...

Virgem que à terra vieste


Lá do seio do Senhor,
Deixaste o coro celeste
Pra vir dar-me o teu amor?
102

Vens os prantos enxugar-me


Vens no teu sorriso dar-me
O que ainda não senti?
Vens do amor e da ternura
Receber essa flor pura
Que eu guardava para ti?

Vem; tu surges qual estrela


Que surge meiga no céu
Quando após uma procela,
Se mostra pura e sem véu;
Tu surges qual meiga aurora,
Qual ao Nauta que o implora
Surge seu berço natal;
Oh! quero pois adorar-te...
Quero só viver d'amar-te...
A vida sem ti que vale?

Sim, aqui junto ao teu seio


Tudo o mais quero esquecer...
Nada no mundo receio;
Junto a ti que hei-de temer?
Este amor puro e ardente
Só bem o conhece e sente
Quem vive do coração,..
Cá na terra não no entendem,
Só os anjos o compreendem,
Só tu tens esse condão.

Tu eras, anjo, tu eras


Quem ao mundo em vão pedi:
Oh! escuta, se souberas
Todo o pranto, que verti!...
Mas meu pranto que importava?
O coração que eu buscava
No mundo não no achei...
Era em vão que lho pedia
O que só em ti havia,
O que em ti só encontrei.

Mas nós somos tão felizes!


É tão doce este viver!...
Oh! essas falas que dizes,
Torna-as, torna-as a dizer;
Essas falas de ternura
D'inocência e de candura
Quero escutá-las sem fim...
Diz-me, virgem celeste:
Os anjos, donde vieste,
103

São inocentes assim?

Tu és inocente e pura
Como a cecém ao abrir
Quando a aurora na candura
Lhe vem um beijo imprimir...
Por uma manhã formosa.
Quando desabrocha a rosa,
Quando o prado rescender,
Hei-de ir em cada florinha,
Em cada tenra folhinha,
A tua inocência ler...

Mas, repara neste dia


Como é lindo o seu fulgor!
Tudo nele é alegria,
Tudo palpita d'amor...
Não vês tu a natureza
Revestida de beleza
Nosso amor a festejar?
Não vês como nos convida
A lançarmo-nos na vida,
A vivermos para amar?

Eis pois, tudo olvidemos


Vivendo juntos aqui:
Eia, nosso amor gozemos;
Sê minha, vivo pra ti...
Sim, és minha, as nossas vidas,
As nossas almas unidas,
Quem as pode separar?
Até no último suspiro,
Como um anjo em leve giro,
Hão-de ao céu juntas voar!...

Um sonho... sim, um sonho e... feliz que ele era


Porém cedo fugiu...
Ai! não sei que terror, que medo gera
Esta mudez que impera
Dês que ele se esvaiu...
Pra quem sonhou na terra um céu d'amores
É tão triste o acordar!
E, qual apaga o íris suas cores,
Qual se vêem desbotar numerosas flores
Ver o sonho expirar!...
Meu Deus! só vejo um ermo onde caminho
Sem protectora mão,
Qual triste o peregrino vê sozinho,
Longe do pátrio ninho,
104

Do deserto que pisa a solidão!


105

DESENGANO

Vejo-a ainda! ressurge a meus olhos


Como em tempos ditosos surgia,
E, qual anjo de casta poesia,
Desce às vezes num sonho d'amor;
Vejo-a ainda nos céus e na terra,
Nos encantos e risos da aurora,
E, se o dia nas ondas descora,
Das estrelas no meigo fulgor.

Era a luz que brilhava em minha alma,


Era o astro que em sombras luzira,
Era o fogo sagrado que a lira
Às doçuras d'amor acordou...
Tudo c findo; debalde nas trevas
Busco ainda seu facho luzente:
Foi apenas um astro cadente,
Meteoro fugaz que passou.

Pobre seio que ardente pulsaste


Embalado por falsas venturas,
O fanal que na terra procuras
Sobre a terra jamais acharás.
Não há seio que entenda no mundo
Esse ardor de teus vagos anelos;
Não há luz que em seus raios mais belos
Não te esconda uma sombra falaz.

Que te resta? um futuro vazio


D'ilustres que nutriu a esperança,
E um passado de triste lembrança
Como é triste a verdade sem véu...
Olvidar! olvidar! que ao presente,
Ai! só cabe o repouso do olvido.
Olvidar! e que em gelo sumido
Seja o fogo que em chamas ardeu!

Sonho belo, que esta alma iludiste,


Chama ardente nos céus ateada,
Voa, voa à celeste morada!
Lá nasceste, do mundo não és.
E tu, lira de lânguidas cordas,
Que de amor suspiraste em desleixo,
Vai, oh, vai! em silêncio te deixo...
Vai, oh, vai para sempre talvez!
106

AGAR

De Bersabé nos areais ardentes


O desmaiado sol ia esconder-se,
E Agar, a expulsa Agar, gemendo aflita,
Unia ao peito o moribundo filho.
O vaso d'água que lhe dera o esposo
Esgotara-se em breve, e no deserto
Com seu pobre Ismael não descobrira,
Desde o romper do dia, a ansiada fonte.
O dia declinava: eis que o infante,
Que pela mão a acompanhava exausto,
Ardendo em sede lhe sucumbe às plantas.
Ela vê-o cair, ela estremece,
E, os olhos turvos em redor lançando,
Aqui e ali correndo busca ainda,
Mas debalde, um frescor. Enfim, cansada,
Ela mesma também, eis volve ao filho,
Prostra-se, abraça-o, com maternos beijos
Tenta ansiosa prolongar-lhe a vida.

«Filho, meu filho – murmurava a triste –


«À sede vais morrer! Oh! se o pudesse
«Adivinhar teu pai, cruel não fora;
«E Sara, a própria Sara, enternecida
«Emudecera seus fatais ciúmes.
«Oh! não gemas, não gemas, que debalde
«Invocas tua mãe. Ela te escuta,
«Mas não pode salvar-te: dentro em pouco
«Em seu regaço exalarás a vida.
«E hei-de eu ver-te expirar? ver nesses olhos
«Sumir-se a luz do dia? e nessas faces,
«Que tantas vezes me sorriram ledas,
«Ver as ânsias da morte? Oh! não, não posso
«Ver morrer o meu filho». Disse, e ao tronco
Duma árvore vizinha o recostava;
Depois, com tristes, vagarosos passos,
Foi noutros sítios aguardar a morte.
Ali, ao ver o sol que esmorecia,
Desatou a chorar, e estes queixumes
Em voz convulsa murmurou ainda:

«Sol do deserto, que o meu pobre filho


«Vês expirando na soidão além,
«Com teu suave, derradeiro brilho
«Beijar-lhe a face carinhoso vem!
«Oh! vem, que eu triste nessa face pura
«Materno beijo nunca mais darei.
107

«Perdi meu filho: sobre a terra dura


«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Quando o teu facho ressurgir do oriente,


«Tudo na terra sentirá prazer;
« E lá nos campos de Mambré virente
«Mais bela a rosa te verá nascer:
«Só ele em sombras duma noite escura
«Adormecido ficará, bem sei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Por mim não choro, que infeliz escrava


«Meus tristes dias findarei aqui:
«Ai! choro aquele que no mundo amava,
«Choro meu filho, que expirando vi.
«Maternos mimos, filial ternura,
«Lembrai-me os tempos que feliz gozei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Oh! quem dissera nos passados dias


«Em que ao meu colo te cerquei d'amor,
«Oh! quem dissera que a morrer virias
«Neste deserto sem achar frescor?
«Emurcheceste, já não tens verdura,
«Mimoso arbusto que gentil criei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Tantas esp'ranças, que o Senhor gerara


«Na escrava humilde, findarão assim.
«Foi mais feliz a geração de Sara:
«Cruel destino só me coube a mim.
«Em vão, em vão me prometeu futura
«Longa progénie: sem ninguém fiquei,
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Aves agrestes que me ouvis as queixas,


«Com tristes vozes o seu fim chorai!
«Brisas do ermo, suspirai-lhe endeixas!
«Astros da noite, seu dormir velai!
«Velai-o todos, que a final ventura
«Que vos reservo nem sequer terei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

Mas Deus! que via ela,


108

Que um ai desprendeu?
Que pomba tão bela
No manto do céu!
Que penas de prata,
D'azul, d'escarlata,
O espaço retrata
Sereno, sem véu!

É anjo voando!
Que brilho que tem!
Que véus ondulando
De pura cecém!
Que anéis de cabelo
Nos ombros de gelo,
No colo tão belo
Caindo ao desdém!

Descendo, descendo,
Já perto chegou;
E a pobre tremendo
Calada ficou;
E o anjo sorria
Com doce magia,
E à terra descia,
Na terra pousou.

E em roda mil lumes


De brilho sem fim
Lançava, e perfumes
De nardo e jasmim;
E a voz argentina,
Suave, divina,
Soltou peregrina
Falando-lhe assim:

«O que fazes, Agar, porque choras?


«Nada temas, não tens que temer;
«Se o teu filho perdido deploras,
«Esses prantos converte em prazer.

«Do deserto chegou seu gemido


«Às alturas que habita o Senhor:
«Surge, surge, e teu filho querido
«Vai ao longe buscar sem temor!

«Surge, surge, recobra a esperança


«Que as promessas cumpridas serão!
«O teu filho, o Senhor to afiança,
«Será pai duma grande nação.
109

«Glória a Deus, que no céu ouve as mágoas


«De quem sofre na terra a carpir!
«Eis um jorro de límpidas águas:
«Ide nelas a sede extinguir!»

E, assim dizendo, lhe mostrava perto


Uma fonte escondida entre verduras,
Como nunca se vira no deserto,
De tão grato frescor, d'águas tão puras.

Depois, batendo as esmaltadas penas,


Deixou na terra um luminoso traço;
E, agitando seu manto d'açucenas,
Sumiu-se ao longe na amplidão do espaço.

Erguendo aos céus a radiosa fronte,


A pobre mãe ao Senhor Deus louvava;
E, enchendo o vaso no cristal da fonte,
Com ele ao filho a salvação levava.
110

MARIA, A CEIFEIRA

(IMITAÇÃO DE UHLAND)

«Bons-dias, Maria: da lida do prado


«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»

Promessa é do rico, soberbo rendeiro:


Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.

Soou meio-dia: que ardente secura:


Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.

O sol esmorece, bateram trindades:


Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:

O orvalho desliza; desponta a seu turno


A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.

Os dias e as noites assim por tais modos,


Nutrida d'amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d'esp'rança a chorar.

«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!


«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»

Tal disse, e passava... no peito constante,


Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.

Um ano a coitada, sozinha consigo,


Vivendo de frutos, vagou sem falar...
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.
111
112

A MONJA

(TRADUÇÃO DE UHLAND)

Sobre os jardins da clausura


Brilha da lua o fulgor;
Jovem monja entre a verdura
Lá divaga e a face pura
Lhe banham prantos d'amor:

«Doce amigo, que tão cedo


Foste na campa habitar,
Posso eu amar-te em segredo?
Ai, posso! aos anjos, sem medo
Nosso amor podemos dar.»

Aos pés da Virgem que adora


Trémulos passos detém;
O doce olhar da Senhora
Lhe faz brilhar, como a aurora,
O rosto cor de cecém.

Na terra fria ajoelhando,


À Virgem Santa rezou:
Pôs nela os olhos chorando,
E o longo véu abaixando,
Muda e tranquila expirou.
113

O FIRMAMENTO

Ao meu amigo J. S. da Silva Ferraz

Glória a Deus! eis aberto o livro imenso,


O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.
Eis do teu tabernáculo corrida
Uma ponta do véu misterioso:
Desprende as asas retomando a vida,
Alma que anseias pelo eterno gozo!

Estrelas, que brilhais nessas moradas,


Quais são os vossos destinos!
Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas
De seus umbrais divinos.
Pululando do seio omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas do seu carro ardente
Ao rolar através da imensidade.

E cada qual de vós um astro encerra,


Um sol que apenas vejo,
Monarca doutros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguém pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que dais vida,
Escuros para nós qual nossa esfera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?

Mas vós perto brilhais, no fundo acesas


Do trono soberano:
Quem vos há-de seguir nas profundezas
Desse infinito oceano?
E quem há-de contar-vos nessas plagas
Que os céus ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustém as vagas
Dos sóis que um dia romperão na altura?

E tudo outrora na mudez jazia


Nos véus do frio nada:
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Ele falou! e as sombras num momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Ele falou! e o vasto firmamento
Seu véu de mundos desfraldou ovante!
114

E tudo despertou, e tudo gira


Imerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lira
Cantando os seus louvores.
Cantai, ó mundos que seu braço impele,
Harpas da criação, fachos do dia,
Cantai louvor universal Àquele
Que vos sustenta, e nos espaços guia!

Terra, globo que geras nas entranhas


Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão d'areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão dos mundos
Em volta do seu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho,


Que soberbo te elevas.
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas!
Que és tu com teus impérios e colossos?
Um átomo subtil, um frouxo alento:
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas que sacode o vento.

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes


À razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chama das ideias:
Alegra-te, imortal, que esse alto lume
Não morre em trevas dum jazigo escasso!
Glória a Deus, que num átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre,


Conquista áureo destino,
E de século em século mais nobre
Eleva a Deus teu hino!
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto d'amor reúne aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões d'esferas!

Dizem que já sem forças, moribunda,


Tu vergas decadente:
Oh! não, de tanto sol que te circunda
115

Teu sol inda é fulgente.


Tu és jovem ainda: a cada passo
Tu assistes dum mundo às agonias,
E rolas entretanto nesse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.

Mas ai! tu findarás! além cintila


Hoje um astro brilhante;
Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,
E fenece arquejante:
Que foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram séculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.

Um dia, quem o sabe? um dia, ao peso


Dos anos e ruínas,
Tu cairás nesse vulcão aceso
Que teu sol denominas;
E teus irmãos também, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflama,
Atraídos enfim, quais borboletas,
Cairão como tu na mesma chama.

Então, ó sol, então nesse áureo trono


Que farás tu ainda
Monarca solitário, e em abandono,
Com tua glória finda?
Tu findarás também, a fria morte
Alcançará teu carro chamejante:
Ela te segue, e profetisa a sorte
Nessas manchas que toldam teu semblante.

