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editora brasiliense rr WALTER BENJAMIN MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ENSAIOS SOBRE LITERATURA EHISTORIA DA CULTURA OBRAS ESCOLHIDAS VOLUME 1 Sarge Pe Rai fees eee editora brasiliense Copwright © by Subrkamp Vera. ‘al riginal Auch ret Bn rr Seeding SA ‘Ettore [Nenhuma part desta publica pode se gra, srrmcenata em sistemas eltonicn, fotocopiata, N gant on ae pee aoe ISBN. 85-11-12030-0 Primeiraedicio, 1985 10% rine, 196 ‘Revlsto: Marcia Copola « Evia da Recha Capa: Ettore Bottini os neni de Catala me Pubs (2) = (CAmara Brasileira do Livro, sr, Brasil) here tani tee pom: nis sb eratura © stoi de catars 7 Water Benjamin aa Sergio Pe Rowan! prelacio Jeane Marte Cashin Se Pou Bees 980 (Obras eels 1) ISBN 85-1-120500 1 Ate Flostia 2, Coltura- Hite 3. Fesofia sens Hist" Foci 5. Lteratura Hite eliea 1. Tio. Te sene. 4-074 ep. Toes para cailogo sand J. Benjamin Fiesta sent 193 COMP Ra. [ir ceuraa oe samara watonse 3 a a Benjamin, walter . Magia e tecnica, arte e politi | ca ensaios sobre literatura ¢ historia da cultura 82. 09/8468m/7. ed. (156362799) £sar A crise do romance. Sobre Alexanderplatz, de Diblin ‘Teorias do fascismo alemao. Sobre a coletiinea Guerra Guerreiros, editada por Ernst Jinger - 61 Melancolia de esquerda. A propésito do novo fivro de Poemas de Erich Kistner . A 2B Que €0 teatro épico? Um estudo sobre Brecht --...0... 78 Pequena hist6ria da fotografia . : 1 ‘A doutrina das semethangas . + 108 Enperiénciae pobreza ....... 0... 3 : 14 (© autor como produtor. Conferéncia pronuncia tituto para o Estudo do Fascism, em 27 de abril de 1934. 120 Franz Kafka. A propésito morte . 137 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica... 165 (© narrador. Consideragdes sobre a obra de Nikolai Les- OG as 51 : sees 197 Sobre o conceito da Historia 22 APENDICE Livros infantis antigos ¢ esquecidos .. Histéria cultural do brinquedo .......+. Bringuedo brincadeira. Observages sobre wna obra ‘monumental (1928) . - 249 PREFACIO Walter Benjamin ou a historia aberta A qui esto, finatmente editadas em portugués, as fa- ‘mosas teses “Sobre o conceito de histéria"," iltimo escrito de Walter Benjamin, publicadas apés sua morte, em 1940. Nao pretendo, no dmbito desta breve introducao, fazer delas wma interpretacao exaustiva. Prefiro escolher um aspecto essencial ‘mas pouco estudado da filosofia de Benjamin, sua teoria da narragéo. Se nos lembrarmos queo termo “Geschichte”, como “histéria’”, designa tanto 0 processo de desenvolvimento da realidade no tempo comoo estudo desse processo ou um relato ‘qualquer, compreenderemos que as teses “Sobre o conceito de histéria"’ nao sao apenas uma especulapzo sobre o devir histé- rico “enquanto tal”, mas uma reflexio erttica sobre nosso dis- curso a respeito da histéria (das histérias). discurso esse inse- parével de uma certa pritica. Assim, a questao da escrita da histéria remete ds questoes mais amplas da pritica politica e da atividade da narracao. E esta iltima que eu gostaria de ‘analisar: 0 que é contar uma histéria, hist6rias, a Histéria? ‘Questao que Benjamin estuda nas teses e em diversos de seus ‘ensaios literérios, muito oportunamente publicados neste mes- ‘mo volume. Benjamin, que, conforme sabemos através do depoimento de seu amigo G. Scholem, escreveu as teses sob 0 impacto do (1) Neste volume, of. pp. 222-232. Cita a partir de agora como “tees” 5 (WALTER BENIAMIN acordo de agosto de 1939 entre Stalin e Hitler, critica duas ‘maneiras aparentemente opostas de escrever a histéria que, nna realidade, tém sua origem em uma estrutura epistemol6- ‘ica comum: a historiografia “progressista”, mais especifica- ‘mente a concepedo de histbria em vigor na social-democracia ‘lemi de Weimar, a idéia de um progresso inevitivele cienti- Ficamente previstvel (Kautsky), concepeao que, conforme de- ‘monstra Benjamin, ‘uma avaliacao equivocada do {fascismo ea incapacidade de desenvolver uma luta eficaz con: ‘ra sua ascensdo: mas também a historiografia “burguesa’” contemporinea, ou seja, 0 historicismo, oriundo da grande tradigdo académica de Ranke a Dilthey, que pretenderia revi- ver o passado através de uma espécie de identificagao afetiva do historiador com seu objeto. Sem me deter na aniilise critica ‘de Benjamin, jé amplamente comentada,} eu gostaria de des- tacar, agui, duas conclusges. Em primeiro lugar, segundo Benjamin, a historiografia “burguesa” ea historiografia “pro ‘gressista” se apéiam na mesma concepgio de um tempo “ho~ ‘mogéneo ¢ vazio” (teses 13 ¢ 14), um tempo cronolégico ¢ linear. Trata-se, para o historiador “materialista” — ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identi- ficar no passado os germes de uma outra hist6ria, eapaz de Tevar em consideragio os sofrimentos acumulados e de dar uma nove face ds esperancas frustradas —, de fundar um ou- troconceito de tempo, “tempo de agora” (“letztzeit"), carac- terizado por sua intensidade e sua brevidade, cujo modelo foi ‘explicitamente caleado na tradigao messinica e mistica ju- daica. ‘Em lugar de apontar para uma “imagem eterna do pas- sado", como 0 historicismo, ou, dentro de uma teoria do ‘progress, para a de futuros que cantam, o historiador de- ve constituir uma “experiéncia” (“Erfahrung”) com 0 pas sado (tese 16). Estranha definigao de um método materi lista! Permitani-me, entao, analisar brevemente esse conceito ‘central da filosofia benjaminiana. Com efeito, ele atravessa toda a sua obra: desde um texto de juventude intitulado “Er- Ck ntadamente Materialism Beira "Tenn ‘User den Beri der 6. ante ee Bla, Susan, 1S, Fankar/aln te sre aera “Cnn conacetente os saad” Habermas, Se SRE SMa, Sto uo, 0cory BarbraPretageS-P Roane MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ° fuhrung’” mais tarde um ensaio sobre conceito de experién- cia em Kant ("Ueber das Programm der kommenden Philo- sophie") diversos textos dos anos 30 ("“Experiéncia e Pobre- 22", "O Narrador”, os trabalhos sobre Baudelaire)® e, fina- mente, as teses de 1940, Benjamin exige a cada vez a amp! {0 desse conceito, contra seu uso redutor. Assim, no texto de 1913, tipico do espirito da “Sugendbewegung”, contesta a ba- nnalizagdo dos entusiasmos juvenis em nome da experiéncia Pretensamente superior dos adultos; no texto sobre Kant, cri- tica “um conceito de conhecimento de orientagéo unilateral, ‘matemdtica e mecénica’” e gostaria de pensar um conheci- ‘mento que tornasse passive! “nao Deus, € claro, mas a expe- riéncia ea doutrina de Deus". Nos textos fundamentais dos ‘anos 30, que eu gostaria de citar mais longamente, Benjamin retoma a questao da “Experiéneia”, agora dentro de sma nova problemiitica: de um lado, demonstra o enfraquecimen- to da “Erfahrung’ no mundo capitalista moderno em detri- mento de um outro conceito, a "Erlebnis”, experiéncia vivide, ccaracteristica do individuo soitério; eshoga, ao mesrno tempo, uma reflexio sobre a necessidade de sua reconstrucdo para arantir uma meméria e uma palavra comuns, malgrado @ desagregapdo eo esfacelamento do social. O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, & 0 laco que Benjamin estabelece ‘entre fracasso da “Erfahrung” eo fim da arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas nio explicitada em Benjamin), a idéia de que uma reconstrugdo da "Erfahrung” deveria ser ‘acompanhada de uma nova forma de narratividade. A uma experitncia e uma narratividade espontineas, oriundas de uma organizagio social comunitdria centrada no artesanato, (9) “Expetitcia", 193, adn W. Benjamin, A Oriana, Bringueda, Pace Sumas So F184, GW Maa Sobre @ Programs da Filsfia avi", in W. Beniamin, Gest Werke Ut, pe 187 ess, Suktkamp,Frenkfort/Mai, 1977 (5) "Esxpericia e Pobre, neste volume. 114 x. "O Nard”, neste ‘ue p 197 ss. tambon "Os Pensadore", ed. Abr Calta 1980, tad de Modasto Caron, p57 85, "Sobe suns Temas cm Baus”, mesmo wd (6) “Biasitgmatbomatsch mechankshorintetenErkenntnisbegif" ("Ue er das Programe "sop 18) (©) “Dari sol urcheus wich gents sin dacs die Erkanatn Gott, wot ser drchaus dase iar nd Late von fm allerest emis" em, 0 WALTER BENIAMIN ‘opor-se-iam, assim, formas “sintéticas” de experiéncia ¢ de jarratividade, como diz Benjamin referindo-se a Proust.” fru- tos de um trabalho de construcao empreendido justamente ‘por agueles que reconheceram a impossibilidade da exper via tradicional na sociedade moderna ¢ que se recusam a $e Contentar com a privaticidade da experiéncia vivida individual CErlebnis"). Este aspecto “construtivista”, essencial nas “te- 'ses" (“A historiografia marxista tem em sua base um principio construtive,’” Tese 17), deve ser destacado, para eviter que a teoria benjaminiana sobre a experiéncia seja reduzida sua. dimensio nostélgica e roméntica, dimensao essapresente, sem Givida, no grande ensaio sobre “O Narrador", mas niio exclu ‘Siva. Com efeito, se consideramos os diversos textos dessa épo- ta, e, mais particularmente, dois textos fregitentemente para~ Telos como “Experiéncia e Pobreza” e “O Narrador”, observa- mos que odiagnéstico de Benjamin sobre a perda da experién- tia ndo se altera, embora sua apreciagao varie. Idéntico diag- Indstico: a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque tle parte, fundamentalmente, da transmissio de uma expe- riéncia no sentido pleno, cujas condigdes de realizardo jé nao tristem na sociedade capitalista moderna. Quais sao essas con- digdes? Benjamin distingue, entre elas, trés principais: ‘a) a experiéncia transmitida pelo relato deve ser commun a0 narrador e ao ouvinte. Pressupde, portanto, wma communi Gade de vida e de discurso que o ripido desenvolvi imento do ‘capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distancia en- tre os grupos humanos, particularmente entre as geragies, transformou-se hoje em abismo porque as condicées de vida mmudam em um ritmo demasiado rapido para a capacidade Jumana de assimilagao, Enquanto no passado 0 ancidio que se ‘aproximava da morte era o depositério privilegiado de wma caperiéncia que transmitia aos mais jovens, hoje ele no passa ‘de um velho cujo discurso & iniitil. 'B) Exse caréter de comunidade entre vida e palavra aptia~ se ele proprio na organizagao pré-capitalista do trabalho, em ‘special na atividade artesanal. O artesanato permite, devido ‘a seus ritmos lentos e organicos, em oposicio & rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu cariter totali- (8) “Sobre sigunstemasem Baudlale”, op. it. . 30(a radu ds “att Sciameste") MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA = zante, em oposigdo 00 carkter fragmentério do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentagao progressiva das di- versas experiéncias ¢ uma palavra unificadora. O rit ‘abet ecsmal os ncrecemsin tro mi plobal torr poonde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. Final- ‘mente, de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesto, que respeita a matéria que transforma, tém uma rela (0 profunda com a atividade narradora: jé que esta também & de certo modo, uma maneira de dar forma imensa maté- ria narrével, participando assim da ligagao secular entre a doe a voz, entre o gesto ea palavra. ©) Acomunidade da experiéncia funda a dimenso pri- tica da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiéncia, que seus ouvintes podem receber com roveito. Sapiéncia pritica, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma adverténcia, de um conselho, coisas com due, hae, no sabemos o que fener, de tao ioladas que xt ‘mos, cada um em seu mundo particular e privado. i scion rat aria por ‘ie de olrem, como interpretamos maltas vers, mas em fazer uma sugestao sobre a continuacao de uma histéria que aren sere ores ido narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum € vivo, jd que a histéria continua, que esté aberta a novas pro estas ao fazer unto. Quando esse fluo se esgota porque a ‘meméria e @ tradigao comuns jé ni existem, o individuo iso- ee ee ce meen alemio: “ratlos”), reencontra entao 0 seu duplo no her6i sol trio do romance, forma diferente de narragiio que Benjamin, ‘apés @ "Teoria do romance”, de Lukécs, analisa como forma ‘eracteristeadasoiedae birguesa moderna lepauperamento da arte de contar parte, dleclinio de uma trade © de una meméra eens igen rrantiam a existéncia de uma experiéncia coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partihados, em um mesmo universo de pritica e de linguagem. A degradacao da “Erfahrung’” des creve 0 mesmo processo de fragmentagao e de secularizacéo que Benjamin, na mesma época, analisa como a “perda da ‘aura’ em seu ¢élebre ensaio sobre “A obra de arte na época de () "ONaerador,p- 200, a (WALTER BENIAMIN Completamente ausente em “A obra de arte...", malgrado a Gmbicdo “materialisia” deste titimo escrito: mas ele é, ‘mesmo tempo, reconhecido como um fato ineludivel que seria Jase querer negar, salvaguardando ideais estéticos que jd ‘nao tm qualquer raz historia real. Mais: 0 reconhecimento Mdeido da perda leva a que se lancem as bases de uma out aie cdiice: Benjamin cita © Bauhaus, 0 Cubismo, alte Patura de Dablin, 08 filmes de Chaplin, enumeragao — discu- cujo ponto comum éa busca de wma nova “Sachlichkeit"), em oposigio ao sentimenta- liane burgués que desejaria preservar a aparéncia de uma in~ mente condenadas su coe tm rebrane 2 pat Peper na a on a Saeco s de Benjamin, "6a da abertura. O leitor atento descobriré ‘teoria antecipada da obra aberta. ‘Na arrativa tradicional essa abertura se apéia na plenitude do sentido — e, portanto, em sua profusio ilimitada; em Um- berto Eco e, parece-me, também na doutrina aa da alegoria, a profusao do sentido, ou, antes, dos sentidos, eer drs de seu ndo-acabamentoexsncial. O Que me 1,28 ta nan en Raabe i, se amin Ctamate Scheer 1, p 127. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA » importa aqui é identificar esse movimento de abertura na pré- ‘Reia estrutura da narrativa tradicional. Movimento interno, representado na figura de Scheherazade, movimento infinito da meméria, notadamente popular. Memsria infinita cuja figura moderna e individual seré a imensa tentativa prous- tiana, tao decisiva para Benjamin. Cada hist6ria éo ensejo de uma nova histéria, que desencadeia uma outra, que traz uma ‘quarta, etc.; essa dindmica ilimitada da meméria é a da cons- tituicdo do relato; com cada texto chamando e suscitando ou- tros textos.” Mas também um segundo movimento, que, se esté inscrito na narracéo, aponta para mais além do texto, para.a atividade da leitura e da interpretado. Aqui Benjamin ita Herédoto," “pai da histbria” e pai de insimeras hist6rias, referéncia importante para nosso objetivo, jé que na figura de Herédoto enquanto protétipo do narrador tradicional, vemos também como a escritura da histbria esté enraizada na arte (eno prazer) de contar, como Paul Veyne, bem mais tarde, destacaria.