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INTRODUGAO Neste volume estao reunidos alguns textos, como ja indica seu titulo, dedicados a reflexao critica sobre a problematica da epistemologia da Educacao Fisica. A epistemologia, no campo da Educagao Fisica se refere a: “os pressupostos tedrico-filosdficos presentes nos diferentes projetos de delimitagao da Educagdo Fisica como um possivel campo académico- cientffico (...) os fundamentos tedricos balizadores dos distintos discursos da Educagao Fisica (...) como interroga¢a4o constante dos saberes constitufdos’®. Entretanto, a pretensao desta publicacao é mais modesta e se localiza na fronteira de uma epistemologia geral que busca as inter-relagées nas fronteiras eldsticas dos diversos campos do saber cientifico, daf o subtitulo, que indica o partilhar de problematicas comuns dos novos campos epistemoldgicos que buscam a constitui¢ao de estatuto cientifico proprio, a construgao de objetos e centralidades, de métodos e de abordagens apropriados na tentativa de ganhar identidade e reconhecimento na historia das ciéncias contemporaneas. A constituigao de um campo prdprio na cartografia das ciéncias nao é privilégio apenas da Educagio Fisica, outras areas como a pedagogia, a politica, a ética, por indicar apenas alguns campos de conhecimento que centralizam seu olhar sobre a agéo humana se debatem, afirmando suas especificidades e independéncias nas fronteiras movedigas dos conhecimentos sistematizados. A compreensio da epistemologia geral se refere ao estudo da natureza do conhecimento, a sua justificagao e seus limites (AUDI, 2004), focalizando as controvérsias acerca da possibilidade, das fontes, da esséncia * Tomado da ementa do Grupo de Trabalho: Epistemologia do Colézio Brasileiro de Ciéncias do Esporte — CBCE. (hetp//iwww.cbce.org.br/combrace/index2003). 16 Silvio S4nchez Gamboa e dos critérios de validade dos conhecimentos. No caso do conhecimento sistematico (Zpisteme) que por ter o imperativo de explicitar e justificar seus métodos, ou caminhos percorridos para a elaboragdo dos seus resultados, se diferencia dos saberes fundados nas tradigdes e senso comum (Doxa) e na razio mitica e nas religides (Mitus). Na literatura filoséfica moderna (final do século XIX), sob a influéncia do positivismo, 0 termo “epistemologia” ressurge significando literalmente Teoria da Ciéncia, delimitada a um tipo especifico de conhecimento, que conota a redugao da Teoria do Conhecimento (Gnosiologia) a uma parte desse conhecimento, o cientifico. Tal redugao indica o esvaziamento da Gnosiologia, a ruptura das relacdes entre a Filosofia (Sofia e a ciéncia ( Epistemé e o desaparecimento da tensao critica entre a Teoria do Conhecimento (0 geral) e “conhecimento cientifico” (0 especifico). Com o propésito de recuperar essa tensdoe de reatar os nexos entre filosofia e ciéncia, durante o século XX, se desenvolve a epistemologia, reconhecida também como metaciéncia em geral, ou o estudo que vem depois da ciéncia (segundo nivel) e que tem por objeto a propria ciéncia e a maneira como ela estuda os seus objetos (primeiro nivel), interrogando-a sobre seus principios, seus fundamentos, seus métodos, suas condigées de validade e seus resultados. Nessa perspectiva varios cientistas e filésofos, dentre eles Bachelard (1983), Piaget (1967) e Habermas (1982) propdem uma recuperacio do sentido e do contetido da “Epistemologia”, como um campo de tensio entre a ciéncia e a filosofia. Bachelard (1983) propée o caminho da reflexao sobre as Filosofias implicitas nas praticas explicitas dos cientistas. Isto é, “dar as ciéncias a Filosofia que elas merecem” e coloca como fungio essencial da Filosofia, a construcgao de uma epistemologia aberta que vise 4 produgao dos conhecimentos cientificos sob todos os seus aspectos, ldgico, ideologico e historico. Para Piaget (1967), os termos Epistemologia e Teoria do Conhecimento sao sin6nimos. Piaget considera que o conhecimento, tanto no que respeita 4 evolucdo da ciéncia como ao desenvolvimento do individuo, constitui-se progressivamente sem atingir um estado definitivo. Piaget define a Epistemologia como o estudo da constituigao dos conhecimentos validos (PIAGET, 1973, p. 15). Habermas (1982) nas suas pesquisas sobre a reconstrugao da génese do positivismo detecta os rastros perdidos de uma reflexao sobre as ciéncias que esqueceu seu entrelagamento com 0 processo histérico da sociedade. Tal esquecimento levou a redugio EPISTEMOLOGIA DA EDUCAGAO FISICA: 17 as inter-relagdes necessérias da teoria do conhecimento (geral) 4 teoria da ciéncia (particular). Para superar esse reducionismo, Habermas propde duas teses programaticas: a teoria do conhecimento como teoria da sociedade e da evolugdo e a teoria dialética da sociedade como re-introducao dos fundamentos epistemoldgicos do materialismo historico. A relacao entre a Filosofia e a Ciéncia se reconstrdi “critica e reflexivamente’ na epistemologia dialética, entendida esta, como o estudo sistematico que encontra na Filosofia Materialista seus principios e na produgio cientifica seu objeto. Nesse sentido, “A Filosofia preserva-se na ciéncia enquanto critica” (HABERMAS, (982. p.77). Na reflexao critica sobre o conhecimento cientifico, a dialética materialista, como “Ldgica e Teoria do Conhecimento” (KOPNIN, 1978), apresenta uma perspectiva de unidade na anilise da ciéncia em seus aspectos internos (ldgicos, gnosiolégicos e metodolégicos) e externos (histérico sociais). Nesse sentido a dialética materialista desenvolve a idéia da unidade entre Epistemologia e a Teoria do Conhecimento nas condigées materiais 2 histéricas da produgiio do conhecimento. Tendo como horizonte compreensivo essa tensao entre a ciéncia e a filosofia, e tomando como objeto, a produgao cientifica no campo da Educacao Fisica e como referéncia os pressupostos filoséficos sobre o conhecimento (gnosiologia) e os critérios de validade cientifica, assim como, as concep¢ées de método e teorias, elaboramos uma série de estudos que hoje copilamos nesta publicagaéo, embora elaborados em diferentes momentos e apresentados em diversas oportunidades da vida académica, tém por unidade a problematica epistemolégica da Educagao Fisica. O primeiro estudo foi publicado em 1994 por ocasido de um numero especial sobre pesquisa em educacao fisica’. Os editores argumentaram na oportunidade a necessidade de uma contribuigao vinda de uma 4rea préxima, a pesquisa educacional, que também estava submetida ao conflito dos paradigmas epistemoldgicos e era permeada pelos vieses das tendéncias teérico-metodoldgicas e colocava em risco os critérios de cientificidade que asseguravam os graus de qualidade da pesquisa produzida nos cursos de pés-graduacio. 