Que são elas? talvez os restos frios


Dalgum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo.
Talvez, envolto pouco a pouco a frente
Nas cinzas sepulcrais de cada filho,
Debaixo deles todos de repente
Apagarás teu vacilante brilho.

E as sombras pousarão no vasto império


Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um saltério
Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras esferas
Virão no espaço descantar seu hino,
Renovando nos sítios onde imperas
116

Do sol dos sóis o resplendor divino.

Glória a seu nome! um dia meditando


Outro céu mais perfeito,
O céu d'agora a seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então, mundo, estrelas, sóis brilhantes,
Qual bando d'águas na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no caos do universo.

Então a vida, refluindo ao seio


Do foco soberano,
Parará, concentrando-se no meio
Desse infinito oceano;
E, acabando por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na imensidade –
O silêncio aguardando a voz futura,
O trono de Jeová, e a eternidade!
117

TRISTEZA

Extingue-se o ano, são findos os dias


Que os vales encheram de próvida luz;
O inverno c'roado de névoas sombrias,
Seus pálidos gelos à terra conduz.

O rio em torrentes inunda as campinas,


As veigas perderam seu flóreo matiz,
Pesada tristeza reveste as colinas,
E as selvas que há pouco sorriam gentis.

Em tudo a meus olhos avulta uma imagem


De triste abandono, de mística dor:
Apraz-me este luto que veste a paisagem,
Apraz-me esta cena d'extinto verdor.

Como estas campinas outrora florentes,


Meus dias formosos floriram também;
Como elas agora, meus dias cadentes,
Despidos d'encantos, já viço não tem.

Quão rico de gozos o tempo corria!


Quão triste o presente, quão pobre ficou!
Só resta a saudade, qual vaga harmonia
Que uma harpa nocturna de longe soltou.

Mas essa que vale, perdida a esperança?


Que vale um passado que já não é meu?
à flor desbotada que importa a lembrança
Da aurora suave que aroma lhe deu?

Um dia outra quadra mais bela e mais pura


Virá de boninas ornar os vergéis;
Mas vós, ó meus tempos d'amor e ventura
Sois findos pra sempre, jamais voltarei.

Sondando o futuro, minha alma conhece


Que os ermos do mundo já rosas não tem:
Já tudo sucumbe, já tudo fenece,
O sol da ventura, e a esp'rança também.

Té mesmo em meu peito vacila agitada


A chama da vida perdendo o calor;
Meus dias declinam qual luz desmaiada
Que doura as montanhas com tíbio fulgor.

Se tudo, ah! se tudo findou no passado,


118

Se as trevas se estendem nos céus do porvir,


Que esperas, minha alma? do livro do fado
São negras as folhas: só resta partir.

Ao longe, quem sabe? sulcando as alturas,


Jardins mais formosos verás na amplidão,
De flores eternas, d'eternas verduras
Que os gelos da terra jamais secarão.

Temendo os rigores do outono vizinho,


As aves adejam buscando outros céus:
Tu és, ó minha alma, qual ave sem ninho, –
Procura outros climas, rasgando os teus véus!
119

A MÃE E A FILHA

– Filha, filha, que linda alvorada!


Anda ver este sol ao nascer:
Há três dias que gemes deitada.
Mas já hoje sorris de prazer.

– Oh! que sonhos d'encantos divinos!


Tudo em roda luzia em fulgor,
E mil anjos cantavam seus hinos
Em jardins d'açucenas em flor.

Era longe dos olhos humanos,


Numa terra mui longe daqui...
Oh! que mundo tão livre d'enganos!
Oh! que vida que nele vivi!

– Olha o sol que tão belo se esconde


Nas montanhas sombrias dalém...
Tão calada, tão triste! responde,
Que tens tu, minha filha, meu bem?

Vou na pátria d'eternos amores,


Vou ao longe ditosa viver,
Mas, no seio de mundos melhores,
Ai! não te hei-de a meu lado já ver!

Eis um anjo que desce os espaços...


Que harmonias! que brilho sem fim!
Mãe, oh mãe, dá-me ainda os teus braços..
Já não sofro, não chores por mim.
120

IDADE MÉDIA

Pelos salões e terrados


Passeia o conde a gemer.
É sombrio o seu aspecto,
Nada lhe causa prazer.
Os servos tremem ao vê-lo,
Nem sequer lhe ousam falar.
Vagam sombras, alta noite,
No castelo, à beira-mar.

Vive assim desde que a morte


A dois inocentes deu,
Causando também a doutro
Que por amor os perdeu.
Que noite aquela de sangue
Para o seu nobre solar!
Vagam sombras, alta noite,
No castelo à beira-mar.

Chegara o conde uma tarde


Das guerras contra o Almanzor:
«Alguém há, lhe diz seu aio,
Que vos desonra, senhor
Velai no jardim à noite...»
Mais não quis acrescentar.
Vagam sombras, alta noite,
No castelo, à beira-mar.

Brilhara a lua formosa


Nos laranjais e jasmins,
....................................
....................................

Um trovador, junto à fonte,


Começara o seu cantar...
Vagam sombras, alta noite,
No castelo, à beira-mar.
....................................
....................................

Eis-me aqui, diz ao amante,


E nos braços lhe caiu;
Na fronte de puro jaspe
Ele um beijo lhe imprimiu.
Quis falar-lhe, mas um ferro
Sobre o peito viu brilhar...
Vagam sombras, alta noite,
121

No castelo, à beira-mar.

Mas logo, junto do conde,


Ressoa um grito cruel:
Matai-me, senhor, matai-me!
Vossa esposa era fiel;
Com as vestes da condessa,
Quis meu amor ocultar...
Vagam sombras, alta noite,
No castelo, à beira-mar.

Era da aia da condessa


Essa voz que tal lhe diz.
Ele estremece, olha em sangue,
Banhada, a esposa infeliz.
Vingativo, cravo o ferro
Na donzela sem falar...
Vagam sombras, alta noite,
No castelo, à beira-mar.

Desde essa noite funesta,


Nunca mais sentiu prazer.
Pelos salões solitários
Passeia triste a gemer.
Dizem todos em segredo
Que os mortos lhe vêm falar.
Vagam sombras, alta noite,
No castelo, à beira-mar.
122

NUM ÁLBUM

(do Ex.mo Sr. A. M. Cabral)

Que valem versos escritos


Sem o ardor da inspiração,
Sem que por céus infinitos
Esvoace o coração?
A poesia é só poesia
Quando eleva a fantasia
Às regiões do ideal;
Doutra sorte é apenas verso,
Som pelo vento disperso,
Murmúrio que pouco vale.

É por isso que apagada


Sentindo a chama sagrada,
Meu nome vou escrever:
Se é pobre, melhor escolha
Fazei volvendo esta folha,
E na seguinte ide ler.
123

O MOSTEIRO DA BATALHA

Pulsemos a lira, que além se levanta


Padrão de vitória que imenso reluz!
Um templo e altares à Mãe sacrossanta;
Um templo, um poema que altivo descanta
Grandezas da pátria nos átrios da cruz.

Grandezas da pátria quem traz à memória


Que o peito não sinta d'orgulho bater?
Pulsemos a lira! do livro da história
Volvamos as folhas, que a musa da glória
Em nuvens etéreas sentimos descer!

Eis já d'Aljubarrota nas campinas


Se encontram as hostes contendoras.
Daqui tremulam portuguesas quinas:
Dalém as castelhanas invasoras.
Daqui é João primeiro, cuja lança
A coroa defende e a pátria cara:
Dalém o estranho rei, pedindo a herança
Da princesa Beatriz que desposara.

Refulge o sol nas armas, os cavalos


Rincham fogosos, escarvando a terra;
Dum lado e doutro os chefes a intervalos
Correm as alas animando à guerra.
Pouco avultam as hostes portuguesas;
Tremendo é de Castela o poderio;
Mas quem à pátria negará proezas
D'alto valor, e generoso brio!

A véspera é do dia consagrado


À Assunção gloriosa de Maria;
Os olhos levantando, o rei soldado:
«Senhora, exclama, nosso esforço guia!
«Se vencermos, um templo majestoso
«Te erguerei sobre o campo de batalha!»
Diz, e esporeando seu corcel fogoso
Brios em todos com sua voz espalha.

Soam trombetas; o sinal é dado;


Flutuam soltos os pendões na frente:
– São Tiago! – brada o castelhano ousado;
– São Jorge e avante! – a portuguesa gente.
Rédeas soltando, os esquadrões galopam,
E dão em cheio com furor insano,
Como torrentes que no vale se topam,
124

Ou como as ondas no revolto oceano.

Retine o ferro, a multidão se agita;


As achas d'armas, os broquéis lampejam;
Peões, ginetes, com medonha grita,
Num mar de sangue em turbilhão pelejam.
O sol já desce a mergulhar no oceano,
E inda referve a encarniçada lida;
Eis redobra d'esforço o lusitano,
E o estrangeiro leva de vencida.

Foge o rei castelhano espavorido;


Fogem os seus em debandada solta;
Persegue-os João primeiro, e destemido
A gozar do triunfo ao campo volta.
Já se erigem troféus, já resplandece
O céu da pátria co fulgor da glória;
Faltava o monumento que dissesse:
– Foi aqui! eis o campo da vitória!

E ei-lo aí que se levanta


Com majestosa grandeza,
Daquela gentil proeza
Sublime recordação:
Fi-lo aí aos céus erguido,
Como um colosso gigante
Apontando ao caminhante
O sítio da grande acção.

Altos pórticos, lavores


D'ostentosa arquitectura,
Coruchéus d'imensa altura
Roçando a fronte nos céus;
Dentro, a nobre majestade
Do santuário profundo,
Onde, extinta a voz do mundo,
Só lembra o passado, e Deus.

Sobre os góticos pilares


Brilham trémulos fulgores,
Que das vidraças de cores
Entorna a mística luz.
Tudo cala, mas, se o órgão
Por entre as naves ressoa,
Tudo se anima, e apregoa
O santo Verbo da cruz.
125

Então a mente se enleva


Nas torrentes da harmonia
Que da abóbada vazia
Retumbam pela multidão;
E, abrasada nos fulgores
Dos vivos, sagrados lumes,
Sobre as asas dos perfumes
Revoa à etérea mansão.

Se tudo cai em silêncio,


Cai em si mesma, e medita,
Recordando a data escrita
Nesses góticos umbrais.
Pensa então nos heroísmos,
E crenças de meia idade,
Combatendo a escuridade
Daqueles tempos feudais;

Pensa nos vultos heróicos


Dos antigos cavaleiros,
E em nossos feitos guerreiros
Pela pátria e pela cruz;
Pensa na grande vitória
Que nos fez independentes,
E que aos olhos dos presentes
Nesse moimento reluz;

Pensa num povo pequeno


Mas esforçado e guerreiro,
Triunfando do estrangeiro
À voz do rei popular;
Pensa no mestre valente;
E sua sombra gigante
Parece às vezes distante
Entre as colunas vagar.

E pensa também no artista,


Nesse arquitecto inspirado,
Que um poema sublimado
Ali traçou a cinzel;
Que cego da luz dos olhos
Acendeu a luz do engenho,
E consumou seu empenho,
Ao grande assunto fiel.

E Afonso Domingues surge


Nesse padrão sobranceiro
Ao lado de João primeiro,
Seu imortal fundador;
126

Reis ambos: um pelo berço,


Que lhe deu sua nobreza:
Outro, rei pela grandeza
Do seu génio criador.

Lá dormem! um rodeado
Dos brasões da sua glória,
Como depois da vitória,
Sob a tenda a descansar;
Outro à sombra desses tectos
Em campa singela e nua,
Como querendo a obra sua
Dalém da tumba guardar.

E lá dormem também outros que a morte


Juntou à sombra do lugar sagrado,
D'infantes e de reis alta corte,
Servindo de cortejo ao rei soldado.

Reunidos enfim no chão funéreo,


Fernando, Pedro, e Henrique, os três infantes;
Henrique, o sábio audaz que outro hemisfério
Primeiro abriu aos lusos navegantes.

Duarte e João segundo descansando


D'altas vitórias na mansão tranquila;
Afonso quinto cos lauréis sonhando
D'Alcácer, Tânger, e da forte Arzila.

E no sopro do vento que perpassa,


E lhes roça nas frias sepulturas,
Parecem murmurar em voz escassa,
E agitar suas ferozes armaduras.

E lá quando o luar pelas janelas


Lhes escoa nas lápides marmóreas,
Talvez erguidos se recostam nelas
A falar entre si de nossas glórias.

Dormi em paz, ó chefes do passado,


Heróico fundador, prole valente;
Dormi em paz no túmulo calado,
Recordando os lauréis da vossa gente.

Enchei em roda os penetrais divinos


De vossos gloriosos esplendores;
E se tendes poder sobre os destinos,
127

Defendei-os do tempo e seus furores.

Que as gerações passando reverentes


Possam, volvendo as páginas da história,
Largas eras saudar, curvando as frentes,
Esse padrão d'imorredoira glória!
128

DESALENTO

Cansado, ai! já cansado, quando a vida


Em flor nascente desabrocha ao mundo!
Quando a esperança, d'ilusões vestida,
Sorri a todos num porvir jucundo!

Alma que gemes em letal quebranto,


Desprende as asas nos vergéis celestes!
Amor, glória, prazer, dai-me inda o encanto
Que nos dias passados já me destes!

Mas que é o amor da terra? luz divina


Que mal desce do céu logo se apaga;
Cândida rosa que o tufão inclina,
Que o tempo e a morte desfolhando esmaga.

Doces imagens que em ditoso enleio


Cerquei outrora d'ilusão infinda,
D que é feito de vós? ai! neste seio
Viveis apenas, se viveis ainda.

E tu, que és tu, ó glória? um som que passa,


E de século em século retumba,
Mas que a frígida lousa não traspassa
De quem já dorme na calada tumba.

Astro que brilha e queima, espectro ovante


Que a desgraça acompanha, e o génio ilude:
Vós o sabeis, Camões, e Tasso, e Dante,
Vós que gemeis ainda no ataúde.

Que é o gozo, o prazer? fumo d'incenso


Que embriaga um momento, e se evapora;
Que é o saber, a ciência? espaço imenso
Em que a verdade mal reluz na aurora.