* Ora, a forca do relato em Herbdoto é que ele sabe contar sem dar explicagbes definitivas, que ele deixa que ‘historia admita diversas interpretagdes diferentes, que, POr- tanto, ela permanece aberta, disponivel para usa continua- (edo de vida que dada leitura futura renova: “Herédoto nao explica nada." Seu relato & dés mais secos. Por isso essa hist6ria do antigo Egito ainda é eapaz, depois de ‘milénios, de suscitar espanto ereflexdo. Ela se assemelha a es- sss sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fe- ‘chadas hermeticamente nas cémaras das pirdmides e que con- servam até hoje suas forcas germinativas’ Notemos, aqui, que justamente aquilo que foi criticado muitas vezes em », a saber a auséncia de um esque- 12) Cl. Todoror, “Les hommensits, in Polio de ls Prove, Sell Pars 197. (13)'“ONarradr”,p.197 (1) Paul Vey, Comment on deri Risnre, Sei Pai, 17. AS) Trata-s a histia de Psammenites (er6dto, Enquée, TI, 14). Bes- Jamin contows a dvereos amigos © anotou us dress InterpetagSe, No com ‘letamente verdadero que "Herédoo no expllen mada" Relerese& propria exp fa de Peammenites sobre sue aitude. E verdade que Herédoto nko lores ne ‘hums explicasto por conte propia ‘0) “ONarruder"p. 204 “ WALTER BENJAMIN, ‘ma global de interpretagao ede explicaga0, como teremos, ‘or exemplo, em Tucidides,é. para Benjamin, ndo uma Je e fadados ao esquecimento. Testemunha-o esta defesa do cro- ‘nista contra o historiador cldssico: rons que narra os acontecimentos, em dtingur entre soon cquanos ovsem conta averdade de que nada Sees a neantecen pode ser considerado perdide Pare 8 tstoia™ Tese 3) Jamin, que, aqui, seque Lukécs,« questo, do sentido 26 pode emvolocar, paradoxalmente, a partir do momento em aie esse ‘sentido deixa de ser dado implicitamente ¢ imediatamente ‘pelo contexto social. Aquiles nao se questiona sobre o sentido Tia vida porque sua existéncia segue certas regras determin Gas, aceitas e reconhecidas por todos os seus companheiros ‘por ele proprio em primeiro lugar (em compensagao, ele se ‘Colocardé outras questBes, que, haje, no : por cxemplo a da morte gloriosa). O romance coloca em cena um therdi desorientado ("‘ratlos”), ¢ toda a acao se constitui como 1. O leitor do romance ‘sca asiduamente na letwra 9 id mao encontra na sociedade moderna: um sentido explt- ee re Checida. Por tso ele espera com impaciéncia pela MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA 15 do sentido traz a necessidade de concluir, de p6r um fim histéria. Enquanto a narrativa antiga se caracterizava por ua abertura, 0 romance eléssico, em sua necessidade de re- olver u questao do significado da existéncia, visa a conelusao. Essa oposieao, desenvolvida em “O Narrador”, é, entretanto, ‘recolocada em causa no romance contemporiineo, como 0 pré- prio Benjamin vai demonstrar em seus ensaios literdrios. Sele cionarei aqui dois exemplos privilegiados desse nao-acaba- ‘mento essencial, os de Proust e Kafka. ‘A influéncia de Proust sobre seu tradutor Benjamin é de tal ordem que este se vé obrigado, durante algum tempo, a renunciar @ sua leitura para nao cair em “uma dependéncia de drogado que impediria... sua prépria produgdo”."" Proust Trealiza, com feito, a proeza de reintroduzir 0 infinito nas li- mitacées da existéncia individual burguesa. Esse infinito, que ‘© comprimento da obra e da frase proustianas configura, in- terna-se na vida desse parisiense elegante pelos caminhos con- vergentes da meméria e da semethanca. A experiéncia vivida de Proust ("Erlebnis"), particular e privada, jé néo tem nada @ ver com a grande experiéncia coletiva (“Erfahrung”) que fundava a narrativa antiga. Mas 6 caréter desesperadamente Uinico da “Erlebnis” transforma-se dialeticamente em uma busca universal: 0 aprofundamento abissal na lembranga des- ‘poja-o de seu carter contingente e limitado que, em ui pri- ‘meiro momento, tornara-o possivel. “Pois um acontecimento vivido & finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ‘a0 passo que 0 acontecimento lembrado é sem limites, porque apenas uma chave para tudo 0 que veio antes e depois.”"” A grandeza das lembrangas proustianas nao vem de seu con- tetido, pois a bem da verdade a vida burguesa nunca é assim tao interessante. O golpe de génio de Proust esté em ndo ter escrito “memérias”, mas, justamente, uma “busca”, uma busca das analogias ¢ das semelhancas entre 0 passado e 0 presente, Proust ndo reencontra o passado em si — que talvez ‘fosse bastante insosso —, mas a presenca do passado no pre~ ‘sente e 0 presente que jd ésté 16, prefigurado no passado, ou ‘seja, uma semelhanca profunda, mais forte do que 0 tempo (17 Gita por Peter Scand, Sats and Gegersei, Sobrkamp, Franklut/ aie, 1976,p. 60. (GA Imagem de Prous”, nest lume p. 37. 6 WALTER BENUAMIN, rae: se esvai sern que possamos seguré-lo. A tarefa seem eel con ie le tecimentos, mas. "subtral-los ds contingéncias do tempo em 1a metéfora”.” ah. a “Sobre ceito de histéria” a luz aie» cms dein destas poucas observagies, poderemos observar senag mt ee Casco toe ide ae aemapeonoisecare ie ia ae eee pe See = pecan ‘assume uma forma nova, que poileria ter dep rerio Se ot ee ane eae ‘como sendo a realizagdo possivel dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, poelibeaa node a= perder ce el oe eer teeta conceito de semelhanca na filosofia de Benjamin oh. von Acknlichen”, “Doutrina do Semethante”). , ‘Se Proust personifica a forca salvadora da meine Ee errata gece: ee Kel fare i es tee ete camara aires en ee eee na auséncia de meméria e na deficiéneia do sentido. E dai que ‘vem, segundo Benjamin, sua extraordinéria ‘modernidade, ao ” 1. Em uma carta a Gershom Scho- lem, em que critica a interpretagéo que Max Brod faz de Kaf- aoe a ai. poe ots oe “foes tances toad pat Ae ‘Com isso a verdade é designada como um patriménio da tr ix (edo; éa verdade em sua consisténcia hagédica. . Esa comstncn da verdade que se pede. Kafe a sore en eeiea A dia, efervandovse a verdade, ou aquild que Somme fer oat co Se (19) Mare Proust le Rechorche du Tomps Per, ef. iad, vo HL, 8. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 0 dade. A verdadeira genialidade de Kafka foi ter experimen- ‘ado algo inteiramente novo: ele sacrifcou a verdade para ape- arsed sua transmissibilidade, ao seu elemento hagadico. (Os escritos de Kafka sao por sua propria natureza pars ‘bolas. Mas sua miséria e sua beleza 6 0 fato de terem precisado tornar-se mais do que pardbolas. Eles nao se colocam singela- ‘mente aos pls da doutrina, como a Hagada em relacdo d Hala cha. Depois de terem se deitado, erguem uma poderosa pata ‘contra ela.””” (Trad. manuserita de M. Carone com algumas ‘modificagées.) Nao é por acaso que Benjamin utiliza aqui categorias teoldgicas, justamente para criticar a interpretagio trivial- ‘mente teologizante de Max Brod. Na religido judaica a Ha- lacha é 0 texto sagrado da lei divina, palavra origindria e fun- damental, lembrada e reatualizada nos comentérios da Ha- sada. Ora, mesmo no discurso teoldgico que remete @ verdade primeira e essencial, oriunda do verbo divino, nesse paradig- ‘ma do discurso verdadeiro ocidental fundado em um sentido ‘49 mesmo tempo originério e iltimo, surge uma diivida: sob 0 ‘amontoado de comentérios, notas e glosas detaparece a pala- vra priméria. Nao que ela se tenha apagado, mas poder-se-ia dizer que ndo somos mais capazes de distingui-la das outras iniimeras palavras legadas pela tradiedo—como no contexto di- verso de “A obra de artena época de sua reprodutibilidade téc- ‘mica”'jé ndo sabemos distinguir 0 manuscrito originério /origi- nal da(s) c6pia(s). Ou ainda, como diz Benjamin, a “consistén- ia" da verdade foi submergida por sua transmissao: arrastada ‘or seu préprio movimeno, a tradig@o torna-se auténoma em relacio ao sentido inicial no qual, originalmente, tinka suas rraizes. Esse movimento é, profundamente, o da metéfora, que parte do sentido “literal” mas acaba abandonando-o e até, de transposicdo em transposicao, prescindindo dele. Assim, na bela imagem de Benjamin, as “pardbolas” (“Gleichnis") de Kafka, que no inicio esto deitadas docilmente, como peque- ‘nas feras mansas, aos pés da doutrina, acabam nao apenas tor~ nando-se independentes como derrubando.a Halacha com tun violento coice. Em lugar de se atrelarem a uma verdade pri- (20) W. Benjamin, rife, Subrkamp, raskfort/Malo, 1965, yl th. 763. 18 WALTER BENJAMIN meira, cada vez mais distante e fugaz, Kafka se concentra em tum comentério perpétuo, criando uma figura de discurso ris fico cujo niieleo de iluminagao esté ausente. Discurso infini- jamente aberto sobre outros comentérios, sobre outros textos (que jd no remetem a um texto sagrado. Poderiamos arriscar humor, ouseja, com uma dose de jov (que nao temos nenhuma mensagem definitiva para transmi fin, que néo existe mais uma totalidade de sentidos, mas $0- monte trechos de historias e de sonhos. Fragmentos esparsos (que falam do firn da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaca de destruigao, mas vambém —-e ao mesmo tempo — esperanca e possibilidade de ‘novas significacées. A imagem do pai em seu leito de morte, crocada por Benjamin no inicio de seu ensaio “Experiéncia Pobreza” que lega aos filhos uma experiéncia certa ¢ imuté- vel, corresponde 0 ‘moribundo de “A muralha da China”, um conto de Kafka de que Benjamin gostava espe Gialmente.”” Se lembramos que 0 signo do imperador, 0 sol Gesenhado sobre 0 peito do mensageiro, é, desde Platio, 0 Simbolo do Absoluto, temos de reconhecer como ¢ irreversivel b deslocamento que nos distancia dessa imagem de verdade e “ie palavra, deslocamento que o romance de Kafka, em uma ‘espécie de vertigem controlada, conta-nos suavemente: “0 imperador — assim dizem — enviow a ti, sido solitirio ¢ eaesel sombra infima ante o sol imperial, refugiada na vrais remota distancia, justamente a tio imperador enviow, do Tavras. E-diante da turba reunida para assistir @ sua morte — ‘Navlum derrubado todas as paredes impeditivas, enaescadaria (20) ers, p-T64. ae ai cele, “Franz Kath, Baim Bau der Chinesichen Maver” Gen Sen Hip 6b oe Enann ge, nflizente, no const dete vlan [MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA » Io tir ca ete oe ga Pe ee Fearn ee ee ome ees fncansivel. Estendendo ora um brago, ora outro, abre passa- eee eo ae ae on Se eee "Mas @ multidao € enorme: suas moradas nao tém fim. ‘Fosse livre 0 terreno, como voaria, breve ouvirias na porta 0 pais meal, de seu punho. Mas, ao contrério, esforca-se ener erie eee eee ile spiecrasee Smale nae Rca ieee eae dos rin 0 undo plc ceendat: «noumeni ee eee ee fe aS ee een eles ee enero lemma mpegs ‘muito menos com @ mensagem bn cere eran eeme manera) anoite cai."® (Trad. de Lucia Nagib.) se = Jeanne Marie Gagnebin iy wile cde acreeetene en on oem “hn a ee a ran es ne as ee O surrealismo O iltimo instantineo da inteligéncia européia (© crttico pore instatar as ‘corrontis eopirtaly uit fespécie de usina geradora quando elas atingem um declive su- sntemente ingreme. No caso do surrealismo, esse declive ‘eorresponde a diferenga de nivel entre a Franga e a Alemanha. ‘© movimento que brotou na Franca, em 1919, entre alguns intelectuais (citemos de imediato os mais importantes: André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault, Robert Desnos, Paul Eluard), pode ter sido um estreito riacho, alimentado, elo timido tédio da Europa de apés-guerra e pelos iiltimos regatos da decadéncia francesa. Mas os eruditos que ainda hoje sto incapazes de determinar “‘as origens auténticas” do ‘movimento e limitam-se a dizer que a respeitével opinido pti- blica esta sendo mais uma vez mistificada por uma clique de literaios, parecem-se um pouco com uma junta de téenicos ‘que, depois de muito observarem uma fonte, chegam con- viegtio de que © cérrego nio poderé jamais impulsionar tur- binas. © observador alemio nao esta situado na fonte. E sua ‘oporlunidade. Ele esta situado no vale. E capaz de avaliar as ‘energias do movimento. Para ele, que como alemiao est fami- liarizado com a crise de inteligéncia, ov melhor, do conceito humanista de liberdade, que sabe ter essa crise despertado uma vontade frenética de ultrapassar o estigio das eternas ddiscussies ¢ chegar a todo prego a uma decisfo, e que experi- ‘mentou na prépria carne sua perigosa vulnerabilidade a fron- di anarquista e & disciplina revolucionaria, nao haveria ne- 2 Wate RENAMIS nhuma desculpa se considerasse esse movimento como “arts- aaa epoetico”. E possiel que tena sido assim no 6 so Bap entanto, desde o info Breton declarou sua von- {ade de romper com uma prética que entrega ao piblico os ta tc adon iterdros de urna certa forma de existéncia, sem ‘revelar essa forma. Numa formulag4o mais concisa ¢ ms ie eat Stumiaio da Hteratura fo explodido de dentro, 24 me- (ids cinque um grupo homogéneo de homens levou a “vida sits cate os limites extremos do possivel Podemos tomé- fos 20 pé da letra, quando afirmam que a Saison en enfer, {de Rimbaud, nao term mais segredos para eles. Pois esse livro é de falo o texto original do movimento, pelo menos no que diz: respeito ao periodo recente, j4 que ‘hf precursores mais se TeaPsgue sero mencionados a Seguir. Para exprimiro ue et fem jogo, nfo hé comentirio mais cortante e mais definits cto por Rimbaud a margem do seu proprio exemplar da Saison, ra WALTER BENIAMIE quando niio havia mais verdadeiros inimigos. Foram déceis aos apetites da burguesia, que desejava ansiosamente a “des- truigdo do Ocidente” como um colegial que apaga com um borrdo de tinta uma questiio mal respondida, ¢ difundiam a destruicao, pregavam a destruigéo, da qual haviam escapado. Nao thes foi dado em nenhum momento olhar de frente o que fora perdido, e limitaram-se a seguré-lo com todas as forcas, convalsivamente. Do prinefpio ao fim, lutaram amargamente ‘contra a razao. Deixaram passar a grande oportunidade dos vencidos, a de transpor a luta para uma outra esfera, como 0s russos, até que © momento j4 houvesse passado e 0s povos fivessem novamente se transformado em parceiros de tratados comerciais. “A guerra hoje em dia nao € mais condusida, © sim administrada”, diz. um dos autores, queixosamente, Esse certo seria corrigido no apés-guerra alemfo. Esse apés-guerra foi ao mesmo tempo um protesto contra tudo 0 que acontecera antes ¢ contra os civis, cujo