Perfil*

Para ser palhao dos Doutores da Alegria preciso uma dose grande de desejo para ir duas vezes por semana e ficar seis horas a cada dia transitando num ambiente adverso, raciocinando sob uma outra lgica. preciso querer muito estar num hospital, fora do foco das luzes, do cuidado que cerca uma produo teatral e mesmo da proteo que o palco, o picadeiro e a rua nos inspiram lugares em que a cena, a fico est delimitada. A proximidade da platia num hospital grande e a solicitao, intensa. Ningum no hospital espera a visita de um palhao, ningum est l para isso. preciso estofo pra estar inteiro, no se distanciar do propsito e nem se apiedar sentimento que serve muito pouco quando se quer estabelecer uma relao de igualdade e de confiana conquistada na graa. O palhao tem que ter maturidade e uma boa bagagem artstica pra acionar. Basicamente, para ser um Doutor da Alegria, preciso ter disponibilidade pro outro, pro jogo , olhar e escuta pra perceber as situaes, as circunstncias, criatividade pra transform-las e, mais que tudo, vontade de mergulhar na mscara. Sensibilidade refinada, sentidos ligados pra transformar as dificuldades, criar beleza, valorizar os encontros. Tem que ser artista. Nosso trabalho construdo na imaginao, frgil bea, e todo espao em volta muito concreto, a solicitao do real pungente. De uma hora pra outra, tudo urgente, o soro que acaba, a veia que escapa, a cirurgia marcada, traz a comadre, o corao que pra, toma o suquinho, olha quem chegou! O hospital um ambiente de convergncia e disperso, tem muita gente circulando e fazendo coisas, um desfile de remdios, cuba, rim, carrinho de comida, TV ligada, visita, enfermeira, voluntria, mdico, faxineiro, segurana... s a criana e o palhao esto l de bobeira, se perguntando: - o que que estou fazendo aqui?!... criana se pede isso mesmo: passividade seja paciente; por isso que, para um palhao num hospital, o foco de toda ao a criana, nossa funo despertar nela o desejo de agir, brincar. Precisamos cuidar da energia, para poder estar sempre disponveis, e da alegria, que a matria-prima do nosso trabalho. No que um palhao no possa ir trabalhar de mau-humor, ou triste, ou com dor... afinal, so 6 horas seguidas na funo, e ningum se ausenta por tanto tempo, mas desde que seja o palhao a bendita fico! a estar virado, com sono, com dor. At para ressignificar tanto sentimento. *Texto de Soraya Sade com trechos do texto A experincia de treinar palhaos para o hospital nos Doutores da Alegria, publicado no livro Boca Larga Vol. I