Que é este mundo, que eu sonhei tão belo?


Profundo abismo de tormenta escura;
Que é pois a vida? um fadigoso anelo
Que levamos do berço à sepultura.

A morte! oh! se além dela o porto amigo


Nos surgisse afinal ledo e formoso!
Se nesses mundos da esperança abrigo
Despontasse outro sol mais bonançoso!

Mas quem sabe da morte? o ouvido atento


129

No silêncio das campas nada escuta;


E Sócrates não diz se um novo alento
Achou, bebendo a gélida cicuta.

Senhor, Senhor, por que vim eu ao mundo,


E qual é sobre a terra o meu destino,
De mim que homem geraste, e que fundo
Deste vale d'angústia erro sem tino?

Infeliz de quem nasce! a ave que gira,


A fera, o tronco, o verme que rasteja
Também nasceu, mas esse nada aspira,
Ou se aspirou alcança o que deseja.

E o homem nasce, pensa, e aspira ansioso


Às ilusões que a mente lhe depara,
E a cada passo lhe esmorece o gozo,
E acha só trevas onde luz sonhara.

E caminha, e caminha, e sem alento


Cai abismado no seu térreo leito,
Onde após a fadiga e o sofrimento
A lousa sepulcral lhe esmaga o peito.

Aqui, de dor um pélago profundo;


Além, os vermes da feral jazida;
Senhor, Senhor, por que vim eu ao mundo?
Por que do nada me chamaste à vida?
130

NUM ÁLBUM

(do Exº Sr. Gaspar de Queiroz)

Nossas lides findaram. Chega o dia


de deixar estas margens bonançosas,
onde colhemos as purpúreas rosas
da ciência, do amor, c da poesia.
Quem sabe, amigo, o que a fortuna ímpia,
nos guarda em suas ondas procelosas?...
apertemos as destras extremosas,
como quem um adeus eterno envia.
Errante, ou do teu lar no doce abrigo,
recorda-te daquele a quem o fado,
em serena amizade uniu contigo.
Lembrança desse tempo que é passado,
meu nome aqui te deixo: o teu, amigo,
dentro do coração levo gravado.
131

CONSOLAÇÃO

Quando nas trevas de minha alma aflita


A procela da dor mais se encapela,
E o desalento, a dúvida, e a descrença
Coas negras asas me escurece o dia,
A ti, ó Deus, a ti com mais esforço,
Através do infinito onde te escondes
Busco elevar-me, demandando auxílio;
E tu, Senhor, descendo a quem te chama,
Fulguras entre as sombras, e a tormenta
Que dentro d'alma rebramia fera,
Vai pouco e pouco serenando as iras.

Bem hajas! quem te procura


Jamais te procura em vão:
Tu desces, e a noite escura
Se volve em doce clarão;
Tu desces e a luz da esp'rança,
Como estrela de bonança,
Brilha no mar da aflição.

A vida é triste: no mundo


Sofremos até morrer;
Mas, Senhor, quem sonda a fundo
Mistérios do teu poder?
A vida é triste, mas breve;
E o futuro que se eleve,
Eterno, imenso há-de ser.

Mundos e mundos no espaço


Vão rolando à tua voz,
Presos em místico laço
Nesses jardins sobre nós;
E tudo canta à porfia
Aquela grande harmonia
Que ensinam teus anjos sós.

Tudo folga: só na terra


Há-de o homem padecer?
Acaso tão pouco encerra
Seu fado? não pode ser.
Se o homem foi obra tua,
Neste mar em que flutua
Há-de um porto enfim haver.
132

Bem hajas! a dor e o pranto


Vem de ti, do teu amor;
São crisol augusto e santo
Que nos apura em fulgor;
São a chama, o fogo intenso,
Que nos ergue como incenso,
E a teus pés nos vai depor.

Tu sabes porque sombria


Vaga a noite na amplidão,
Porque a terra se anuvia,
E ruge irado o tufão:
É que o dia segue a noite,
E das procelas no açoite
Se esconde a flórea estação.

Bem hajas, Senhor, bem hajas!


O teu poder nos conduz;
Se de luto um dia trajas,
Outro dia além reluz.
Neste giro sempiterno,
Vem o estio após o inverno,
E após as sombras a luz.

Bem hajas! feliz no mundo


Quem tua face entrevê,
E deste abismo profundo
Se ergue nas asas da fé!
Feliz quem sorrindo às vagas,
De olhos fitos sobre as plagas,
Espera, confia e crê!
133

O BUÇACO

Oh! salve, irmão do Líbano,


Que altivo ergues a fronte,
Monarca destas serras,
Senhor da solidão!
Salve, gigante cúpula,
Que ostentas no horizonte,
Erguida sobre as terras,
A cruz da Redenção!

Em teus agrestes píncaros


O homem vive e sente
Mais longe deste mundo,
Mais próximo dos céus:
Por isso, nos seus êxtases,
O monge penitente
Aqui meditabundo
Se erguia aos pés de Deus.

Por largo tempo o cântico


Do pobre cenobita
Soou na ermida rude
Da tua solidão:
Hoje o silêncio lúgubre
Somente nela habita,
Silêncio d'ataúde
Em fúnebre mansão.

Porém se os coros místicos


Findaram sua reza,
Se a voz do santo hossana
Em ti já feneceu;
Tu vives, e inda incólume
Ao Deus da natureza,
Calada a voz humana,
Descantas o hino teu.

Oh! como és belo, erguendo-te


À luz do novo dia,
Que os mantos de verdura
Te banha de fulgor!
Quando o gemer dos zéfiros,
Das aves a harmonia,
Acordam na espessura
Louvando o Criador!

Mas quanto mais esplêndido


134

Serás quando a tormenta,


Sublime, rugidora,
Em teu regaço cai!
Quando de mil relâmpagos
Teu cume se apresenta
C'roado, como outrora
O fulgido Sinai!

Quando os tufões indómitos,


Rugindo nas escarpas,
Se abraçam às torrentes
Com hórrido fragor!
Depois, em negro vórtice,
Desferem nas mil harpas
De teus cedros ingentes
Um cântico ao Senhor!

Tu és grandioso; o ânimo
Que a sós aqui medita
Recolhe altas imagens
De santa inspiração.
Oh! porque veio túrbida
A guerra atroz, maldita,
Soltar nestas paragens
As vozes do canhão?

Dum lado eram as bélicas


Hostes de Bonaparte;
Do outro heróico e ufano
O povo português:
A liberdade e a pátria,
Ergueu seu estandarte,
E a história do tirano
Contou mais um revés.

Tudo passou: sumiram-se


Vencidos, vencedores;
Té mesmo do gigante
Soou a hora fatal;
Só tu, sorrindo impávido
Do tempo e seus furores,
Inda ergues arrogante
Teu vulto colossal.

E cada vez que fulgido


Renasce o novo dia,
De nova luz te banhas,
Despindo os negros véus;
E dizes, em teu júbilo,
135

Ao sol que te alumia:


– O rei destas montanhas
Saúda o rei dos céus.

Depois, ao vê-lo pálido


Nas vagas do horizonte,
Pareces ao mar vasto
Dizer com altivez:
Em teu regaço, ó pélago,
Tu lhe sumiste a fronte:
Avança, que de rasto
Virás beijar-me os pés.
136

A FONTE DOS AMORES

Eis os sítios formosos, onde a triste


Nos dias d'ilusão viveu ditosa;
Eis a fonte serena, e os altos cedros
Que os segredos d'amor inda lhe guardam.
Oh! quantas vezes, solitária fonte,
Após longo vagar por esses campos
Do plácido Mondego, nestas margens
A namorada Inês veio assentar-se,
E ausente de seu bem carpir saudosa,
Aos montes e às ervinhas ensinando
O nome que no peito escrito tinha!
E quantas, quantas vezes no silêncio
Desta grata soidão viste os amantes,
Esquecidos do mundo e a sós felizes,
Nos êxtases da terra os céus gozando!

Pobre, infeliz Inês! breves passaram


Os teus dias d'amor e de ventura.
Ao régio moço o coração renderas,
E o que em todos é lei, em ti foi crime.
Eis do bárbaro pai, do rei severo,
Se arma a dextra feroz, ei-lo que aos sítios
Onde habitava amor conduz a morte.
Distante do teu bem, ao desamparo,
Ai! não pudeste conjurar-lhe as iras.
Debalde aos pés d'Afonso lacrimosa
Pediste compaixão; debalde em ânsias
Abraçando teus filhinhos inocentes,
Os filhos de seu filho, a natureza
Invocaste e a piedade: a voz dos ímpios,
Dos vis algozes, te abafou as queixas,
E o cego rei te abandonou aos monstros.
Ei-los a ti correndo, ei-los que surdos
Aos ais, aos rogos que tremendo soltas,
No palpitante seio cristalino,
Que tanto amou, oh bárbaros! os ferros,
Os duros ferros com furor embebem.
Prostrada, agonizante, os doces filhos
Por derradeira vez unes ao peito,
E de teu Pedro murmurando o nome,
Aos inocentes abraçada expiras.

Inda, infeliz Inês, inda saudosos


Estes sítios que amavas te pranteiam.
As aves do arvoredo, os ecos, brisas,
Parecem murmurar a infanda história;
137

Teu sangue tinge as pedras, e esta fonte,


A fonte dos amores, dos teus amores,
Como que em som queixoso inda repete
Às margens, e aos rochedos comovidos
Teu derradeiro, moribundo alento.
138

A UM TEATRO ACADÉMICO

Abrindo sepulcros, rasgando mistérios,


Quem mortos gelados levanta de pé?
Quem varre coas asas as cinzas d'impérios,
E os vultos heróicos anima, quem é?

Quem tira do nada uma forma divina?


Quem finge uma imagem de negro terror?
Quem ergue virtudes, e o crime fulmina?
Quem risos excita, quem prantos de dor?

– O génio do drama e o génio da cena! –


São eles que traçam, em véu d'ilusões,
D'Amor, de ciúme, de riso, e de pena
O jogo travado, falando às paixões.

São eles unidos que em chama inquieta


Sentiu Gil Vicente na fronte escaldar?
São eles que o bardo da terna Julieta,
E a fronte de Talma vieram c'roar.

São eles, mancebos, que em nuvens de flores


A senda apontaram que afoitos seguis,
De palmas e c'roas, de magos fulgores,
Mas senda d'espinhos; co génio condiz.

Em nobre fadiga, que os ócios despreza,


D'acerbos estudos assim descansais!
Foi belo o desígnio, difícil a empresa:
Quem logra nas artes repouso jamais?

Que importa? na luta se provam alentos,


Somente na luta se colhem lauréis;
Aos peitos ardentes, de glória sedentos,
Reluz a bonança por entre os parcéis.

Avante! e que o génio das artes potente


D fogo das artes vos possa trazer!
Que em cenas de prantos o pranto rebente,
Que em cenas alegres se goze o prazer.

As artes e as letras nasceram amigas:


Às aras das duas incensos levai,
E os louros colhidos em sábias fadigas,
Os louros do palco viçosos juntai!
139

NUM ÁLBUM

Do sofrimento o arcanjo lamentoso


Sobre a face do mundo estende o braço;
Um diadema ofertava, e pavoroso:
«Para o que mais sofreu!» gritou no espaço.

Eis logo imensa turba se atropela,


Todos querem ganhar a prenda infausta;
Mas nenhum dos que chegam por obtê-la
Mostrava a taça da amargura exausta.

«Afastai-vos!» lhes brada o génio esquivo,


«Nenhum tocou do sofrimento a meta:
«Tu, só tu mereceste o prémio altivo;
«Ergue a fronte, coroa-te, poeta!»
140

NO ÁLBUM

DO DR. MANUEL TEIXEIRA PINTO

Um nome é uma lembrança: neste mundo


De que servem lembranças e memórias?
Tudo se esvai no pélago profundo
Que sorve gerações, vidas e glórias.

Tudo se esvai na tumba regelada,


Tudo morre, afinal tudo se esquece,
E após o esquecimento resta o nada,
Como os espaços onde um som fenece.

Busquemos, já que tudo se consome,


Busquemos à memória um doce abrigo;
Eu só quisera soletrar meu nome
Gravado em mais dum coração amigo.

Porto – Agosto de 55.


141

JOSÉ JOAQUIM GOMES COELHO

Vinte anos! Ai, bem cedo arrebatado


O guardaste no seio, oh campa fria!
Flor passageira, sucumbiste ao fado,
E seus perfumes exalou num dia.

Quanta ilusão desfeita em seu transporte?


Sonhou glórias talvez, sonhou amores!
Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte,
Derramai-lhe na tumba algumas flores.
142

À MORTE
DO TALENTOSO JOVEM
HELIODORO AUGUSTO DE SOUSA

Passou por junto dele revoando


O arcanjo do Senhor:
Tocou-lhe com as asas perpassando,
E a vida lhe ceifou qual tenra flor!...

Poucos passos no mundo apenas dera...


Ai! mancebo, era ainda a primavera
Sua quadra louçã...
Ainda da existência os amargores
Os sorvia entre aromas, entre flores,
Da vida na manhã!

Porém na primavera eis arrebenta


O vulcão, e ao embate da tormenta,
Cai o lírio do vale:
Da vida na manhã eis soa a hora,
E a existência a sorrir inda na aurora
Cai ao brado fatal!

Oh! meu Deus, porque à morte assim condenas


A flor que o seio tímido abre apenas
Do sol ao resplendor!
Porque assim a desfolhas indiferente,
Remessando-a dos tempo na corrente,
Desbotada e sem cor?

É noite, na escura igreja


Vê-se passar um caixão...
Luz de tochas relampeja,
O sino brada: – oração!...
Eram tão negras as telas
Em que a chama dessas velas
Ia soturna expirar!...
Era tão negro o esquife,
Aquele triste recife
Em que se vai naufragar!...

Quem vinha na fria tumba?


Por quem era o funeral?
O brado que além retumba
Com estridor sepulcral?
1: que há pouco ainda havia
143

Um coração que batia


Em Juvenil pulsação.
Havia um peito que amava,
Uma fronte que pensava
E que gelados estão...

Ai, dessa tão curta vida


Toda esp'rança e juventude
Que restava? – uma jazida
Nas tábuas dum ataúde...
Restava uma mão gelada,
Uma face descorada
Como o mármore duma cruz...
Restava uma testa fria,
Um seio que não batia,
Uns olhos mortos à luz!

