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Quarta-Feira, 15 de Abril de 2009 Director: Paulo Gaião

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Cunha Rivara, o Orientalista português faz 200 anos
automóvel 2009-02-20 09:43
cultura

desporto
Ao contrário de portugueses com mentalidade colonial e
interessados em implantar a língua portuguesa, ignorando ou
economia desprezando as culturas nativas, Cunha Rivara acreditava que a
internacional língua portuguesa só podia ser melhor difundida em Goa
através das línguas vernáculas dos goeses, nomeadamente o
opinião
Concani e o Marata, como meio da instrução pública.
política

sociedade J. H. da Cunha Rivara: o Orientalista português faz 200 anos


edição impressa
Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara foi filho de uma linhagem não-
Pesquisa portuguesa, uma mistura de famílias italiana e espanhola. Nasceu em
ok Portugal, em Arraiolos, região famosa pelos seus tapetes, em 23 de
em sociedade Junho de 1809. Comemora-se este ano o 2.º centenário do seu
nascimento. Cunha Rivara, além de uma rua com o seu nome, tem
em Semanário.pt
também um agrupamento de escolas a ele dedicado. Embora formado
sondagem em Medicina pela Universidade de Coimbra, tal como fora o caso do
José Sócrates poderá ser
seu pai, começou a sua carreira como professor de filosofia nas
afectado politicamente
pelo Caso Freeport? escolas, e serviu como bibliotecário na Biblioteca Pública de Évora. Foi
Sim eleito deputado para a "Real Câmara dos Deputados" em 1853, e
terminou a sua carreira como secretário do Governo e comissário de
Não
Estudos na Índia Portuguesa. Ficou quase 22 anos na Índia e regressou
Talvez a Portugal em 1877, onde morreu dois anos depois, sem qualquer sinal
Votar visível de reconhecimento público. Não era de admirar perante a
tradição portuguesa de ciúme e inveja que o célebre jesuíta luso-
brasileiro António Vieira descreveu no seu estilo inimitável: "Lusitânia,
assim chamada, porque não deixa a ninguém luzir." Este será o
primeiro de uma série de artigos que lhe irei dedicar, no decorrer deste
ano, para lembrarmos este administrador-historiador que deixou a sua
marca em Goa, combinando patriotismo com investigação e estudos.
Ao contrário de portugueses com mentalidade colonial e interessados
em implantar a língua portuguesa, ignorando ou desprezando as
culturas nativas, Cunha Rivara acreditava que a língua portuguesa só
podia ser melhor difundida em Goa através das línguas vernáculas dos
goeses, nomeadamente o Concani e o Marata, como meio da instrução
pública. Logo após a sua chegada a Goa, Cunha Rivara transmite esta
sua convicção numa conferência de inauguração da Escola Normal em
Nova Goa (Panjim), em 1 de Outubro de 1856. O texto da sua
conferência saiu publicado no Boletim do Governo, n.º 78".
Dois anos mais tarde, em 1858, produziu o seu Ensaio Histórico
Recomendável na Língua Concani. Ao contrário de muitos outros textos
portugueses que não encontraram tradutores, A.K. Priolkar decidiu
incluir uma tradução do Ensaio como Parte II do seu livro "The Printing
Press in Índia" (Bombay, Marathi Samshodhana Mandala, 1958, pp.
141-236) para comemorar o centenário da sua publicação, e como
parte das celebrações do 4.º centenário da introdução da invenção de
Gutenberg em Goa. Infelizmente, A. K. Priolkar procurou puxar a brasa
à sua sardinha, fazendo um aproveitamento ideológico para a sua
campanha contra Concani. Defendia que Concani era dialecto ou
versão corrupta do Marata. As opiniões do orientalista Robert X.
Murphy e do carmelita italiano Francis Xavier, citadas por Cunha
Rivara, serviam bem as expectativas de Priolkar. A vivência e os
conhecimentos culturais de Cunha Rivara na Península Ibérica fizeram-
no mais sábio, se não era mera prudência respeitar a semelhança e a
distinção do Marata e Concani, desenhando paralelo com as línguas
espanhola e portuguesa. O Ensaio de Cunha Rivara deveria ser
divulgado entre os jovens nas escolas de Goa para ser conhecido do
público comum uma versão fiável das vicissitudes da língua Concani
durante o domínio colonial português. Até quase 1684 a Igreja católica
em Goa estimou e activamente cultivou a língua Concani como um