7 Escudo publicado como, SANCHEZ GAMBOA, S. Pesquisa em Educacdo Fisica: as incer-relacdes necessarias, In: Motrivivincia. Florianépolis, ano 5. 0.5.6.7, dez., 1994, p. 34-46. 18 Silvio Sanchez Gamboa O segundo estudo também se localiza no numero tematico sobre teoria e pratica da revista Mocrivivéncia’. Na perspectiva das filosofias do conflito, a relagdo entre teoria e pratica nao é entendida como situagdes separadas, ou duas caras de uma mesma moeda, como disjuntivas ou facetas separadas, a pratica é uma, a teoria é outra. Tal perspectiva do distanciamento, leva a pretensao da aproximagao, gerando o ajuste ou equilibrio entre a teoria, o projeto ou plano e a pritica, a realizagdo ou sua execugao. Na perspectiva do conflito, teoria e pratica se encontram numa unidade de contrarios, em vez de ajuste entre elas, suscita-se uma permanente tenso que gera transformacées permanentes do pensar e do fazer. Quando essas concepgées se referem as teorias pedagdgicas e as pedagogias do movimento e suas relagdes com as praticas educacionais revelam os conflitos entre as diversas concepsées de educagao fisica ea cémoda situagao de “ciéncias aplicadas” fica insustentivel. A construgao de novas perspectivas para a Educagéo Fisica exige repensar a sua condigéo de ciéncia aplicada, dependente de saberes cientificos ja constituidos e se definir como um campo de conflitos em que a agio, a pratica e o movimento sao pontos de partida ede chegada de um circuito em permanente transformacao. O terceiro e quarto estudos foram elaborados na tentativa de contribuir com o debate dos pressupostos filoséficos e epistemoldgicos da producao cientifica no contexto da historia da Educacao Fisica. Por ocasiéo do I Encontro de Historia da Educagao Fisica e do Esporte, realizado na Unicamp, em 1994 apresentei como texto de um dos debates sobre as tendéncias das escolas da historiografia nas ciéncias humanas, a polissemia que o conceito tempo ganha quando por conta de ser ou no considerado, ou ser concebido como um dado a mais, como duragéo de um evento, como caracteristica essencial ou atributo dos fenémenos diferencia as diversas escolas histéricas e as diferentes concepcées de realidade. No V Encontro de Historia do Esporte, Lazer e Educac&o Fisica apresentei um balango das tendéncias da historiografia da area tomando como amostra, as pesquisas apresentadas nos eventos anteriores. O estudo posteriormente * SANCHEZ GAMBOA, 5. (1995), Teoria e Pratica' Uma relagao dindmica e conwraditoria. InMowivivénda , Floriandpolis, ano 6.1.8, dez. 1995, p. 8-20. EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAO FISICA: 19 as inter-relages necessarias foi atualizado e re-escrito, incluindo a produgao desse V Encontro para ser apresentado no VI Congreso de Educacdo Fisica e ciéncias do deporte dos paises de lingua portuguesa e VII Congreso Galego de Educacién Fisica, La Coruiia, Espanha, em julho de 1998 e publicado na Revista Episteme da Universidade Bandeirante de Sao Paulo’. O quinto trabalho foi apresentado nos encontros comemorativos dos 25 anos da Faculdade de Educagao Fisica da Universidade Estadual de Londrina’®. O debate sobre as alternativas da pesquisa em Educagao Fisica leva aum falso dualismo entre técnicas quantitativas e qualitativas que escondem um falso dualismo epistemoldgico entre as correntes fundadas nas concepgées empirico-analiticas a as tendéncias subjetivistas, de cunho fenomenolégico. Tal dualismo légico exclui outras tendéncias (terceiras excluidas) e reduz as alternativas da pesquisa apenas a seus aspectos técnicos e instrumentais, silenciando a problematica complexa das teorias do conhecimento e das visées de mundo (ontologias) implicitas nas diversas formas ou concep¢des de fazer ciéncia. Osexto estudo resultou da andlise sobre as condigées da produgio da pesquisa em Educago Fisica, inserida no contexto dos programas de pos-graduacao e submetidas a estruturas curriculares, prazos e protocolos denominados areas de concentragao. A superagao dessas condigées exige a acumulagao de uma massa critica sobre os limites da segmentagao e divisao dos saberes em disciplinas e estruturas curriculares e a busca de novas condigoes da produgao do conhecimento, pautadas pela interdisciplinaridade e a centralidade nos problemas e nado mais nas disciplinas e areas de conhecimento. Tal problematica sobre as mudangas de eixo desdobra-se em controvérsias sobre os limites da ciéncia analitica eas possibilidades das perspectivas das abordagens compreensivas e dos paradigmas da complexidade'. > Publicado sob o titulo: Historiografia, Esporte, Cultura e Sociedade: os encontros brasileiros de Historia do esporte, Lazer e Educacio Fisica (1993-1997). In: Episteme, Sio Paulo, v. 2, n. 2, jul/ dez, 1997. pp. 67-86. "© Publicado no Ciclo de Palestras: Educagao Fisica — UEL 25 anos, p. 49-64, 1999, sob o titulo de “Pesquisa em Educacio Fisica: a questo da quantidade e da qualidade” e atvalizado para esta publicacao. "Esse estudo foi apresentado como conferéncia no Simpésio Internacional sobre formacio de Professores e Intercimbio Cientifico & Tecnologico na area da Educacio Fisica/Ciéncias do Esporte, realizado pela LEPELUFBA/UFAL,em outubro de 2002. 