Mas já cessara o memento...


Tudo na igreja calou...
Eis que um triste saimento
Dali a tumba levou...
Aonde? – ao leito gelado...
Porém que importa o finado,
E onde o foram conduzir
Que te importa a ti, ó mundo
Com esse sono profundo
Que o cadáver foi dormir?...

Mas o sino lá na torre


Sempre – Morte! – a retumbar
E o brado que ao longe morre
O cadáver a chamar...
O luar no cemitério
Brilhava com tal mistério!...
Com tão sinistro fulgor!
A terra estava tão fria!
O mocho que lá carpia,
Inspirava tanto horror!

E em mim recolhido
Pensei no coitado,
Ao mundo trazido
Pra ser já ceifado
Tão cedo em botão...
E a fronte pendida,
No peito caída,
E os olhos no chão,
Meus lábios tremeram...
O que eles disseram,
144

Oh! não sei eu, não!...


Nem sei se rezei,
Se ali blasfemei...

Perdão. Perdão, meu Deus, tu és imenso...


Tu recolhes nos céus o sacro incenso,
Deixando à terra a cinza sem valor:
À terra deixas vir noite sombria,
Mas logo no oriente o novo dia
Lá mostras em fulgor!

Que vale, Senhor, a morte, quando a alma


Voa a ti, qual incenso, roto o véu?
Que vale da tumba a noite, quando a palma
Tu lhe of'reces da aurora lá do céu?

Silêncio, pois, homem, silêncio, não murmures,


Sondar os seus mistérios não procures,
Curva a fronte no chão!
Quem põe freio de bronze ao mar irado,
Quem povoa do mundo cum só brado
Dos céus a imensidão?

Quem só com leve aceno a terra abala,


Quem cerce pla raiz cum sopro estala
O cedro secular,
Acaso sobre o chão, livre e sem custo,
Não pode derribar o pobre arbusto
Que fizera também do chão brotar?

Feliz tu que buscaste um asilo


Entre os coros dos anjos no céu;
Que sorris desse porto tranquilo
Ao furor do mundano escarcéu.

Qual a pomba do arroio à beira,


Mal a onda acabou de tocar,
Parte logo voando ligeira
Doces brisas no céu a aspirar.

Assim tu, assim tu peregrino


Cá na terra onde o génio é cruz,
Procurando o teu foco divino
Revoaste à origem da luz.
145

Não tardou que aos irmãos que choravas


Lá te foste no céu confundir
E que aos entes que tanto amavas
Para sempre te fosses unir...

Oh! que hinos de maga doçura,


Oh! que hossanas celestes d'amor,
Num abraço de meiga ternura
Se elevaram de vós ao Senhor!

Mas se ainda em presença do Eterno


Entre os gozos é dado chorar,
Oh! dizei, no amplexo fraterno
Não sentistes o pranto assomar?

Um suspiro, uma prece piedosa


Não roçou vossos lábios também,
Ao pensar que deixastes saudosa
A gemer solitária uma mãe?

Oh! mas esse suspiro profundo,


Como prece ao Eterno se ergueu...
O que importa deixá-la no mundo
Se por ela rogais lá no céu!
146

VISÃO DO RESGATE

Ao meu amigo Alexandre Braga.

E eu achei-me assentado solitário


Junto dum grande mar triste e sombrio,
Cujas ondas d'aspecto funerário
Se agitavam, qual trémulo sudário
Sobre um cadáver macilento e frio.

E eu era triste! sepulcrais gemidos


Me vinham dessas ondas tormentosas;
Seu fragor penetrava em meus ouvidos,
Como o arfar de mil peitos oprimidos
Em duros transes d'aflições penosas.

E por cima na abóbada do mundo


Um véu de nuvens se estendia baço;
Rebramava o trovão rouco e profundo,
E o mar respondia gemebundo,
E a tristeza reinava em todo o espaço.

E um suor frio me escorreu na fronte,


Como o orvalho na cruz dum cemitério;
E cie meus prantos desatou-se a fonte,
E pedi ao Senhor que do horizonte
Me tirasse esta nuvem do mistério.

E o Senhor deu ouvidos a meu rogo,


Pois vi descer a mim do firmamento
Um facho ardente de celeste fogo,
Que as trevas de meus olhos varreu logo,
Qual varre as nuvens num tufão violento.

E eu vi tudo! esse mar de ondas sombrias


Era um mar de nações que se agitava;
E eu conheci que em leito d'agonias,
Chorando em vão seus miserandos dias,
Aquela multidão gemia escrava.

Ali fraco de pavor transido


Arrastava grilhões aos pés do forte;
O perverso ostentava o rosto erguido,
E o justo era qual pombo foragido
Que nas garras do açor encontra a morte.

O mendigo nos átrios do opulento


Pedia amparo e maldições colhia;
147

O filho do trabalho, sem alento,


Comprava o escasso pão ao avarento
A troco dos andrajos que despia.

E entre as garras da fome devorante


O mancebo lutava enfraquecido,
O velho desmaiava agonizante,
E a mãe sem forças apertava o infante
Ao peito como a urze ressequido.

E um espectro medonho e ensanguentado


Por entre aqueles povos divagava,
Brandindo um ferro com medonho brado;
E o chão que ele pisava era abismado
Como em torrentes d'incendida lava.

É que esses povos, como iradas feras,


Ao seu brado feroz se levantavam:
E a matança era tanta, que disseras
Ver um circo de hienas e panteras
Que entre as garras cruéis se espedaçavam.

E no meio de tudo em alto monte


Se erguia um trono de rubins acesos,
No qual um anjo, coroada a fronte,
Dominava soberbo esse horizonte
De povos algemados e indefesos.

E no semblante desse arcanjo ardente


O dedo do Senhor estava escrito;
E eu pude ler-lhe na sombria frente,
Gravadas em caracter refulgente,
As sinistras palavras: – sê maldito!

E outro arcanjo de negras armaduras


De joelhos aos pés se inclinava;
E, infausto mensageiro d'amarguras,
Na sinistra empunhava algemas duras,
Na dextra férrea urna sustentava.

E ofertando-lhe a urna com respeito,


Lhe dizia com voz assustadora:
«Anjo do mal, que o homem tens sujeito,
«Neste vaso de dor recebe o preito
«Das lágrimas cruéis que o mundo chora.

«Eis o penhor fiel que a tirania


«Por mim, seu anjo, te conduz às plantas.
«Os humanos resistem noite e dia,
148

«Mas o laço do amor não concilia


«As suas turbas, que feroz suplantas.

«Mal haja o Cristo, que o amor ensina!


«Seu vil reinado sucumbiu na terra.
«Triunfa, anjo do mal, reina e domina,
«E mil flagelos às nações fulmina,
«De crime, divisões, de luto e guerra!»

E o arcanjo brandindo seu ceptro ardente,


Sorria com feroz perversidade:
E ao longe murmurava um som fremente
Como o rugido dum vulcão latente,
Ou a voz de longínqua tempestade.

E eu cedi ao vaivém de minhas mágoas,


Como ao sopro do vento a frágil hera,
Té que uma voz, como a das grandes águas,
De minhas penas abrandando as fráguas,
Me bradou aos ouvidos: – crê e espera!

E súbito uma aurora


Serena, refulgente,
Das trevas do oriente
Desfez os negros véus;
Lavrou, como um incêndio,
Nas sombras horrorosas,
E alfim cobriu de rosas
A cúpula dos céus.

E um astro despontando
Na franja do horizonte,
Alçou a meiga fronte
Coberta d'áurea luz:
Sobre ele campeando
Cercada d'alta glória,
Promessa de vitória,
Brilhava a eterna cruz.

E logo ardente nuvem,


Relâmpago soltando,
Baixou do céu, voando
No carro dos trovões;
Bem como de trombeta
Soltava estranho acento,
E prestes como o vento
Rolou sobre as nações.
149

E nela a glória imensa


Do Deus que o mundo adora
Brilhava como outrora
No topo do Sinai;
E o grito da trombeta
Dizia em som de guerra:
– Surgi, povos da terra,
Num só vos ajuntai! –

E o trono do mau anjo


Tremeu nos fundamentos,
E eu vi passar nos ventos
O espírito de Deus;
Seu brado erguia aos povos,
Bem como a tempestade
Do mar na imensidade
Levanta os escarcéus.

E as turbas procelosas remoinharam


Como as areias que o tufão agita:
E alçando todas pavorosa grita,
Com laços fraternais se coligaram.

E enquanto erguiam seus pendões de guerra


Eis que as asas batendo nas alturas,
Cingidos de brilhantes armaduras,
Dois arcanjos pairaram sobre a terra.

Cobriam-lhes as formas delicadas


Escudos e couraças diamantinas,
Áureos elmos as frontes peregrinas,
Nas dextras empunhando ígneas espadas.

E eu vi-os, como sóis relampejantes,


Adejarem velozes sobre a terra,
Brandindo irados, em sinal de guerra,
As terríveis espadas flamejantes.

Té que chegado o instante do resgate,


Fitando os povos que os olhavam mudos,
Bateram coas espadas nos escudos,
Bradando às multidões: – cia ao combate!

E os povos ao brado,
150

Qual mar agitado


Fervendo em cachões,
Erguiam-se fortes
Em densas cortes,
Em mil turbilhões;
E à guerra corriam,
E feros bramiam
Quais feros leões.

Corriam, chegaram,
E o trono cercaram
Do anjo do mal;
Mas ele! – maldito! –
Das lutas o grito
Soltara fatal;
Na mão, qual espectro,
Luzia-lhe um ceptro
De lume infernal.

Com fúria sombria,


Da vil tirania
Ao anjo acenou,
E o pronto ministro
Seu mando sinistro
Fiel aceitou;
E eis rápido logo
As armas de fogo
Medonhas tomou.

E enormes serpentes
Vermelhas, ardentes,
Soltou pelo chão;
Das férreas escamas
Saíam-lhe chamas
De torvo clarão;
Cada uma nos povos
Saltava em corcovos
D'horrenda visão.

Os povos, que as viam,


Debalde investiam
Seus giros mortais:
Cruéis labaredas
Abriam veredas
Às serpes fatais;
E a turba d'exangue
Caía do sangue
Nos rios caudais.
151

Mas nisto ligeiros


Os anjos guerreiros,
No ar inda então,
Baixaram luzentes,
Quais astros cadentes,
À térrea mansão;
E aos anjos malvados
Correram irados
Com voz de trovão.

E todos, alçadas
As ígneas espadas
Brandiam a par;
Cada uma semelha
Luzente centelha
Cruzando no ar;
Semelha no embate
A onda que bate
Na rocha do mar.

Seus olhos vibravam,


Seus gritos soavam
Em ecos d'horror;
As turbas rugiam,
As armas tiniam
Com novo rancor:
O carro da guerra
Rolava na terra
Com torvo fragor.

Até que um ribombo


Soou, como tombo
Ruidoso e fatal
De penha que d'alto
Desaba, e dum salto
Retumba no vale:
Era alto ruído
Do trono abatido
Do génio do mal.

E logo infinitos
Ouvi ledos gritos,
E ouvi maldições;
E soltos aos ventos
Vi centos e centos
D'ovantes pendões;
Vi feitos pedaços
Algemas, e laços
E férreos grilhões.
152

Vi tronos caídos
Vi ceptros partidos
Rolarem no pó;
Vi áureos emblemas,
Vi mil diademas
Calcados sem dó;
Vi povos diversos
Outrora dispersos,
Unidos num só.

Vi a terra já livre d'ansiedade


Rasgar altiva seu funéreo manto;
Vi os homens à voz da liberdade
Surgirem fortes do letal quebranto.

Vi-os, tecendo fraternais abraços,


Sem ódios, sem rancor, e sem vinganças
Estreitarem d'amor serenos laços,
Unidos em sublimes alianças.

E eu louvei o Senhor! já não reinava


O anjo do mal coa tirania fera:
Seu trono demolido semelhava
D'apagado vulcão torva cratera.

Coberto de mantos de pura safira


Que dia tão ledo brilhava sem véus!
A estrela formosa que aos homens surgira
Reinava em triunfo no campo dos céus.

Seu facho divino cercado de rosas


Vertia no mundo torrentes de luz,
E o mundo coberto de galas formosas
Saudava nesse astro do Gólgota a cruz.

Dos vales, dos montes, da terra, e dos mares,


Saíam murmúrios de paz e d'amor,
Coa voz dos humanos soando nos ares
Em cantos infindos d'infindo louvor.

Batendo serenos as asas douradas,


Os anjos formosos pairavam no céu,
Qual nítido bando de pombas nevadas
Cruzando os espaços num dia sem véu.

Nem elmos agora, nem malhas luzentes


153

Cobriam dos anjos as formas gentis:


De branco trajados, seus véus inocentes
Ondeavam tremendo nas auras subtis.

Caíam-lhe soltos os longos cabelos


No colo, nos ombros d'alvura louçã,
Seus rostos ornando, mais puros, mais belos
Que a estrela argentina da rósea manhã.

Traziam pousadas nas cândidas frentes


Grinaldas singelas de casta cecém,
E as harpas ebúrneas tangiam cadentes,
C'roadas de rosas e lírios também.

Um coro celeste voando em cardumes


Seguia os arcanjos com doces canções;
E todos lançando na terra perfumes
Assim descantavam por sobre as nações;

O ARCANJO DO CRISTIANISMO

Salve, dia que meigo fulguras,


Despontando no mundo sem véu!
Salve, estrela d'amor e de venturas,
Que ressurges formosa no céu!

Pura e bela surgiras outrora,


Densa névoa cobria tua luz;
Pura e bela ressurges agora,
Vem reinar sobre os homens, ó cruz!

Vem remi-los da negra maldade,


Vem na face do mundo luzir;
Vem trazer-lhes a luz da verdade,
Que o Messias lançou no porvir!

Era um anjo das trevas maldito


Quem do mundo regia as nações;
Foi o Verbo, o Messias predito,
Que desceu a partir seus grilhões.

Novas crenças brotando dos lábios


Revelou em seu Pai um Deus só,
E, caladas as vozes dos sábios,
Falsos deuses caíram no pó.