selo era visto em toda parte. Antes de mais nada, a guerra tinha que ser privada do seu odioso elemento racional. E, de fato, esses homens se banhavam nos ‘vapores que emanavam das mandibulas do Lobo Fenris. Mas ndo puderam suportar a comparaciio entre esses vapores © 05 das granadas de mostarda. Sobre o pano de fundo do servico militar nas casernas e das familias empobrecidas nos bairros populares, o faseinio protogermanico pelo destino recebeu um clardo de coisas putrefatas. E, mesmo sem analisar materialis- ticamente esse fascinio, a intuiglo nfio-contaminada de um espirito livre, culto e verdadeiramente dialético, como 0 de Florens Christian Rang, cuja vida contém mais “germani- dade" que todo esse exército de desesperadas, conseguiu en- frenté-lo com frases definitivas. “Os deménios da crenca no destino, para a qual a virtude humana é va. — A noite escura de um desafio, que consome num ineéndio divino, universal, o ‘que foi conquistado pelos poderes da luz... a aparente vontade senhorial contida nessa idealizaco da morte nos campos de batalha, que destréi friamente a vida, trocando-a pela idéia — ‘essa noite grivida de nuvens, que hi milénios nos recobrem e ‘que para iluminar nosso caminho acende, em vez de estrelas, relampagos ensurdecedores, confusos, depois dos quais a noite fica mais escura ¢ asfixiante: essa cruel concepcao do mundo, da morte universal, ¢ nfo da vida universal, que no idealismo alemdo alivia o horror com a idéia de que atrés das, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA o nuvens existe um eu estrelado — essa orientagio fundamen- tal do espfrito alemfo é profundamente desprovida de von- tade, diz coisas que nflo pensa, 6 um rastejar, um acovardar- se, um desejo de no saber, de no viver e de nfo morrer Pois é essa a dibia atitude alema com relagao a vida: poder jogi-la fora, quando ela nao custa nada, num momento de ‘embriaguez, num gesto que ao mesmo tempo assegura o sus- tento dos que fiearam ¢ aureola a vitima com uma gloria ilu- séria."" Porém, quando se Ié no mesmo contexto: “Duzentos oficiais, dispostos a sacrificar sua vida, teriam bastado para reprimir a Revoluco, em Berlim e outras cidades — mas nto aparece nenhum. Em teoria, muitos deles gostariam de ter salvo algumas vidas, mas na realidade nenhum 0 desejou a ponto de dar o exemplo, de transformar-se em lider, ou de agir sozinho. Preferiram deixar que thes arrancassem as dra gonas, na rua”, nlionos pode passar despercebida a afinidade entre essas palavras e as dos discipulos de Jiinger. O que & certo é que quem escreveu esse texto conhecia por sua propria experiéncia as atitudes e tradigdes desses autores. E talvez partithasse sua hostilidade contra o materialismo até 0 ponto ‘em que ela criou a linguagem da batatha de material. ‘Quando no inicio da guerra o idealismo foi entregue pelo Estado e pelo governo como uma mereadoria, as tropas ti veram cada vez mais necessidade de requisitar esse material. Seu heroismo se tornou cada vez mais sinistro, mortal, cin- zento como. ago, e cada vez, mais longinqua e nebulosa ficava ‘aesfera da qual acenavam a gloria e 0 ideal, ao mesmo tempo ‘que se tornava cada vez. mais rigida a conduta dos que se sen- tiam menos como tropas da guerra mundial que como execu- tores do apés-guerra. “Conduta” — em tudo 0 que dizem, esse termo aparece de trés em trés palavras. Ninguém negaria «que os soldados também tém uma conduta, Mas a linguagem 6 uma pedra de toque para a conduta de cada um de nés, ¢ ‘no somente, como muitas vezes Se supe, para a conduta de ‘quem esereve. A conduta dos que se juntaram nesse livro nlio passa esta prova. Imitando os diletantes aristocréticas do sé- culo XVI, Jnger pode dizer que a lifiguagem alema € uma inguagem primordial — a maneira como essa idéia é expressa contém um acréscimo implicito, 0 de que, como tal, ela com- Porta uma invenefvel desconfianca com relacdo a eivilizago € a0 mundo moral. Mas como pode essa desconfianga com- « WALTER BENIAMIN parar-se com a dos seus compatriotas, quando # guerra thes & apresentada como uma “‘poderosa revisora”, que “sente (© pulso do tempo”, quando eles so proibides de “rejeitar uma conclustio comprovada’, ou obrigados a agucar seu olhar ‘para que possam ver as ‘‘ruinas”” atrés do “verniz incandes- cente'"? No entanto 0 que é mais vexatério que todos esses insultos @ inteligéncia, nesse edificio intelectual supostamente ciclépico, éa fécil loquacidade da forma, “‘ornando” cada um dos artigos, e mais penosa ainda, a mediocridade do con- teGdo. "Os mortos de guerra”, dizem-nos os autores, ‘a0 tombarem passaram de uma realidade imperfeita a uma reali dade perfeita, da Alemanha temporal 4 Alemanha eterné Conhecemos @ Alemanha temporal, mas a eterna estaria em ‘aus lengéis se tivéssemos que retrati-la a partir dos depoi- ‘mentos agui prestados com tanta volubilidade. Com que faci lidade os autores adquiriram “o firme sentimento de imortali dade”, obtiveram a certeza de que “as abominagies da dltima ‘guerra foram transformadas em algo de grandioso e terrivel”, perceberam o simbolismo do “'sangue fervendo para dentro"! No méximo, eles lutaram na guerra, que agora celebram. Mas no podemes aceitar que alguém fale da guerra sem conhecer foutra coisa que a guerra. Temos 0 direito de perguntar, ra- dicais & nossa moda: De onde vém vooés? E 0 que sabem da paz? Alguma vez encontraram a pax numa crianga, numa Srvore, num animal, como encontraram um posto avangado ‘num campo de batalha? E sem esperar a resposta, dirfamos: Nao! Nao que voces nio fossem capazes, nesse caso, de ce- lebrar a guerra, e mesmo mais apaixonadamente do que hoje. Porém niio seriam capazes de celebrar a guerra como o fazem agora. Como teria sido o depoimento de Fortinbras sobre a guerra? Podemos deduzir seu testemunho a partir da técnica de Shakespeare. Assim como ele revela 0 amor de Romeu por Julieta, em todo o fulgor da sua paixio, através do artificio de ‘mostrar um Romeu ja anteriormente apaixonado, apaixonado por Rosalinda, assim também Fortinbras teria.comegado com ‘um louyor da paz, uma apologia tito sedutora, tio melodiosa- mente suave, que cada um dos seus ouvintes se perguntaria, assim que ele elevasse sua voz para defender a guerra: que foreas poderosas © desconhecidas so essas que levam esse homem to completamente impregnado pelas alegrias da paz 4 propor a guerra? Nio ha nada disso no livro. A palavra foi [MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ° dada a bucaneiros profissionais. Seu horizonte é flamejante, mas estreito. ‘Que véem eles nessas chamas? Eles véem — e nisso po- demos confiar em E. G. Kinger — uma metamorfose. “Linhas de decisio psiquica atravessam a guerra; & transformacao da guerra corresponde uma transformagao do combatente. Ela se torna visivel quando comparamos os rostos leves, impetuosos, entusidsticos dos soldados de agosto de 1914 com as fisio- nomias mortalmente cansadas, implacavelmente tensas, es- ‘quilidas, dos participantes da guerra de material, de 1918. Levadas ‘is tiltimas conseqiiéncias, essa guerra finalmente chegou a seu termo, ¢ dela emergem esses rostos inesquecivei formados e movides por poderosas convulsdes espirituais, percorrida uma via erucis das quais cada etapa e cada batalha € como se fosse 0 hierdglifo de um violento ¢ infindével tra- batho de destruigao. Aqui aparece aquele tipo de soldado constituido pelas duras, sombrias, sangrentas e incessantes batalhas de material. Esse tipo se caracteriza pela dureza nervosa do combatente nato, pela expresso da responsabili- dade solitiria, pelo isolamento das suas almas. Nessa Iuta, ‘que prosseguia em camadas cada vez mais profundas, sua autoridade se preservou. O caminho percorrido era estreito © perigoso, mas era um caminho que conduzia ao futuro.” Quando encontramos nessas paginas formulacdes exatas acentos genuinos, explicagdes plausiveis, € porque se deu enfim algum contato com a realidade, essa mesma realidade ‘que, segundo Ernst Jinger, € a da mobilizacio total ¢, se- gundo Ernst von Salomon, corresponde a paisagem do front. ‘Um publicista liberal, que ha pouco tempo tentou caracterizar esse novo nacionalismo com a formula “herofsmo por tédio", niio foi, visivelmente, ao fundo da questio. O tipo de soldado acima descrito € real, 6 uma testemunha que sobreviveu & grande guerra, e foi de fato a paisagem do front, sua verda- deira pfitria, que ele defendeu no apés-guerra. Essa paisagem merece um exame mais prolongado. Precisamos dizé-lo, com toda a amargura: com a mobil zagdo total da paisagem, o sentimento alemAo pela natureza experimentou uma intensificagio inesperada. Os génios da paz, que a habitavam tio sensoriamente, foram evacuados, e Ho longe quanto nosso olhar podia ir além dos cemitérios, toda a regio circundante tinha se transformado em terreno = 7 (WALTER BENIAMINE do idealismo alemio, cada cratera produzida pela explosio de ‘uma granada se convertera num problema, cada emaranhado de arame construido para deter a progressio do inimigo se convertera numa antinomia, cada farpa de ferro se convertera numa definicio, cada explosio se convertera numa tese, com © céu, durante o dia, representando o forro cbsmico do capa- ete de aco e, de noite, a lei moral sobre nés. Com lanca- chamase trincheiras, a técnica tentou realgar os tragas herdicos. zo rosto do idealismo alemfo. Foi um equivoco. Porque 0s ‘rages que ela julgava serem herdicos eram na verdade tragos hipoeriticos, os tragos da morte. Por isso, profundamente impregnada por sua propria perversidade, a técnica modelou © rosto apocalfptico da natureza e reduziu-a ao siléncio, em- bora pudesse ter sido a forga capaz de dar-the uma vor. A guerra como abstrago metafisica, professada pelo novo na- cionalismo, € unicamente a tentativa de dissolver na técnica, de modo mistico e imediato, o segredo de uma natureza con- cebida em termos idealistas, em vez de utilizar e explicar esse segredo, por um desvio, através da construgao de coisas hu- manas. Na cabeca desses homens, 0 “destino” ¢ 0 “heroismo”” se relacionam como Gog ¢ Magog, ¢ suas vitimas no sto apenas os filhos dos homens, mas os filhos das idéias. Tudo o ‘que foi pensado de puro, de sobrio e de ingénuo sobre o me- thoramento da convivéncia humana entra nas goclas desses {dolos canibais, que reagem a esse festim com 0s arrotos dos seus morteiros de 42.cm. Algumas vezes os autores encontram, uma certa dificuldade em conciliar o herofsmo com a guerra de material. Mas nem todos sentem essa dificuldade, e nada é mais comprometedor que as digressdes lamuriantes com que ‘exprimem sua decepgio sobre a “forma da guerra”, a “guerra de material, cegamente mecdnica”, da qual os espiritos mais, nobres estavam “visivelmente cansados". Os poucos que ten- tam ver as coisas como elas stio mostram claramente como o conceito do hersico se transformou imperceptivelmente, ¢ até ‘que ponto as virtudes da dureza, da taciturnidade, da impla- cabilidade, por cles celebradas, no sfo tanto as virtudes da guerra, como as da luta de classes. O que se forjou aqui, a Principio sob a mascara do voluntério, na guerra mundial, e depois sob a do mercenirio, no apés-guerra, foi na verdade ‘um competente militante fascista na luta de classes, e 0 que os ‘autores entendem por nagdo, uma classe senhorial apoiada [MAGIA B TECNICA, AICTE E POLITICA a nesses individuos, que nfo é responsével perante ninguém € ‘muito menos perante si mesma, ¢ instalada num trono excel 0, tem em sua fisionomia os tragos de esfinge do produtor, que corre o risco de ser o tinico consumidor das suas merca- dorias. A naco dos fascistas, com seu rosto de esfinge, cons- titui-se num novo mistério da natureza, de carter econémico, a0 lado do antigo, que, longe de se iluminar com a luz da técnica, revela agora os Seus tragos fisiondmicos mais ameaca- dores. No paralelogramo de forgas constituido pela natureza € pela naclo, a diagonal éa guerra. E compreensfvel que para os melhores e mais refletides desses autores se coloque a questio do “controle da guerra pelo Estado”. Pois, nessa teoria mistica da guerra, o Estado desempenha naturalmente um papel importante. A palavra “controle” niio € concebida, é claro, num sentido pacifista. AO contrario, exige-se do Estado que desde ja ele se adapte, em sua propria estrutura e em seu comportamento, ¢ delas se mostre digno, Aquelas forcas mfgicas que ele precisa mobi- lizar durante a guerra. De outro modo, ele no conseguiria colocar a guerra a servigo dos seus fins. © pensamento autd- homo desses autores comeca com a verificagdo do fracasso do Estado no que diz respeito a guetra. As formagées surgidas no apés-guerra, hibridas entre confrarias religiosas e agéncias regulares do poder pablico, consolidaram-se rapidamente em ‘bandos independentes e devinculados do Estado, ¢ os mag- natas financeiros da inflaglio, comeyando a por em divida a competéncia do Estado eomo protetor dos seus bens, sou- beram apreciar a sett devido valor as ofertas desses bandos, sempre dispontveis, como arroz e nabos, gragas & intermedia~ ‘go de instncias privadas ou do exército. O livro aqui exami- nado assemelha-se ao prospecto de propaganda, ideologica- mente formulado, de um novo tipo de mercenérios, ov antes, de condottieri. Um dos seus autores explica com grande can- dura: “O bravo soldado da guerra dos Trinta Anos vendia.. seu corpo e sua vida, o que é muito mais nobre do que vender talento e opinides". Mas, quando o autor prossegue, afir- mando que 0 novo mercenirio do apés-guerra nao se vende, ‘mas se df, essa afirmago deve ser compreendida, segundo & Iégica da frase anterior, no sentido de que seu soldo é relati- vamente mais compensador. Um soldo que deve ter seduzido cesses guerreiros tanto quanto a novidade técnica do trabalho: | ee n (WALTER HENIAMIN. cengenheiros da guerra, a servico da classe dominante, eles sio a contrapartida dos dirigentes da CUT. Sabe Deus que sua lideranca deve ser levada a sério, que sua ameaca nada tem de risivel. No piloto de um ‘inico avito carregado com bombas de ‘24s concentram-se todos os poderes — o de privar o cidadao da luz, do ar e da vida — que na paz. esto divididos entre milhares de chefes de escritério, O modesto lancador de bom= bas, na solidao das alturas, sozinho consigo e com seu Deus, tem uma procuragio do seu superior, o Estado, gravemente enfermo, € nenhuma vegetago volta a crescer onde ele poe a sua assinatura, Esse é 0 modelo do lider “imperial”, sonhado pelos autores. ‘A Alemanha no pode aspirar a nenhum futuro antes de destruir os tragos de medusa da figura que vem ao seu en- contro. Destrui-los? Talvez, apenas