Você está na página 1de 13

1

Cidade Avatar:
a reescritura da cidade no ciberespaço1
ESPACC – Grupo de Pesquisa Espaço, Visualidade / Comunicação, Cultura – PUC-SP
Coordenação Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara
Adriana Gurgel2
Debora Cristine Rocha3
Eduardo Louis Jacob4
Gisele Sayeg Nunes-Ferreira5

Resumo
Este trabalho propõe analisar o processo de desmetaforização da cidade “espetáculo” e as
possibilidades de remetaforização da cidade – agora transformada em meio comunicativo –
proporcionadas pelo ciberespaço. A análise se dará a partir dos conceitos de sociedade do
espetáculo (Debord) e a cidade como meio, mídia e mediação (Ferrara), e tem como exemplo
a Parada do Orgulho GLBT – Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros realizada
anualmente na Avenida Paulista e arredores, na cidade de São Paulo.

Palavras-chave
Cidade; Espetáculo; Metáfora; Imagem; Ciberespaço

1. Introdução
Uma das características mais marcantes de nossa época deve-se à transição da vivência
imediata do território para um reconhecimento cada vez mais operado por imagens deste
território. A farta disponibilidade e o acesso facilitado a dispositivos eletrônicos satélite como
o sistema de posicionamento global – mais conhecido por GPS ou global positioning system –
utilizado para determinar a posição de um aparelho receptor na superfície da Terra,
incorporado em palm-tops, celulares e veículos automotivos, e o Google Earth, com suas
imagens tomadas a partir de satélites, são exemplos de uma sofisticação tecnológica cada vez
mais diversificada, de um mundo mapeado geograficamente.
As cidades perdem a predominância da convivência e há a consumação do
deslocamento acelerado como modo de vida. A navegação daí derivada não leva em
consideração a distância, mas o tempo percorrido. A cidade assume e incentiva essa
característica de passagem. Para o indivíduo, os caminhos oferecidos são como obstáculos
que ajudam ou impedem o rápido deslocamento do ponto “A” ao ponto “B”. Aquele
deslocamento continua sendo exigido, porém a velocidade é mais relevante que a amplitude
da distância. Agora, perguntamos quanto tempo dispomos ao invés de qual a distância a
1
Artigo apresentado no II Simpósio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura, realizado de 10
a 13 de novembro de 2008 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
2
Arquiteta e bacharel em Filosofia, mestranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CNPq,
adrianamgs@gmail.com
3
Jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CAPES,
deborarocha111@yahoo.com.br
4
Programador visual, mestre e doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), bolsista CNPq,
eddieloja@gmail.com
5
Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação (ECA-USP), doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-
SP), bolsista CAPES, gisele.sayeg@gmail.com.
2

percorrer. A velocidade superficializa a paisagem e comprime o espaço e o indivíduo, que,


projetado no tempo, perde a noção de distância. Assim, quanto maior a velocidade da
travessia, menor será a capacidade contemplativa dos objetos e da paisagem. Tudo passa em
um relance, o olhar fica impossibilitado de se fixar. Desta maneira, a cidade é determinada
pela velocidade desse trafegar.
Ao operar no nível urbano, estes aparelhos servem para revelar outras imagens da
cidade. A cidade apropriada pelos dispositivos móveis se mostra em outras imagens, que são,
por sua vez, projetadas globalmente. A conexão wireless permite que qualquer um acesse e
interaja com qualquer ponto do planeta em qualquer lugar e momento, o que transforma
radicalmente o modo de ver, de se tornar visível e se relacionar com as imagens. Toda sorte
de conteúdo está sempre disponível. Na hibridização do urbano com o digital, a cidade perde
seus pontos de referência e ganha referencialidades. Os pontos de referência dizem respeito à
imagem real, que se fazem reais a partir do modo como nos relacionamos com suas
qualidades: a altura dos edífícios e o skyline da cidade; a extensão de uma praça etc. São
pontos nos quais se pode mergulhar enquanto metáforas. Quando transpostas para o
ciberespaço, essas imagens reais se transformam em imagens de sínteses, numéricas, pois são
as que fazem sentido no virtual.
O Google Earth e o Google Maps bidimensionalizam o espaço da cidade e criam
horizontalidades a partir de um ponto de vista inédito da paisagem urbana. Como reconhecer a
cidade agora bidimensionalizada? A verticalidade eliminada constrange o olhar, desmonta os
pontos de referência que antes serviam para indiciar os trajetos, substituindo-os por
referencialidades imateriais.
A Avenida Paulista, em São Paulo, impressiona quem por ela passa, seja em função da
coluna de edifícios gigantescos que se estendem lado a lado por toda a sua extensão, seja pela
largura das vias de circulação de veículos. O paulistano possui uma relação com a Avenida
Paulista enquanto imagem real muito diferente de quando a observa num dispositivo como o
Google Maps, por exemplo. Ali, fica difícil distinguir o MASP – Museu de Arte de São Paulo
– do Edifício Gazeta pois, destituídos de sua verticalidade e comprimidos na tela, ambos
parecem ter as mesmas dimensões. Desaparecem o vão livre do MASP, tradicionalmente
ocupado por toda sorte de atividades culturais, e as escadarias da Gazeta, ponto de encontro
das mais diversas tribos.
O indivíduo passa a reconhecer a cidade não mais a partir do sentido que ele apreende
de suas metáforas, mas agora pelas referencialidades imateriais que encontra no traçado
virtual. O mapa tem o tamanho do território: o trajeto se realiza no momento mesmo em que o
traçado se faz. Na medida em que se cria um mapa com escala 1:1, a cidade se desmetaforiza,
“escapa à esfera das metáforas para entrar no mundo dos modelos” (QUÉAU, 1993, p. 93,
grifo do autor) como imagem numérica. Ao contrário das metáforas, o modelo se dá ao teste,
à experimentação, à exploração sem limites; eis a simulação. (op. cit.)
A cidade metaforizada, por sua vez, constitui o espetáculo, no qual as relações entre as
pessoas que dela participam passam a ser mediadas por imagens. É essa cidade compreendida
como lugar, pleno de metáforas elaboradas por representações individuais e coletivas, que
cede vez à cidade avatar – a cidade reescrita no ciberespaço que levará à cidade planetária, ao
deixar de lado seus pontos de referência ou imagens espetaculares e abraçar o universo
numérico.
Auto-referente, a cidade avatar não aponta o real, mas projeta o ideal, o desejado.
Território da fluidez e da transitoriedade, ela só se lugariza no instante, porque não tem
história e nem geografia, na medida em que não tem tempo, nem espaço fixo. Não tem tempo
porque está sujeita à simultaneidade, um imenso agora, no qual a divisão entre passado,
presente e futuro – que caracteriza o tempo histórico – deixa de existir. Uma ausência de
tempo, ou um tempo que só pode ser entendido como líquido, diluído (BAUMAN, 2007).
3

