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aA, MAA Way, UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIENCIAS ETECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENT E: se mm mm Vol.Il Out/96 ees = Vol II = Outubro de 1966 CRISE! QUE CRISE! Ja ha algum tempo, tenho insistide & fepetido de forme mais ou menos exaustva, principalmente em aulas, palestras e confersncas, que ngo. compartiiho das idéies muito generalizadas de que em se tratando da educado brasileira, tude, mas absclutamente tudo se encontra em crise. Menos ainda sou favoravel as idéias subjacentes a esta visdo de crise que, com frequencia, leva ao imobiismo, a falta de perspectivas @ mesmo a uma acomodagdo & situacao, Surpreende-me, verificar ainda, nos mais diferentes ambientes, que a simples mengao da postura acima, cria todo tipo de dificuldades para 0 dislogo ctitico @ produtive. Alguns interlocutores costumam “agredir” esta possbilidade, ou Iidentiicé-la tao repidamente com uma_postura oficial, que o clima quase sempre fica sob suspeita E verdade, para no ser injusto, que a intensidede das reagdes © desconfiancas variam muito de acordo com as crcunstancias, 0 local em que se fala, 0 piblico presente © e propésito do que a fala se coloca. De um modo ou outro, entretanto, a situagao nunca € confortavel Refaco aqui, portanto, a apresentagao de aiguns aspectos que costume trazer em beneficio da minha afirmagao acima explicitada, gozando Por ora da privacidade, mas lembrando das situagdes reais vivenciadas e também esperando © onus sempre possivel pera aquele que escreve, assina e divulga, Vamos entéo, com paciéncia pedagogica © nos limites em que este artigo permite, 2 algumas questées. A 180 generalizada crise da educacdo ra veiculada até pelo senso comum, por ser multas vezes consequencia de uma leitura mais do que cientifiea do roal, peca por absolutizar esta nica dtica. Nos julgamentos apressados, até porque eles nascem da necessaria Urgéncia que muitos tem de resolver situagdes particulares, como por exemplo, 0 salério minguado dos professores dos 1° e 2° graus da rede publica estadual de ensino, somam-se situap5os a5 vezos muito desiguais: por exemple as diferengas salariais entre os estados, entre redes municipais de ensino e tede estadual; as diferengas salariais entre municipios, estados ¢ escolas federais, sem se falar, aqui, na variada José Luis SANFELICE" diversidade em relagac 4 rede privada, O problema aqui nfo & no sentido de so estar buscende console porque € possivel enconirar situagdes methores do que o menor salério, mas exatamente © de no se olhar a situagéo plural. & bem verdade que buscar a mécia de salarios. considerando-se esta como necessariamente sempre acima do piot salério, € uma visio que mesmo que possa se! considerada também indesejada, j@ nao é a dtice poste, apenas, pela pior situagao. Permanecer, entretanto, somente com © dado oferecido pela média, pode em multes casos esconder excessivamente qual €, de fate. 2 situacdo diamiética do pior salario. Finalmerte, penso que ningvém em 88 consciéncia, faria ume letura da educagao brasileira, apenas partir dos melhores salérios pagos na érea, para concluir que nao ha a tal ctise. Espero, quanto a tltima afirmagéo, no 80r curpreendlido © mesmo raciocinio poderia__ ser desenvoivido para outros possivels ertéros que ajudassem a retratar a referida crise: uma coisa seria, por exemplo, absolutizar @ maior indice de evasio escolar possivel encontrado numa das milhares de escolas publicas urbanas ou rurais do Brasil como expresséo fortissima de toda a fealidade, ou entao fazé-lo pela média ou pelo menor indice deteciado, A parte a absolutizago politica ou propagandistica de qualquer um’ dos dados, nao tenho nada contra os nimeros ea estatistica em Si, OU contra quem os utiliza nas pesquisas, O meu problema é contra sim, uma leitura do real sistematicamente feita a partir do seu semore pior anguio. Como em tude hé um Angulo pior, algumas pessoas se “especializam’ nele, Outros, também @ verdade, “especializam-se" no Angulo médio ou no melhor deles. Cada um cristalizando (9 seu proprio angulo, nao busca ou nao quer ver 0 todo do fendmeno e dai, rapidamente surgem os dogmas. Um deles pode ser: a generalizada crise da educagao brasileira Minha mais s6lida contraposi¢ao a este cla @ a seguinte: a tal crise da educecao brasileira nao pode ser resultante de uma generalizacao abstrata que toma corta até do Senso comum de cada educador, Digo até do ‘senso comum porque também uma certa oiéneis sempre necessariamente parcial, tornou-se parcialissima, ¢ parece ter convertido em verdade absoluta a sua propria parcialidade, Dogmatizou a crise e perdeu 2 diversidade contida no préprio real onde, do “pior ao *melhor’, tudo acontece na * Departaeento de Filosofia ¢ Hiri da Educagio » Faculdade de Educasio - UNICAMP ~ 13084-111 - Campinas - Estado de Sia Palo Brasil “6 educagao brasileira, mesmo que nos restrinjamos, apenas, & rede publica de ensino, La estao as “plores’ escolas ao lado de outras “excelentas”. La se encontia todo 0 tipo de clientela, expressio de toda @ sociedade brasileira. Ha cidades com a quantidade de escolas sendo suficionte para toda a populagdo em idade escolar. Ha cidades onde faltam milhares de vagas. Em algumas unidades escolares concentram-se qualificados