20 Silvio Sancher Gamboa O sétimo estudo se refere aos resultados de uma analise da producdo cientffica em Educagao Fisica no nordeste do Brasil’. Na ocasiao tive a oportunidade de orientar a experiéncia de uma pesquisa matricial que gerou diversos estudos e focos de aprofundamento, dentre eles, as andlises realizadas pela professora Marcia Chaves que apresentou como tese de pés-doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), eos estudos de dissertacdo de mestrado de Joelma Albuquerque na mesma universidade e cinco pesquisas mais em nivel de Iniciagao Cientifica e defendidos como Trabalhos de Concluséo de Cursos na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e ainda, trés trabalhos defendidos como monografias de cursos de especializagao na UFBA. O significado desse trabalho coletivo anuncia o potencial da pesquisa em redes de intercambio e a heuristica das linhas de pesquisa, anunciada no capitulo sexto e desenvolvida no estudo sobre a produgdo no nordeste. Os resultados apontam tendéncias diferentes as encontradas em estudos de abrangéncia nacional sobre a produgao dos programas de pés-graduagao e denuncia as desigualdades regionais, a concentragao de recursos e de condig6es em outras regides da federacio e a falta de politicas que superem essas desigualdades. Apesar dessas dificuldades, é significativa e relevante a producao de pesquisa em Educacao Fisica, mesmo sem existir nenhum programa de pés-graduagao strictu senso nos Estados do nordeste. O estudo indica o potencial que a regido tem de consolidar os grupos de pesquisa e desenvolver as redes de intercambio em nivel local, regional, nacional e internacional, assim como gerar experiéncias inovadoras de articulacdo da pesquisa com as atividades de extensdo e ensino, realizando, na pratica uma nova concepcao de universidade de articulacdo da teoria e a pratica em torno dos problemas significativos que centralizam os esfor¢os cientificos e académicos, além de propiciar uma formagao profissional diferenciada que ultrapassa os limitantes das demandas do mercado do trabalho e consegue graus expressivos de formagao politica dos pesquisadores visando atender as demandas de um projeto histérico da transformagao da sociedade brasileira. Essa perspectiva vem alterando as tendéncias epistemologicas da pesquisa desenvolvida na regiao, priorizando abordagens histérico-compreensivas Trabalho apresentado no X Congresso de Ciéncias do Desporto e de Educacao Fisica dos Paises de Lingua Portuguesa, Universidade do Porto ~ Portugal, 2004 EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAO FISICA: 21 as inter-relagées necessdrias e considerando a praxis pedagdgica e polftica como critério de cientificidade e de confiabilidade do conhecimento elaborado, nas condigoes restritas de uma regiao discriminada na alocagao de recurso para a pesquisa. Espera-se que esta recuperacao de estudos sobre a problematica epistemolégica da Educacao Fisica contribua para o desenvolvimento da pesquisa na area, na medida em que convide para a afirmacao da“ vigilancia epistemoldgica’ sobre a pratica cientifica e incentive a polémica necessaria ao desenvolvimento da massa critica que poderd potencializar mudangas na qualidade da produgao de conhecimentos na area. Dado os desafios comuns eos pontos de referéncia do desenvolvimento histérico da pesquisa educacional, a recuperagao das inter-relacOes entre a pesquisaem Educagao Fisica e outras areas do conhecimento, somente poderd enriquecer as controvérsias necessarias para a geracao de conhecimentos que atendam aos desafios histdricos da sociedade brasileira. 1 PESQUISA EM EDUCAGAO FISICA: as inter-relagdes necessarias A Educacao Fisica e outros campos do conhecimento, como a Pedagogia, a Educacao Artistica, a Politica, a Etica, etc. encontram-se num patamar de desenvolvimento préximo & definicio de seus campos epistemolégicos no quadro geral das ciéncias. Todas as ciéncias hoje reconhecidas pelos estatutos da Academia tiveram seu desenvolvimento préprio no contexto das formagées e transformagées da sociedade na qual tém significado e da qual obtém os insumos necessdrios para seu crescimento e sua independéncia em relagdo a outros campos do conhecimento, particularmente da Filosofia, e das denominadas “disciplinas mies”. Dificilmentea historia se repete, segundo o hipotético processo de gestagao, maturidade e independéncia. A histéria das ciéncias de cada uma das areas, hojecom estatuto epistemoldgico proprio, nao obedeceu ao artificio analitico de dividir as areas em sub-dreas, nem essas sub-dreas, uma vez consolidadas, adquiriram independéncia, ganhando o reconhecimento da comunidade cientifica, numa cerim6nia formal na qual teria sido entregue o diploma de maturidade epistemoldgica a cada ciéncia nova, o que lhe teria permitido abrir um espaco no controvertido e interesseiro campo da academia. Essas ciéncias hoje “constitu{das”, sem diivida, conseguiram esse patamar de reconhecimento no contexto das necessidades e prioridades que odesenvolvimento das sociedades requer. As condigées materiais histéricas que propiciaram sua gestagao, crescimento e independéncia nao se repetem, so inicas, Daf a dificuldade de pensar que algumas 4reas do conhecimento, que hoje se consolidam como campos epistemoldgicos, precisam repetir 0 mesmo percurso que outras areas percorreram para solucionar os conflitos 24 Silvio Sanchez Gamboa de identidade epistemoldgica e conseguir a definigo de seu estatuto epistemologico. De igual maneira, ¢ dificil admitir que essas ciéncias tenham se emancipado e desenvolvido sem a pesquisa, sem o aprimoramento dos processos de produgao dos conhecimentos esem a sistematizacao permanente e criteriosa de seus resultados. Sem pesquisa cientifica nao existe ciéncia, Obvio, e sem a reflexdo critica e a vigilancia epistemoldgica sobre seus procedimentos e resultados é dificil sua evolugao e sua sobrevivéncia como campo na estreiteza da Academia"*. A Educagao Fisica, assim como outras areas que se encontram numa fase de definigao epistemological progridem na medida em que clareiam seus campos nos intersticios do tecido atual dos saberes e na correlacao de forgas da conjuntura do desenvolvimento do mundo das ciéncias, mas, isso nao é possivel sem a pesquisa cientifica, a acao privilegiada nesse campo, e sem 0 exercicio costumeiro da critica rigorosa dos procedimentos e dos resultados que, na linguagem particular do mundo das ciéncias, é relacionado a Epistemologia’'. Nesse sentido, esclarecer 0 