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meio eficaz da pregação do cristianismo e exercício pastoral. Os


decretos dos cinco concílios provinciais da Igreja em Goa, entre 1567 e
1606, bem como a Constituição da Arquidiocese de Goa e instruções
das ordens religiosas aos seus sacerdotes nas paróquias, insistiram
sempre na necessidade de produzir catecismos, confessionários,
vocabulários e gramáticas que permitissem aos missionários interagir
com os naturais. Ironicamente, foi durante esta fase aparentemente
positiva que Concani absorveu uma grande dose da influência
portuguesa. Enquanto os colonizadores podem vê-lo como o
enriquecimento de Concani, os linguistas indianos (inclusive S.R.
Dalgado na sua Introdução ao seu Dicionário Português-Concani,
Bombaim, 1905, páginas XV-XVI) viram este facto como
enfraquecimento da língua.
Cunha Rivara atribui a modificação da atitude dos missionários face à
língua Concani a partir do século XVII à falta de zelo e perda do "cheiro
da santidade". Cunha Rivara, bem como a maior parte dos
investigadores até à data, inclusive o jesuíta Delio Mendonça, o actual
director do Xavier Centre of Historical Research em Goa, que na sua
tese de doutoramento publicada recentemente Conversions and
Citizenry (2002), não conseguiram ver a conexão entre o conflito
crescente entre os religiosos brancos e o número crescente dos
clérigos nativos que reivindicavam o seu legítimo lugar na hierarquia e
serviço pastoral.
O descontentamento do clero nativo e a sua exigência para assumir os
cargos de párocos foram vistos como uma ameaça ao seu sustento
pelas ordens religiosas, que resistiram com unhas e dentes às
pretensões do clero nativo. Apelaram à coroa como autoridade legítima
sobre a Igreja do Padroado, ultrapassando a autoridade dos arcebispos
locais, que, como era o caso do Frei Brandão em 1680, mostrava-se
favorável aos padres nativos. É óbvio neste contexto que os
franciscanos e os jesuítas promoveram e defenderam a legislação anti-
Concani de 1684 para privar os clérigos nativos da sua vantagem
linguística e cultural perante os paroquianos. Há correspondência
inédita dos franciscanos da província goesa de Bardez com a coroa
portuguesa, conservada na Biblioteca Nacional de Lisboa. Descrevem
os padres naturais como bêbados e devassos, com ódio aos homens de
pele branca (linguagem realmente racista mesmo no nosso tempo) por
temerem que eles os denunciassem às autoridades! O único objectivo
deste discurso racista foi convencer o rei que os padres naturais não
eram moralmente e politicamente competentes e dignos para se lhes
confiar as paróquias.
Apesar do conhecimento deste passado e as implicações racistas da
legislação anti-Concani, o patriotismo de Cunha Rivara não lhe permitia
às vezes ser fiel às tarefas de historiador imparcial. Cunha Rivara
ocupou o cargo de secretário do Governo durante os tempos
turbulentos do Motim dos Cipaios (1857) e a sua preocupação esteve
direccionada para o fluxo dos rebeldes da Índia britânica para a
jurisdição portuguesa do Estado da Índia. Os Arquivos de Goa guardam
a correspondência classificada como Estrangeiros, onde se pode
investigar mais sobre esse assunto. A montagem da rede de telégrafo
nessa altura veio ajudar na coordenação das operações
"antiterroristas" entre os dois poderes coloniais. As autoridades
portuguesas na Índia colaboraram com o poder britânico nessa crise,
mas não cederam os rebeldes refugiados em Goa ao braço judicial
inglês. Concordaram que fossem deportados para Timor algumas
centenas de rebeldes (incluindo inteiras famílias). A deportação foi
efectuada utilizando transporte marítimo provido pelos ingleses, que
queriam assegurar que os elementos rebeldes chegassem ao longínquo
destino. A Coroa britânica, grata pelos serviços prestados por Cunha
Rivara, queria homenageá-lo com condecoração, o que não veio a
acontecer devido ao veto do Governo Português.
É nesse contexto do Motim dos Cipaios e dos goeses que serviam no
exército Marata, como era o caso dos Pintos de Candolim, Cunha
Rivara dedicou-se ao estudo de uma conjuração dos sacerdotes e
militares goeses, que um século antes (1757) planeavam expulsar os
portugueses de Goa. Cunha Rivara intitulou o seu livro "A Conjuração
dos Pintos", embora os Pintos não fossem os protagonistas da
conjuração. Teremos mais sobre este assunto e outros nos artigos que
se seguirão. Para já concluo com referência passageira a uma polémica
que Cunha Rivara lançou, sugerindo no seu Ensaio que a casta Chardó
entre os católicos goeses talvez fosse uma versão católica da subcasta

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Karadhe de Brâmanes na região Maharashtra-Karnataka.

Director do Departamento de História na Universidade Lusófona


(Lisboa) e Sócio da Academia Portuguesa da História

Teotónio R. de Souza

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