torni-los menos rigidos. Isso n&o significa agir pela exortacdo e pelo amor, que nao ‘cabem aqui, nem preparar o caminho para os argumentadores € para os especialistas da persuasfio. Signifiea, sim, dirigir Was as luzes da linguagem e da razsio para iluminar aquela ivéncia primordial”, de cuja surda escuridio a mistica da morte universal rasteja, com suas mil patas repugnantes, em direcao a luz do dia. A guerra que esse clarao ilumina nao é hem a “eterna”, que os novos alemdes invocam, nem a “l- tina’, com que se entusiasmam os pacifistas. Na realidade, & apenas isto: a Gnica, terrivel e derradeira oportunidade de corrigir a incapacidade dos povos para ordenar suas relagies miituas segundo o modelo das suas relagdes com a natureza, através da técnica. Se o corretivo falhar, milhoes de corpos humanos serao despedagados pelo gis e pelo ago — porque eles 0 sero, inevitavelmente — e nem mesmo os habitués dos assustadores poderes cténicos, que guardam seu Klages em mochilas de campanha, viverao um décimo do que € prome- tido pela natureza a seus filhos menos curiosos e mais sen- Ssatos, que niio manejam a técnica como um fetiche do holo- causto, mas como uma chave para a felicidade. Estes dario ‘uma prova de sua sensatez. quando se recusarem a ver na pro- xima guerra um episddio magico e quando descobrirem nela a imagem do cotidiano; e, com essa descoberta, estarao prontos a transformé-la em guerra civil: magica marxista, a nica A altura de desfazer esse sinistro feitigo da guerra, 1930 Melancolia de esquerda A propésito do novo livro de poemas de Erich Kiistner* OB poemas de Kastner esto reunidos hoje em ts im- rponentes volumes. Mas quem pretende investigar as earacte- Fsticas dessas estrofes deveria de preferéncia Ié-as em seu for- mato original. Em livros, elas parecem comprimidas © um poueo sufocadas, ao pass0 que nos jornas deslizam como pei- xes na igua. Se essa agua nem sempre é das mais puras € ‘muitos detritos nela flutuam, tanto melhor para o autor, cujos peixes poétices podem assim desenvolver-se mais © engordar com maior facilidade. A popularidade desses poemas esta ligada & ascensto de uma camada social que se apoderou sem qualquer disfarce de suas pesigdes de poder econémico © que, como nenhuma ‘outra, se orgulha do carster explicto © nio-dissimulado de sua fisionomia cconémica. Nio que essa camada, quesomente visave e reconhecia o sucesso, houvesse conquistado as posi- (bes mais fortes. Seu ideal era para isso excessivamente asms- fico. B a camada dos agentes sem filhos, que prosperam pariir de um comeco insignificante € que, 20 contrério dos Iagnatas das finaneas, que durante décadas trabalham para sua familia, trebatham apenas para si mesmes, © mesmo assim noma perspectiva a curto prazo. Quem no os conkece, ‘com seus altos de bebé atris dos Sculos.com aros de tarta- 10) Kester sich. Hin Mann gibt Aushunf Staten, Bevis, Deulsee Ver tage Anat, 1930-1129. ” WALTER BENIANIN ruga, suas bochechas grandes e esbranquicadas, sua voz ar- rastada, o fatalismo dos seus gestos e da sua maneira de pen- sar? E para essa camada, desde 0 principio, que 0 poeta tem algo a dizer, € ela que 0 autor lisonjeia, nao mostrando-lhe um espelho, mas correndo com.o espelho atras dela, desde seu despertar até a hora em que ela se recothe para dormir. Os intervalos entre suas estrofes correspondem as dobras no pes- coco desses individuos, as rimas correspondem a seus labios polpudos, as cesuras eorrespondem as covinhas do seu rosto, as chaves de ouro as pupilas dos seus othos. A tematica ¢ a eficicia de Kastner se limitam a essa camada, pois o autor é ‘a0 impotente para atingir, com seus acentos rebeldes, 0s des- possufdes, quanto, com sua ironia, os industriais. Isso por- gue, apesar das aparéncias, essa lirica zela sobretudo pelos interesses estamentais dos estratos médios — os agentes, 05 jornalistas, os diretores de pessoal. O proprio édio que ela proclama contra a pequena burguesia tem um aspecto pe- ‘queno-burgués de intimidade excessiva. Por outro lado, ela perde visivelmente seu poder de fogo quando dirige sua arti- Iharia contra a grande burguesia, e no final trai sua nostalgia do mecenas: “Oh, se existissem apenas doze homens sibios, com muito dinheiro!”. Nio admira que Kistner, a0 ajustar ‘contas com os banqueiros em um “Hino”, se revele tio fami- liar como econdmico, hipécrita num e noutro caso, quando descreve, sob o titulo “A male faz seu balanco”, os pensamen- tos noturnos de uma mulher proletéria. Em Gltima anilise, 0 lar ¢ 0 rendimento sio as rédeas com as quais o poeta relu- tante € mantido sob controle por uma classe mais abastada. Esse poeta 6 um insatisfeito um melancélico. Mas sua melancolia deriva da rotina. Pois estar sujeito rotina signi- fica sacrificar suas idiossincrasias ¢ abrir mio da capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas melancélicas. E 0 que d& ‘aesse caso alguma semelhanca com 0 de Heine. Impregnadas de rotina sto as observagbes com que Kastner entalha os seus poemas, para dar as suas bolas infantis envernizadas 0 as- pecto de bolas de rigbi. E nada mais rotinizado que a sua ironia, semelhante a um fermento de confeiteiro que faz cres- ‘cer a massa das suas opinides particulares. O que é lamentavel & que sua impertinéncia seja to desproporcional as forcas ideolégicas e politicas de que ele dispde. A grotesca subesti- macho do adversirio, que esta na raiz das suas provocagies, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ® ‘mostra até que ponto a posi¢io ocupada por essa inteligéncia radical de esquerda est de antemio perdida. Essa inteligén- cia tem pouco a ver com o movimento operiirio. Como sintoma de desagregagao burguesa, ela é a contrapartida da mimica feudal, que o Império admirou no tenente de reserva. Os pu- blicistas radicais de esquerda, do género de um Kastner, Mehring ou Tucholsky, so a mimica proletiria da burguesia decadente. Sua funcio politica é gerar cliques, ¢ néo partidos, sua fungao literaria 6 gerar modas, e nfio escolas, sua fungi0 econémica € gerar intermedisrios, e no produtores. Nos dilti- ‘mos quinze anos, essa inteligéncia de esquerda tem sido inin- terruptamente agente de todas as conjunturas intelectuais, do ‘tivismo ao expressionismo e 4 “Nova Objetividade”. Mas sua significago politica se esgotou na conversiio de reflexos revo- lucionitrios (na medida em que eles afloravam na burguesia) em objetos de distraglo, de divertimento, rapidamente canali- zados para o consumo. Foi assim que 0 ativismo conseguiu dar & didlética revo- luciondria « face indefinida, numa perspectiva de classe, do senso comum. Num certo sentido, foi uma liquidagao de esto- ‘ques na grande loja da inteligéncia. O expressionismo expos ‘em papier maché o gesto revoluciondtio, brago em riste, o pu nnho cerrado. Concluida essa campanha publicitéria, a ‘nova ‘objetividade™, da qual derivam os poemas de Kistner, proce- deu a0 inventério. O que encontra a “elite intelectual”, a0 confrontar-se com esse inventirio dos seus sentimentos? Esses mesmos sentimentos? Eles jé foram vendidos, a pregos de oca~ sitio. Ficaram apenas 0s lugares vazios, em empocirados cora- ‘e0es de veludo, em que outrora estiveram guardados tais sen- timentos — a natureza e 0 amor, o entusiasmo ¢ a humani- dade. Hoje as pessoas afagam essas formas ocas, com um ges- to distraido. Uma sapiente ironia acredita ser mais rica pos- suindo esses chavées que, possuindo as proprias coisas, faz despesas extravagantes com sua pobreza ¢ transforma numa festa essa vacuidade abissal. O “‘novo” nessa “objetividade” 6 que ela se orgulha tanto com os vestigios dos antigos bens espirituais quanto o bungués com os vestigios dos seus bens materiais. Nunca ninguém se acomodou tio confortavelmente uma situagdo to inconfortivel. Em suma, esse radicalismo de esquerda é uma atitude & qual nfio corresponde mais nenhuma ago politica. Ele no 16 WALTER BENJAMIN esté A esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente Aesquerda do possivel. Porque desde o inicio nao tem outra ‘coisa em mente senvio sua autofruigdo, num estado de repouso negativista, Transformar a luta politica de vontade de decisio ‘em objeto de prazer, de meio de produgio em bem de con- sumo — 6 esteo artigo de maior sucesso vendido por essa litera~ tura. Kastner, que tem um grande talento nesse eampo, domi- nna magistralmente todos os seus recursos. Em primeiro plano vemos uma atitude, que se manifesta no titulo de muitos dos seus poemas. Encontramos uma “Elegia com ah!”, uma “Can- ‘cao de Natal quimicamente purificada”, um “Suicidio no ba- iho familiar”, um “Destino de um negro estilizado”. Por ‘que essas contorgdes léxicas? Porque acriticae o conhecimento esto & espreita de uma oportunidade para intervir; mas eles sio estraga-prazeres e nlio devem a nenhum prego tomar a Palavra. Por isso, © poeta os amordaca, ¢ suas convulsdes desesperadas so como as de um contorcionista, para alegria de um pablico numeroso e de gosto problemitico. Em Mor- ‘genstern, a idiotice era apenas 0 reverso de uma fuga em dire- ‘¢402 teosofia, O nifllismo de Kastner no oculta nada, do mes- mo modo «ue uma boca que nao se pode fechar, devido aos bocejos. ‘Desde muito cedo os poetas travaram conhecimento com ‘essa Singular variedade do desespero: a estupidez torturada. Em sua maioria, a literatura verdadeiramente politica das dl- timas décadas se antecipou as coisas, como um arauto precur- sor. Foi em 1912 e 1913 que os poemas de Georg Heym ante- ciparam, em espantosas, descrigées de grupos nunca antes mostrados — 0s suicidas, os prisioneiros, os doentes, os mari- tnheiros e os Ioucos —, as condigdes entao inconcebiveis das massas, que s6 se tornaram pablicas em agosto de 1914. Em seus versos, a terra se preparava para ser inundada pelo di- vio vermetho. E, muito antes que 0 marco-ouro emergisse ‘como o monte Ararat, tinica clevagzio na superficie das dguas, cocupada até 0 tiltimo milimetro pelos sibaritas e aproveitado- res, j4 Alfred Lichtenstein, morto nos primeiros dias de guer- tra, mostrara aquelas figuras tristes e intumescidas que Kast- ner transformou em estere6tipos. O que distingue o burgués, nessa versio primitiva e pré-expressionista, do posterior, pés- ‘expressionista, 6 sua excentricidade. Nao foi por acaso que Lichtenstein dedicou um dos seus poemas a um palhaco. O histrionismo do desespero ainda adere aos ossos desses bur- gueses. Eles ainda néo extrairam de si mesmos o elemento MAGIA E TECNICA, ARTE POLITICA ” excéntrico para converté-lo em objeto de diversao urbana. Nao estio ainda inteiramente saturades, nao se transformaram to Tadicalmente em intermediérios a ponto de perderem toda so- lidariedade, por difusa que fosse, com uma mercadoria para a qual uma crise de mercados j4 se desenhava no horizonte. Nes- se momento, veioa paz — crise de mereados da mercadoria hu- mana, que conhecemos sob o nome de desemprego. O suicidio, como Lichtenstein o divulga em seus poomas, € uma forma de ‘dumping, decolocagao dessa mercadoria na praga a precos vis. ‘As estrofes de Kistner esqueceram tudo isso. Seu ritmo obe- dece rigorosamente as partituras usadas pelos pobres milions- rios para trombetear sua afligao. Elas se dirigem a tristeza dos saturados, que no podem aplicar inteiramente o seu dinheiro Dara alimentar seu estdmago. Estupidez torturada: € a sltima metantorfose da melancolia, em sua historia de dois mil anos. Os poemas de Kastner pertencem As pessoas de alta renda, esses fantoches tristes e canhestros, cujo caminho passa pelo meio dos cadaveres. Com a solidez de sua blindagem, a lenti- dao de seus movimentos, a cegueira de suas acdes, esses indivi- diuos sto o ponto de encontro que otanave e o percevejo marca- Tam no homem, Esses poemas fervitham com tais individuos, comoum caféna city, depois do fechamento da bolsa. Nao ad- mira que sua fungdo seja a de reconciliar esse tipo consigo mes- mo, produzindo a identidade entre vida profissional e vida pri- vada que essas pessoas chamam de humanidade, mas que € de {ato bestia, pordue, nas condigoes atuais, a verdadeira huma- nidade s6 pode consistir na tensfo entre os dois pélos. Nessa Polaridade se locaizam a reflexao e a aglo. Produzila é a ta- refa que qualquer lirica politica, e sua realizag&o mais rigo- rosa se encontra, hoje, na poesia de Brecht. Em Kastner, ela Cede Iigar & arrogance ao fatalismo. E 0 iatalismo dos que esto mais longe do processo produtivo, ¢ cuja furtiva atitude de cortejar a conjuntura é comparvel & atitude do homem que se dedica inteiramente a investigar os misteriosos capri- chos da sua digestao. E certo que os movimentos viscerais hnessesversos tém mais de gasoso que de s6lido. A melancolia a obstrugao intestinal sempre estiveram associadas. Mas, desde que tio corpo social os sucos gastricos deixaram de fun- ‘ionar, um ar sufocante nos persegtc. Os pocmas de Kastner em nada contribuem para purificar o ambiente. 