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Henrique Alves de Mesquita: músico do Império do Brasil.

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Antonio J. Augusto

Em fevereiro de 1871, o Club Mozart reuniu seus membros e convidados para


um grande concerto em homenagem a Henrique Alves Mesquita. Tomados pela
admiração e simpatia que devotavam ao compositor desencavaram “da poeira do
esquecimento a pérola mais luminosa do diadema do artista”: a ópera O Vagabundo,
ou a Infidelidade, Sedução e Vaidade. Após a brilhante performance, objetos
valiosos foram ofertados ao compositor, como uma pena de ouro e um álbum com
capa de veludo carmesim enfeitado nos cantos com ornatos de ouro. No centro deste
álbum havia uma lira, cujas cordas eram entrelaçadas por um ramo de louro. Este
seria um dos poucos momentos de celebração a sua obra que Mesquita desfrutou em
vida.
A trajetória deste trompetista, organista, regente, professor e compositor é
incrivelmente instigante. Primeiro bolsista do Império a viajar ao exterior, foi
discípulo do célebre compositor François Emmanuel-Joseph Bazin (1816-1878) no
Conservatório de Paris. Foi apontado por Machado de Assis como um “grande talento
avigorado por sólidos estudos”, o continuador de José Mauricio, o “possível
Beethoven brasileiro”. O período de estudos na mais prestigiada instituição de ensino
musical do mundo seria o derradeiro degrau na escalada ao posto de músico
emblemático do Império do Brasil. Entretanto, envolto em uma situação não
esclarecida, foi condenado, em 1863, a três anos de prisão, o que seria para sempre
um estigma em sua carreira, assim como acarretaria certa aversão por parte do
Imperador D. Pedro II.
Após a volta de Mesquita para o Brasil, o escritor França Junior, entusiasta do
artista, equiparava-o a Carlos Gomes, afirmando que os dois nomes representavam a
“era musical que encetava o Império de Santa Cruz”. Enquanto Gomes seria a águia
que alçou longo voo, Mesquita seria o ser sereno que “conquistava no próprio berço
os louros de seus triunfos”.
E assim o fez Mesquita: apesar do desconforto da reprovação da coroa,
conquistou de maneira inconteste verdadeiros triunfos, compondo todos os gêneros e
formas que marcaram a produção musical brasileira do século XIX: óperas, música
sacra, mágicas, revistas, canções, batuque, quadrilhas, valsas e, sobretudo, o tango
brasileiro. Foi na mágica Ali-Babá, encenada em 1872, que Mesquita incorporou o
tango brasileiro a este gênero, não só abrindo as portas para que as formas musicais
urbanas se tornassem comuns nos palcos nacionais, mas também permitindo que essas
formas circulassem entre as diversas camadas da sociedade brasileira. O repertório
escolhido para este CD tenta contemplar as diversas facetas do artista, formando um
verdadeiro mosaico da música e das práticas musicais do Brasil oitocentista.
A ópera O Vagabundo foi encenada no Rio de Janeiro, em 1863, e recebeu as
mais honrosas críticas, como a de um missivista do Correio Mercantil: “No nosso
jovem maestro natureza e arte deram-se as mãos; dotou-o o céu de poesia, de
elegância, de naturalidade, coisas que não se imitam; aprendeu ele tudo o mais”.
Fantasia para piston e a valsa Saudades de Mme. Charton – inéditas em
gravação – datam da primeira fase do compositor, antes de sua viagem a Paris. A
Fantasia é a primeira obra escrita para trompete e piano no Brasil a sobreviver até os
nossos dias e foi estreada pelo autor em 1854, durante um concerto em beneficio de
Próspero José Leite Pereira, no Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro. A

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Texto do encarte do CD Henrique Alves de Mesquita: músico do Império do Brasil.
valsa composta em homenagem à célebre soprano que encantou o compositor e o
público carioca foi editada em 1854 e tocada em concerto, em benefício à cantora, no
Teatro São Pedro de Alcântara. Neste dia, de acordo com periódicos da época, foram
oferecidos à diva um colar com 42 brilhantes e uma pulseira com 14 brilhantes.
De sua vasta produção de mágicas, o Art Metal Quinteto optou por registrar
trechos do Ali Babá (1872), da Coroa de Carlos Magno (1873) e de O Vampiro, ou
os demônios da meia noite (1873), estas duas últimas gravadas pela primeira vez em
disco. Chama-nos a atenção a forma embrionária do nosso tango brasileiro no Tango
do Ali Babá, ainda fortemente marcado pela habanera; o virtuosismo que demanda a
execução do bailado da Coroa e o domínio formal da grande valsa do Vampiro.
Agregam-se a estas obras o Batuque Característico, com seu forte gestual negro e a
tocata A Vaidosa. A partitura criada para a gravação do Batuque foi realizada sobre
o arranjo realizado por Anacleto de Medeiros para a Banda do Corpo de Bombeiros.
A Marcha heroica Marquês de Pombal foi estreada no Theatro D. Pedro II
durante um festival comemorativo do centenário de falecimento do importante
estadista português, em 1882. Na mesma ocasião, foram tocadas obras de músicos que
gozavam enorme prestígio na sociedade Imperial, como Arthur Napoleão, Robert J.
Kinsman Benjamin e Leopoldo Miguez. A polca Carlos Gomes, composta em 1887,
utilizando trechos e motivos da ópera O Guarany, foi executada no mesmo ano
durante a visita de Mesquita ao violinista Sant’Anna Gomes, em Campinas.
A gravação inédita de trechos do Te Deum, especialmente arranjados para esta
ocasião – verdadeiro desafio musical, técnico e interpretativo –, foi realizada a partir
do manuscrito encontrado no Acervo Musical do Cabido Metropolitano do Rio de
Janeiro. A obra, infelizmente não datada, foi composta para solistas, coro e orquestra
e é uma importante faceta deste artista que durante toda sua vida manteve constante
em seu ofício a prática da música sacra, e participou de maneira ativa de festejos e
comemorações das mais diversas irmandades religiosas da cidade do Rio de Janeiro.
150 anos depois da estreia da ópera O Vagabundo, abrimos as cortinas e
apresentamos um verdadeiro espetáculo de talento, brasilidade e emoção. Que a
poeira do esquecimento seja para sempre varrida da obra de Mesquita e que possamos
cada vez mais escutar e festejar um dos maiores artistas do Império da Santa Cruz, um
gênio desta terra solar chamada Brasil.

Este CD é dedicado ao trombonista Marco Della Fávera, fundador do grupo e


que durante anos brilhou em nossos palcos inspirando a todos nós com o talento, a
sensibilidade e a alegria que eram sua marca indelével.

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