Quando num continuum espaço-tempo, o tempo deixa de existir (por ser sempre o
presente) tudo que existe é o espaço em aceleração. Já não se pode estar em apenas um lugar,
em um determinado tempo, porque se está em todos os lugares simultaneamente. O que não
significa que essa simultaneidade suponha o fragmento ou elimine a diferença. Ao contrário,
ela supõe a inteireza de um outro tipo ou forma de inteligibilidade: ver, ouvir, tatear, tocar,
sentir, tudo ao mesmo tempo, agora. Como aponta Quéau:

A imagem virtual transforma-se num “lugar” explorável, mas este lugar não
é um puro “espaço”, uma condição a priori da experiência do mundo, como
em Kant. Ele não é um simples substrato dentro do qual a experiênciaq viria
inscrever-se. Constitui-se no próprio objeto da experiência, no seu tecido
mesmo e a define exatamente. Este lugar é, ele mesmo, uma “imagem” e
uma espécie de sintoma do modelo simbólico que encontra-se na sua origem.
É a própria experiência desse espaço que permite voltar à fonte da sua
inteligibilidade, isto é, ao modelo. É a experiência interativa e progressiva do
espaço que o constitui epigeneticamente como “espaço”. (op. cit., p. 94)

Por se auto-referencializar, a cidade avatar substitui a fenomenologia – que é sempre


situada no existente – pela matemática. A imagem numérica não é um “acontecimento” [e a
exemplo de Derrida, usamos o termo, aqui, com precaução]. Ela significa todas as
possibilidades, por se constituir um código numérico passível de ser operacionalizado. Já
estamos, em virtude da informação, além do acontecimento que, por sua vez, não teve lugar.
O sistema de informação substituiu o sistema da história, da contagem progressiva. O
acontecimento que é produzido pela informação não tem um significado histórico próprio
(BAUDRILLARD, 2001, p. 57). Nesse sentido, a cidade avatar é um simulacro.
Para Baudrillard não há mais possibilidade de diferenciação entre real e imaginário:

A existência de espaços como os hipermercados, organizados para que nos


relacionemos com os objetos a partir das imagens a eles associadas
(hipermercadorias), gera a fragmentação das cidades modernas e o
esvaziamento (indiferenciação) das atividades sociais. O real desertifica-se,
pois o sentido esvaziou-se. (...) Não existe relevo, perspectiva, linha de fuga
onde o olhar corra o risco de perder-se, mas um ecrã total onde os cartazes
publicitários e os próprios produtos, na sua exposição ininterrupta, jogam
como signos equivalentes e sucessivos. (COELHO, 2001)

O resultado é um espaço urbano fragmentado, acelerado, destituído das funções


sociais, onde já não se distingue tempo histórico e tempo real: “no tempo histórico, o
acontecimento ocorreu e as provas estão aí. Mas não estamos mais no tempo histórico;
doravante estamos no tempo real, e, no tempo real, não há mais prova de nada”.
(BAUDRILLARD, 1997, p. 72-73)
Dessa forma, os lugares construídos pelos mais diversos suportes materiais e tidos
como pontos de referência que identificam essa ou aquela cidade, dada a sua imensa carga
metafórica, serão apenas dígitos no ciberespaço. Esses dígitos trazem consigo a ausência de
tempo, a relação entre passado, presente e futuro, pois só dispõem do agora. É verdade que os
dígitos formam imagens numéricas, transmitidas digitalmente, mas não prescindem do
analógico para serem compreendidas por milhões de pessoas. Então, mesmo o meio digital
encontra uma forma de reconstruir o analógico, já que se trata de possibilidade intrínseca ao
meio comunicativo. Ou seja, se a cidade se desmetaforiza pela digitalização, ela encontra
outras formas para se remetaforizar enquanto meio comunicativo.
Em São Paulo, a remetaforização fará a cada ano da Avenida Paulista, uma passarela,
uma verdadeira praça horizontal durante a parada gay. Essa passeata lugariza a Avenida
4