1930 Que é 0 teatro épico? Um estudo sobre Brecht* One esti acontecendo, hoje, com o teatro? Essa per- gunta pode ser melhor respondida se tomarmes como ponto de referencia o paleo, e nao o drama. O que est acontecendo 6, simplesmente, o desaparecimento da orquestra. O abismo ‘que separa os atores do piiblico, como os mortos sto separa- dos dos vivos, © abismo que, quando silencioso, no drama, provoca emocdes sublimes e, quando sonoro, na 6pera, pro- ‘yora 0 éxtase, esse abismo que de todos os elementos do paleo conserva mais indelevelmente os vestigios de sua origem sa- ‘grada perdeu sua fungto. O palco ainda ocupa na sala uma Posigdo elevada, mas ‘nfo € mais uma elevagdo a partir de profundidades insondaveis: ele transformou-se em tribuna. ‘Temos que ajustar-nos a essa tribuna. Esta é a situagao. Mas, fem vez. de leva-la em conta, a atividade teatral prefere enco- brisla, como tem feito em outros casos. Tragédias ¢ dperas continuam sendo escritas, & primeira vista para um sélido ‘aparelho teatral, quando na verdade nada mais fazem que abastecer um aparelho que se tornou extremamente frigil. “Bssa falta de clareza sobre sua situagHo, que hoje predo- mina entre misicos, escritores ¢ criticos, acarreta conseqién- cias graves, que no slo suficientemente consideradas. Acre- ditando possuir um aparelho que na realidade os possui, eles () Primeira verso, publcada em Verche ier Bret (Ensaie sobre ahve th Ue separa eo pice ado amin i ie (MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ~ defendem esse aparetho, sobre o qual no dispdem de qual- ‘quer controle e que no € mais, como supZem, um instru- mento a servigo do produtor, ¢ sim um instrumento contra 0 produtor.” Com essas palavras, Brecht liquida a iusto de que O teatro se funda na literatura. Isso nao é verdade nem para 0 teatro comercial nem para o brechtiano. O texto tem ume fun- ‘Gio instrumental nos dois casos: no primeiro, ele esta a servigo Ga preservagio da atividade teatral e no segundo, a servigo de sua modificacio. Em que sentido podemes falar em modifi- cacao? Existe um drama para a tribuna, ja auc © palco se converteu em tribuna, au, como diz Brecht, para “institutos ‘de propaganda”? E, se existe, quais suas caracteristicas? Um “teatro contempordineo” (Zeittheater) sob a forma de pecas de tese, com cardter politico, parecia a tinica forma de fazer jus- tiga aessa tribuna. Mas, qualquer que tenha sido 0 funcions- mento desse teatro politico, do ponto de vista social ele se li- tnitou a franquear ao piblico proletirio posigdes que o apare- Iho teatral havia eriado para o péblico burgués. As relagdes funcionais entre paleo ¢ péblico, texto e representacio, dire- tore atores quase nfo se modificaram. O teatro épico parte da fentativa de alterar fundamentalmente essas relagbes. Para seu piiblico, o palco néo se apresenta sob a forma de “'tabuas ‘Que significam o mundo” (ou seja, como um espago mésico), sim como uma sala de exposicZo, disposta num Angulo favo- tavel. Para seu palco, o poblico nao € mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembléia de pessoas inte- ressadas, cujas exigencias ele precisa satisfazer. Para seu texto, a representagdo néo significa mais uma interpretacto virtuosistica, e sim um controle rigoroso. Para sua represen {aclo, o texto nfo é mais fundamento, ¢ sim roteiro de traba- the, no qual se registram as reformulagdes necessérias. Para seus atores, o diretor néo transmite mais instrugBes visando & ‘btencdo de efeitos, e sim teses em funcdo das quais eles tém ‘que tomar uma posicdo. Para seu diretor, o ator iio € mais ‘um artista mimico, que incorpora um papel, ¢ sim um funcio- nario, que precisa inventarif-lo. PB claro que fungBes tio novas tém que se basear em novos clementos. Uma representacao recente, em Berlim, de Mann ist Mann (Um homem é un homem), de Brecht, ofereceu 4 ‘melhor ocasigo para por & prova esses elementos. Gracas 205 sforgos Iicidos e corajosos do intendente legal, ela nfo cons- we WALTER BENIAMIN tituiu apenas uma das produgdes mais cuidadosas apresen- tadas em Berlim nos iiltimos anos, mas também um modelo do teatro épico, até agora © Gnico. Veremos mais tarde as razbes que impediram os eriticos profissionais de dar-se conta desse fato. O paiblico teve um acesso facil & comédia, indepen- dentemente dessa critica, depois que a atmosfera sufocante da premiére se aliviou, Pois as dificuldades que inibem a com- preensiio do teatro pico nfo so outras que as resultantes da sua aderéncia imediata & vida, enquanto a teoria definha no exilio babilénico de uma pritica que nada fem a ver com nossa existéncia. Assim, os valores de uma opereta de Kolla podem ser mais facilmente expressos na linguagem académica da es- tética que os de um drama de Brecht. Tanto mais que esse drama, a fim de consagrar-se inteiramente 4 construgto do novo palco, preserva inteira liberdade com relagio ao texto escrito. O teatro épico € gestual. Em que sentido ele também é literésio, na acepeao tradicional do termo, & uma questo aberta. O gesto é seu material, ¢ a aplicagio adequada desse ‘material é sua tarefa. Em face das assertivas e declaracdes fraudulentas dos individues, por um lado, e da ambigtidade e falta de transparéncia de suas ages, por outro, o gesto tem Esse manifesto tem o mérito da clareza. Sua maneira de colocar 0 problema merece ser transposta da literatura para a dialética. Segundo ele, a estética da guerra moderna se apre- senta do seguinte modo: como a utilizagdo natural das foreas produtivas € bloqueada pelas relagbes de propriedade, ainten- sificaglo dos recursos técnicos, dos ritmos ¢ das fontes de energia exige uma utilizagdo antinatural. Essa utilizagto 6 encontrada na guerra, que prova com suas devastagdes que a sociedade nao estava suficientemente madura para fazer da técnica 0 seu 6rgao, e que a técnica no estava suficientemente avangada para controlar as forcas elementares da sociedade. Em seus tragos mais cruéis, a guerra imperialista € determi- ~ nada pela discrepfincia entre os poderosos meios de produgio < sua utilizagio insuficiente no processo produtivo, ou seja, . \ pelo desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra € uma revolta da técnica, que cobra em “material humano” o que the foi negado pela sociedade. Em vez de usinas energéticas, cela mobiliza energias humanas, sob a forma dos exércitos. Em vez do trifego aéreo, ela regulamenta o tréfego de fuzis, e na guerra dos gases encontrou uma forma nova de liquidar a aura. “Fiat ars, pereat mundus”, diz.o fascismo e espera que a guerra proporcione a satisfacio artistica de uma percepgio sensfvel modificada pela técnica, como faz Marinetti. Ea forma mais perieita do art pour l'art. Na época de Homero, humanidade oferecia-se em espeticulo aos deuses olimpicos; agora, ela se transforma em espeticulo para si mesma. Sua auto-alicnago atingiu ponto que the permite viver sua pro- pria destruicio como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetizacdo da politica, como a pratica o fascismo. O ‘comunismo responde com a politizacdo da arte. 1935/1936. O narrador Consideragies sobre a obra de Nikolai Leskov 1 Par mais familiar que sela seu nome, o narrador no ‘esti de fato presente entre nés, em sua atualidade viva. Ele € algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov* como narrador nao significa trazé-lo mais perto de nos, e sim, pelo contrrio, aumentar a distancia que nos se- para dele. Vistos de uma:certa distancia, os tracos grandes e simples que caracterizam 0 natrador se destacam nele, Ou ‘melhor, esses tragos aparecem, como um roste humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distancia apropriada e num Sngulo favoré- vel. Uma experiéncia quase cotidiana nos impte a exigéncia dessa distancia e desse ngulo de observacio. E a experiéncia de que a arte de narrar esta em vias de extingdo. Sto cada vex ‘mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente, Quando (4) Noll Leskownasce em 1831 #2 provincia de Ore morseu em 1895, ‘em. Petersburg, Por seus interes: e sips pelos campos, tem certas a. fidades com Tolstt,e por sua erento raligies, com Destckh: Mas ox texts {ono uradoaos de a obra alo exstamente aguaes em que tas tenance ‘tsumem ume expresio Jogi» davirndria or petra romances. A sg- ‘ao de Leshon est em ss naraias, ue erence a uma ee poster. Desde fim da gucra heuve vias tentalnas de fleas narrates os pases de lingos alms. Aim das pejuenasecetness pubicadas plas etoras Miation © ‘devemor mencion, com especial destaguc, a seeio em ove 4 198 WALTER BENIAMIN, se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o emba- aco se generaliza. E como s¢ estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienfvel: a faculdade de intercambiar experiéncias. Uma das causas desse fendmeno é Sbria: as agdes da experigncia esto em baixa, e tudo indica que continuario caindo até que seu valor desapareca de todo. Basta olharmos ‘um jornal para percobermos que seu nivel est mais baixo que rnunea, e que da noite para o dia nio somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformagtes que antes no julgariamos possiveis. Com a ‘guerra mundial tornou-se manifesto um processo que con- tinua até hoje. No final da guerra, obseryou-se que os comb: tentes yoltavam mudos do campo de batalha nao mais ricos, sim mais pobres em experiéncia comunicivel. E 0 que se di- fundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiéncia transmitida de boca em boca. Nao havia nada de anormal nisso. Porque’) nunca houve experiéncias mais radicalmente desmoralizadas, ‘que a experiéncia estratégica pela guerra de trincheiras, a experiéncia econdmica pela inflagdo, a experiéncia do corps pela guerra de material ¢ a experiéncia étiea pelos gover- nantes. Uma gorago que ainda fora 4 escola num bonde pu- xado por cavalos se encontrou ao ar liyre numa paisagem em ‘que nada permacera inalterado, exceto as nuvens,-e debaixo ddelas, num campo de forgas de torrentes ¢ explosdes, 0 fragile singiseulo corpo humano. 2 [A experiéneia que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. 1, entre as narrativas escritas, as melhores sdo as que menos se distinguem das his- {arias orais contadas pelos indimeros narradores anénimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de miiltiplas maneiras. A figura do narrador sé se torna plena- mente tangivel se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz 0 povo, ¢ com isso imagina 0 natrador como alguém que vem de longe. Mas também escu- tamos com prazer 0 homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu pais e que conhece suas histérias e tra- MAGIA & TECNICA, ARTE E POLITICA 199 digdes. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um € exem- plificado pelo camponés sedentirio, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produ- ziram de certo modo suas respectivas familias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas ca- racteristicas proprias. Assim, entre os autores alemaes ‘mo- dernos, Hebel e Gotthelf pertencem a primeira familia, ¢ Siclsfield e Gersticker & segunda. No entanto essas duas fa- milias, como 4 se disse, constituem apenas tipos fundamen- tais, A extensdo real do reino narrativo, em todo o seu aleance historico, s6 pode ser compreendido se Jevarmos em conta a interpenetragiio desses dois tipos arcaicos. O sistema corpora- tivo medieval contribuiu especialmente para essa interpene- tracto. © mestre sedentirio e os aprendizes migrantes tra- bathavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pétria ou no cestrangeiro. Se os camponeses ¢ os marujos foram os pri- ‘meiros mestres da arte de marrar, foram os artifices que a aperfeigoaram. No sistema corporativo associava-se © saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com 0 saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentério, 3 Leskor esti A vontade tanto na distincia espacial como na distineia temporal. Pertencia & Igreja Ortodoxa grega © tinha um gemufno interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesidstica no era menos genuina. Como suas relagdes com o funcionalismo leigo no eram melhores, os cargos oficiais que exereeu no foram de longa duragio. O ‘emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os em- pregos possiveis, o mais stil para sua producdo literdria, A servigo dessa firma, viajou pela Rassia, e essas viagens enri- ‘queceram tanto a sua experiéncia do mundo como seus conhe- cimentos sobre as condigdes russas. Deése modo teve ocasitio de conhecer funcionamento das seitas rurais, o que deixou ‘tracos em suas narrativas. Nos contos lendrios russos, Leskov encontrou aliades em seu combate contra a burocracia orto- 20 WALTER BENJAMIN doxa. Escreveu uma série de contos desse géncro, cujo perso- nagem central é 0 justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltago mistica é alheia a Leskov. ‘Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilloso, em ‘questies de piedade preferia uma atitude solidamente na- tural. Seu ideal é 0 homem que aceita o mundo sem se prender domasiadamente a ele. Seu comportamento em questdes ter- porais correspondia a essa atitude. F coerente com tal com- portamento que ele tenha comecado tarde a escrever, ou seja, ‘com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeito texto impresso se intitulava: “Por que sio os livros caros em Kiey?". Seus contos foram precedidos por uma série de es- critos sobre a classe operdria, sobre 0 alcoolismo, sobre os :nédicos da policia e sobre os vendedores desempregados. 4 O senso pritico é uma das earacteristicas de muitos nar- radores natos. Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que dé conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com 0s pe- rigos da iluminagio a gés, e num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas informagies cientificas em seu Schatzkas- Hlein (Caixa de tesouros). Tudo isso.csclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, s vezes de forma Iatente, uma dimensio utilitaria. Essa utilidade pode consistir | ‘seja num ensinamento moral, seja numa sugestio pritica, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer ma- neira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje algo de antiquado, é porque experiéncias esto deixando de ser comuniciveis. Em conse- ‘liéncia, ndo podemos dar conselhes nem a nés mesmos nem 0s outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestio sobre a continuagio de uma histéria que est sendo narrada. Para obter essa sugestio, é necessério primeiro sabernarrar a hist6ria (sem contar que um homiem s6. €receptivoa um conselho na medida em que verbaliza a sua si- ‘tuagio). Oconselho tecido na substincia viva da existéncia tem ‘um nome: sabedoria. A arte de narrar esta definhando porque [MAGIA E TECNICA, ARTE £ POLITICA 2m 1a sabedoria — o lado épico da verdade — esté em extingdo. Porém esse proceso vem de longe. Nada seria mais tolo que yer nele um “sintoma de decadéncia” ou uma caracteristica, “moderna”. Na realidade, esse processo, que expulsa gra- dualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo ‘tempo dé uma nova beleza ao que esti desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolucao se- cular das foras produtivas. 5 O primeiro indicio da evoluciio que vai culminar na morte dda narrativa 6 0 surgimento do romance no inicio do periodo moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia 2" no sentido estrito) & que ele esté essencialmente yinculado cA ‘careclerea orormanse: O'que dist a >) outras formas de prosa — contos de fada, lendas e mesmo } A ie a eee OBL alimenta. Ele se distingue, especialmente, da_narrativa, O narrador_retira da experiéncia o que ele conta: sua. propria experigncia ou a relatada pelos outros, E incorpora as.c0isas,_/: ‘arradas & experiGicia das seus ouvinies. O romancista s¢-| -arega-s0-A origem do romance 6 0 individuo isolado, que n80 ‘pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupacics mais| be conselhos nem sabe dalos. Es.) creyer um romance significa, na_descricfo de-uma vida hu- ) mana, levar o incomensurivel a seus dltimos. limites. Na ri- { _anuneia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro ) grande livro do género, Dom Quixote, mostra como a gran- { éeza de alma,_a coragem ¢ a generosidade de um dos-mais ‘nobres herbis da literatura sio totalmente refratirias a0.con- selho.