Viu as gentes sepultas no crime,


E eis que armado d'augusta missão
154

Deu lições de virtude sublime,


D'inocência, d'amor e perdão.

Ensinou a brandura ao tirano


Ao soberbo dos justos a lei;
Ao avaro bradou: – sê humano!
E ao perverso e ao ímpio: – tremei!

Deu ao fraco palavras de vida,


Deu ao triste consolos na dor,
Deu a todos a esp'rança perdida
D'outro reino de paz e d'amor.

E cumprindo do mundo a sentença


No tormento da cruz expirou;
Mas com sangue dum Deus sua crença
Sobre a terra gravada ficou.

Do Calvário, librado nas penas,


A mil povos com ela voei;
Mil coroas teci d'açucenas,
Com que tantos martírios ornei.

Foi então... dá-me queixas, ó lira,


Dá-me notas de fundo pesar...
Cristo, ó Cristo, a calúnia, a mentira,
Ai! ousaram teu Verbo ultrajar.

Teus ministros, sem fé na verdade,


Renegaram da santa missão,
E entregaram a lei da igualdade
Aos tiranos, à voz da ambição.

Logo o facho sangrento da guerra


Acenderam com ímpio furor,
E em teu nome cobriram a terra
D'extermínio, de sangue e d'horror.

D'ouro e sangue mantendo seus vícios


Teus preceitos calcaram no pó;
E mil cenas de horrendos suplícios
Ostentaram ao mundo sem dó.

Então eu à celeste morada


D'entre os homens voando subi,
E a teus pés com a fronte curvada
Largas eras, ó Cristo, gemi.

Mas das trevas não pôde o combate


155

Apagar o teu astro de luz:


Aos cativos, sinal do resgate,
Ei-lo surge brilhante na cruz.

Povos, povos, secai vosso pranto!


Levantai-vos do leito da dor!
Terra, entoa de novo o teu canto,
Doce canto de paz e d'amor!

Da maldade, dos ódios, da guerra,


Para sempre o reinado morreu.
Paz aos homens na face da terra!
Glória a Deus nas alturas do céu!

CORO DOS ANJOS

Hossana! hossana! sinal de vitória,


A cruz do resgate já brilha às nações:
Hossana! e se eleva nos cantos de glória
Dos anjos, dos homens, de mil gerações!

O ARCANJO DA LIBERDADE.

Bem-vindo sejas, bonançoso dia,


Que ao mundo trazes a perdida luz!
Bem-vindo sejas! teu fulgor lhe envia
No facho eterno que as nações conduz!

Assim de galas e esplendor vestida


À voz do Eterno a criação rompeu;
E a liberdade se ligou à vida,
No mar, na terra, na amplidão do céu.

– Vivei, sois livres, caminhai avante! –


O Eterno disse, e me entregou a lei:
Seu dedo a terra me apontou distante,
E eu das alturas com prazer baixei.

E a lei dos mundos vim gravar na selva,


No leão das brenhas, e no açor do ar,
No cedro altivo, na modesta relva,
Nas bravas ondas do revolto mar.

No ser humano, d'entre os mais aceito,


Gravei mais fundo o universal condão,
E d'entre as asas lhe verti no peito
Viva centelha d'imortal clarão.
156

Então, qual fumo d'abrasado incenso,


Voou da terra festival louvor;
E a natureza no seu giro imenso,
Pulsou de vida, liberdade e amor.

Mas ai! que o homem de seus dons celestes


No altar dos vícios holocausto fez:
Rasgou impuro da inocência as vestes,
Calcou tirano seus irmãos aos pés.

Tomando o ferro de cruel verdugo,


Fartou com sangue mil cruéis paixões;
Impôs ao fraco seu tirano jugo,
E o fraco às plantas lhe arrastou grilhões.

Então a terra suspendeu seus hinos,


A luz do dia se turvou no céu,
E esta harpa triste, nos umbrais divinos,
Aos pés do Eterno desde então gemeu.

De negras sombras se toldara o mundo,


Mas eis que os tempos eram findos já;
Eis que uma estrela de fulgor jucundo,
Sorrindo à terra, alumiou Judá.

Em vão; só hoje triunfar devia


Esse astro imenso de serena luz:
Eis surge, eis surge do resgate o dia,
Brilhando aos homens sobre a eterna cruz.

Povos, sois livres, enxugai o pranto!


Do leito amargo do penar surgir!
Terra, modula teu festivo canto,
Que o novo dia já reluz em ti!

Dum Deus o sangue resgatou a afronta:


Quebrai a taça da agonia e dor!
Novo porvir às gerações desponta
De liberdade, de ventura e amor.

Eterna glória ao que desceu à terra!


Eterna glória do universo ao Rei!
Que o fraco exalta, que o soberbo aterra,
Que impõe aos orbes e às nações a lei!

CORO DOS ANJOS


157

Hossana! hossana! seu nome infinito


Refulge de glória, qual astro seu véu,
Na luz da verdade, no Verbo predito,
No mar, nos abismos, na terra, e no céu!

E subindo através do espaço imenso


O coro – hossana, hossana – repetia
Entre nuvens d'azul, d'ouro, e d'incenso,
E entre notas d'angélica harmonia.

Entanto eu com a face unida à terra


Do novo dia o resplendor saudava,
E sobre o campo da passada guerra
Ao Senhor dos exércitos orava.
158

AO PORTO

Doce pátria que amo tanto,


Onde a luz primeira vi,
Erga-se hoje a ti meu canto,
Pois que em teu seio nasci.
Foi a tua heroicidade
Quem me inspirou, ó cidade:
– Atleta da liberdade,
Voem meus versos a ti!

Pelo clarim das batalhas


Vou modular a canção...
Dizem guerra essas muralhas
Que cingem teu morrião:
A teus pés di-lo o rugido
Desse Douro embravecido,
Entre penhas escondido
Rugindo como o leão.

Guerreiro e livre, uma serra,


Quiseste pra te encostar;
A águia não quer a terra,
Quer as penhas, quer o ar:
Do oceano junto às plagas
Quiseste um leito de fragas,
Donde além visses as vagas
Correndo livres no mar...

Que insofrido como as ondas


A natureza te fez;
A pátria d'Epaminondas
Foi menos livre talvez...
Erga-se o véu do passado:
Em combates empenhado,
Sempre lá te vejo ousado
Campear com altivez.

Mas a glória do presente


Foi maior que essa d'então;
Hoje abriu-se ao combatente
Doutra arena a vastidão;
Que se à pátria inda n'aurora,
Tinhas dado o nome outrora,
Coa lança a remiste agora
Dos ferros da escravidão.

Jazia a triste arquejante,


159

Ninguém dela tinha dó...


O seu rei fora distante;
Seu rei a deixará só...
Mas tu calaste a viseira,
Tu bradaste, e a Europa inteira
Viu à tua voz guerreira
Portugal surgir do pó.

Que valeu? – correram anos...


Jaz aos pés calcada a lei;
Pesa o jugo dos tiranos
No colo da pobre grei...
Que negro porvir tão triste!
Liberdade, sucumbiste...
Mas o forte ainda existe;
Ei-lo que se ergue – tremei!

Lá não tendes vis escravos


Que saibam rojar grilhões:
Os ferros daqueles bravos
São espadas e canhões...
Pararam na marcha sua?
Também a vaga recua,
Mas depois à praia nua
Arroja cem galeões.

Pararam... porque o martírio


É preciso inda afrontar,
Que das crenças o alvo lírio
Do sangue deve brotar.
Pararam... agora, avante!
Surja o cutelo brilhante,
Que o mártir estende ovante
O colo sem vacilar...

Raiou o dia do pranto,


Ó nova Jerusalém...
Não vês trajar negro manto
A liberdade também?...
Não vês... não vês decepadas
Cabeças ensanguentadas,
Palpitando desgrenhadas
Nos postes aqui e além?...

Mas não tarda do desterro


Quem há-de o mártir vingar:
Dos livres já brilha o ferro
Por entre as ondas do mar.
Enxuga teu pranto ardente,
160

Que nas vagas do ocidente


Já do exército valente
Descubro as naus a alvejar.

Ei-los correndo a teus braços


Muros adentro já são;
Das masmorras em pedaços
Estala o férreo portão.
Ei-los à praça chegados...
Os cadafalsos alçados
Por mil ombros derrubados
Caem prostrados no chão.

No regaço da cidade
Que espectáculo não vai!
Do longo exílio a saudade
Em beijos d'amor se esvai.
Findara a ausência amargosa,
Tudo sorri, tudo goza,
O esposo abraça a esposa,
Abraça o filho seu pai.

Foi prazer dum só momento,


Prazer que aos contrários dói...
Eis corre um bando sedento
De ver se o Porto destrói.
Mas não treme o sitiado;
Guerra! guerra! – eis o seu brado,
Cada livre é um soldado,
Cada soldado um herói.

Rufa o tambor a rebate


Retreme a voz do clarim...
Eia, ó livres, ao combate
Que hoje é dia de festim.
Querem morte? – reine a morte!
Que importam filhos, consorte?
Triunfar é vosso norte,
Heis de alcançá-lo por fim.

Por entre a fuzilaria


Restruge a voz do canhão;
O fogo da artilharia
Faz do reduto um vulcão.
Vós que tentais no estrago
Sumir a nova Cartago,
Vinde de sangue num lago
Rojar as fúrias em vão!
161

E tu, soldado atrevido,


Vencedor da forte Argel,
À tirania vendido,
À liberdade rebel,
Contra os muros da cercada,
Ergueste feroz a espada;
Procura-a no chão quebrada
Onde jaz com teu laurel...

Ó cidade, nos teus valos


Quantos viste o pó morder,
E sob os pés dos cavalos
Seus tiranos maldizer!..
Debalde as hostes escravas
Bramiam quais ondas bravas,
Tu sorrindo as afrontavas
Qual rochedo, sem tremer.

Debalde vinha a granada


Teu seio despedaçar,
Cada pedra ensanguentada
Era à glória um novo altar.
A fome, a pálida fome
Tuas entranhas consome,
Mas q'rias d'invicta o nome
Tudo soubeste afrontar.

Té que afinal a vitória


Teu estandarte empunhou,
E o caminho para a glória
Aos teus livres apontou...
Eram águias altaneiras
Voando, suas bandeiras;
Ante essas hostes guerreiras
Tudo o joelho curvou,

Largo tempo era passado


E num leito de broquéis
Descansavas reclinado
À sombra dos teus lauréis...
Mas eis no Tejo distante
A liberdade arquejante...
Ergue-te, ergue-te, ó gigante,
Com teus soldados fiéis.

Cingiu as suas muralhas...


Vinde deitar-lhe grilhões
Ao colosso das batalhas
Eriçado de canhões.
162

Glória à tua valentia,


Escolho da tirania,
Para conter-te a ousadia
Mal bastaram três nações.

Cederas... por toda a parte


No meio de sangue e horror,
Cai dos livres o estandarte
«s plantas do vencedor...
Que vista! – o herói de Novara
Que a pátria n'alma abrigara
Hoje busca, e não depara
Um abrigo à sua dor...

Vem, altivo e nobre cedro


Derribado sobre o chão,
Junto ao coração de Pedro
Asilar teu coração...
Nesses muros inda o brado
Se escuta do rei soldado;
Vem ouvi-lo, ó malfadado,
Do desterro na soidão...

Veio... mas enfim à morte


O herói ali cedeu...
Ali nas cinzas do forte
Um povo carpiu, gemeu...
Eras escrava, ó cidade;
Foi teu pranto de saudade
Um hino que à liberdade
Dentre as algemas se ergueu.

Eras escravo, ó guerreiro


Surgirás inda outra vez?
Nos ferros do cativeiro
Acabaremos? – talvez!...
Oh! mas não! – se a forte lança
Inda ao lado lhe descansa
Tiranos, vossa esperança
Jaz para sempre a seus pés.

Dizei que somos escravos.


Que hemos de ter perros vis:
Nesses muros inda há bravos
Para bradar-vos – mentis!
Inda existes, ó gigante,
Sempre indómito e possante,
Para calcar triunfante
Grilhões e jugos servis...
163

Se aos golpes da tirania


Vires tremer Portugal,
À sua voz d'agonia
Surge outra vez colossal!
Do teu peito dá-lhe o abrigo,
Defende-o, salva-o contigo,
Ou no pó do seu jazigo
Dorme o teu sono final.
164

VERSÕES DE H. HAINE

Quero enterrar os meus cantos,


Os meus sonhos de tristeza;
Ide buscar-me um esquife,
Mas d'espantosa grandeza;

Um esquife em que se guarde


O que em muitos não se albergue,
Que seja mais largo ainda
Do que o tonel de Heidelberg.

Que seja de tábuas firmes


E duma extensão imensa;
De mais comprimento ainda
Do que a ponte de Mayença.

E venham doze gigantes


Que façam julgar pequeno
O vulto de São Cristóvão
De Colónia, sobre o Reno.

Pois têm de levar o esquife


Ao mar que a terra nos banha;
Um caixão de tal grandeza
Pede uma cova tamanha.

Sabeis para que preciso


Esquife de tal largura?
Para encerrar dentro dele
Meu amor e desventura.

II

Quando ao sepulcro desceres


Eu contigo descerei;
E ao meu peito hei-de apertar-te
Ó tu a quem tanto amei.

Hei-de apertar-te em meus braços,


Muda, fria e já sem cor,
Estremecer, invocar-te
E depois morrer d'amor.

À meia-noite os espectros
165

Para as danças surgirão:


Nós ficaremos unidos
Sem quebrar nossa união.

No dia do julgamento
A trombeta há-de soar;
Mas nós para sempre unidos
Nada havemos d'escutar.