Paulista com a apropriação festiva dos participantes que celebram o orgulho gay e protestam
contra o preconceito, mas o impacto dessa lugarização não se atém a São Paulo, alcança o
planeta. Afinal, trata-se do maior evento do tipo no mundo todo, contando, nos últimos anos,
com mais de 3 milhões de participantes. 6
É interessante notar que, ao menos na sua edição mais recente, em 2008, a parada foi
um evento em grande parte articulado pela Internet, uma forma de planejamento que revela a
desmetaforização da cidade na rede. A Avenida Paulista, durante a fase de organização da
passeata, será referencialidade para quem pretende participar do desfile. Mas, durante o
evento, a Avenida Paulista será remetaforizada e recuperará seus pontos de referência, ainda
que por um instante fugaz e efêmero que corresponde ao momento exato da passeata.
Extrai-se daí a necessidade de uma inteligência conectiva (KERCKHOVE), derivada
da rede mundial de computadores, aberta e em expansão, que proporciona os meios de
convergência, traduzida pela nova multidão (HARDT e NEGRI, 2001) que faz com que o
digital permita a reapropriação da cidade e a retomada de sua capacidade de decisão.
A dinâmica desmetaforização e remetaforização observada na Avenida Paulista,
durante a parada gay, indica o quanto o lugar será concebido na cidade planetária de forma
diversa do lugar próprio da cidade “espetáculo”. Se o lugar espetacular é assinalado por um
ponto de referência fixo, bem conhecido e passível de ser encontrado a qualquer tempo, o
lugar planetário será configurado em tempo real, não possuirá duração, mas conceberá novas
metáforas a fim de gerar consequências político-sociais.

2. A cidade e o ciberespaço
Com a globalização e a tendência à homogeneização da cultura, o espaço parece não
mais se situar; ao contrário, ausenta-se. Nômades digitais procuram, no ciberespaço, um lugar
onde possam construir identidades. O lugar de encontro é o “nenhum lugar”, o ciberespaço,
que transforma o mundo em uma sala de passagem. O deslocamento, errante e sem percursos
pré-definidos, ocorre num espaço sem limites ou territórios, marcado pela possibilidade
tecnológica do acesso informacional. Com a tecnologia digital, conceitos e representações de
tempo e espaço vigentes desde a antiguidade pedem uma revisão de seus elementos
constituintes: “A nova comunicação digital e o ciber-espaço surgem como um desafio porque
assinalam a perda dos paradigmas de estabilidade que caracterizavam o espaço físico,
geográfico ou territorial” (FERRARA, 2007, p. 28).
A velocidade das transformações banaliza o tempo histórico na medida em que nos faz
perceber que o tempo gasto num deslocamento pode ser menor do que a distância envolvida.
Na era do digital, caracterizada pela velocidade por aceleração, o tempo é o presente e o
espaço é o aqui (onde se está). Os paradigmas temporais e espaciais que estruturaram a
ciência ocidental (temporalidade contígua, causalidade) perdem sua aparente eficácia diante
de um tempo inseguro, impreciso e desconfortável, bem como de um espaço que não está
situado definitivamente, mas é construído na mobilidade de suas espacialidades.
O presente é o espaço em que ocorrem as coisas presentes, um espaço sem tempo (sem
passado, nem futuro), ou seja, é o espaço da complexidade sistêmica. O fixo se torna fluxo, o
objeto se torna líquido – daí decorre a dificuldade de se trabalhar o espaço, de identificá-lo, já
que este se desmonta e se remonta em um processo contínuo, onde não se tem condição de
perceber o que vem antes e o que vem depois, já que tudo ocorre ao mesmo tempo. O
ciberespaço e a cibercultura obrigaram, portanto, à realização de um revisão na teoria do
6
Segundo a Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, em 2007, o evento reuniu 3,5 milhões de
participantes e em 2008, 3,4 milhões. Ver: Público da Parada Gay cai para 3,4 milhões, diz ONG após medição.
Folha Online, 28/05/2008. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u406419.shtml. Acesso em
08/10/2008.
5