¢ nfo contém a menor centelha de sabedoria, Quando | no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no ro- | mance algum ensinamento — talvez 0 melhor exemplo. sea Wilhelm Meisters Wanderiahre (Os anos de perearinagao de | ithelm Meister) —, essas tentativas resultaram sempre na! am WALTER BENJAMIN transformacio da propria forma romanesca. romance de formasiio (Bindungsroman), por outro lado, nfo se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao in- tegrar 0 processo da vida social na vida de uma pessoa, ele Justifiea de modo extremamente frégil as leis que determinam {al processo. A legitimagio dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formagio, € essa insuficiéneia que esti na base da ago. 6 } Devemos imaginar a transformaclo das formas épicas segundo ritmos comparéveis aos que presidiram.& transfor- macdo da crosta terrestre no decorrer dos milénios. Poucas formas de comunicacio humana evoluiram mais lentamente € se extinguiram mais lentamente. O romance. culosprimérdios remontam a Antiguidade, precisou de centenas de anos para ‘encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoriveis © seu loessimento, Quando esses elements surgiram, nar ‘iva comecou pouco a pouco a sem diivida, slnse sop ees ea 9 contedido, mas no foi determinada verdadeiramente por ele, Por outro lado, Failicamot auc com acne ‘imprensa, no alto capitalise ‘importantes — destacou-se uma forma. se comico soe ‘que; -por_mais_antigas que fossem suas o1 ‘havia in: 2a ee ‘ela © sti r ‘essa influéncia. Ela € tio estranha 4 narrativa como o ro- ameagadora c, de resto, provoca uma crise Essa nova forma de comunicacao € 9 in-) Villemessant, 0 fundador do Figaro, caracterizow a es- séncia da informagao com uma férmula famosa. “Para meus leitores", costumava dizer, “o incGndio mum s6ttio do Quartier i aber es tae oops = terras estranhas, ou do longe temporal. ) issania dean sulordade ave oot MAGIA E-TECNICA, ARTE E POLITICA 2 vilida mesmo que nio fosse controtéyel pela experiéncia. Mas, 4 informagio aspira a uma verficaglo imediata, Antes de mais nada, ela precisa ser compreensivel “cm si ¢ para si”. ‘Muitas vezes ndo & mais exata que os relatos antigos. Porém, ‘enquanto esses relatos recorriam freqientemente ao miracu- loso, €indispensivel que a informagio seja plausive incompativel eom o espirito da narrativa, Se a tiva€ hoje rara, a difusio da informagio € decisivamente res, ponsivel por esse declinio. ‘Cada manhit recebernos noticias de todo © mundo. E, entanto, somos pobres em historias surpreendentes. A Fazio 6 ‘Que os fatos j& nos chegam acompanhados de explicacdes. Em outras palavras: quase nada do que acontece esta servigo da 'nareativa, sade: est a servico da informagéo. Metade da arie narrativa est cm evita explicages. Nico Leskov Seaee aT ao ee reo Faecdeionc A Aa branca.) O extraordindrio eo miraculoso so narrados com a maior exatidio, mas 0 contexto psicolégico da ago nto é imposto ao leitor. Ele & livre para interpretar a histéria como quiser, e com isso 0 episédio narrado atinge uma amplitude ‘que nfo existe na informagiio.. 7 Leskov freqientou a escola dos Antigos. O primeiro nar- rador grego foi Herddoto. No capitulo XIV do terceiro livro de suas Histérias encontramos um relato muito instrutive. Seu tema 6 Psammenit. Quando o rei egipcio Psammenit foi der- rotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psam- menit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos ersas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro udesse ver sua filha degradada 2 condigio de criada, indo a0 pogo com um jarro, para buscar Sgua. Enquanto todos os gipcios se lamentavam com esse espeticulo, Psammenit ficou silencioso e imével, com os olhos no chio; e, quando logo em seguida viu seu filho, eaminhando no cortejo para ser execu- tado, continuou imével. Mas, quando viu um dos seus servi- dores, um velho miseravel, na fila dos cativos, golpeou a ca- fo, 2 (WALTER BENIAMIN ‘beca com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero. ssa histria nos ensina oque a verdadcira narrativ, AD) be, informasao 36 tem valor no momento em que €nova. El 50 vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e| ‘sem perda de empo fem que se explicar nele, Muito diferente “€.a narrativa, Ela nfo se entrega. Ela conserva suas forgas.< depois. de-muito tempo ainda € capaz.de se-desenvolver..As~) ‘sim, Montaigne alude & historia do rei egipicio e pergunta: porque ele s6 se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta 6 que ele “é estava tio cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas”. Ea expli- cacao de Montaigne. Mas poderiamos também dizer: ““O des- tino da familia real nao afeta o rei, porque 6 0 seu proprio destino”. Ou: ““muitas coisas que nfo nos afetam na vida nos afetam no paleo, © para o rei o criado era apenas um ator”. Ou: “as grandes dores so contidas, ¢ s6 irrompem quando ‘ocorre uma distensiio. O espeticulo do servidor foi essa dis tensiio”. Herédoto no explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa histéria do antigo Egito ainda é capaz, depois de milénios, de suscitar espanto ¢ reflexdo. Ela se asse- ‘melha a essas sementes de trigo que durante miliares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas cfmaras das pirdmides e que conservam até hoje suas forcas germinativas. 8 Nada facilita mais a memorizagio das narrativas que concisfio que as salva da anilise psicologica. ara RAIS -tembra do oun ais comoistamens cise samara 7 sua propria experiencia ¢ mais. irresistivelmente ele.cederd & -inclinacRo de reconticla.uum dia. Esse processo de assimilago. se dem eamadas muito profundas exige um estado de distensfo que se torna cada vez mais raro. Se o sono & 0 ponto mais allo da distensdo fisica. o tédio & 0 ponto-mais alto da “istensdo psiquica. O tédio € 0 pssaro de sonho que chaca os “vos da experiéneia, O menor sus folhagens o assusta.. ‘Seus ninhos — as atividades intimamente associadas ao tédio [MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA 205 ja, num ‘ido esté interessada em transmitir 0 “Puro.em\- i erga hole vie nara naa om emuia ia im se imprime na narrativa a marea do ar- “tador, como a mAo do oleiro ‘Os narradores ~eestam de comecar sua historia com urna descrigho das cit- cinstfincias em que foram informados dos fatos que vo contar @ seguir, a menos que prefiram atribuir essa historia a uma experiéncia autobiografica. Leskoy comega A fraude com uma descricdo de uma viagem de trem, na qual ouviu de um com- panheiro de viagem os epis6dios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroina de A propésito da Sonata de Kreuzer; ov evoca uma reuniaio num cfrculo de leitura, no qual soube dos fatos rela- tados em Homens interessantes. Assim, seus vestigios esto presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relate. Ease oe uel dectooen ot ata cana aia uno nnae as eabeT =e 206 WALTER BENJAMIN _manual,” Nao admira que ele tena se sentido ligado ao tra-) batho manual e estranho A técnica industrial. Tolstof, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz ‘que ele foi o primeiro “‘a apontar a insuficiéncia do progresso econémico... E estranho que Dostoievski seja tio lido... Em compensagio, no compreendo por que nao se Ié Leskov. Ele € um escritor fiel A verdade”. No malicioso e petulante A pulga de aco, iniermedifirio entre a tenda ¢ a farsa, Leskov fexalta, nos ourives de Tula, o trabalho artesanal. Sua obra- prima, a pulga de ago, chega aos olhos de Pedro, o Grande ¢ 0 ‘convence de due os russos niio precisam envergonhar-se dos ingleses. “Talvez ninguém tenba descrito methor que Paul Valery a imagem espiritual dese mundo de artifice’, do qual provém 0 narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpades ¢ maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como “‘o pro- duto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O actmulo dessas causas 56 teria limites temporais ‘quando fosse atingida a perfeicio. “‘Antigamente 0 homem imitava essa paciéncia”, prossegue Valéry. “Iluminuras, mar~ fins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamen- te polidas e claramente gravadas; lacas ¢ pinturas obtidas pela superposigdo de uma quantidade de eamadas finas © transhicidas.... — todas essas produges de uma indiistria tenaz e virtuosistica cessaram, e j& passou o tempo em que 0 tempo nao contava. © homem de hoje no cultiva o que niio pode ser abreviado,” Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa, Assistimos em nossos dias 20 nascimento da short story, que se emancipou da tradigio oral ¢ ndo mais permite essa lenta superposigo de camadas finas ¢ transhicidas, que representa a mielhor imagem do proceso pelo qual a narrativa perfeita vem A luz do dia, como coroa- ‘mento das varias camadas constituidas pelas narraghes suces- { MAGIA E TECNICA, ARTE £ POLITICA on 10 ‘Valéry conclui suas reflexdes com as seguintes palavras: -se-ia que 0 enfraquecimento mos espiritos da idéia de ‘ternidade coincide com uma aversio cada ver maior ao tra- batho prolongado”. A idéia_da_clernidade sempre-teve-na ‘morte sua fonte mais rica. Se essa idéia esté se_atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido. | “ontro aspecto. Essa transforiagao & a mesma.que reduziu.a 0,7 ‘comunicabilidade da experiénei arrar se extingpiea: “s 'No decorrer dos tiltimes séculos, pode-se observar que idéia_da_morte_yem_perdendo, na_consciéncia.coletiva,_ sua) ‘anlpresenga ¢ sua forga de evocacdio. Esse processo se aceleral, ‘em suas titimas étapas. Durante o século XIX, a sociedade/ burguesa produziu, com as instituictes higitnicas ¢ sociais, privadas e piblicas, um efeito colateral que inconscientemen- te talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos ho- ‘mens evitarem o espetaculo da morte. Morrer era antes um episédio pablico na vida do individuo, e seu cardter era alta- \ ‘mente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas ‘quais 0 leito de morte se transforma num trono em direciio a0 ‘qual se precipita 0 povo, através das portis eseancaradas. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos. | ‘Antes niio havia uma s6 easa e quase nenbum quarto em que ‘fo tivesse morrido alguém. (A Idade Média conhecia a con- ‘trapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num relogio solar de Ibiza: ultima multis.} Hoje, os burgueses vivem em espacos depurados de qualquer morte e, quando chegaf sia hora, sero depositados por seus herdeiros em sa-_) nat6rios e hospitais Ora, €no momento da morte que.o saber a sabedoria do homem.e sobretudo sua exisléncia vivida — e € dessa substncia que so feitas as hist6rias — assumem pela ‘primeira vez uma forma transmissivel, Assim como no interio do. agonizante desfilam indimeras_ imagens —visbes-de_si_ ‘mesmo, nas.quais ele se favia encontrado sem se dar conta disso —, assim o inesquecivelaflora de Fepente em seus gestos olhares, conferindo a tudo o que Ihe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, medida que a arte de 208 WALTER BENIAMIN. ppara os vives em seu redor. Na origem da narrativa est essa autoridade. WL A morte €a sancdo de tudo 0 que o narrador pode contar. E da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras pa- lavras: suas historias remetem a historia natural. Esse fend- ‘meno é ilustrado exemplarmente numa das mais belas narra- tivas do incomparavel Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkéstlein des rheinischen Hausfreunde (Caixa de te~ ‘souros do amigo renano das familias) e chama-se Unver- hhofftes Wiedersehen (Reencontro inesperado). A historia co- mega com o noivado de um jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun, Na véspera do casamento, 0 rapaz morre em um acidente, no fundo da sua galeria subterrfinea. Sua noiva se mantém fiel além da morte e vive 0 suficiente para reconhe- cer um dia, {4 extremamente velha, 0 cadaver do noivo, en- contrado em sua galeria perdida e preservado da decomposi- ho pelo vitriolo ferroso. A aneii morre pouco depois. Ora, Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decor- ido desde o inicio da hist6ria, e sua solugdo foi a seguinte: “Entrementes, a cidade de Lisboa foi destrufda por um terre- moto, ¢ a guerra dos Sete Anos terminou, ¢ o imperador Fran- cisco I morreu, e a ordem dos jesuitas foi dissolvida, e a Po- Ionia foi retalhada, ¢ a imperatriz Maria Teresa morreu, € ‘Struensee foi executado, a América se tornou independente, a poténcia combinada da Franca e da Espanha nao péde con- quistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia tomou a:Finlindia dos russos, ¢ a Reyoluco Francesa e as grandes guertas come- caram, eo rei Leopoldo If faleceu também, Napoledo con- quistou a Priissia, ¢ os ingleses bombardearam Copenhague, ¢ ‘0s camponeses semeavam ¢ ceifavam. O moleiro moeu, ¢ os ferreiros forjaram, e os mineiros cavaram A procura de filbes metalicos, em suas oficinas subterrfneas. Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...”. Jamais outro narrador conseguiu inserever tio profundamente sua histéria na his- téria natural como Hebel com essa cronologia. Leia-se com [MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 29 ‘atencio: a morte reaparece nela tio regularmente como 0 esqueleto, com sua foice, nos cortejos que desfilam so meio~ dia nos relégios das catedrais. 