campo de forgas onde se consolidam as novas areas, compreender as pesquisas nelas desenvolvidas exige de forma mais intensa essa reflexao critica, que tem como uma de suas fontes a Epistemologia. As possiveis articulagdes no campo de forcas em que se encontram as novas areas de conhecimento e as condigdes especificas, e bem como as orientagGes das pesquisas que vém sendo desenvolvidas e que impulsionarao seu crescimento sugerem abordar a problematica da pesquisa especifica em Educacao Fisica nas inter-relagGes que o referido campo de forcas exige. Assim, esta modesta contribuigéo apresenta em primeiro lugar algumas apreciagGes sobre a questao da identidade epistemoldgica da area, para, logo, tecer algumas consideragées sobre as condicées e as orientagSes da pesquisa em Educacao Fisica e, finalmente, a modo de conclusées, colocam-se algumas sugestes visando alargar os horizontes da discussdo °” Bachelard em Le RacionalismeAplique, utiliza 0 conceito de" Vigilindia Episcemologica "para identificar a postura que todo cientista deve ter fase na rotina do trabalho cientfico. Essa vigilancia tem trés graus: a atengao ao inesperado, a vigilincia a aplicacao do método e a vigilancia sobre o proprio método, '* A Epistemologia, conhecida também como Teoria ou Filosofia da Ciéncia, situa-se na inter-relacao antre a ciéncia e a flosofia. Seu objeto é a producio cientifica nos varios campos do saber e toma, como referencial analitico,algumas categoria filos6ficas, relacionadas com as Teorias do Conhecimento, a Oncologia e a Etica EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAO FISICA: 25 as inter-relagbes necessirias sobre a problematica da produgo do conhecimento nesse novo campo epistemoldgico que se consolida. 1. Os novos campos epistemoldgicos Na recente preocupagio com a definigdo dos pressupostos epistemolégicos com que opera a drea da Educagao Fisica/Cigncias do Esporte (BRACHT, 1992, p. 111), algumas questGes basicas podem ser explicitadas: primeiramente, as relacionadas com as flutua¢6es do predominio das varias sub-areas, ora das disciplinas fundadas nas ciéncias naturais, ora nas ciéncias sociais e humanas, que orientaram o recente crescimento da pesquisa, ou do predominio ideoldgico que sobrepée o politico ao académico; em segundo lugar, as relativas a classificacdo das ciéncias ea localizagéo nesse quadro dos novos campos epistemoldgicos; e em terceiro lugar, as questdes sobre a natureza da Educacao Fisica. 1.1. A flutuagao epistemolégica Oolhar sobre a produgao recente do conhecimento na area, no Brasil, tem identificado, segundo Bracht (1992), a flutuacao do predominio das sub- areas das ciéncias naturais (Fisiologia, Antropometria, Medicina Esportiva), a partir de 1980 e das sub-areas das ciéncias humanas e sociais (Pedagogia. Sociologia, Antropologia, Filosofia) e nos anos 90, o surgimento do interesse pelas matrizes tedricas e as concepydes de ciéncia que orientam a produce do conhecimento na Area. Ora, essa preocupaco pelo diagnéstico do predominio de uma ou outra disciplina, oriunda seja das ciéncias naturais, seja das ciéncias humanas ou sociais, e mais o interesse pelas matrizes tedricas indicam uma fase salutar da pesquisa, quesignifica o avango na passagem das questées instrumentais, técnicas e metodolégicas para as tedricas e epistemolégicas. Pesquisar a problematica em Educagao Fisica nao consiste apenas em utilizar instrumentos, realizar procedimentos, aplicar algumas teorias e método ja desenvolvidos em outras areas, especialmente nas denominadas “disciplinas maes” (Fisiologia, Biomecanica, Psicologia, Sociologia, etc). Pesquisar implica a elaboracao de referenciais tedricos especificos e do delineamento de op¢des epistemoldgicas condizentes com a natureza da rea. Isto é, pesquisar nao consiste em tomar emprestadas técnicas, métodos teorias para descrever ou explicar os problemas vinculados ao campo da 26 Silvio SAncher Gamboa Educacao Fisica. Parece ser necessario definir pontos de partidae de chegada dos processos do conhecimento, de caminhos, das articulagdes entre processos e horizontes compreensivos, que fogem das receitas cientificas e de paradigmas prontos e consolidados em outras areas, por serem campos epistemoldgicos novos. Dai porque adquirem destacada importancia as questGes sobre a identidade epistemoldgica da area, a busca da especificidade do objeto, a redefinicdo de conceitos e a criagio de novas denominacdes para identificar novas abordagens, ou mesmo, propor uma nova ciéncia (SERGIO, 1989; SANTIN, 1987). A preocupagao com as questées tedricas e epistemoldgicas expressa a busca de uma nova forma de fazer pesquisa, ultrapassando a fase de “ciéncia aplicada” caracterizada pela apropriagdo simples de métodos e referéncias desenvolvidas em outras 4reas e pelo “tomar emprestado”, como vem acontecendo quando se consolidam novas areas de conhecimento, como, por exemplo, a Sociologia, a Psicologia, que tomaram emprestado da Fisica, da Biologia eda Matematica seus métodos e mesmo sua linguagem. Hoje 60 caso da|Pedagogia, que, por falta ainda de um estatuto prdprio, recebe o socorro da Psicologia, da Sociologia, da Economia, etc. Asemelhanca de outras 4reas, a Educaciio Fisica sofre as flutuacdes do denominado “colonialismo epistemolégico” das ciéncias maes. A Educagao Fisica torna-se um campo colonizado onde sao aplicados os métodos e as teorias dessas ciéncias-m4e, denominando-se, por exemplo, Psicologia da Aprendizagem Motora, Sociologia do esporte, Fisiologia do esforco etc. Essas flutuagoes, tal como afirma Orlandi (1983), se referindo a relagao do saber pedagogico com as ciéncias que lhe prestam socorro, como a Psicologia, a Sociologia ea Economia, significam “a adesdo pré-critica do saber pedagdgico aestruturas conceituais limitadas pelos interesses das varias teorizagGes epréticas Aumanas centradas em seus objetos especificos” (p. 24). Essas flutuagdes expressam 0 circuito simples do saber. O ponto de partida e 0 ponto de chegada sao as teorias socioldgicas, psicoldgicas, fisioldgicas e nao a Educagao Fisica, que funciona como campo de passagem. Isto , o ponto de partida esta nos referenciais