espaço.
Como a cidade é reescrita pelo digital? O que acontece, por exemplo, ao se acessar o
Google Maps, dispositivo gratuito que possibilita a visualização, via web, de imagens da
Terra feitas por satélites, com maior ou menor proximidade (zoom)? Estados Unidos, Canadá,
Europa e Brasil já têm mapas e rotas de pontos importantes disponíveis, e é possível cadastrar
empresas e encontrá-las nas imagens da rede. Além disso, pode-se criar suas próprias rotas,
destacar pontos relevantes e áreas de interesse, fazer comentários e compartilhar este
conteúdo através de links de acesso ao novo mapa criado.
Na cidade, os pontos de referência indicam caminhos, indiciam o deslocamento,
marcam o trajeto. As imagens numéricas do ciberespaço, por sua vez, estão presentes no
tempo atual e auto-referencial. A cidade planificada (imagens que não têm dimensões,
profundidade) é vista por meio de sua funcionalidade: o MASP e o Edifício da Gazeta são
identificados no Google Maps, por exemplo, por sua função de identificação instrumental e
não por sua função social. Destituída de pontos de referência, já que estes se tornaram
desnecessários – não remetem mais a coisa alguma –, explicitam referencialidades que não
perduram.
Pode-se falar em mapa aqui, já que o ciberespaço se confunde com o próprio
território? Desenhado pelo dispositivo digital utilizado para identificá-lo, o ciberespaço abarca
imagens numéricas que se identificam com a própria natureza do dispositivo que as produz e
acaba por substituí-las. A relação perceptiva se dá, portanto, não mais com a imagem, mas
com o dispositivo que a produz. Tem-se um simulacro, a perda do ponto de contato entre a
imagem e o objeto representado, e a imagem de síntese passa a valer por ela própria.
Em toda imagem existe a possibilidade de se empreender uma arqueologia do objeto.
Através de uma escavação arqueológica, pode-se tentar desvelar possibilidades de dizer, de
representar o objeto. Desconstruir, tal como apontava Derrida (que criticava a cultura
ocidental, baseada num racionalismo pretensamente universal, e partia para uma
desconstrução – e não destruição – da metafísica logocêntrica), ou seja, abordar criticamente
qualquer prática ou teoria, desmontar as experiências para compreendê-as. Desconstrução não
como um mero método ou procedimento de análise, mas com a intenção de expor a
insuficiência de uma estrutura formal que não é mais capaz de explicar muito. Perceber nas
ausências outras possibilidades de representação, alimentar-se daquilo que não se mostra.
Desmontar a estrutura e descentrar os sentidos consolidados.
O ciberespaço e sua imagem auto-referencial (que não precisa do outro para se
completar) parecem dificultar tal processo. O digital não trabalha com a desconstrução pois,
ao criar uma realidade que não tem tempo nem espaço – uma realidade numérica, um dígito,
um algoritmo – , impossibilita o trabalho analógico. Aqui não há imaginário – o tempo é o
tempo real, o espaço idem.
A imagem numérica nega a alteridade, a mediação e impossibilita a comunicação, a
troca. O dispositivo, no entanto, tem a possibilidade de gerar interatividade a partir de suas
conseqüências, transformando-se em meio. É dessa forma que uma multidão de minorias
consegue, através do suporte digital, enorme capacidade mediativa, com inúmeras
conseqüências, que podem ser situadas, datadas, marcadas em termos temporais, espaciais,
geográficas etc.
Paradoxalmente, a interação face a face parece não ter se perdido no ciberespaço. A
comunicação (o surgimento e a manutenção de vínculos) ocorre de forma similar às cidades,
numa rede de mediações – mas que agora são tecnológicas. A criação destas redes de
mediações torna-se possível, neste espaço-tempo onde o pertencimento a um determinado
grupo faz-se mais importante do que qualquer fragilidade do meio – já que espacialidades são
cada vez mais frágeis e momentâneas, esporádicas e de vida cada vez mais curta. O que
importa é pertencer e aparecer (ligado à visibilidade e ao simulacro como mais uma
6

possibilidade de mediação). Hoje.


3. Dimensões comunicativas da Avenida Paulista
A rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria
celeste destruir a cidade; se conservar a rua do Ouvidor, conserva Noé, a
família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da
cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os
sentimentos e todas as idéias... (Tempo de crise, Machado de Assis)

A cidade é palco e é ator, é sujeito e objeto comunicativo. Para Machado de Assis,


tem um corpo de pedra e um rosto. Em São Paulo, a Avenida Paulista é apenas um dos muitos
rostos que a revelam como cidade. Será que se pode dizer que é “o rosto” de São Paulo?
Também há o Horto Florestal, o centro e a Sé, a Rua Oscar Freire, a Avenida 23 de Maio, a
25 de Março, a José Paulino, a Faria Lima e muitos outros rostos “eloqüentes que exprimem
todos os sentimentos e todas as idéias”. São Paulo é, sem dúvida, múltipla, como a Hidra de
Lerna aterrorizante com suas inúmeras cabeças mitologicamente associadas aos vícios e
perversões. A própria Avenida Paulista se faz múltipla, a exemplo do mito enfrentado por
Hércules em um dos seus doze trabalhos.
Mas a Paulista também é corpo, microcosmo em relação à megalópole que a
envolve, macrocosmo daqueles que a apropriam todos os dias. Corpo de pedra, concreto, aço
e algum verde, composto por inúmeras possibilidades. Meio que se desvenda e esconde, que
põe à mostra e oculta, que permite e limita inúmeras possibilidades e dimensões
comunicativas. A Paulista não é uma ou outra coisa; mas, sendo uma e/ou outras muitas, só
pode ser lida a partir dessa ambigüidade que a constitui:

ou seja, a cidade [e a própria Paulista] é, ao mesmo tempo, objeto


comunicativo e sujeito da própria interação que nela se desenvolve: entre as
duas possibilidades podemos salientar a dimensão do seu ambiente mediativo
e observar as nuances e nexos que se estabelecem entre meio, mídia e
interação (FERRARA, 2008, p. 43).