12 Cada vez. que se pretende estudar uma certa forma épica 6 necessirio investigar a relagdo entre essa forma e a historio- erafia, Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia nfo representa uma zona de indiferenciagdo criadora com re~ lacdo a todas as formas épicas. Nesse caso, a historia escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz. branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a erdnica é aquela cuja inclusdo na fuz pura e incotor da hist6ria eserita € mais incontestivel. E, no amplo espectro7 da crénica, todas as maneiras com que uma historia pode ser\ narrada se estratificam como se fossem variagdes da mesma{ cor. O cronista €0 narrador da hist6ria. Pense-se no trecho.dé Hebelertado acima, cujo tom 6 claramente © da eronica, © notar-se-& facilmente a diferenca entre quem escreve a his- t6ria, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador € obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episodios ‘com que lida, € no pode absolutamente contentar-se em re- presenté-los como modelos da historia do mundo. £ exata- mente 0 que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clissicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia esti © plano da salvagio, de origem divina, indevassével em seus desfgnios, ¢ com isso desde 0 inicio se libertaram do Gnus da explicacdo verificdvel. Ela é substituida pela exegese, que nio se preocupa com 0 encadeamento exato de fatos determina- dos, mas com a maneira de sua insergo no fluxo insondavel das coisas. [Nao importa se esse fluxo se inscreve na histéria sagrada ou se tem carditer natural. No narrador, 0 cronista conservou- se, transformado e por assim dizer secularizado. Entre eles, Leskov é aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fondmeno, Tanto 0 cronista, vinculado a hist6ria sagrada, como © narrador, vinculado a historia profana, participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que, em muitas 210 [WALTER BENJAMIN MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA au de suas narrativas, € dificil decidir se o fundo sobre o qual elas torno do qual gravita toda a hist6ria, disponba de uma me- se destacam ¢ a trama dourada de uma concepgiio religiosa da méria excepcional. “Nosso imperador e toda a sua familia histéria ou a trama colorida de uma concepcdo profana. Pen- {ém com efeito uma surpreendente memoria.” se-se, por exemplo, no conto A alexandrita, que coloca o leitor ‘Mnemosyne, a deusa da reminiscéncia, era para os gre- nos velhos tempos em que “as pedras nas entranhas da terra e ‘g0s a musa da poesia épica. Esse nome chama a atengfo para ‘s planctas nas esferas celestes se preocupavam ainda com 0 ‘uma decisiva guinada historica. Se o registro escrito do que foi destino do homem, ao contrario dos dias de hoje, em que transmitido pela reminiscéncia — a historiografia — repre- tanto no oéu como na terra tudo se tornou indiferente a sorte senta uma zona de indiferenciagao criadora com relagdo as dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde varias formas épicas (como a grande prosa representa uma vier, Ihes dirige a palavra ou Ihes obedece. Os planetas recém- ‘zona de indiferenciaglo criadora com relagao as diversas for- descobertos no desempenham mais nenlum papel no hor6s- mas métricas), sua forma mais antiga, a epopéia propria- copo, e existe indmeras pedras novas, todas medidas ¢ pe- mente dita, contém em si, por uma espécie de indiferenciagio, sadas e com seu peso especifico e sua densidade exatamente a narrativa eo romance. Quando no decorrer des séculos 0 calculados, mas elas nao nos anunciam nada e nfo tém ne- romanice comecou a emergir do seio da epoptia, ficou evidente nhuma utilidade para nés. O tempo jf passou em que elas que nele a musa épica — a reminiscGncia — aparecia sob ‘conversavam com os homens’ ‘Como se v6, é dificil caracterizar inequivocamente o curso das coisas, como Leskov o ilustra nessa narrativa. E determi- nado pela hist6ria sagrada ou pela historia natural? S6 se sabe tos de geracio em geragio, Ela correspon ‘sentido mais amplo. Ela inclui todas as va- ‘que, enquanto tal, 0 curso das coisas escapa a qualquer cate riedades da forma épica, Entre elas, encontra-se em primeiro toria verdadeiramente histérica.Jé se foi a época, diz. Leskov, lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em em que o homem podia sentir-se em harmonia com a natu- Ailtima instfncia todas as histérias constituem entre si. Uma se reza. Schiller chamava essa época 0 tempo da literatura in- articula na outra, como demonstraram todos os outros nar- génua. Q narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu } ju.” radores, principalmente os orientais, Em cada um deles vive thar no 5¢ desvia do relégio diante do qual desfila a pro-} uma Scherazade, que imagina uma nova histéria em cada cissio das criaturas,na qual a morte tem. scu lugar, oud) ‘passagem da histGria que_estd‘contando.-Lal-é-a-meméria frente do corteio, ou como retardatéria miserével. —j——- pica e a musa da narraco, Mas a esta musa deve se opor ‘@ musa do romance que habita a epopéia, ainda indi- i ferenciada da musa da narrativa, Porém ela jé pode ser pres: y B sentida na poesia épica. Assim, por exemplo, nas invocagbes, oy solenes das Musas, que abrem os poemas homéricos. O que se we. ldo se percebeu devidamente até agora que a relacZo yrenmncia ni ‘a meméria perpeluadora (Jingénua entre o ouvinte e o narrador 6 dominada pelo in- « mancista, em contraste com a breve memoria do narrador..A. Literesse em conservar o que foi narrado/Para_o ouvinte primeira € consagrada a um heroi, wma peregrinaco, um ‘parcial, o importante ¢ assegurar_a_possibilidade da_repro- an a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras pa: | ©, ducdo. A membria € a mais épica de todas as faculdades. So- lavras, a rememoracdo, musa do romance, surge ao lado da | en ingente permite a poesia épica apro- ‘meméria, musa da narrativa, depois que 2 desagregacio da priar-se do curso das cois ‘um | Tresignar-se, por poesia épica. apagou a unidade de sua origem comum na.re- otro lado, conrodesaparecimento dessas coisas, com o poder iniscéncia. da morte. Nao admira que para um personagem de Leskov, tum simples homem do povo, © ezar, o centro do mundo e em 22 WALTER BENJAMIN: 14 Como disse Pascal, ninguém morre tio pobre que no deixe alguma coisa atrés de si. Em todo caso, ele deixa remi- niscéncia, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. (© romancista recebe a sucessilo quase sempre com uma Pro- funda melancolia. Poi, assim como se diz nvm romance de Arnold Bennet que uma a de morrer “n See ee Ge caeab eotien mote com 8 somas que. romancista recebe de heranca, Georg Lukiics viv com grande lucidez esse fendmeno, Para forma.do-desenraizamento ‘po, o romance, segundo Lukacs, é a tnica forma que inclui 0 vos, “O tempo", diz a ligacto com a pitria transcendental... S separa osenfidaea,ida, e, portanto, oessenciale o temporal: Dademos quase dizer que toda @ acto interna do romance no ‘E-senaio alta contra o poder do tempo... Desse combate, ‘emergem as experiéncias temporais autenticamente épicas: ‘speranca e a reminisefncia,.. Somente no romance... ocorre| ‘uma reminiscéncia eriadora, que atinge seu objeto o trans- forma... O sujeito s6 pode ultrapassar 0 dualismo da interio- ridadee da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na re-| miniscéncia...A visto capaz. de perceber essa unidade € a apreensio divinatoria e intuitiva do sentido da vida, inatin- ido e, portanto, imexprintvel.” Com efeito, “o sentido da vida” ¢ 0 centro em torno do > Mn, ‘qual se movimenta o.romance. Mas essa_questio nfo é outra ‘coisa que a expresso da perplexidade do leitor quando mer- feulha na descrigio dessa vida. Num caso, “o sentido da, eno outro, "a moral da historia” — essas duas palavras de!‘ ‘ordem distinguem entre sia romance.ca_narrativa, permi-| tindo-nos compreender 0 estatuto hist6rico completamento) diferente de uma e outra forma. Se 0 modelo mais antigo do romance € Dom Quixote, 0 mais recente talvez. seia A edu- cacao sentimental. As diltimas palavras deste romance mos- tram como 0 sentido do perfodo burgués no inicio do seu de- clinio se depositou como um sedimento no copo da vida. Fré- déric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua MAGIA F TECNICA, ARTE E POLITICA 213 mocidade ¢ lembram um pequeno episédio: uma ver, en- {raram no bordel de sua cidade natal, furtivae timidamente, © Jimitaram-se a oferecer & dona da casa um ramo de flores, que tinham colhido no jardim. “Falava-se ainda dessa hist6ria trés anos depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as lembrangas do outro, € quando terminaram Frédéric ex- clamou: — Foi o que nos aconteceu de melhor! — Sim, talvez. Foi o que nos aconteceu de melhor! disse Deslauriers.” Com.» essa descoberta, 0 romance. chega.a.seu. fim, este. €-mais_ igoreso que em qualquer narrativa,. Com. efeito,.ouma.nas~ | rativa a pergunta — ¢ 0.que.aconteceu depois?.—.6-plens> ) ‘mente justificada. O romance, a0.contririo, nao pode dar um {nico passo além daquele limite em aue, escrevenda na parte, inferior da pégina a palayra fim, convida.o leitor.a. refletir_ sobre o sentido de uma vida. @) _Quem escuta uma historia est em companhia do nar- ) rador; mesmo quem a lé_partilhs Mas.o | eitor d fais is soliton a ‘que qualquer |, outro leitor (pois mesmo quem Ié um poema esta disposto a declan fo em voz alta para umn ouvite ocasional): Nessa so- a teria “Ge roa letors. Quer tansformeia ei cla, de. certo modo. Sim, ele destr6i, devora a substancia li “ogo devora lenha na lareira. A tenso que atravessa 0 ro | ‘mance se assemellia muito & corrente.dear-que.alimenta.¢ reanimaachama. (O interesse ardente do leitor se mutre de um material seco. O que significa isto? “Um homem que morre com trinta, e cinco anos”, disse certa vez Moritz Heimann, “é em cada ‘momento de sua vida um homem que morre com trinta ¢ cinco anos.” Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana na dimenstio do tempo. A verdade contida na frase € a seguinte: um homem que morre aos trinta e cinco anos apa: ( recerd sempre, na rememoraedo, em cada momento de. sua ) vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos, |! Em_outras palayras: a frase, que nfo tem nenhum sentido ‘com relagao a vida real, tomna-se incontestavel com relacio 20 WALTER BENIAMIN vida lembrada, Impossivel descrever melhor a esséncia dos ‘ersonagens do romance. A frase diz que o“‘sentido’da-sua Vida somente se revela.a partir de sua morte. Porém eitor do ‘romance, procura realmente homens nos. quais.possa ler "o sentido da vida". Ele precisa, portanto, estar seguro de an- temio, de um modo ou outro, de que participari de sua morte. Se necessério, a morte no sentido figurado: 9 fim do} , ‘romance. Mas de prsferéricia « morte verdadeira. Como esses)! ersonagens, ‘morte j esta Asua espera, umal -morte ¢ in lugar ue se alimenta 0 interesse absorvente do leitor. Em conseqiiéncia, 0 romance no é signi crever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse ‘destino atheio, gracas & chama que 0 consome, pode dar-nos © calor ae no podemos enconrar em nosso préprio destin. aI Segundo Gorki, “Leskor € 0 esritor.. mais profun mente enraizado n0 povo, ¢.0 mais interamente livre de it~ . flogneias estrangeiras” (© grande narrador tem ser Y raizes no povo, principalmente nas camadas artesanais)Con- tudo, assim como essas camadas abrangem o estrato cam- ponts, maritime e urbano, nos miltiplosestégios do seu do- senvolvimento econémico € técnico, assim também se estrati- Ficam de milfplas maneiras os cotceitos em que 0 acervo de experiéncias dessas camadas se manifesta para nds. (Para nfo falar da contribvigao nada desprerivel dos comerciantes 20 desenvolvimento da arte narrativa, nfo tanto no sentido de aumentarem seu contedido didatico, mas no de refinarem as asticias destinadas a prender a atengo dos ouvintes. Os co- mnerciantes deiaram marcas profundas no ciclo narrativo de As mile uma noites.) ‘suma, independentemente do papel “ementar que a narrativa deserapentha no patrimOnio da iu- manidade, so muiltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. O que em Leskov pode ser inter- pretado numa perspectiva religiosa, parece em Hebel ajustar- ‘se espontaneamente as categorias pedagégicas do luminismo, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA as os cio trig tories ecantia um Sino asilo, em Kipling, no circulo dos marinheiros ¢ soldados co- Bere. ones « cincayiaieametes es Benen hasios ee raw ater ea que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens — é a imagem de uma experiéncia coletiva, para a qual mesmo 0 Ber fiewsi case ase seiaee Wiepeae mer ae plead rr pie penetra “E se n&o morreram, vivem até hoje”, diz 0 conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das criangas, ee ee aah eee ere Paar eS ae Stat: eters sabia dar um bom conselho, quando ele era dificil de obter, oferecer sua ajuda, em caso de emergéncia. Era a emergéncia er ih Ueaitcn ieee eae Taal aoe ee Siti Osteen ‘manidade se fez de “tola” para proteger-se do mito; © perse- nagem do irmio cagula mostra-nes como aumentam as possi- bilidades do homem quando ele se afasta da pré-hist6ria. mi- fica; 0 personagem do rapaz. que salu de casa para aprender a. ‘Wer medo mostra que as coisas que tememos podem ser devas- sadas; o persnagem “intelignte” mostra. que as pergunts as pelo mito sf to simples quanto as eitas nela esfinges a ee sccore uma anja mesa que 2 _natureza prélere associar-se ao homem que ao mil conto am (WALTER BENIAMIN ‘Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de ‘um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a hist6ria da huma- nidade civilizada preencheria um quinto do éltimo segundo da iitima hora.” O ‘agora’, que como modelo do messifinico abrevia num resumo incomensuravel a histéria de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela histéria humana. Apéndice 1 historicismo se contenta em estabelecer um nexo cau- sal entre varios momentos da histéria. Mas nenhum fato, ‘meramente por ser causa, & s6 por isso um fato histérico. Ele se transforma em fato historico postumamente, gracas a acon- tecimentos que podem estar dele separados por milénios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos 65 acontecimentos, como as contas de um rosdrio. Ele capta a configuragiio em que sua prépria época entrou em contato com uma época anterior, perteitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no ‘qual se infiltraram estilhagos do messifinico, 2 Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele Ocultava em seu seio nfo 0 experimentavam ‘nem como vazio nem como homogéneo. Quem tem em mente esse fato, poder talvez ter uma idéia de como o tempo pas- sado 6 vivido na rememoragiio: nem como vazio, nem como homogtneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar 0 futuro. Ao contririo, a Tord e a prece se ensinam na reme- moragao. Para os discipulos, a rememorago desencantava 0 futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso 0 futuro se converteu para os judeus num tempo homogéneo e vazio, Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias. 1940 Apéndices Livros infantis antigos e esquecidos “ Par que voc8 coleciona livros?” — Alguém ji feressa pergunta a um bibli6filo, para induzi-lo a auto-reflexao? ‘Como seriam interessantes as respostas, pelo menos as sin- ceras! Pois apenas os nio-iniciados poderiam crer que nfo existe aqui 6 que esconder ou racionalizar. Arrogincia, so- lidio, amargura — muitas vezes esse é o lado noturno de muitos colecionadores cultos e bem-sucedides. Toda paixio revela de vez em quando os seus tragos demonfacos, € nada confirma to cabalmente essa verdade como a historia da bi- bliofilia. Nao existe nada disso no credo de colecionador de Karl Hobrecker, cuja grande colegio de livros infantis € agora, divulgada ao piblico, através de sua obra.