tedricos ja constituidos das varias ciéncias, que sao aplicados aos fendmenos da Educacao Fisica, na tentativa de explicd-los e retornam a matriz disciplinar confirmando suas hipdteses. Estabelece-se assim um circuito em que os fendmenos da Educa¢ao EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAQ FISICA: 27 as inter-relagdes necossarias Fisica so pontos de passagens das elaboragGes cientificas, caracterizando um processo de “co/onialismo epistemoldgico’ sobre um campo aberto a diversas apropriacoes. A superacao da fase de “ciéncias aplicadas” e conseqiientemente das flutuagGes e do colonialismo epistemoldgico poderd acontecer coma reversao do circuito do conhecimento. Nesse caso, toma-se como ponto de partida e de chegada, a Educagao Fisica e, como instrumental explicativo ou compreensivo, as tedricas oriundas das diversas disciplinas. Isso implica a articulagéo de um campo interdisciplinar que tem como eixo, a natureza e a especificidade da Educagao Fisica que articula a contribuigao das varias teorias cientifica, e elabora explicagdes e compreensdes mais ricas e complexas na medida em que tece, em torno de fenémenos concretos, interpretagdes tencionadas por um eixo central, seja este, a motricidade humana, as acdes e reacdes da corporeidade, a conduta motora, ou acultura corporal. Tais assergdes remetem-nos a outras questGes relacionadas com a especificidade dos novos campos epistemolégicos ecom anatureza da Educaco Fisica. Essa problematica é discutida a partir de diversos enfoques. Destacamos aquele que considera a motricidade humana, o movimento do corpo humano, a educagao motora a comunicagao corporal ocomportamento motor “o homem movendo-se, no tempo e no espago”, (SERGIO 1980, p. 154), em sintese, o movimento, a pratica e a agao do corpo humano (motricidade) como eixo da sistematizacao cientifica. Nessa perspectiva, 0 circuito do conhecimento parte do fendmeno da motricidade, do movimento do corpo humano, da pratica esportiva, da danga, do jogo, da ago recreativa, das atividades de lazer, das condutas motoras, das forcas, das ages e reacdes, das tensdes do corpo humans, ete... E as teorias cientificas oriundas da Psicologia, Fisiologia, Sociologia, Biomecanica contribuiraéo com suas hipdtese, teses e abstra¢Ges na explicagdo e compreensdo desses fendmenos. Dessa forma, as diversas disciplinas sio convidadas a oferecer seus ricos elementos explicativos para a elaboragéo de um conhecimento da motricidade, das aces e reacdes, dos movimentos da corporeidade humana, etc. O circuito continua na volta aos fendmenos, explicando-os, compreendendo-os e ponderando critérios para a sua modificagao, alteragao, aprimoramento, ou transformagio. Cria-se um movimento cognitivo dos fenémenos para os fenédmenos. Uma volta rica em explicagées e 28 Silvio Sanchez Gamboa compreens6es que tencionam a agao transformadora, e articula estreitamente a pratica-teoria-pratica. Na virada que os novas campos epistemoldgicos da Educacao Fisica estdo realizando, o circuito se reverte, o ponto de partida vem sendo os fenémenos da Educacao Fisica, na forma concreta da aco e da pratica, do movimento, da motricidade humana e da cultura corporal. O circuito passa pelas teorias, as sistematizagdes, as abstracdes, voltando suas contribuig6es para a explicagéo e compreensio das acdes € praticas dos movimentos préprios dos fenémenos da Educagio Fisica. ‘Nessa linha de raciocinio, a Educagao Fisica, assim como outros novos praxis, respeitando suas especificidades, desafiam as atuais classificagdes das ciéncias, divididas em basicas e aplicadas, naturais e humanas. Desse modo, a Educacao Fisica ou as Ciéncias do Esporte podem ser consideradas fora da classificacao tradicional (ciéncias basicas ou aplicadas; naturais ou humanas) ja_que nao é facil sustentd-las como ciéncias bdsicas, e, pelas razdes, do "colonial = > — = manté-las como ciéncias aplicadas. De igual maneira, por tratarem de fenémenos que sao fisicos e humanos ao mesmo tempo nao pederiam, esses novos campos epistemoldgicos serem enquadrados apenas nas ciéncias fisicas ou nas ciéncias humanas, ou flutuar, passando do predominio de uma para aoutra. Precisamente apontamos as flutuagdes como um dos indicadores de sua indefinigao epistemoldgica. Daf a necessidade de procurar uma nova categoria classificatéria para localizar nela as especificidades desses novos campos epistemolégicos. 1.2. Os novos campos epistemoldgicos Tentando respostas para essas questdes, e considerando que esses Novos campos epistemoldgicos tém a acaoe a pratica como ponto de partida e de chegada da produgao de conhecimentos, e utilizam registros, sistematizacées, elaboragdes explicativas e compreensivas, seus estatutos cientificos se definem melhor sendo entendidos como ciéncias praticas ou da ag&o. Dessa forma, a Educago Fisica, ou as Ciéncias do Esporte perfilam- se como ciéncias com especificidades e objetos proprios, tais como: a motricidade humana, as agGes € reagdes, os movimentos do corpo humano, as praticas desportivas, as condutas motoras, a cultura corporal, etc. EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAO FISICA: 29 as inter-relagdes necessdrias Nesse caso, como em outros em que a pratica e a a¢do sao o alvo da elaboracao cientifica, é possivel, segundo Schmied-Kowarzik (1988), a superagao da tradicional divisdo das ciéncias entre basicas e aplicadas, criando- se uma nova categoria para as novas ciéncias tais como a Pedagogia, a Politica ea Etica’®, Na sua especificidade, a[Pedagogia] por exemplo, como teoria da educacao pretende nao apenas compreender a pratica educativa, mas se voltar sobre essa pratica, sinalizando sua transformacao. E uma ciéncia da e para a aco educativa, e como tal, busca sistematizar a reflexdo critica dos processos educativos. Nesse sentido, reclama para si o estatuto de ciéncia, portanto, um espaco privilegiado entre as Ciéncias da Educacéo. De igual maneira, a Educagao Fisica na transigdo da pré-ciéncia (cf. SERGIO, 1993, p.101) paraa ciéncia (Ciéncia da Motricidade Humana), por definir como ponto de partida e de chegada, fendmenos fundamentalmente caracterizados pela agao, a pratica, o movimento, a motricidade, inserem-se também nesse tipo de ciéncias da pratica e da acaéo com as implicagées epistemoldgicas e filosdficas e os desafios que a constituigdo desses novos campos apresentam no quadro atual do desenvolvimento cientifico. Esses desafios vam sendo assumidos como provam as publicagGes recentes sobre essa problematica e que significa“... antes de tudo, a garantia de uma drea de atuacao dos profissionais em motricidade humana’ (SERGIO, 1993, p. 101). 