“O meio é a pele da cidade” (op. cit., p. 44), edifícios, ruas, monumentos, todos
aqueles suportes que, em sua concretude, criam os ambientes que podem ser os facilitadores
ou inibidores da comunicação. “A imagem da cidade é a sua mídia” (op. cit., p. 45), ou seja, a
imagem que instrumentaliza sua paisagem e sua visualidade, indicando (e quase
determinando) o modo de olhar e, como conseqüência, de se relacionar com a cidade. A
imagem midiática pretende representar os desejos individuais e coletivos daqueles que vivem
a cidade, pretensamente de modo sempre novo e original. No entanto, só o pode fazer , a cada
nova imagem, impondo um “significado de mão única”, que ignora as contradições, as
ambigüidades e as transformações provocadas pela interação do homem e a cidade.
O próprio plano urbano procura transformar a cidade em mídia, dispondo-a de
forma a valorizar imagens e gerar visibilidades distintas; o que, por sua vez, não significa,
necessariamente, que a cidade seja meio. Vide Brasília, como exemplo. Ou mesmo as
dimensões agigantadas (tanto vertical como horizontalmente) da Avenida Paulista.
Já a mediação, por se constituir o seu “grau zero”, não pode (e não o faz) prescindir
da mídia. Ao contrário, toma como ponto de partida as imagens e possibilidades que dela
advém:

a mediação supera a imagem e é processo, justaposição de experiências e


movimento em transformação contínuos. (...) [uma] complexa experiência que
atinge, ao mesmo tempo, o usuário e a cidade e, nessa relação ética, ambos
7

aprendem a encontrar as melhores alternativas e soluções, independentes de


programas e planos indutores de usos, funções e valores. (op. cit., p. 49)

A Avenida Paulista se faz meio pelos altos prédios de concreto e vidro; os, hoje já
raros, casarões seculares, que quebram, em alguns poucos pontos, a verticalidade que a
circunda; pelo parque, cujo verde desafia o cinza que dá tom ao espaço; nas estações de metrô
e paradas de ônibus que a todo momento alimentam o fluxo ininterrupto; etc. A largura de
suas vias e calçadas impressiona não apenas os turistas, mas também quem vive na cidade.
E se faz mídia, por exemplo, na gigantesca linha reta que se abre aos olhos – como
um trajeto de imensas promessas compostas por aço e vidro – uma das imagens mais comuns
da avenida. Não importa se a imagem ilumina o Museu de Arte de São Paulo e ao fundo a
antena da Gazeta, ou se destaca o prédio da FIESP, a Praça dos Expedicionários, a Casa das
Rosas, Parque Trianon: a linearidade de dimensões assombrosas e a largura das vias, quase
sempre, ajudam a conduzir o olhar.
Mas a imagem é apenas o “grau zero” de um processo de mediação. A largura e a
extensão da Paulista impressionam, sobretudo, os paulistanos, pouco habituados a outros
caminhos nas mesmas proporções. Por outro lado, pode gerar impactos distintos, de acordo
com o “interator”.7
Vista do alto, a avenida se assemelha a um corpo gigante, composto de uma
infinidade de veias que permitem o cruzamento e intersecção de carros e pedestres de um
ponto a outro, como que a alimentar de vida o próprio organismo da cidade. O ritmo, marcado
pelos semáforos, garante a sensação de fluxo contínuo e aceleração que marca a Paulista a
qualquer hora do dia ou da noite. Por outro lado, quem vai a pé está permanentemente envolto
por sua verticalidade, a amplitude em linha reta e o contato constante com outros milhares de
corpos e olhares anônimos. De carro ou ônibus, se o trânsito flui, a linearidade toma conta da
visão e, de certa forma, achata a verticalidade da avenida. Em um ou outro caso, torna-se cada
vez mais comum a apropriação das imagens da avenida por dispositivos digitais (em
aparelhos celulares ou GPS, por exemplo), que, por sua vez, acabam funcionando como
extensões do próprio meio Avenida Paulista / cidade de São Paulo.
E como se dá a mediação, nesse corpo com tantos rostos? O monstro mítico mesmo
se dá à mediação. As tribos todas que circulam pela Paulista – dos trabalhadores e
engravatados homens de negócios que parecem dominar a paisagem durante os dias da
semana; aos gays e travestis que ocupam as noites da avenida (sobretudo no Parque Trianon);
passando pelos emos, punks, skinheads e outras tribos – apropriam-se de suas múltiplas
imagens e as transformam e reconstroem permanentemente. Nesse sentido, a materialidade
real da Paulista acaba por se revelar “como mediação na grande experiência coletiva que é
dada ao homem descobrir e viver” (ops. cit., p. 52).
Já na imaterialidade virtual da Avenida Paulista, apropriada por toda sorte de
dispositivos digitais, a mediação só pode se dar a partir das histórias que são engendradas e
que se apropriam do analógico/material. Isso porque, ao ser transformada em número e