III

Se as florinhas da campina
Soubessem o meu penar,
Em minha chaga verteram
Seu bálsamo salutar.
Se os rouxinóis do arvoredo
Conhecessem minha dor,
Cantavam por distrair-me
Suas cantigas d'amor.
Se ao longe, as estrelas d'ouro
Notassem minha aflição,
O firmamento deixaram
Por dar-me consolação.
Mas nada sabem as flores,
Aves, nem astros do céu;
Ela só conhece tudo,
Aquela que me perdeu.
166

VERSÕES D'OSSIAN

AO SOL

(fragmento do poema de «Carthon»)

Ó tu que rolas nesse campo etéreo,


Semelhante ao broquel dos meus passados,
Donde vêm os teus raios, sol brilhante?
Donde recebes tua luz eterna?
Tu despontas solene e majestoso;
As estrelas se escondem quando passas,
A lua fria e pálida mergulha
Nas vagas do ocidente; e tu caminhas
Solitário nos céus. Quem na carreira
Te pode acompanhar? Os altos robles
Baqueiam das montanhas, e elas mesmas
Sob o peso dos anos se arruínam;
O oceano ora se eleva, ora se abaixa;
A própria lua na amplidão fenece:
Só tu caminhas sempre, e sempre o mesmo,
E de tanto fulgor te vanglorias!
Quando a borrasca entenebrece o mundo,
Quando rolam trovões, e adeja o raio,
Tu olhas dentre as nuvens sobranceiro,
E sorris da tormenta! Mas debalde
Olhando Ossian procuras, que os teus raios
Ossian não mais verá, quer teus cabelos
Em nuvens orientais flamejem soltos,
Quer descendo os espaços estremeças
Às portas do ocidente. Sol, um dia
Talvez como eu serás; talvez, quem sabe?
Dos anos teus acabarás o giro,
E insensível à voz da madrugada,
Em tuas nuvens ficarás dormindo.
Mas folga, folga entanto majestoso
No verdor de teus anos: a velhice
É solitária e triste; é semelhante
Ao clarão melancólico da lua
Quando brilha entre nuvens, quando o norte
Revoa na planície, e o caminhante
Pára convulso e de pavor transido.

COLMA

(fragmento dos cantos de Selma)


167

Era em Selma e nas festas. Começava


Dos bardos o cantar: eis se adianta
D'olhos fitos no chão, banhada em pranto,
A doce, a amável Minona. Os cabelos
Lhe ondeavam soltos ao soprar da brisa
Que vinha das montanhas.
As almas dos heróis se enterneceram
Mal que as primeiras notas
De seu canto dulcíssimo soaram.
Muitas vezes o túmulo de Sálgar,
E o túmulo de Colma tinham visto,
Da triste Colma abandonada às queixas,
Na colina deserta. Um dia Sálgar
Prometera de vir e não viera:
Em torno dela já descia a noite:
Ouvi da triste Colma
A queixa solitária:

«É noite! sozinha no monte elevado


«Dos ventos ruidosos escuto o bramir...
«Sombria a torrente sussurra a meu lado...
«Em triste abandono me é doce carpir.
«Descobre-te, ó lua, refulge brilhante!
«Estrelas formosas, mostrai-vos também!
«Guiai os meus passos ao sítio distante,
«Onde ora cansado repousa o meu bem!

«Ó Sálgar, ó chefe dos montes valente,


«Quebraste a promessa que em balde te ouvi...
«D tronco, os rochedos, a voz da torrente
«São estes, ó Sálgar, mas faltas aqui...
«Deixei por seguir-te na dor abismados
«O irmão que estremeço, meu pai que olvidei:
«São velhos os ódios dos nossos passados,
«Mas eu, ó meu Sálgar, jamais te odiei.

«A lua calada fulgura na selva,


«Nas águas, nas rochas, com doce clarão...
«Quem jaz em distância dormindo na selva
«És tu, ó meu Sálgar? és tu, meu irmão?
«Falai, meus amigos: imóveis, deitados,
«Porque inda em silêncio me não respondeis?
«Ai mortos! ai mortos! em sangue banhados!
«E tintos de sangue seus ferros cruéis!

«Mataste, ó meu Sálgar, o irmão de minha alma!


«E tu, doce amigo, tu jazes também!
«Perdi-vos; só resta chorar-vos sem calma...
«Como eu vos amava não ama ninguém.
168

«Tu eras formoso nas tuas colinas:


«Ele era terrível das lutas no ardor.
«Quem vossas espadas guiou assassinas?
«Quem pôde inspirar-vos da morte o furor?

«Mas, ai! já não ouvem meus longos gemidos...


«Na terra gelada gelados estão...
«Falai dentre as nuvens, fantasmas queridos,
«Que as vossas palavras medonhas não são!
«No monte sombrio que além se divisa,
«Dizei-me a caverna que triste habitais!...
«Calados! calados! nem sopro da brisa,
«Nem voz de tormenta me traz os seus ais!

«Sentada no monte, cos olhos absortos,


«Espero chorando do dia o raiar.
«Erguei-lhes as tumbas, amigos dos mortos,
«E nelas a Colma guardai um lugar!
«Passou de meus dias o sonho tão ledo,
«Passou para sempre! não mais viverei...
«Ao pé da torrente que banha o rochedo,
«Oh! dai-me o repouso daqueles que amei!

«De noite, na serra batida dos ventos,


«Meu triste fantasma de pé surgirá;
«E ao som da rajada soltando lamentos,
«No meio das nuvens gemendo errará.
«Ao longe o viandante nos bosques perdido
«Ouvindo-lhe as queixas terá compaixão;
«As queixas, o pranto de Colma sentido
«Chorando os amigos que mortos já são.»

Tal foi, tal foi, ó Minona, o teu canto,


Doce filha de Tórman. Tristes eram
Nossas almas por Colma, e em nossas faces
Deslizavam as lágrimas em fio.

FINGAL

(CANTO PRIMEIRO)

Assentado de Tura junto aos muros


Estava Cuthullin, perto do tronco
De folhas rumorosas. Tinha a lança
Encostada ao rochedo, e aos pés o escudo.
No poderoso Cárbar meditava,
Nesse herói que vencera: eis lhe aparece
Nóran, filho de Fithil, sentinela
169

Do proceloso oceano. «Ergue-te», disse,


«Ergue-te, ó Cuthullin! Eu vi ao largo
«Os navios do norte. Numerosos
«Os inimigos são; muitos os bravos
«Do potente Swáran.»
«Sempre tremes,
«Sempre, ó filho de Fithil, lhe responde
«O belicoso chefe, e assim aumentas
«As forças do inimigo. Fingal era,
«Fingal, rei dos desertos, que o socorro
«Traz a Erin dos ribeiros.»
«Vi seu chefe,
«Replica Móran, qual rochedo avulta!
«Como um pinho sem rama é sua lança!
«Como a lua nascente o seu escudo!
«Assentado na praia semelhava
«Nuvem que pousa no calado serro!
«– Muitos, ó rei dos heróis, muitos, lhe disse,
«Nossos guerreiros são. Chamam-te o forte,
«Mas os fortes em guerra não têm conta
«Junto às muralhas da nublosa Tura. –
«Com estrondoso acento semelhante
«Ao da vaga na rocha, ele me brada:
«– Resistir-me quem ousa? os mais valentes
«Aos meus golpes sucumbem. Só pudera
«Fingal, o rei de Selma, ele somente,
«Meu ímpeto arrostar. Já combatemos
«Uma vez em Malmor. Com nossas plantas
«Volvíamos a terra; as duras rochas
«Despegadas caíam; as torrentes
«Recuavam de susto murmurando.
«Três dias combatemos; os guerreiros
«Nos olhavam ao longe e estremeciam.
«Diz Fingal que cedi, que o rei do oceano
«Caiu por terra ao quarto: o rei do oceano
«Resistiu sempre firme! Ceda-lhe hoje
«O torvo Cuthullin! ceda ao que é forte
«Como as tormentas de seu pátrio berço! –
«Oh! não, lhe torna o chefe, a nenhum homem
«Cuthullin cederá, mas há-de em campo
«Triunfar ou morrer! Toma esta lança:
«Parte, ó filho de Fithil, vai com ela
«Bater de Semo no sonoro escudo!
«De Tura à porta vê-lo-ás suspenso.
«Sua voz estridente é voz de guerra:
«Hão-de ouvi-la os heróis e obedecer-me.»

Partiu. Bateu no escudo. Espavorida


Tremeu na selva a corça; em torno os montes,
170

Os côncavos rochedos retumbaram.


Dos íngremes penhascos saltam logo
Curach, e Cónnal de sanguínea lança.
Bate de Crúgal o ansioso peito;
O filho de Favi deixa a caçada;
«É o escudo de guerra?» brada Rónnar;
«De Cuthullin a lança!» brada Lúgar,
Empunha, ó Calmar, a soante espada!
Ergue-te, ó Puno, temeroso chefe!
Deixa, ó Caírbar, o ramoso Cromla!
Eth, aproxima-te; à planície desce
Das torrentes de Lena! Os alvos peitos
Mostra, ó Cathol, atravessando o plaino
Sussurrante de Mora; os peitos alvos
Como as espumas que arremessa a vaga
Aos rochedos de Cúthon!
Eis os chefes!
Ei-los soberbos dos antigos feitos!
Inflamados recordam as proezas,
As glórias do passado. Os olhos torvos
Chamejantes revolvem, procurando
Inimigos da pátria. As mãos valentes
Descansam nas espadas. Cada vulto
Lampeja armado de brunido ferro.
Brilhantes são os chefes da batalha
Coas armas de seus pais! Sombrios, torvos
Os seguem seus heróis, como a caterva
De pluviosas nuvens segue os ígneos
Meteoros do céu. Por todo o campo
Ressoa o estrondo d'armas, e d'envolta
Os uivos dos mastins; de quando em quando
Rompem cantos de guerra, e o alarido
Se repercute no fragoso Cromla.
Sobre o plaino de Lena estão postados,
Como a névoa do outono sobre o outeiro.
A movediça névoa tenebrosa
Que aos céus levanta a retalhada fronte.

«Filhos dos vales, Cuthullin exclama,


«Caçadores do gamo, eu vos saúdo!
«Uma nova caçada nos convida:
«O inimigo se adianta como as vagas
«Que se arrojam sombrias sobre a costa.
«Combateremos nós, filhos da guerra,
«Ou cederemos nossa Frin viçosa
«Aos filhos de Lochlin? Responde, ó Cónnal,
«Tu primeiro entre os homens, tu que partes
«Os escudos na guerra! Já mais vezes
«Com Lochlin pelejaste: empunhar queres
171

«A lança de teu pai?»


«De há muito sabes,
«O chefe lhe responde, se nas guerras
«Minha lança fulgura. Seu deleite
«É ferir nos combates, é banhar-se
«No sangue d'inimigos. Mas se o braço
«Arde por combater, sereno o peito
«É pela paz d'Erin. Ó tu na guerra
«De Curmac o primeiro, observa ao longe
«A frota de Swáran. São mais densos
«Os seus mastros na costa do que os juncos
«Na lagoa de Lego. Os seus navios
«São florestas nublosas, cujos troncos
«Cedem a espaços ao soprar do vento.
«Os seus chefes guerreiros não têm conta.
«Cónnal é pela paz. O próprio Fingal
«Que dormes junto à rocha! Eis-te caída
«Evitara a peleja, ele que sabe
"Dispersar os heróis como dispersa
«O vento os sons de Colna quando a noite
«Carregada de nuvens cobre o outeiro.»

«Ah! foge, homem de paz, foge! lhe brada


«Cálmar filho de Matha. Vai, regressa
«Aos teus montes calados, onde a lança
«Jamais brilha na guerra! Vai, acossa
«O veado do Cromla com teus dardos
«Fere a corça de Lena! Tu, entanto,
«Tu, ó filho de Semo, desta guerra,
«Ó árbitro supremo, abate o orgulho
«Dos filhos de Lochlin! Suas fileiras
«Rompe atrevido! Que nenhum navio
«Das regiões da neve ouse de novo
«Galgar as ondas d'Inistor sombrias!
«Negros ventos d'Erin, rugi! Erguei-vos,
«Ó turbilhões de Lara! Que entre as nuvens
«Me espedacem as iras dos fantasmas
«Se há prazer para Cálmar como a guerra!

«Quando, ó filho de Matha, lhe responde


«Cónnal com lenta voz, quando me viste
«Aos combates fugir? Embora obscuro
«Seja o nome de Cónnal, sempre à guerra
«Cos amigos corri, sempre dos fortes
«O triunfo ajudei. Mas a ti falo,
«A ti, filho de Semo, e tu me escuta.
«A metade das terras e presentes
«Dá em troca da paz, até que Fingal
«Aporte às nossas praias. Mas se a guerra
172

«Desejas antes, minha lança e espada


«Erguerei satisfeito! os inimigos
«Correrei a afrontar! e como sempre
«Brilhará o meu ânimo na luta!»

«Eu, tornou Cuthullin, amo o som d'armas


«Como a voz do trovão acompanhado
«Dos chuveiros do estio. Vossas tribos
«Ide pois ajuntar, para que eu possa
«Ver os filhos da guerra. Que eles passem
«Brilhantes como o sol antes que o vento
«Acumulando as nuvens remurmure
«Nos carvalhos de Mórven. Mas que é feito
«Dos amigos que eu tinha? Onde os que ajudam
«Meu braço nos perigos? Onde páras,
«Ó Cathba d'alvo peito? Onde te escondes,
«Nuvem da guerra, varonil Duchómar?
«Tu, Fergus, onde estás? Porque me deixas
«No dia da tormenta? Ei-lo que chega!
«Fergus, filho de Rossa, tu primeiro
«No prazer dos festins, braço da morte,
«Vens de Malmor acaso? vens correndo
«De tuas serras como leve gamo?
«Salve, filho de Rossa! que tristeza
«Assombra a alma da guerra?
«Quatro pedras,
«Responde o chefe, a sepultura cobrem
«Do valoroso Cathba; e já na terra
«Dorme também o varonil Duchómar.
«Tu eras para Erin, eras, ó Cathba,
«Como um raio do sol! e tu, Duchómar
«Como a névoa do Lane, que no outono
«Rola sobre a planície, e leva a morte
«A viventes sem conta! ó Morna, ó bela
«Entre as mais belas, sossegado é o sono
«Que dormes junto à rocha! Eis-te caída
«Entre as sombras da morte, como a estrela
«Que se esvai no deserto, e o caminhante
«Deixa saudoso de seu raio esquivo.»
«Ah! conta-nos, lhe diz de Semo o filho
«Conta-nos, Fergus, como foram mortos
«Os guerreiros d'Erin. Caíram ambos
«Em combate de heróis? Diz-nos, Fergus,
«Porque é que a terra nos esconde os fortes?»

