À Prova de Fogo Consuelo de Castro

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CONSUELO DE CASTRO 1 A Prova de Fogo j | i CONSUELO DE CASTRO A Prova de Fogo PISS TTT HH SBD-FFLCH-US) seo eeuch! BIBLIOTELA HISiOKIA - FFLCB USP AW sa. BDITORA HUCITEC E So Paulo, 1977 * UM DOCUMENTO EXEMPLAR A isencao é uma qualidade mais aprecidvel no ficcionista do que no critic. Se o critico pode submeter o objeto a uma perspectiva pessoal, que altera o valor segundo os seus critérios, © ficcionista vé cada personagem do intimo dela, revelando sempre suas raz6es profundas, independentemente de como julgue, na realidade, o seu comportamento. $6 é bom ficcionista aquele que consegue apresentar, com igual conviccao, adversd- rios inconcilidveis. E é esse _mérito extraordindrio o primeiro que chama a atengéo em A Prova de Fogo, peca de Consuelo de Castro. Nem se chega a acreditar que seja a primeira experiéncia cénica da autora, que teve um éxito merecido com A Flor da Pele. Nao se vé em A Prova de Fogo nenhuma indecisdo de quem se inicia no didlogo. O texto mostra, além da andlise surpreendentemente objetiva dos acontecimentos retratados, a maturidade formal de quem tem a vocagdo inata do palco. Como obra feliz, A Prova de Fogo é uma sintese de todas as virtudes que se requerem da dramaturgia: grandeza do tema e da situacdo, exemplaridade das personagens, boa arquitetura cénica e eficdcia do didlogo. E dificil, alids, apontar 0 que mais agrada na pega, tao bem fundidos estéo todos os seus elementos. Em pleno periodo do movimento estudantil, que precedeu a edigao do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, Consuelo foi capaz de fixar, com espantosa clarividéncia, todos os lances da ocupagéo de uma faculdade pelos alunos. Um raro poder de sintese traz @ cena os mais variados proble- mas, sem que eles se tornem superficiais ou parecam meramente exemplificativos de reacdes de laboratério. Ai se acompanha o estudante na relagio com o mundo, com a sua coletividade e consigo mesmo. Alinham-se, com absoluta nitidez, os mais con- trovertidos temperamentos, que definem as diferentes faccdes em que se dividiu a luta politica. Consuelo nao sucumbiu a tentacdo de exprimir uma visdo idealizada ou demagégica do estudante. Ao contrario, ele apa- IX a complexi r que nao omite as paixdes, 7 muitas vezes turvadores da pureza jdade humana, rece en ‘ jimentos, as magoas, i Fess os ressentiment 0. O “golpe” no lider Zé Freitas, explicado p iso. politic é aes ee ciggran aie ie ipeaee tee como discordancia de sua tatica ‘revisionista”, pelos ma forte dose de yontade de ferir e se vingar, 0 as motivagdes e€ os conflitos, iva humana encorpa de seiva . oda mersonage” estd exposta na sua desnuda humanidade. io de encontrar tipos representativos de Sem preocupa¢ ‘ temperamentos diversos, Consuelo movimenta uma extensa galeria de caracteres, Que refletem com ¢lareza todas as posigdes é 14 permanentemente relacio- entando-se dele e ao mesmo estudantis. O microcosmo cénico es! smo social, alim Por meio dos estudantes e -se um amplo painel do nado com 0 macroco. oC i tempo influindo em sua fisionomia, de seu contato com o exterior, tem: Brasil agitado de 1968. Como a matéria era rica € de dificil resumo, Consuelo precisaria dominar como dramaturgo experiente a tarefa de distribuigdo dos episddios, e 0 que surge é uma estrutura equili- tdvel dramaticidade até o des- brada, num crescendo de insupor' fecho. E o didlogo é sempre incisivo, cortante, feito de frases com freqiiéncia lapidares. A forca incémoda de A Prova cou, mesmo sem ser levada @ cena, as mais apaixonadas polémi- cas. Estudantes acharam que a autora os havia traido, pintando- -os em sua verdade. E a Censura interditou a peca, por julgar que ela “contraria dispositivos do artigo 41, letras D e G do Decreto n.° 20.493, de 24 de janeiro de 1946”, os quais estabelecem: “Art. 41. Serd negada a autorizagdo sempre que a repre- sentagao, exibigéo ou transmissao radiotelefonica: de Fogo estd em que provo- ime 2 d) for capaz de provocar incitamento contra o regi vigente, a ordem publica, as autoridades e seus agentes; g) ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacional”, Esté claro que A Prova de Fogo ndo trai os estudantes nem deve ser capitulada nos dispositivos que a Censura invocou. Compreende-se que a exaltagao de énimos do momento de luta tenha provocado o reptidio ao texto, de ambos os lados. A Censura evitou que se discutisse em ptiblico, num instante em x. que as feridas ainda estavam abertas, um tema téo caloroso. Mas agora, @ disténcia de alguns anos, nao hd mais motivos para receios de qualquer natureza. Encontram-se na peca os motivos mais nobres do movimento estudantil, bem como nao houve a intengao de subverter valores. Consuelo apenas retratou, com absoluta imparcialidade, uma situagaéo que dizia respeito a todos. E, a