1.3. A natureza da Educacao Fisica A definigao da Educacao Fisica como uma das ciéncias da pratica e da agao nao se fundamenta apenas por ter como ponto de partida e de chegada amotricidade, o movimento humano, a corporeidade, ou a cultura corporal, mastambém pela natureza da propria Educacio Fisica. Se partirmos do termo basico da Educacao. podemos argumentar com Saviani, quando define a natureza da educacao como trabalho nao material, na medida em que 0 produto nao se separa do ato de produzir e quando “o ato de produzir eo ato de consumo se imbricam (SAVIANI, 1991, p.20) e, se levarmos em conta que a educacdo como um fenémeno humano passa pela compreensao da 'S Ciéncias que tém como objeto 0s atos, 0 ato pedagdgico, 0 ato politica © ato moral. Nessa nova divisdo das ciéncias.a Pedagogia.a Politica ea Etica se aproximam.na medida em que os atos pedagogicos também sio atos politicos e atos morais e, em conseqiééncia, os atos politicos, so também atos morais © pedag6gicos,etc. 30 Silvio Sanchez Gamboa natureza humana, a especificidade da educacdo, de todo e qualquer tipo de educagao esta vinculada a esse tipo de trabalho nao material que produz no homem asua natureza humana, a partir da natureza biofisica, que constitui algocomo uma segunda natureza. Trabalho necessdrio & constituigdo humana do homem, natureza humana que nao estd pronta na natureza biofisica. Portanto, o que nao é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelo homem; e af se incluem os préprios homens. Podemos, pois dizer que a natureza humana nao é dada ao homem, mas ¢ por ele produzida sobre a base da natureza biofisica. Conseqientemente, 0 trabalho educativo é 0 ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada individuo singular, a humanidade que é produzida histérica e coletivamente pelo conjunto dos homens (Saviani, 1991, p. 21). Anatureza da Educagao Fisica, como um tipo especifico de educagao, éum trabalho néo material cujo produto se da no mesmo processo da atividade, do exercicio, do fazer, da realizagao da motricidade, nos atos de correr, jogar, nadar, dangar, competir, brincar, etc. Atividades e processos que desenvolvendo a natureza biofisica do homem, também desenvolvem fundamentalmente sua natureza humana. Atos e processos complexos em que é impossivel separar as “duas naturezas” porque se imbricam mutuamente, constituindo uma unidade concreta na aco humana direta e intencional dos homens (trabalho) que transforma a natureza biofisica em natureza humana. A Educagao Fisica, diferentemente de outros tipos de educacao, situa- se na fase mais prdxima dessa imbricacao, dessa articulagao basica das “duas naturezas”, inseparaveis e dinamicas constitutivas do fendmeno humano"’. A Educagao Fisica constitui-se no /écusprivilegiado de todo processo educativo, por abordar as situa¢Ges basilares, onde se constitui ese desenvolve o humano, a partir das condi¢ées naturais e sociais imbricadas entre si. Condigdes basicas que potencializam a produgao social da existéncia dos homens. 2. Pesquisa e interdisciplinaridade Asanteriores consideragGes sobre a questao epistemologica da Educagao Fisica nos levam a pensar em alguns desdobramentos para a pesquisa na area. A pesquisa nessa disciplina encontra-se no mesmo patamar de desenvolvimento de outras areas préximas, como a pesquisa em Ciéncias da Educacao e dai a 'S Naturezas apenas separaveis pelos artificios das teorias reducionistas ou na divisio artificial dos, abjetos cientificos, uns localizados no Ambito das ciéncias naturais e outros nas ciéncias humanas, EPISTEMOLOGIA DA EDUCAGAO FISICA 31 as inter-relagdes necessarias, importincia de um olhar mtituo entre esses campos epistemoldgicos como sugerem, Bracht (1994), Taffarel (1993) e Faria Junior (1991). Aconstrucao do conhecimento através da sua forma mais qualificada, a pesquisa cientffica, estara atrelada 4 questao fundamental da Educacao Fisica, qual seja a produgao da natureza humana. A natureza humana é constitufda como uma segunda natureza com base num arcabougo biofisico natural a partir do qual se projeta em forma intensa rica e imprevisivel a humanidade através de outras formas de educagao (cf. SAVIANI, 1991, p. 15-30). Nesse sentido, a pesquisa e a producao do conhecimento na area se afirmam em algumas categorias basilares. Uma delas¢é aconcepgao de homem que se torna uma categoria-chave na definigao dos modelos de pesquisas, ou como definimos em anteriores trabalhos, das abordagens tedrico- metodolégicas da pesquisa (SANCHEZ GAMBOA, 1987, 1989 e 2002). As diferentes abordagens, além de se diferenciarem pelas formas diversas de conceber e articular os elementos constitutivos da pesquisa tais como as técnicas, os métodos, as teorias, os critérios de cientificidade, no campo da educagao, e particularmente de Educacao Fisica, se diferenciam pelas concepgdes de homem, corpo e corporeidade que estao em jogo. A Educagio Fisica encontra seu fundamento basico no antropologico, mas esse antropolgico nao ¢ fornecido pelas teorias antropoldgicas, nem pelas teorias sociol6gicas, nem pelas teorias psicol6gicas, mas pelo proprio homem, ou mais precisamente, pelo HUMANO. E chumano que sustenta ealicerga a Educagao Fisica. Eno homem diretamente que a Educagio Fisica encontra sua razdo de ser (SANTIN, 1987, p.25). Nao podemos pensar numa pesquisa em Educagao Fisica que nao tenha como uma das categorias basilares as concepcdes de homem que delineiam o horizonte interpretativo das elaboragées e sistematizagdes dos objetos-alvo de suas andlises. Dada a natureza dos fendmenos estudados, tais como, a motricidade humana, a corporeidade, a conduta motora e a cultura