«Cathba, lhe torna o chefe, caiu morto


«Aos golpes de Duchómar: caiu junto
«Do roble das torrentes. Exultando
«O fero vencedor foi ter com Morna
173

«À caverna de Tura. – Amável filha


«Do valente Cormac, ele lhe disse,
«Porque saudosa no fragoso serro,
«Na caverna da rocha venho achar-te?
«O ribeiro murmura; a árvore anosa
«Geme ao sopro do vento; o lago é turvo;
«Negras as nuvens que no céu revoam!
«Mas tu és como a neve da planície:
«Como o vapor do Cromla é teu cabelo.
«Como o vapor do Cromla quando brilha
«Aos raios do poente! São teus peitos
«Como os lisos rochedos que se avistam
«De Branno dos Ribeiros; são teus braços
«Como as alvas colunas espalhadas
«Pelas salas de Fingal!
«– Donde, inquieta
«Lhe diz a virgem de formosas tranças,
«Donde vens, ó Duchómar, tu dos homens
«O mais torvo e sombrio? Carregado
«Trazes o rosto, e ensanguentada a vista.
«Descobriu-se o inimigo! Que notícias
«Trazes tu lá do mar? –
«– É da montanha
«Que eu venho, ele responde; da montanha
«Dos escuros veados. Três caíram
«Traspassados por mim; três foram mortos
«Por meus ágeis lebréus. Um deles tinha
«Majestosa a cabeça, e os pés movia
«Ligeiros como o vento. Amo-te, ó bela!
«Para ti o matei; não mo rejeites! –
«– Ah! foge, homem sinistro! ela lhe torna.
«Carregado e terrível tens o rosto,
«E duro o peito como rocha dura!
«Tu, ó filho de Tórman, tu, ó Cathba,
«És meu único amor! és a meus olhos
«Como um raio de sol em tempestade!
«Oh! diz-me se o viste, o jovem belo
«Na serra dos seus gamos, pois há muito
«Que neste sítio o espero! –»
«– E largo tempo
«O esperaras, ó Morna, ele responde!
«Olha esta espada nua: aqui o sangue
«De Cathba inda escorre. Caiu junto
«Da torrente do Branno: sobre o Cromla
«Lhe erguerei o sepulcro. Volta os olhos,
«Volta-os para Duchómar: é seu braço
«Forte como a tormenta. –»
«– Morto, exclama
«Em desespero a angustiada virgem,
174

«Morto o filho de Tórman! nos seus montes


«Extinto o jovem de nevado peito!
«O primeiro em caçadas, e inimigo
«Dos guerreiros do Oceano! Eu te detesto,
«Ó Euchómar cruel! Dá-me essa espada!
«Nesse bárbaro ferro quero ao menos
«Ver o sangue de Cathba! – »
«– Ele movido
«De suas queixas, lhe confia a espada,
«E ela no peito varonil lha embebe.
«Bem como se despenha a ribanceira
«Da torrente da serra, ele baqueia.
«Na agonia mortal estende à virgem
«A mão convulsa, e diz: Por ti fui morto
«No verdor de meus anos. Sinto a espada
«Fria, ai, fria no peito! Meu cadáver
«Entrega à bela Moina: Eu era o sonho
«Das noites dessa virgem. Compassiva
«Meu sepulcro há-de erguer; e há-de o meu nome
«Cantar o caçador. Mas vem do peito,
«Oh! vem tirar-me este gelado ferro! –
«De lágrimas banhada acode a virgem,
«O agudo ferro extrai e ei-la que a furto
«O cristalino seio lhe atravessa.
«Vacilando ela cai: o sangue em ondas
«Lhe tinge os braços níveos, a madeixa
«Desgrenhada lhe roja, e na caverna
«Seus extremos gemidos escoaram.»
«Paz, disse Cuthullin, paz e descanso
«Às almas dos heróis! Sublimes foram
«Seus feitos de valor! Que eles me cerquem
«Pairando sobre as nuvens! que eu lhes veja
«As guerreiras figuras! Então forte
«Nos perigos serei; será meu braço
«Como o fogo do céu! E tu, ó Morna,
«Sobre um raio da lua me aparece!
«Às horas do descanso quero ver-te
«Quando em paz estiver, quando cessarem
«Os tumultos da guerra. Mas as hostes
«Ordenai, meus amigos, e marchemos
«Para a guerra d'Erin! Tomai por norte
«Meu carro de batalha! extasiai-vos
«Ao rumor do seu curso! Eia, a meu lado
«Três lanças colocai! De meus cavalos
«O galope segui! Que eu possa afoito
«Com meus sócios contar quando esta espada
«Relampejar nas sombras da peleja!»

Como espúmea torrente que se arroja


175

Do tenebroso Cromla, quando rola


O trovão pelos céus, e a escura noite
Impera na montanha, quando os rostos
Dos lívidos fantasmas aparecem
Nas fendas da borrasca: assim furiosa,
Vasta, e medonha se arremessa a turba
Dos guerreiros d'Erin. Na frente avança
O valoroso chefe, semelhando
A baleia do oceano acompanhada
Do marulho das ondas, ou torrente
Que arrasta as águas através dos campos;
Aos filhos de Lochlin chega o ruído
Como o surdo rumor da tempestade:
No pesado broquel bate Swáran
Chamando o filho d'Arno. «Que sussurro,
«Lhe diz, é este que nos montes soa,
«Semelhante ao zumbido que levantam
«Os insectos da tarde? Acaso descem
«Os guerreiros d'Erin? Rugem acaso
«Os ventos na floresta? É assim que às vezes
«Eles soam no Gormal quando querem
«Das minhas vagas açoitar o dorso.
«Sobe já, filho d'Arno, sobe ao monte,
«E estende a vista pelo escuro plaino.»

Partiu. Em breve regressou tremendo.


Em torno os olhos revolvia inquieto;
O coração lhe palpitava ansioso;
As palavras a custo proferia
Cortadas, vagarosas. «Surge, disse,
«Surge, ó filho do Oceano, altivo chefe
«Dos escuros broquéis! Eu vi a negra
«Caudalosa torrente da batalha!
«As movediças forças numerosas
«Dos guerreiros d'Erin! Já temeroso
«Como a chama da morte se aproxima
«De Cuthullin o belicoso carro!
«Na parte posterior é recurvado
«Como a vaga ante a rocha, ou como a névoa
«Dourada pelo sol. São embutidos
«De pedraria os lados, e resplendem
«Como em torno da barca ondas nocturnas.
«É de polido teixo fabricado
«O comprido timão; e o liso assento
«D'osso branco e macio. Tem os bordos
«Recheados de lanças, e no fundo
«O degrau dos heróis. Diante do carro,
«À dextra parte, relinchando avulta
«O d'amplas crinas, largos peitos, forte,
176

«Agil, fero cavalo da montanha.


«Estrondoso galopa; a crina esparsa
«Pelo pescoço, os turbilhões imita
«Do vapor que se estende pelas rochas.
«de brancas espáduas, e chamado
«Sulin-Siffada. Do outro lado, o esquerdo,
«Resfolga ardente o d'elevado colo,
«De raras crinas, duros pés, ligeiro
«Filho da serra, saltador ginete.
«Tem por nome Durósnnal entre os filhos
«Da guerra procelosa. Os duros freios
«Entre frocos d'espuma resplandecem.
«Cheias de pedraria as finas rédeas
«Batem no colo dos frisões soberbos,
«Que ligeiros resvalam na planície
«Como o vapor nos paludosos vales.
«Seu rápido galope é como a fuga
«Do trépido veado, e irresistível
«Como a descida da águia sobre a presa.
«Dentro do carro se divisa armado
«De rijas peças o valente chefe.
«Chama-se Cuthullin, progénie ilustre
«De Semo, rei das taças. Tem corado
«O belo rosto como este arco liso
«Sob as negras arcadas dos sobrolhos
«As pupilas azuis amplas revolve.
«Como uma chama lhe flutua a coma
«Quando se inclina ao manejar a lança.
«Ah! foge, rei do Oceano! Ele se adianta
«Como vasta procela que rugindo
«Corre ao longo do vale!»
«Fugir? e quando
«Fugir me viste? responde Swáran.
«Quando medroso se esquivou meu braço
«À batalha das lanças? Quando, ó chefe
«D'alma pequena, recuei eu nunca
«Em frente do perigo? Eu já do Górmal
«Encarei as tormentas, quando as ondas
«Espumavam raivosas; já das nuvens
«Arrostei os combates: hei-de agora
«Ante um homem tremer? Oh não; nem Fingal
«Me pudera assombrar. Eia, ao combate,
«Ó valentes guerreiros! Rodeai-me,
«Como túrbidas águas! Cercar vinde
«De vosso rei o chamejante gládio!
«A firmeza mostrai das nossas rochas,
«Dessas montanhas que a tormenta encaram
«E opõe ao vento os pinheirais sombrios!»
177

Como duas procelas que no outono


Correndo opostas de diversos montes
Se avizinham medonhas, assim torvos
Uns contra os outros os heróis correram.
Como duas torrentes que à planície
D'altas rochas descendo as bravas ondas
Encontram restrugindo, assim ruidosa,
Fera, e terrível se encontrou a gente
De Lochlin e Inisfail. Chefe com chefe,
Homem com homem se travou em luta.
O ferro bate no sonoro ferro;
Abrem-se os capacetes; jorra o sangue;
As cordas zumbem nos polidos arcos;
Atravessando o espaço as frechas voam;
As lanças descem como a luz que doura
Os véus da noite em alongadas curvas.
Como o rumor do Oceano quando as vagas
Encapela raivoso, como o extremo
Rebramar do trovão, assim ressoa
O fragor do combate. Quando mesmo
Para a luta cantar ali viessem
De Cormac os cem bardos, ao estrago
Dos cem bardos a voz não bastaria,
Muitas foram as mortes, muito o sangue
De heróis valentes nesse chão vertido.

Chorai, filhos do canto, chorai morto


O nobre Sithallin! Que de Fiona
Os suspiros ressoem na planície
Do seu Ardan querido! Ambos caíram
Como dois gamos do deserto aos golpes
Do potente Swáran. Na refrega
Ele rugia dominando as hostes
Como o espírito fero da tormenta
Que entre as nuvens campeia, e olha em triunfo

O nauta que soçobra. Nem ocioso,


Chefe da ilha das neves, foi teu braço!
Muitos, ó Cuthullin, à morte deste!
Era o teu gládio como o fogo etéreo
Que incendeia as montanhas, e fulmina
Os íncolas do vale. Calcando os mortos
Relinchava Durósnnal; e no sangue
Galopava Siffada. Todo o campo
Destroçado deixavam, como as selvas
Ficam no Cromla quando passa o vento
Carregado d'espíritos da noite.

Sobre a rocha dos ventos chora aflita,


178

b virgem d'Inistor! Inclina às ondas


A formosa cabeça; tu mais bela
Que o espírito da serra quando às vezes
Do meio-dia sobre um raio desce
Ao silêncio de Mórven! Teu amigo,
O teu jovem amigo já não vive!
Pálido vacilou, caiu extinto
De Cuthullin sob a tremenda espada!
Nunca mais teu amor em valentia
«À grandeza dos reis há-de elevar-se.
Trénar, o belo Trénar caiu morto,
ó virgem d'Inistor! Debalde o chamam
Seus cães uivando: no solar só vêem
Seu espectro vagar. Pende na sala
Desarmado o seu arco, e no aposento
Dos seus veados, o silêncio reina!

Como rolam mil vagas contra a rocha,


Tais arremetem de Lochlin as hostes.
Como o rochedo vagas mil afronta,
Tais lhe resistem as d'Erin seguras.
À pavorosa grita que ressoa
O tinido das armas se reúne.
É cada herói como um pilar de névoa;
Sua espada na dextra é como um raio
De lado a lado todo o campo soa
Semelhando a fornalha onde retumbam
Na vermelha bigorna cem martelos.
Quem são esses que tétricos pelejam
Na campina de Lena? Quem são esses
Que duas nuvens na figura imitam,
Cujas espadas sem cessar lampejam?
Em derredor os montes espantados,
Os rochedos medrosos estremecem;
Quem são eles senão d'Erin o chefe,
Senão o filho do Oceano? Pelo campo
Coa vista inquieta os acompanham sempre
Seus guerreiros ansiosos. Mas a noite
Os envolve nas sombras, e crescendo
À batalha terrível põe remate.

Do emaranhado Cromla sobre a encosta


Depositara Dorglas o veado
Que ao romper da manhã fora colhido;
Estando ainda na montanha as hostes,
Eis ajuntam a lenha cem mancebos,
Dez guerreiros acendem a fogueira,
E trezentos escolhem lisas pedras:
O fumo do banquete sobe aos ares.
179

O poderoso espírito concentra


Cuthullin meditando; e recostado
À lança refulgente a voz dirige
Ao filho das canções encanecido,
A Cárril doutros tempos. «Devo acaso
«Do banquete gozar, e há-de isolado
«Longe do gamo das montanhas suas,
«Longe das festas dos salões ruidosos,
«O chefe de Lochlin ficar na praia?
«Vai, ó Cárril anoso, vai levar-lhe
«Amigáveis palavras. Anuncia
«Ao que as ondas ruidosas nos trouxeram,
«Que vai dar Cuthullin o seu banquete.
«Venha ouvir o murmúrio dos meus bosques
«Pelas sombras da noite, pois gelado
«Sussurra o vento nas espúmeas vagas.
«Venha gozar os trémulos acentos
«Da harpa melodiosa; escutar venha
«O louvor dos heróis!»
Obedecendo
Parte o velho cantor, e em tom benigno
Dos escuros broquéis diz ao monarca:
«Acorda, ó rei das selvas, eia acorda!
«Dentre as peles da caça te levanta!
«Na alegria das taças, no banquete
«Do príncipe d'Erin vem tomar parte!»
Como o sinistro sussurrar do Cromla
Antes da tempestade, ele responde:
«Quando mesmo, Inisfail, as tuas virgens
«Me estendessem os braços cor de neve,
«E descobrindo os palpitantes seios
«Os amorosos olhos me lançassem,
«Firme neste lugar, como são firmes
«As rochas de Lochlin, ficara ainda!
«Neste lugar esperarei que o brilho
«Da matutina luz venha chamar-me
«De Cuthullin à morte. Eu amo o sopro
«Dos ventos de Lochlin! Eles cruzaram
«Os espaços do mar! Eles me falam
«No zumbir das enxárcias, e me trazem
«Minhas verdes florestas à lembrança;
«As florestas do Górmal, que eu ouvia
«Rugir ao seu bafejo, quando a lança
«Do javali na caça manejava.
«Oh! vai: que o torvo Cuthullin me ceda
«O trono de Cormac, ou em torrentes
«Correrá das montanhas à planície
«De seus guerreiros o espumoso sangue!»
180

«Funestos são, diz Cárril doutros tempos,


«Os ditos de Swáran!» –»Sim, funestos,
«Responde Cuthullin, lhe hão-de ser eles.
«Mas ergue a voz, ó Cárril, e reconta
«Os feitos do passado. Com teus cantos
«Nos abrevia a noite; em nós desperta
«O gozo da tristeza. Heróis infindos,
«E mil virgens amantes hão passado
«Na terra d'Inisfail. Doces ressoam
«Os cantos do infortúnio que se elevam
«Nas rochas d'Albion quando emudece
«O rumor da caçada, e às vozes d'Ossian
«Se casa o murmúrio das correntes.»