7
Em palestra conferida na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), em setembro de 2008, o professor
italiano Franciscu Sedda (Torvergata/Sapienza), recém-chegado de uma viagem aos Emirados Árabes Unidos,
afirmou que a largura da Paulista deixa de impressionar depois que se conhece a Sheikh Zayed Road.
Considerada a maior avenida do mundo, a Sheikh Zayed Road corta Dubai e possui uma característica única,
segundo Sedda: não há possibilidade – ou ao menos não há passagens visíveis – de pedestres atravessarem de um
lado a outro da avenida. Bem diferente da Avenida Paulista que, a cada 30 ou 50 metros, é cortada por passagens
de pedestres com sinalização aérea e de solo. Ressalte-se, aliás, que em toda Dubai as imagens mídiaticas
propiciadas por construções gigantes (concluídas, em obras ou apenas em projeto) proliferam e ajudam a
construir sentidos de cidades: Palm Islands, Burj Dubai (o arranha-céu mais alto do mundo), o Hotel Burj Al
Arab (que parece flutuar sobre o mar), o arquipélago The World, etc.
8

desprovida de tempo e espaço fixo, o digital produz uma realidade integral, onde são
rompidas as possibilidades de trabalhar com o imaginário e de se criarem as metáforas.
A visualidade da Avenida Paulista faz dela um dos órgãos principais do corpo da
cidade de São Paulo, órgão que se permite multiplicar como cartão postal nas tomadas
fotográficas e televisivas. É uma visualidade midiática que convida à interação, o que a
transforma em grande praça, assim como revela a falta de espaços que possam dar conta da
concentração e da expressão públicas:

Em São Paulo, a ocupação imprevista de um ponto de grande visualidade


midiática como a Avenida Paulista, a transforma, de um lado, em grande praça
onde se rotaciona a influência da imagem dos lugares horizontais das grandes
metrópoles mundiais que se concentram nas avenidas e a transformam, desde
o antigo espetáculo de 1968, em Paris, no lugar do espetáculo urbano. Mas,
por outro lado, indicia a falta, em âmbito mundial, de espaços que, pela
adequação da sua escala, possam permitir, agasalhar ou estimular a
concentração e a expressão públicas, supostamente cada vez mais rejeitadas
politicamente. (op. cit., p. 51)

No cenário da cidade de São Paulo, a visualidade da Avenida Paulista estimula a


metaforização e a sua apropriação a transforma no lugar ideal para a agregação popular.
Afinal, o cartão postal, visitado e revisitado a cada menção feita a São Paulo, torna a avenida
tão visível que ela será capaz de fazer tudo o que nela acontece também muito visível. A
avenida será o local mais aspirado, mais procurado para enviar uma mensagem ao maior
número possível de pessoas simultaneamente, ela será o local mais buscado para a experiência
da interação pública. Ou seja, a visualidade desse meio possibilitará que a mídia Avenida
Paulista possua tamanha visibilidade que a dotará com a capacidade de tornar visível
automaticamente tudo o que nela acontece.
Daí, a Avenida Paulista ser o palco mais desejado de São Paulo. Um palco que garante
a construção de novas metáforas.

4. O virtual e a construção de uma nova metáfora


Numa busca rápida pelo Google, apenas nas páginas em português, clicando no ícone
Imagens, é possível encontrar mais de 52 mil arquivos referentes à Avenida Paulista. São
mais de 52 mil formas de ver a avenida, 52 mil possibilidades de concebê-la ou 52 mil modos
de metaforizar a Paulista.
As metaforizações mais comuns da avenida e seus arredores instituem a região como
centro financeiro; pólo de cultura e lazer que abriga museus, teatros, salas de cinema, livrarias
e restaurantes; referência hospitalar, pois é o endereço de vários hospitais, laboratórios e
institutos de pesquisa da área de saúde; referência educacional, pois é a sede de vários
colégios e escolas de renome; ponto turístico e complexo viário, uma vez que integra vias
importantes como Rua Brigadeiro Luís Antônio, Rua da Consolação, Avenida Rebouças,
Avenida Doutor Arnaldo, Avenida 9 de Julho e Avenida 23 de Maio.
Há, também, a metaforização dada pela História da Avenida Paulista que a coloca
como ponto histórico da cidade de São Paulo, local escolhido pelos barões do café para
construir seus casarões e residir. E, ainda, as metaforizações que dizem respeito a festividades
e manifestações como o Réveillon na Paulista, a Corrida de São Silvestre, a Parada Gay e toda
sorte de protestos.
Trata-se da cidade espetáculo que se nutre da simulação, que se mostra mas não faz
ver. Ela é espetáculo enquanto exponibilidade, é cena expositiva e contemplativa, na medida
em que ao mesmo tempo em que se vê, se é visto. O espetáculo de Debord, pelo nosso
9