corporal, a dimensdo humana esté presente e se exprime necessaria em concepgées de homem. As concep¢ées de homem sao categorias ou pressupostos de carter ontoldgico, com abrangéncia ampla e geral, das quais se desdobram outros conceitos que constituem o horizonte interpretativo da pesquisa (cf. SANCHEZ GAMBOA, 1994). Nas pesquisas dedicadas & problematica da educagao, as concepgdes de homem sao referéncias 32 Silvie S4nehez Gamboa necessarias para explicitar, tanto as concepgdes de educagéo, como para caracterizar as principais abordagens da pesquisa, como podemos constatar nas consideragées a seguir. Silva (1990), analisando as pesquisas produzidas nos cursos de Pés- Graduagao em Educacao Fisica, identifica essas diferengas, a partir da concepgao predominante, diferengas essas vinculadas aos paradigmas empirico-analiticos. A partir da concepgio de homem, entendido como “mdquina controlada por cadeias lineares de causa e efeito” (visio oriunda do cartesianismo que fundamenta esse tipo de abordagem cientffica) desdobram-se as concepgdes de Educago Fisica, apresentadas nessas pesquisas. O homem é tomado como individuo isolado “ser bio/égico que possui caracteres que podem variar de acordo com o sexo, idade ou raga ... portador de habilidades, tais como forca, velocidade, resisténcia, flexibilidade e outras...” (p.171). Na seqiiéncia légica, a Educagio Fisica é reduzida aos “efeitos andtomo-fisioldgicos que a atividade fisica provoca nos individuos... Tal concepeao de Educagio Fisica de base biologicista funda-se em critérios antropométricos e fisioldgicos e aponta para a necessidade da classificagao dos individuos segundo esses critérios’ (p.102). A Educacao Fisica é “entendida ainda como meto de educagéo, como parte integrante do sistema educativo brasileiro e como elemento de integragéo social que tem como responsabilidade o desenvolvimento harménico, global e equilibrado do individuo.... do trabalhador do futuro, ou do homem de amanha” (p.189). Desdobram-se também concepgées de Esportes associadas ao alto rendimento, a primazia da técnica e da andlise biomecinica do movimento, 4 manutengdo ou melhoria da satide, através da melhoria da aptidao fisica. O movimento ¢ entendido como “resultante de fenémenos fisicos ou fisiolgicos ao resultado de contragées e descontrages, ou do deslocamento do corpo ou de seus segmentos no espago” (p.192). Outras tendéncias como a fenomenologia, ainda nao encontrada na amostra analisada por Silva, mas que ja tem uma trajetéria recente na producao de pesquisa na area apresenta outras concep¢ées de homem. Santin, propondo uma abordagem filosdfica da corporeidade (1990) assim expressa essa concepca Ohomem ¢ corporeidade, como tal, ¢ movimento, é gesto, & axpressividade, é presenga (...) O homem 6 movimento, o movimento que se torna gesto, o gesto que fala, que instauraa EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAO FISICA: 33 35 inter-relacdes necessirias presenga expressive, comunicativae criadora, aqui justamente, nesse espago, esté a Educagao Fisica. (SANTIN, 1987, p. 26) Ainda apontando paraa interdisciplinaridade necessaria nos estudos sobre 0 corpo humano como instrumento de comunicagao e gerador de sentidos, afirma “o tema do corpo esté vinculado a muitas 4reas do saber Aumano. O corpo néo é objeto especifico de uma ciéncia” (SANTIN 1990, p-47). Desdobra-se da definigao do homem como um ser que se move, 0 conceito de corporeidade ou movimento humano que nao pode ser reduzido a deslocamentos fisicos a articulagdes motoras ou a gesticulagées. “Nao & apenas o corpo que entra em ado pelo fenédmeno do movimento. Eo homem todo que age, que se movimenta’ (p.77). Interessantes desdobramentos sobre a harmonia, o Idico, o movimento humano como linguagem. como expressdo e manifestagao, como unidade, superando, o dualismo matéria- espirito, mente-corpo, presentes nas concep¢ées predominantes nas abordagens empirico-analiticas. Com o surgimento de novas abordagens de pesquisa, fundadas nas visdes antropoldgicas, culturalistas ou filosdficas e com o predominio das metodologias fenomenoldgico-hermenéuticas, a discussio em torno da pesquisa em educagao tende a se polarizar entre modelos comportamentalistas e modelos humanistas, entre o positivismo eo humanismo (cf. LABORINHA, 1991), entre a concepgiio segmentada e atomizada de homem e a visio totalizante e holistica (GOBBI, 1991), entre a Educagao Fisica conservadora e emancipaténia, ou transformadora (cf. MAZO E GOELLNER, 1993; MEDINA, SOARES E TAFFAREL, 1993). Essa polarizagio pode levar a dualismos e controvérsias, semelhantes & polémica paradigmas quantidade-qualidade que marcaram a pesquisa, especialmente na Ultima década (cf. SANCHEZ GAMBOA, 1994), Essas polarizagdes, embora oportunas, na quebra da hegemonia dos paradigmas analiticos e positivistas, podem reduzir as possibilidades da pesquisa a um falso dualismo, obedecendo a légica doterceiro excluido, fechando 0 espago a outras (terceiras) opgdes. Outra tendéncia que comega a ganhar espaco na Educacao Fisica, apontada por Faria Junior (1991), Silva (1990), Taffarel (1983 e 1993) se refereas abordagens critico-dialética que tem como matriz epistemolgica o Materialismo Histérico ea Filosofia da Praxis. Nessas tendéncias, as concepgdes de homem se aproximam da compreensao historica de sujeito social transformador da natureza 34 Silvio Sanchez Gamboa e da sua prépria natureza, ator, construtor de seu destino, tencionado pelos interesses emancipatérios da luta por maiores niveis de vida e de liberdade e procurando encontrar e produzir o que, na complexidade, lhe permite unidade e realizacao. “O homem éum processo, precisamente o processo das seus atos” (SERGIO, 1993, citando a Gramsci, p.82). O homem como ser praxico, segundo o mesmo autor tem, acesso a uma experiéncia englobante, agente e promotor de cultura, projeto originario de todo o sentido, meméria do mundo e ser axiotrépico (que persegue, apreende, cria e realiza valores). Nao ¢ ao nivel do puramente animal, mas do intrinsecamente cultural, que o homem conhece e se conhece, transforma e se transforma (SERGIO, 1993. p. 83). Os desdobramentos