«No tempo que passou, começa o bardo,


«Os guerreiros de oceano a Erin vieram.
«Numerosos baixéis galgando as ondas
«Aportaram d'Erin às mansas praias.
«Os filhos d'Inisfail se levantaram
«Dos escuros broquéis sustando a raça.
«Militava no exército Caírbar,
«Dos homens o primeiro. e o jovem Grúdar,
«De garbosa figura. Desde muito
«Que entre si contendiam pela posse
«Do imaculado touro que mugia
«Na campina de Golbum; desde muito
«Que a morte viam nos agudos ferros.
«Contra os filhos do mar um tempo unidos
«Combateram a par, venceram juntos.
«Quem na montanha possuía a glória
«De Caírbar e Grúdar? Mas, oh pena!
«Porque mugia o imaculado touro
«Na campina de Golbum? Mal que o viram
«De novo a sanha lhes brotou nos peitos.

«Sobre as margens do Lúbar combateram:


«Grúdar caiu sem vida. Então Caírbar
«Caminhou para o vale, onde Brassolis,
«Sua irmã formosíssima, entoava
«O canto da tristeza. Ela narrava
«As façanhas de Grúdar, o mancebo
«De seu íntimo afecto; ela chorava
«Seus perigos no campo, e sua volta
«Esperava com ânsia. O branco seio
«Lhe transluzia sob as roupas leves
«Como a lua entre nuvens; e mais doce
«Era seu canto que os gemidos da harpa.
«Em seu bem adorado tinha a mente,
«E seus olhos gentis falavam dele.
181

«– Quando virás enfim? ela dizia;


«Quando virás, ó poderoso em guerra? –

«– Guarda, lhe diz o irmão, guarda, ó Brassolis,


«Este escudo sangrento: vai fixá-lo
«Da minha sala no elevado tecto.
«É o escudo de Grúdar! – Mal que o ouve
«A donzela estremece, e a cor perdendo,
«Sem tino, ei-la que parte. Envolto em sangue
«Na planície de Cromla vê o amante,
«E junto dele, vacilando, expira.
«É este, Cuthullin, é este o sítio
«Em que repousam ambos! Estes cedros
«Lhes brotaram nas campas, e saudosos
«Do furor das tormentas os defendem.
«Formosa era Brassolis na planície!
«Elegante era Grúdar na montanha!
«Hão-de os cantos dos bardos memorá-los
«E ao remoto porvir levar seus nomes!»

«Suave é tua voz, suave, ó Cárril,


«Diz o chefe d'Erin. São aprazíveis
«Os contos do passado, como o orvalho
«Da amena primavera quando brilha
«Pelos campos o sol e a nuvem leve
«Revoa nas colinas. Ao som da harpa
«Celebra o meu amor, a luz serena
«Da solitária estrela de Dunscaith.
«Canta a gentil Bragela, a terna Esposa
«Que saudosa deixei na ilha das névoas.
«Que fazes, doce amiga? acaso elevas
«Sobre a rocha escarpada a bela fronte,
«E meus navios descobrir procuras?
«O mar se agita ao longe: a branca espuma
«Por minhas velas tomarás acaso?
«Recolhe-te, que é noite, amor querido:
«Em teu cabelo o vendaval murmura.
«Aos meus paços festivos te recolhe,
«E pensa em outros dias. Aos teus braços
«Não poderei voltar sem que serene
«A tormenta da guerra. Fala, ó Cúnnal,
«Fala-me d'armas só: quero as saudades
«Do meu seio expulsar, quero esquecê-la.»
«– Dos guerreiros do oceano te acautela,
«Responde o lento Cónnal. Sem demora
«Manda escoltas nocturnas que vigiem
«O campo do inimigo. Sou de voto,
«Ó Cuthullin, que a pelejar não vamos
«Sem que Fingal, dos homens o primeiro,
182

«Aporte às nossas praias, sem que brilhe


«Como os raios do sol em nossos campos.»

Sobre o escudo d'alarma bate o chefe,


E o nocturno esquadrão se põe em marcha.
O restante do exército no campo
Ao serena da noite se adormece.
Dos derradeiros mortos os espectros
Divagavam em torno e flutuavam
Entre as nuvens sombrias. Longe, ao longe
– Por sobre a escura solidão do Lena
Funéreas vozes murmurar se ouviam.
183

TÍBURE

A cidade chamada antigamente Tíbure, e hoje Tivoli, acha-se situada a cinco


léguas pouco mais ou menos distante de Roma, sobre um monte escamado que é parte
duma ramificação dos Apeninos. Da altura em que está assente se despenha o rio
Teverone (antigamente Anho), formando junto dela uma grande catadupa, Preceps
Anio, de Horácio. A sua origem remonta a mui afastada antiguidade. Foram seus
fundadores, segundo se crê, o grego Tiburto, e seus irmãos Catilo e Coras, que depois
da morte de seu pai, Anfiarau, no cerco de Tebas, passaram à Itália; de onde lhe veio o
nome de Tíbure, tomado do mais velho dos’ três fundadores. Desta origem fazem
menção os versos de Virgílio:

Deixam então os tiburtinos muros,


Povo que o nome tem do irmão
Tiburto, Catilo e Coras, os argivos moços.

(En., liv. VII, vera. 670.)

Ao que parece, era esta cidade já antes da fundação de Roma uma das mais
poderosas do Lácio, segundo os versos do mesmo poeta:

Cinco grandes cidades já concertam


As armas para a guerra: Átina forte,
Tíbure soberba, Ardeia, Crustumero,
E a turrígera Antemna.

(En., liv. VII, vera. 629.)

O seu poder não a isentou porém do jugo dos Romanos, que sob o comando de
Camilo a submeteram cerca do ano 400 da fundação de Roma.
Com o andar do tempo fez-se Tíbure mui afamada em toda a Itália pela
formosura da sua situação, e pela presença e amenidade dos seus contornos.
Sobranceira à queda magnífica do Anho, dominando da sua altura extensos
horizontes, cercada de águas, de pomares e de verduras,

Et preceps Anio, et Tiburni lucus, et uda


Mobilibus pomaria rivis........................

ela devia a estas qualidades a reputação em que era tida. Muitos poetas romanos, e
principalmente Horácio que nela residiu, falam da sua amenidade, e celebram as suas
belezas. A frescura do seu clima era tal, que, segundo uma crença popular, fazia mais
branco o marfim, ao que se refere Marcial no epigrama:

A trigueira Licoris foi-se a Tibure


Crendo que tudo lá se torna branco.

(Liv. IV, Ep. L.)


184

A salubridade dos seus ares era também proverbial entre os Romanos, como o
indicam os seguintes versos, em que o mesmo poeta contrapõe Tíbure à Sardenha
naquele tempo mui doentia:

Não há lugar onde escapeis à morte:


Quando ela chega, Tíbure é Sardenha.

(Liv. IV, Ep. XLVIII.)

Com estas vantagens, e pela sua proximidade de Roma, era Tíbure, ou antes os
seus arredores, o lugar predilecto onde os romanos costumavam ir passar os verões.
Ali tiveram suas villas, ou casas de recreio deliciosas, Horácio, o grande lírico
romano, os poetas Catulo seu antecessor, e Tíbulo seu contemporâneo, o ministro de
Augusto e célebre protector das Letras Mecenas, Quintílio Varo, o cônsul que depois
foi morto com, as suas legiões na Germânia; e o imperador Adriano. De todas estas
vilas existem ainda hoje mais ou menos restos, sendo os mais consideráveis os das
sumptuosas residências de Mecenas e de Adriano.
A vila de Mecenas, que dominava do alto da colina o vale onde corre o Ânio,
ostenta ainda em seus pórticos derrocados soberbos vestígios do que foi. A de
Adriano, mais sumptuosa, e que abrangia um circuito de dez milhas, apresenta em
suas ruínas menos o aspecto de uma habitação particular que o de uma cidade
destruída, tal era a sua grandeza, e o número de construções que encerrava. Tendo
visitado as províncias do seu vasto Império, este príncipe quis imitar nesses jardins os
monumentos e os sítios que mais admirara nas suas excursões. Bastará enumerar estas
obras, juntamente com os edifícios propriamente romanos incluídos no mesmo
recinto, para se fazer ideia da grandeza daquela vila; é Chateaubriand quem os
menciona fazendo no Itinerário a descrição das suas ruínas. O palácio do imperador, a
biblioteca, os hospícios, a praça de armas, as termas, o hipódromo, o teatro, o estádio,
a naumaquia, os templos de Hércules, de Júpiter, de Diana, de Vénus, de Plutão e
Proserpina, as imitações dos edifícios gregos da Academia, do Liceu, do Pescilo, do
Odeon, do Teatro, do Pritaneu, um templo imitando o de Serápis no Egipto, prados
fingindo o vale de Tempe, outeiros figurando o Ossa e o Olimpo, tudo isto ali fora
aglomerado pelo capricho desse senhor do universo.
Bem menos sumptuosa, porém destinada a não menor celebridade, era a
residência em que um século antes de Adriano habitara nesses mesmos lugares outro
príncipe pela realeza do entendimento. Ainda ao pé da vila arruinada de Mecenas se
descobrem hoje no cimo de um outeiro os últimos vestígios da que pertencia a
Horácio. No dizer de Chateaubriand, que ali passou, a natureza do lugar não permitia
que ela fosse grande; mas em compensação estava belissimamente situada,
desfrutando daquela altura uma vista imensa de paisagem. Era nesse retiro, descrito
pelo poeta no começo da epístola XVI do liv. I dirigida a Quíntio, que ele costumava
passar o melhor tempo do ano, trocando pela solidão do campo a corte de Augusto, e
gozando da convivência com Mecenas. Era à sombra ameníssima desses bosques, e ao
suave murmúrio dessas fontes, que ele colhia, como o diz na ode 3ª do liv. IV, muitas
das inspirações que, a sua musa encantadora nos legou. Ali foram compostas a ode 7ª
do liv. I, em que ele antepõe esses lugares aos mais formosos da Grécia, a ode 13ª do
liv. III em que celebra a fonte de Blandusio, mais esplêndida que o vidro, a epístola vi
do liv. I dirigida a Mecenas, a l0ª do mesmo liv. dirigida a Fusco Arístio, a 16ª do
mesmo liv. dirigida a Quíntio, e outras poesias.
185

O que fica dito refere-se propriamente à antiga Tíbure. A moderna Tívoli, é uma
cidade apenas de cinco mil habitantes, e cuja importância está longe de igualar a que a
tradição atribui à antiga. O que a faz notável, e muito frequentada pelos viajantes, são
as eternas belezas da sua situação e dos seus contornos, e não menos o espectáculo das
ruínas que apresenta. Entre estas as que mais avultam são as da vila de Adriano, e as
dos templos de Vesta e da Sibila Tiburtina, situados sobre o precipício de onde se
despenha o Teverone. Entre as belezas naturais sobressai esta cascata que forma o rio,
caindo ruidosamente na fraga chamada pelos modernos a gruta Neptuno, a cinquenta
pés de profundidade. Além desta outras cascatas menores, formadas por braços da
principal corrente, despenham suas águas no mesmo vale, dando todas a estes sítios os
mais belos aspectos, e essa frescura que os antigos tanto apreciaram.
Nos arredores de Tívoli ainda hoje, como nos tempos da antiga Roma, se vêem
muitas villas magníficas pertencentes a nobres e opulentas famílias romanas. A mais
sumptuosa é a que no século XVI mandou construir o cardeal d'Est, e onde afirmam
alguns que Ariosto compôs o seu imortal poema Orlando.

Os Fastos de Públio Ovídio Nasão, com tradução em verso português por


António Feliciano de Castilho, t. III, págs. 522 a 526. (Nota quadragésima, p. 167, v.
21.)

22

22
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com
a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar
aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros,
será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
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ÍNDICE

SOARES DE PASSOS (escorço biográfico)


NOTA BIBLIOGRÁFICA

A Camões
O Outono
O Noivado do Sepulcro
Desejo
Boabdil
Canção
A Pátria
Rosa Branca
Enfado
Anelos
O Filho Morto
Sócrates
O Gólgota
A***
Últimos Momentos de Albuquerque .
A Ti
Infância e Morte
O Canto do Livre
Saudade
Amor e Eternidade
O Escravo
O Anjo da Humanidade
Partida
Canto de Primavera
Catão
Amo-te
Imitação do Islandês
Liberdade
À Morte do Meu Amigo Licínio P. C. de Carvalho.
O Mendigo
A Vida
Um Sonho
Desengano
Agar
Maria, a Ceifeira
A Monja
O Firmamento
Tristeza
A Mãe e a Filha
Idade Média
Num Álbum
O Mosteiro da Batalha
Desalento
187

Num Álbum
Consolação
O Buçaco
A Fonte dos Amores
A Um Teatro Académico
Num Álbum
No Álbum do Dr. Manuel Teixeira Pinto (inédita)
José Joaquim Gomes Coelho
À Morte de Heliodoro Augusto de Sousa .
Visão do Resgate
Ao Porto
Versões de H. Heine
Versões d'Ossian:
. Ao Sol
. Colma
. Fingal
Tíbure

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http://groups.google.com/group/digitalsource

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