esse titulo A Prova de Fogo é um dos mais verdadeiros e importantes documentos do pais. Quem desejar entender, no futuro, o que se passou no Brasil, de 1964 a 1968, precisard tomar conhecimento da pega. E ela nao ilumina apenas um periodo, mas todo um processo. Deve ser encarada, portanto, como uma das obras que trouxeram uma contribuigdao efetiva a dramaturgia brasileira. Sabato Magaldi Wt iw A Prova de Fogo confronta-nos com uma época préxima e remota: 1968. Os estudantes do mundo inteiro, unindo-se, como sé constituissem uma sé classe politica, julgaram poder destruir, nessa ordem, a estrutura da Universidade, do sistema capitalista e da moral burguesa. Através de um esforco herdico e concentrado iriam realizar em poucos meses o que dezenas de geracées revoluciondrias, desde 1789, na@o haviam conse- guido: implantar a liberdade (sobretudo a sexual), a igualdade (sobretudo a econémica) e a fraternidade (sobretudo a dos jovens). Consuelo de Castro mostra-nos apenas uma trincheira dessa vasta sublevagao: um microcosmo que talvez reflita algo maior. A parte propriamente politica é simples: a eterna divisao entre direita e esquerda, que se renova dentro de cada partido ou facgao, o perpétuo conflito entre realistas e visiondrios, entre os que, como Zé Freitas, mesmo com uma granada na mao, desejam negociar, obedecer as regras do jogo politico, que com- porta obrigatoriamente um adversdrio com o qual se pode par- lamentar, em especial nas situag6es de inferioridade, e os herdis, os desesperados, os puritanos da acao revoluciondria, os de tendéncias jd francamente autodestrutivas, como Jilia e Cebolinha, Em torno dessas posigées, dessas opgées vitais — entregar- -se ou resistir até a morte —, tece-se a trama das paixdes adolescentes, das relagées que nem por serem ostensivamente sexuais deixam de conter um inesperado contetdo afetivu, pren- dendo mais do que se pretendia a principio. A sonhada liberdade parece favorecer antes 0 homem do que a mulher, como se a entrega continuasse a ser uma posse, uma vitéria do macho sobre a fémea. Terminado o brief encounter, realizado lirica- mente sobre os telhados, como os gatos, ou em desertas salas de congregacgaéo, sob os olhos horrorizados dos catedrdticos, cujos retratos austeros pendem das paredes, resta, para ele, lembrangas agraddveis, a satisfagao da conquista, a continua disponibilidade; para ela, nao raro, um vago sentimento de frustragéo, um apego que nao ousa se chamar sentimental, quando néo a carga de um filho indesejado. XII O entrelagamento desses dois planos, o afetivo e o politico, o individual e o coletivo, o burgués e o revoluciondrio, dd a peca um cardter de tragicomédia que ela desenvolve consciente e exemplarmente, indo com igual firmeza, da tensdo dramdtica a distensdio farsesca. O final patético. A juventude rende-se nao s6 ao inimigo, a policia, a@ ameaca de tortura, a reagao da sociedade apavorada, como as fraquezas que estavam, sem que eles pressentissem, dentro de cada um: a inseguranga, o medo, a imaturidade, um resto persistente de ingenuidade infantil. Sao adolescentes chamados cedo demais as responsabilidades da politica, revoluciondrios que brincam com a revolugdo, um pouco como se brincassem de mocinho e bandido, admirando-se inde- vidamente quando a morte se aproxima, para cobrar a sua por- ¢do. “Le jeu de l'amour et de la mort’, como escreveu Romain Rolland, a propésito de outra “prova de fogo”, de proporgées infinitamente mais amplas do que esta. E a mocidade, no que tem ainda de irresponsdvel — por- que a perspectiva da peca é dura, é critica, é implacdvel —, mas também com a sua generosidade, a sua inesgotdvel reserva de humor, mesmo em face do perigo, 0 seu enorme senso de soli- dariedade, fazendo-nos sentir vergonha da nossa estreita sensatez de adultos. A cena da mae de Zé Freitas, proclamando, com a sabedoria do cansago, que “o mundo nunca foi diferente’, que “o mundo nunca vai mudar’”, enche o nosso coragao de tristeza, por sua mescla de experiéncia e desesperancga. Serd essa morna resignagdao, no fim de contas, a stimula moral que temos a ofer- tar, como resposta, a indagagao dos jovens? A razdo estard mais ao lado de Zé Freitas, com a sua forte consciéncia critica, que, como toda consciéncia excessiva (provou-o Shakespeare através de Hamlet) tende freqiientemente ao recuo, a acomodagao, do que com Cebolinha, preferindo antes morrer que se integrar a vida vazia dos pais endinheirados e das mdes amorosamente esttipidas? A Prova de Fogo nao é a resposta. Nao pleiteia nada, nem contra, nem a favor de ninguém. E testemunho, com todas as qualidades de um bom testemunho: honestidade, boa fé, objeti- vidade. O que Consuelo de Castro viu, soube transmitir, com emogao, ironia, distanciamento e imaginagao dramiatica. Décio de Almeida Prado

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