dessas concepgdes de homem levam a entende-lo como ator, transformador, sujeito que constréi sua natureza humana pela interagao coma natureza e com outros homens nas condigoes materiais histéricas, em que essa constru¢ao esta limitada pelo reino da necessidade e pelos interesses dominantes e o jogo do poder de cada sociedade. Dai porque pensar a Educagao Fisica desse homem construido socialmente deve considerar essas condi¢Ges materiais histéricas e a dinamica das sociedades nas quais esse homem se constitui como humano. Nas sociedades divididas em classes, essas condi¢gdes sao caracterizadas, por privilégios, marginalidade, exploracao, alienagao, violéncia, lutas de classes, mecanismos de controle, domesticacao, submissao etc., condicSes essas, que determinam formas de Educagao que na conjuntura de manter ou superar essas condigées, reproduz oconflito que pretende, ou reproduzir 0 status quo ou se engajar nos processos emancipatérios transformadores. A partir desse referencial, a pesquisa dos processos educativos exige uma compreensio da complexidade das condigdes sScio-histdricas concretas nas quais se produz a educagao. Para tanto é necessaria uma articulagdo de diversos saberes em torno do eixo da ago educativa. Nesse sentido, a pesquisa se desenvolve, evitando a segmentacgdo dos saberes, através da interdisciplinaridade, da capacidade de dialogar e articular com outras ciéncias sem os preconceitos originados na divisdo das ciéncias naturais ou humanas e buscando sinteses que ajudem a sistematizar os conhecimentos sobre 0 movimento humano, a motricidade humana ou a cultura corporal na sua multiplicidade de expressdes. Movimento, motricidade ou cultura corporal que EPISTEMOLOGIA DA EDUCACAO FISICA: 35 as inter-relagdes necessarias s6 tem sentido como formas de construir o humano no homem a partir da sua natureza biofisica. Para compreender essa complexidade é preciso 0 concurso de diversas disciplinas e, a partir dessa compreensao, potenciar formas de atuacao, visando a construcgio do humano em cada homem, através da interagao social entre os homens nas mais diversas situagGes em que a motricidade, o movimento do corpo humane, ou a cultura corporal contribuem para essa construcéo e desenvolvimento do humano, no esporte, na gindstica, no jogo, na danga, na recreacao, na competicao, no clube, na academia, no time, na equipe, no campeonato, na escola e na relacao pedagégica professor-aluno. 3. Alguns apontamentos, a modo de sugest6es para o debate Na superacdo da fase de “ciéncias aplicadas” a Educacao Fisica como novo campo epistemoldgico que tem como objeto de suas pesquisa os atos, as aces, a motricidade humana, acultura corporal constitui-se como uma ciéncia pratica, ciéncia da e paraa pratica da motricidade humana, ou da cultura corporal, por exemplo, e, como tal, junto com outras novas ciéncias como a Pedagogia, a Politica ea Ftica, formam um novo campo no atual desenvolvimento cientifico, ¢ num futuro préximo, um novo espago na organizacéo das universidades e centros de formagao cientifica e profissional, e possivelmente formando agrupamento de unidades diferentes ao atual modelo de Jnstitucos (referidos as ciéncias basicas) e Facu/dades(referidas as ciéncias aplicadas) ”. A proximidade da problematica abordada pela Educagao Fisicacom as ciéncias da educacdo e fazendo jus ao termo genérico de Educagao, as inter-relacées prioritarias apontam para o campo das ciéncias da Educacao. Assim, asinter-relagdes da pesquisa em Educacio Fisica, referidas ao campo epistemoldgico, podem ser desenvolvidas quando recuperamos os nexos, com o campo que por definicdo é mais abrangente, isto é: a Educacao. De forma semelhante aos conflitos de indefinicao epistemoldgica das ciéncias da educagao, que tém como ponto de referéncia, a problematica da agao educativa e a pratica pedagégica, a Educagao Fisica também de depara com “a centralidade de seu olhar com a pratica e a acdo. Dai a possibilidade de valiosos intercémbios no campo da pesquisa com a Pedagogia, a Didatica, ¢ as Praticas de Ensino. " Tais unidades académicas poderio ser denominadas, por exempio, Centros das Ciéncias da Acio, Centros de ciéncias da Pritica, Centro de Cultura Corporal, etc. 36 Silvio Sénchez Gamboa Tanto as ciéncias da Educagéo como a Educacao Fisica tem como identidade o compromisso da formagao da natureza humana dos homens, a partir da natureza biofisica, num continuum em que a Educagio Fisica tem Prioridade nessa formago da natureza humana, por estar mais préxima das articulagdes do biolégico e o humano nas suas inter-relagdes individuais e sociais, compromisso complementado pelas outras formas de educa¢ao, objeto de pesquisa de outras ciéncias préximas como a Pedagogia, a Etica ea Politica. Uma vez aceita a especificidade da Educagio Fisica como um campo epistemol6gico vinculado a praxis, a ago, a pratica, a motricidade humana ou a cultura corporal, as abordagens da pesquisa na 4rea deverdo priorizar como referéncias tedrico-metodoldgicas aquelas que por sua légica se aproximam melhor dessas categorias. Tanto as tendéncias empirico- analiticas, fenomenoldgico-hermenéuticas como as critico-dialéticas tém referéncias, no pragmatismo, na fenomenologia da acao, ou na teoria da praxis, categorias essas que contribuem no desenvolvimento donovocampo epistemol6gico da motricidade humana ou da cultura corporal. Porém, as especificidades de cada abordagem dificultam ou propiciam a compreensao da dinamica e da riqueza da agao e da pratica na sua complexidade humana esocial. Os instrumentais oferecidos pela hermenéutica ea dialética parecem ser ricos em desdobramentos e apontam para uma heuristica mais promissora. A dialética, particularmente, por ter como referéncia central 4 praxis, oua articulag&o pratica-teoria-pratica oferece um referencial que articula diretamente a compreensao da e paraa pratica transformadora da Educagao Fisica, nesse sentido as abordagens dialéticas oferecem um potencial maior de compreensao, uma vez que partem da unidade contraditéria entre teoria e pratica, como veremos no capitulo a seguir.

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