entendimento, pode ser tomado como metáfora do fetiche da mercadoria, justamente porque o
que faz o espetáculo é a mercadoria fetichizada. Nesse sentido, sociedade do espetáculo é a
sociedade do valor que se apropria das metaforizações para gerar esse valor.
No entanto, quando a Avenida Paulista é transposta para o ambiente digital, quando é
localizada com o auxílio de um dispositivo como o Google Maps, por exemplo, a cidade
perde suas metáforas ao perder seus pontos de referência, ao mesmo tempo em que se
bidimensionaliza. Trata-se da cidade avatar, cujas ruas, para serem percorridas, necessitam de
uma navegação sempre auto-referencial, que se basta ao não remeter a mais nada, e se faz
através de referencialidades e não mais por pontos de referência.
Mesmo as propagandas e banners publicitários inseridos num mapa digital (como por
exemplo, os endereços de bancos ou postos de gasolina sugeridos num trajeto qualquer) são
pontos de consumo, ou supostas referências (referencialidades). A ausência de pontos de
referência se deve à própria ausência de metaforização da cidade. Durante essa navegação,
somos guiados pelos mapas e não pela geografia urbana.

Fonte: http://maps.google.com.br/maps?utm_campaign=pt_BR&utm_source=pt_BR-
ha-latam-br-bk-gm&utm_medium=ha&utm_term=google%20maps

O exemplo da Parada Gay


A Parada do Orgulho GLBT – Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros, realizada
anualmente na cidade de São Paulo desde 1996, tem sido considerada a maior parada gay do
planeta. Em 2008, com o tema Homofobia Mata! Por um Estado Laico de Fato, a organização
do evento estima que a parada tenha reunido 3,4 milhões de pessoas na Avenida Paulista e
arredores, o que transformaria um dos centros financeiros e culturais da maior cidade
brasileira numa imensa passarela.
10

Na cidade espetáculo, a Parada Gay é espetáculo carnavalizado, onde o valor de troca


se sobrepõe ao valor de uso. Basta lembrar que atrai todos os anos, milhares de turistas,
vindos de todas as partes do Brasil e do mundo. Segundo a empresa São Paulo Turismo
(SPTurism), este já é o segundo maior evento da cidade de São Paulo e um dos maiores do
Brasil, em termos de movimentação financeira relacionada ao turismo. Em 2008, a estimativa
era de que mais de 320 mil turistas, entre os quais 5% estrangeiros, prestigiassem o evento,
movimentando em torno de R$ 190 milhões e gerando 13,5 mil empregos diretos e indiretos.8

Parada do Orgulho GLBT na Avenida Paulista (Fontes: www1.folha.uol.com.br e g1.globo.com)

Se o evento pode ser compreendido como passeata para reivindicar os direitos dos
homossexuais e atuar como ação afirmatória contra a discriminação, ele também se revela
como a festa que contagia a cidade inteira com a alegria e a irreverência dos participantes. É a
oportunidade de uma minoria se tornar visível ao desfilar em trajes cheios de brilho e pompa e
colorir a Avenida Paulista com o arco-íris, símbolo mundial da homossexualidade.
Nesse sentido, a parada paulistana se aproxima muito mais do carnaval do que
concentrações como as Diretas Já ocorridas durante a ditadura, o que de modo algum diminui
a sua forma de mobilização. Afinal, o humor pode denunciar tão bem o preconceito e
reivindicar mudanças quanto o discurso sério e compenetrado de outras linguagens.
Cheia de graça e comicidade, a parada lembra o desfile das escolas de samba no
Sambódromo do Anhembi, projetado por Oscar Niemeyer. Ao ter lugar numa avenida larga e
retilínea como a Paulista, com milhares de espectadores posicionados nos prédios que a
ladeiam, a parada repete a espacialidade encontrada no sambódromo paulistano, na qual,
enquanto a escola desfila na pista, das arquibancadas, o público acompanha a evolução dos
foliões. Assim, cria-se uma ortogonalidade: espectadores nos edifícios e arquibancadas
indicam a verticalidade; manifestantes e passistas no chão respondem pela horizontalidade.
No eixo horizontal, a marcha dos participantes liga os dois extremos da Avenida
Paulista, do Paraíso à Consolação, em linha reta. Trata-se de uma horizontalidade explorada a
cada passo que, pela concentração de tanta gente, faz desaparecer o asfalto. O ápice ocorre
quando a bandeira do arco-íris, levada pelos manifestantes, recobre a Avenida Paulista. A
avenida agora canta e dança sob uma única bandeira, ou melhor, a avenida se transforma, ela
mesma, numa bandeira colorida. A Avenida Paulista encontra uma nova forma de
remetaforizar-se.

8
http://g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL535251-15561,00-
SELO+VAI+IDENTIFICAR+LOJAS+QUE+ATENDEM+BEM+PUBLICO+GAY.html
11

A bandeira do arco-íris recobre a Avenida Paulista


(Fonte: O Estado de São Paulo)