profissionais, enquanto em outras nunca se teve Sequer 0 proprio professor. Os problemas de evasao, repeténcia, criminalidade e tentos outres, apresentam situagdes possiveis, ou néo, de serem imaginadas. Coexistem escolas de padrées de 1°, 2° € 3° mundos com a auséncia pura e simples de qualquer cidade em condigdes de ensinar as primeiras letras a populagées inteiras, de geragso em geragéo. H4 o professor que trabalha mesmo ‘sem nunca receber 0 salério © aquele que sempre 86 recebe © salirio sem nunca trabalhar, Ha 0 ‘material escolar vorazmente utiizado, consumido & © material escolar impunemente desviado, roubado. Ha ditaduras administrativas e hd atticipagio democratica. Ha a reprodugso deolégica_e€ a0 mesmo tempo _orjam-se resistencias. Ha a aprencizagem de conteldos despreziveis © de conteados cientiicos. Ha 0 comodismo e a luta Tudo acontece. do “picr” a0 “melhor! © prezado leitor, que até aqui_me acompanhou, deve estar desesperado para fazer com que eu’ ouga a sua possivel consideragao, ponderando-me que estou praticamente cego Porque nao vejo com tudo 0 que acabo de dizer, a expressdo da propria crise generalizada Talvez, ivesse ventade do griter: mas € esta a tal da crise! As perguntas que eu faria a0 possivel interlocutor, basear-se-iam em dois aspectes: a) esta crise, supondo que o leitor esteja com 2 razbo, € um piivilégio, uma especiicisade da educacao em nossa saciédade? b) rigorosamente feflatindo, quando a educago brasileira nio esteve em crise?, Para a primeira indagacéo, o importante seria observar que em muitos outros ambites, as caracteristicas de nossa sociedade apresentam aspectos idénticos aos da educapao. Se formos comparar os salarios dos professores com inimeras outras atividades profissionais, vamos encontrar semelhancas enormes, ou seia, se 0 salario é ruim, degradante, ele ndo é somente para quem trabaiha em educagao, Ha muitos e diversos Famos profissionais, cronicamente, mal pagos Aligs, 0 comum 6 0 trabalho ser mal pago, variando as dierengas ene as categorias Profissionsis conjunturalmente. Mes néo ¢ ‘somente isto: 0 salério minimo miserdvel e boa parte da populagdo tem renda inferior 20 seu valor. A tal-.cise generalizada da educacéo brasileira, diferencia'se substantivamente da crise da area da sade publica? Como ¢ a situagao 1é? E a quesiéo das moradias populares, como se Revista Nuances = Vol If - Setembro 1996 encontia? E a politica de empreges? E a area da cultura? E os aposentados? E a cesia basica, 0 custo dos alimentos, a distribuigso das riquezas, a miséria absoluta, @ merainali¢ade infanto-juverit ete. etc, ete. Sé0 as politicas sociais, no seu Conjunto, mais justas, menos cadticas do que acontece na educagao? Cieio que mesmo com muito esfergo, nda Serd facil apontar a enisténcia de grandes diferencas entre estas varias facetas de uma mesme reslidade. Pelo contrario, os exemplos que dei acima para concluir que na edueagao tudo acontece, do “pio ao “melhor, aqui se ‘adaptariam exaustivamente, Nao vou, portanto, cansar o leitor, mas enfatizo que a difundida crise da educagéo, néo € nem privilégio, nem especificidade da area, Isto, entretanto, nao afasia © rgumento do leitor hipotético que teria me afirmado, apesar dos meus esforgoe inicia's, quo a crise € real. Nao afasta mesmo, porque a nica coisa que parece que consegu’ apontar € que ha muito mais coisa om crise do que @ educagao. Por ofa, entretanto, eu apenas proporia uma nova indagagao: quando uma sociedade tem em suas dimens6es as caracteristicas tao gerais de uma dita crise, isto realmente pode sor chamado ce crise? Voltareia essaquestdo. * Quanto 4 pergunta sobre quando a educagdo brasileira nao esteve em crise, posse encontrar varios caminhos para respostas que se complementariam, mas gtosso modo, se nio estou admitindo nem a crise etual, @ minha fesposta seria’ a educagdo brasileira nunca esteve om crise, desde os jesultas até hoje, Os jesuitas cumpriram adequadamente a. sua missdo, Catequizaram, cristianizaram 0 conjunto da Populagdo, reproduzam os quadios da lgreja e Cuidaram da formacao de alguns varées fihes da elite. Nao er isto 0 que aquela sociedade objetivamente necessitava? Sem crise! A chegada das cottes ao Brasil levou 2 iniciativas no ambito da tormagao de alguns quadros para o aparetho de estado transferido para cé. Iniciativas de formagao superior em uma Sociedade literalmente sem escolas uestées de Sobrevivencia das elites, ébvio! A independéncia politica do Brasil fece a Portugal. o | Império, © periods das Regéneas e todo 0 Il Império s40 episédios secundarios de uma sociedade escravista e com um papel a eumprit_na “ordem" econémica internacional. A educacio, naquele quadro, era um detalhe presente nos discursos dos liberals, dos posttivistas © dos republicanos. Na pratica, porem, desde 0 1° Império 0 governo central se destesponsabiizaré da educagdo elementar Enquanto estuturava 0 ensino superior, por consequéncia, —interflia no —_secundario propedéutico, deixava as provincias a incumbéncia das demais iniciativas. Mas por que razio uma sociedade colonzada, escravista, oligarquice, machisia, rural, catélica, subalterna & Inglaterre, faria em educacao mais do que fez © como fez? Tao pouco se fez, que nem possivel falar da crise da educag8o. 36 mesmo se for pela sua

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