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Sim, tudo no jardim do imperador tinha sido muito bem planeado, e ele
estendia-se até tão longe que nem o jardineiro fazia a menor ideia onde
acabava. Se se fosse sempre andando chegava-se a uma bela floresta com
árvores muito altas e lagos muito fundos. A floresta ia até ao mar, que era
azul e também muito fundo; grandes navios podiam navegar mesmo por
baixo dos ramos das árvores. Nesses ramos vivia um rouxinol que cantava
tão bem que até o pobre pescador, com todas as suas dificuldades, parava
de deitar as redes todas as noites para o ouvir.
— Vi aqui neste livro que temos uma ave admirável chamada rouxinol —
disse o imperador. — Parece que é a melhor coisa do meu vasto império.
Por que é que ninguém me falou dele?
— Quero que venha aqui esta noite cantar para mim — disse o imperador.
— É uma vergonha que toda a gente saiba o que possuo e eu não!
Sim, mas onde? O camareiro subiu e desceu todas as escadas, andou por
todos os salões e corredores, mas, de todas as pessoas que encontrou,
nenhuma tinha ouvido falar do rouxinol. Voltou apressado à presença do
imperador e disse-lhe que aquilo devia ser uma história inventada pelos
escritores.
E lá foi ele outra vez escada abaixo e escada acima, por todos os salões e
corredores; metade da corte andava a correr atrás dele. Por fim,
encontraram uma pobre rapariguinha na cozinha.
— O rouxinol? — perguntou ela. — Meu Deus! Claro que sei! Que bem
que ele canta! A maior parte das noites deixam-me levar para casa alguns
restos de comida para a minha mãe, que está doente. Vivemos perto do
lago, do outro lado da floresta. E quando volto para o palácio, cansada,
sento-me um bocadinho e fico a ouvi-lo cantar.
Apesar disso, foi com eles de boa vontade quando ouviu dizer que era
desejo do imperador.
Então, o rouxinol cantou tão bem que o imperador ficou com os olhos
cheios de lágrimas, que lhe escorreram pelas faces; e o rouxinol continuou
a cantar ainda melhor, de modo que cada nota foi direitinha ao coração do
imperador. Este ficou muito satisfeito; o rouxinol, declarou ele, iria receber
o seu sapato dourado para usar ao pescoço. Mas este agradeceu e recusou,
porque já se sentia recompensado.
Ficaria na corte e teria uma gaiola só para si, com autorização para ir
apanhar ar duas vezes durante o dia e uma vez à noite. Seria acompanhado,
em cada excursão, por doze criados, cada um a segurar firmemente uma
fita de seda atada a uma patinha da ave. Não, essas saídas não eram muito
divertidas.
Mas não era um livro; era um pequeno brinquedo mecânico dentro de una
caixa, um rouxinol de corda. Tinha o feitio de um verdadeiro, mas estava
coberto de diamantes, rubis e safiras. Quando se lhe dava corda, cantava
uma das canções que o verdadeiro passarinho costumava cantar, e a sua
cauda andava para baixo e para cima, brilhando em prata e ouro. A volta do
pescoço trazia uma fita, onde estava escrito: “O rouxinol do imperador do
Japão nada vale comparado com o rouxinol do imperador da China.”
Então os dois passarinhos tiveram de cantar juntos, mas não foi um êxito. O
problema era que o verdadeiro rouxinol cantava à sua maneira e a canção
do outro saía de uma máquina.
Então, o pássaro de corda foi posto a cantar sozinho. Agradou quase tanto à
corte como o verdadeiro, e evidentemente que era muito mais bonito à
vista, todo brilhante, como uma pulseira ou um alfinete de peito. Cantou a
mesma canção trinta e três vezes sem se cansar. Os cortesãos não se
importariam de a ouvir mais umas vezes, mas o imperador achou que era a
vez do verdadeiro.
Mas onde estava o rouxinol? Tinha voado pela janela, para a sua floresta
verdejante, sem ninguém dar por isso.
Era a trigésima quarta vez que o ouviam, mas ainda não sabiam bem a
canção. Era difícil de aprender. E o Mestre da Música Imperial teceu à ave
os mais altos elogios: era superior ao rouxinol vivo, não apenas na
aparência exterior, mas também no que tinha lá dentro.
— Ah!
Tudo isto continuou durante um ano, até que o imperador, a corte e o resto
do povo chinês sabiam de cor cada notazinha da canção do passarinho de
corda; mas, por isso mesmo, cada vez gostavam mais dela. Podiam cantá-la
em coro — e faziam-no.
Os rapazitos da rua andavam por todo o lado a cantar: rrr, trrr, piu, piu,
piu, e o imperador também cantava — um som maravilhoso, não havia
dúvida.
Que golpe horrível! Não se atreviam a pôr o pássaro a cantar mais do que
uma vez por ano, e mesmo isso já era um risco. Contudo, nessas ocasiões
anuais, o Mestre da Música Imperial fazia sempre um discurso cheio de
palavras difíceis, dizendo que o pássaro estava tão bom como sempre — e,
claro, uma vez que ele dizia que sim, era porque ele estava tão bom como
sempre…
Passaram cinco anos, e uma grande tristeza abateu-se sobre o país. O povo
era muito amigo do imperador, mas ele estava gravemente doente e não se
esperava que sobrevivesse. Já tinha sido escolhido novo imperador, e a
multidão esperava nas ruas que o camareiro lhe desse notícias. Como
estava o imperador? O camareiro abanava a cabeça.
Mas o imperador ainda não tinha morrido. Pálido e imóvel, jazia na sua
magnífica cama com longos cortinados de veludo e pesados cordões
dourados. Através de uma janela aberta lá no alto, a Lua brilhava sobre o
imperador e o pássaro artificial.
Mas o pássaro estava silencioso; não havia ninguém para lhe dar corda, e
sem corda não tinha voz. E a Morte continuava a olhar fixamente para o
imperador com as grandes órbitas vazias. Tudo estava calado, terrivelmente
calado.
— Não faças isso — respondeu o rouxinol. — Fez o que pôde por ti.
Guarda-o. Eu não posso morar num palácio, mas deixa-me ir e vir à minha
vontade, e à noite empoleiro-me neste ramo, junto da tua janela, e canto
para ti. Hei-de trazer-te felicidade, mas também pensamentos sérios. Hei-de
cantar sobre as pessoas felizes do teu reino, mas também sobre os que se
sentem tristes. Cantarei sobre o bem e o mal, que têm estado sempre à
nossa volta, mas que têm sempre escondido de ti. Os passarinhos voam em
todas as direcções, até ao pescador, à casinha do trabalhador, até junto de
tantos que estão longe de ti e da tua corte magnífica. Amo o teu coração
mais do que a tua coroa, apesar de a coroa ter algo de mágico. Sim, hei-de
voltar, mas tens de me prometer uma coisa.
— A única coisa que te peço é isto: não digas a ninguém que tens um
amigo passarinho que te conta tudo. É melhor guardar segredo.
E, com estas palavras, o rouxinol voou para longe. Os criados vieram ver o
amo morto, mas ficaram ali especados!