Nessa remetaforização, esse local de São Paulo é apropriado e se torna o lugar do


encontro, da afirmação de um estilo de vida. Agora, a Paulista é o lugar da convivência e da
recreação que caracteriza a praça, o lugar onde a comunidade comparece para ver e ser vista.
Embora a arquitetura da praça esteja em grande parte associada à idéia de círculo ou
quadrado, centralizados e circundados pela cidade em trânsito, o que de fato cria a sua
espacialidade é a lugarização que oferece visibilidade aos membros de um grupo. Desse
modo, e a despeito de sua construção retilínea, a Avenida Paulista passa a funcionar como
praça.
Trata-se, porém, de uma lugarização momentânea, fugaz e que corresponde ao
momento exato da parada. Ao término do evento, o lugar será desfeito. Ele somente será
reconfigurado no próximo ano quando uma nova edição da parada gay acontecer.
É interessante notar que a articulação de toda essa mobilização, ao menos em 2008, foi
realizada em grande parte pela Internet. Ou seja, na rede mundial de computadores, pessoas
de diferentes partes do planeta se comprometem a comparecer ao mesmo local, na mesma
data e no mesmo horário para defender a mesma causa. Na passagem para o digital, a
desmetaforização alcança o ponto máximo, pois o que transita na rede são apenas dígitos,
códigos numéricos que fazem da Avenida Paulista pura referencialidade, destituída de
analogias.

Carnaval contra o preconceito (Fontes: www.estadao.com.br/cidades/not_cid177793,0.htm e


http://www.portalaz.com.br/noticias/sexo-geral/108104/20
12

Para articular a parada gay da cidade de São Paulo, cria-se na rede uma cidade avatar,
de amplitude planetária, que proporciona os meios de convergência da nova multidão (Hardt e
Negri, 2005 e 2006) a um único ponto do globo em dia e hora determinados. Para além da
multidão do século XIX, a multidão de minorias deste século caracteriza-se pela capacidade
de articulação em nível global, mantendo-se como um conjunto de singularidades. Ela não
pode ser confundida com povo, classe social, população, turba ou massas. Apesar de se
organizar com vistas à realização de um objetivo comum e de não ser fragmentada, a multidão
permanece múltipla, heterogênea, e muitas vezes anárquica e incoerente. Ela surge, se
organiza, existe e desaparece em questão de instantes. Mantém-se apenas enquanto perdurar o
objetivo que une indivíduos tão diferentes. Diferente do corpo humano, a carne viva da
multidão, para Hardt e Negri, governa a si mesma:

A carne da multidão é puro potencial, uma força informal de vida, e neste


sentido um elemento do ser social, constantemente voltado para a plenitude da
vida. Dessa perspectiva ontológica, a carne da multidão é uma força elementar
que constantemente expande o ser social, produzindo além de qualquer
medida de valor político-econômico tradicional. Qualquer um pode tentar
capturar o vento, o mar, a terra, mas eles sempre serão mais do que podemos
apreender. Do ponto de vista da ordem e do controle políticos, assim, a carne
elementar da multidão é desesperadoramente fugidia, pois não pode ser
inteiramente enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político (2005, p.
251).

Desmetaforizada, a cidade – já não mais espetáculo – é transposta para a rede. Num


processo de inteligência conectiva (Kerckhove), os participantes da parada utilizam a rede
para engendrar uma nova metáfora da Avenida Paulista. Mas para que o processo ocorra,
esses participantes precisam passar pela experiência da cidade avatar, onde a parada gay não
mais está restrita à Avenida Paulista ou à cidade de São Paulo. Para remetaforizar a Avenida
Paulista a seu modo, é preciso desmetaforizá-la primeiro no ciberespaço. Remetaforizada, a
cidade volta a ser lugarizada durante o evento.
Os interessados pelo evento agregam-se virtualmente em uma nova multidão e
compartilham a concepção dessa metáfora, articulada como uma nova apropriação simbólica
da Avenida Paulista, que deverá gerar outras conseqüências político-sociais.

5. Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. Tempo de crise. In Jornal das Famílias, Rio de janeiro, 1873, p. 105-116. Fonte:
Contos Avulsos – Machado de Assis – org. R. Magalhães Júnior. Editora Civilização Brasileira / Cia
Brasileira de Livros, 1956. Disponível para download em: http://www.esnips.com/doc/8c16b655-
08a9-4711-9502-088c4ed06d4a/Machado-de-Assis---Contos-Avulsos. Acesso em 09 de outubro de
2008.
BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
____________ . Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
____________ . Tela Total – Mito-Ironias da Era do Virtual e da Imagem. Porto Alegre: Sulina,
1997.
COELHO, Cláudio Novaes Pinto. A comunicação virtual segundo Lévy e Baudrillard. In: Anais do
XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação INTERCOM, 2001, Campo Grande. 2001.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1997.
DERRIDA, Jacques. Aescritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Cidade: meio, mídia e mediação. Matrizes. Revisra do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo. N. 2, abril de 2008.
13

____________ . Design em espaços. São Paulo: Edições Rosari, 2002.


HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e democracia na era do Império. São Paulo:
Record, 2005.
____________ . Império. 8a ed. São Paulo: Record, 2006.
KERCKHOVE, Derrick De. A imobilidade na era do tag. Palestra conferida durante o 3o Simpósio de
Comunicação da Fapcom – Comunicação e Mobilidade. São Paulo, 25 de agosto de 2008.
LEMOS, André (2007). Cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massivas e territórios
informacionais. Matrizes. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da
Universidade de São Paulo. N. 1, outubro de 2007.
QUÉAU, Philippe. O tempo do virtual. In: PARENTE, André (org.). Imagem Máquina: a era das
tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 91-99.

Você também pode gostar