* Para quem nio se doixasse sensibilizar pela personalidade cordial e refinada do autor, nem pelo proprio livro, em cada uma das suas pfiginas, 36 poderiamos dizer o seguinte: esse tipo de colecio — 0 de livros infantis — s6 pode ser apreciado por quem se manteve fiel A alegria que experimentou quando crianca, ao ler esses livros. Essa fidelidade esti na origem de sua biblioteca, e toda colegio, para prosperar, precisaré de algo semelhante. Um livro, ou mesmo uma pagina, e até uma simples imagem num ‘exemplar antiquado, talvez herdado da mie ou da avé, podem ser o solo no qual este impulso langaré suas primeiras e deli- (2) Hobrecker, Kart, Ae Vereseme Kinderbcher, Reis, Maurtios Ver- tng, 1924. 160. 26 WALTER BENIAMIN cadas raizes. Pouco importa se a capa esti solta, se faltam péginas ou se aqui ¢ ali mos indbeis amarrotaram as gra- vyuras. A procura de belos exemplares também € legitimanesse tipo de coleglo, mas justamente aqui o pedante ficar per- plexo. E uma boa coisa que a patina depositada nas folhas por ‘mos infantis pouco asseadas mantenham a distincia 0 bi- bli6filo esnobe. ‘Quando Hobrecker iniciou sua colegio, ha 2S anos, os velhos livros infantis eram usados como papel de embruiho. Ele foi o primeiro a oferecer-Ihes um asilo, por algum tempo, contra as fabricas de papel. Entre as milhares de obras que abarrotam suas estantes, hA talvez centenas que tém nesse local seu iiltimo exemplar. Nao € com pompa e dignidade profissional que esse primeiro arquivista dos livros infantis aparece em piiblico. Ele no visa 0 reconhecimento pelo seu trabalho, mas a participagdo do leitor na beleza que ele re- velou. © aparelho erudito — principalmente um apéndice bibliogrdfico de cerca de duzentos dos titulos mais importan- tes — é bem-vindo para o colecionador, sem importunar 0 Icigo. Segundo o autor, o livro infantil alemao nasceu com o Huminismo. Era na pedagogia que os filantropos punham Prova o seu grande programa de remodelagio da humat dade. Se © homem € por natureza piedoso, bom e socifvel, deve ser possivel fazer da crianca, ente natural por exceléncia, ‘um ser supremamente piedoso, bom e socidvel. E como em todas as pedagogias teoricamente fundamentadas a técnicas da-influéncia pelos fatos s6 & descoberta mais tarde e a edu- cago comega com as admoestagdes problematicas, assim também 0 livro infantil em suas primeiras décadas ¢ edificante e moralista, e constitui uma simples variante defsta do cate- cismo e da exegese, Hobrecker critica esses textos com severi- dade. N&o podemos, com efeito, negar sua aridez ¢ mesmo sua irrelevdncia para o leitor infantil. Mas essas falhas, j4 su- peradas, so insignificantes se comparadas com os equivocos que hoje esto em moda gracas a uma suposta “empatia” no espirito da crianga: a jovialidade desconsolada das historias ‘om versos e as earetas hilares desenhadas por pretensos “ami- g0s das criangas” para ilustrar essas historias. A crianca exige dos adultos explicagdes claras ¢ inteligiveis, mas nfo explica- «es infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais. A crianga accita perfeitamente coisas sérias, mesmo as MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA ™ mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas € espon- tAneas e, por isso, algo pode ser dito a favor daqueles velhos textos. Ao lado da cartilha e do catecismo, na origem do livro infantil est a enciclopédia ilustrada, o diciondtio ilustrado, no estilo do Orbis Pictus, de Amos Comenius. O Huminismo também cultivou esse género, 4 sua moda, produzindo a ‘monumental Obra elementar, de Basedov. O livro 6 agradivel de mais de um ponto de vista, inclusive quanto ao texto. Pois lado a lado com um didaticismo universal, que segundo 0 espirito da época procurava mostrar a utilidade de todas as coisas — desde a matemética até a arte de equilibrar-se numa corda —, havia histérias de moralismo tio radical que bei- ravam (niio de todo involuntariamente) 0 cémico. Ao lado dessas duas obras mereceria mengio 0 Livro ilustrado para criancas, publicado posteriormente. Abrange doze volumes, ‘com cem gravuras coloridas cada um, ¢ apareceu em Weimar, entre 1792 1847, sob a diregio de F. J. Bertuch. Essa enci- clopédia ilustrada demonstra, em seu cuidadoso acabamento, com que zelo se trabalhava entiio para as criangas. Hoje a maioria dos pais se recusaria com indignagdo a colocar essa preciosidade nas maos das criangas. Imperturbével, Bertuch ‘aconselha em seu preficio que 0s leitores recortem as ima- gens. Enfim, os contos de fadas ¢ as cangSes, e até certo ponto também os livros populares e as fabulas, constituiam fontes para os textos dos livros infantis. Evidentemente, eram esco- Thidas as obras mais “puras”. A atual literatura romanesca {juvenil, eriagdo sem raizes, por onde circula uma seiva melan- célica, nasceu no solo de um preconceito inteiramente mo- derno, Trata-se do preconceito segundo o qual as criancas so seres tio diferentes de nés, com uma existéncia to incomen- surdiyel & nossa, que precisamos ser particularmente inven- tivos se quisermos distrai-las. No entanto nada é mais ocioso que a tentativa febril de produzir objetos — material ilustra- tivo, brinquedos ou livros — supostamente apropriados as criangas. Desde o Huminismo, essa tem sido uma das preocu- pag®es mais estéreis dos pedagogos. Em seu preconceito, cles no véem que a terra est cheia de substfincias puras e infal- sificdveis, capazes de despertar a atengdo infantil. Substancias extremamente especificas. -As criangas, com efeito, tém um particular prazer em visitar oficinas onde se trabalha visivel- mente com coisas. Elas se sentem atraidas irresistivelmente 28 WALTER BEWAMIN, pelos detritos, onde quer que eles surjam — na construgio de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confeccao de roupas. [Nesses detritos, elas reconhecem 0 rosto que o mundo das coisas assume para elas, e 56 para clas. Com tais detritos, no imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos ¢ residuos ‘em uma relagdo nova e original. Assim, as proprias criangas cconstroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macro- ‘cosmos. O conto de fadas 6 uma dessas criagdes compostas de detritos — talvez.a mais poderosa na vida espiritual da huma- nidade, surgida no processo de producdo e decadéncia da saga. A crianga lida com os elementos dos contos de fadas de ‘modo to soberano ¢ imparcial como com retalhos e tijolos. Constréi seu mundo com esses contos, ou pelo menos os uti- liza para ligar seus elementos. O mesmo ocorre com a cangio. E.coma fabula. “‘A {abula, em seus melhores momentos, pode ser um produto espiritual de grande profundidade, mas s6 raramente seu valor é percebido pelas criangas. Podemos du- vidar de que os jovens leitores a apreciem por sua moral ou a utilizem para formar sua inteligéncia, como uma eerta sabe- doria que tudo ignora sobre a infancia algumas vezes o supe, ‘ou deseja. As criangas se divertem muito mais com os animais ‘que falam e agem como os homens que com 0s textos mais ricos de idéias.” Em outra passagem: “Uma coisa é certa: a Jiteratura especificamente destinada aos jovens comegou com um grande fiasco”. Podemos acrescentar que em muitos casos ‘ela permaneceu um fiasco. ‘Uma coisa fedime as obras mais antiquadas ¢ tenden- ciosas dessa época: a ilustragdo. Ela escapou ao controle das teorias filantrépicas, e muito breve os artistas chegaram a um centendimento com as criangas, ignorando os pedagogos. Nao ‘que os artistas tivessem trabalhado levando em conta exclusi- vamente os interesses infantis. Os fabulérios mostram que os ‘mesmos esquemas reaparecem com pequenas varingbes nos mais diferentes contextos. Do mesmo modo, na representacao das sete maravilhas do mundo, por exemplo, os livros ilus- trados recorrem a gravuras do século XVII, ou mais antigos ainda. Podemos supor que as ilustragdes dessas obras estejam ‘em relaco hist6rica com a emblemitica barroca. Essas es- feras nlo so to estranhas uma a outra como se poderia imaginar. No final do século XVIII, aparecem livros ilustra- dos com a seguinte caracteristica: uma grande variedade de MAGIA E TECNICA, ATE E POLITICA 2 coisas, que nao tém entre si qualquer afinidade figural, so impressas numa {nica pagina. So objetos que comesam com a mesma letra: amora, ancora, agricultor, atlas, etc. Os vocd- bbulos correspondentes so traduzidos em uma ou varias lin- guas estrangeiras, A tarefa do artista era semelhante a do de- senhista barroco quando combinava objetos alegéricos numa escrita visual, e nas duas épocas os autores ofereciam solucdes: engenhosas ¢ altamente significativas. Nada é mais sintomé- tico que o fato de que durante o século XIX, que cresceu em saber universal a0 preco de abandonar muitos bens culturais do século precedente, o livro infantil nao sofreu retrocessos, ‘nem do ponto de vista do texto nem do material ilustrativo. Sem diivida, depois de 1810 deixam de aparecer obras tio delicadamente elaboradas como as Fébulas de Esopo (se- gunda edigio por H. F. Miller, Viena, sem data), que me orgulho de acrescentar lista de Hobrecker. Mas no & no refinamento do trago e do colorido que o livro infantil do sé- culo XIX pode competir com seus antecessores. Seu encanto cesté em seu carditer primitivo, documentando uma época em ‘que a antiga manufatura comegava a confrontar-se com as novas técnicas. Desde 1840 a litografia predomina, ao passo ‘que antes dela, na gravura de cobre, apareciam temas do sé- culo XVIII. $6 no colorido pode o periodo Biedermeier, nos anos 20 ¢ 30, ser considerado caracteristico e novo. “Parece- me que na época Biedermeier havia uma preferéncia pelo carmim, pelo laranja e pelo ultramarino; um verde brilhante € também muitas vezes usado. Ao lado dessas vestes flamejan- tes, desse céu de anil, dessas labaredas de vulcdes e incéndics, ‘© que é feito das simples gravuras em brancoe preto, em cobre ou em pedra, que satisfaziam plenamente os adultos em ge- ral? Onde, como nesses livros, florescem rosas assim, cin- tilam mags e rostos to rubros, resplandescem hussardos tio gzarbosos, com seus d6lmas verdes e uniformes de ouro ¢ pir pura? Mesmo a cartola simples ¢ cinzenta do pai, dotado de grande nobreza moral, ¢ o chapéu amarelo da mie, de notével formosura, evocam nossa admiragio.” Esse mundo de cores, em sua ostentagio complacente, € reservado ao livro infantil. A pintura renuncia aos efeitos vazios quando 0 coloridc, a ‘transparéncia ou a policromia dos tons prejudica a sua relacdo com os planos. Nas imagens dos livros infantis, contudo, 0 objeto e a autonomia do material grafico nao permitem pensar 20 WALTER BENIAMAIN ‘numa sintese da cor e do plano. Livre de qualquer responsa- lade, a fantasia pura se entroga a esses jogos cromiticos, ois os livros infantis nao servem para introduzir imediata- ‘menteos seus leitores no mundo des cbjetos, animais e homens —, na chamada vida, Sé6 gradualmente o seu sentido exterior vai se definindo, e apenas na medida em que os dotarmos de ‘uma interioridade adequada. A interioridade dessa visio est na cor, e nela transcorre a vida sonhadora que as coisas vivem no espitito das criangas. Elas aprendem com a cor. Pois é essencialmente na cor que a contemplagao sensivel, despro- vida de qualquer nostalgia, est em seu elemento. Mas os fendmenos mais curiosos ocorrem no fim do pe- riodo Biedermeier, nos anos quarenta, simultaneamente com alexpansfio da civilizaglo técnica e com o nivelamento da cul- tura, que no deixou de influenciar aquela expansio. Jé se consumara a desagregacto das formas sociais da Idade Mé- dia, organizada por esferas distintas. Nesse processo, justa- mente as substincias mais nobres e mais refinadas acabaram por localizar-se nas camadas mais baixas, e, por isso, o obser- vador perspicaz encontra exatamente nas areas menos prest giosas da criagho literdria e artistica — como a literatura fantil — aqueles elementos que procura em v4o nos docu- mentos reconhecidos da cultura. A interpenetracao de todas as camadas intelectuais e de todos os modos de aciio evidencia-se plenamente na vida de um botmio daquela 6poca, infeliz~ mente nao mencionadg por Hobrecker, embora ele tenha es- crito alguns dos livros infantis mais perfeitos de todos os tempos e também dos mais estranhos. ‘Trata-se de Johann Peter Lyser, jornalista, poeta, pintor € mésico. O Livro das ‘fébulas, com texto de A. L. Grimm e ilustragdes de Lyser (Grimma, 1827), o Livro dos contos de fadas para meninos e ‘meninas das classes cultas (Leipzig, 1834), com texto e ilus- tragdes de Lyser, e 0 Livro de contos de fadas de Lina (Grim- ma, sem data), com texto de A. L. Grimm e ilustragées de LLyser — sto trés dos seus mais belos livros infantis. O colorido de suas litografias contrasta com as tonalidades ardentes do Biedermeier ese adapta bem a expressio aflita e emaciada de ‘muitos personagens, da paisagem de sombra, da atmosfera de contos de fadas, que no é isenta de um toque irdnico esata- nico, Essa arte to original desenvolveu-se num solo de quali- dade muito discutivel, como pode ser documentado com gran- [MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA 2a de clareza na obra As mil e uma noites do Ocidente, em varios volumes, com litografias proprias. Trata-se de uma misce- nea de contos de fadas, sapas, lendas regionais ¢ historias de horror, deprovida de qualquer principio diretor e bascada em fontes pouco claras, que aparece nos anos trinta, em Meis- sen, na editora F. W. Goedsche. As cidades mais banais da Alemanha central — Meissen, Langensalza, Potschappel, Grimma, Neuhaldensleben — se inscrevem para os compila- dores numa topografia migica. E possivel que muitos mestres- escolas tenham participado da obra como escritores e ilustra- dores. Imaginemos um opiisculo explicando & juventude de LLangensalza os deuses do Edda, em 32 piginas 8 litogra Mas 0 foco do interesse de Hobrecker nto est nesse perfodo, e sim nos anos quarenta a sessenta, especificamente ‘em Berlim, onde o-desenhista Theodor Hosemann consagrava seu ameno talento & ilustraco de textos juvenis. Mesmos as paginas menos elaboradas contém uma agradavel frescura nas cores, uma sobriedade simpitica na expresso das figuras, que dio a seu trabalho uma caracteristica propria, apreciada Por qualquer berlinense nato. E certo que os primeiros tra- balhos do mestre, menos esquemiticos e mais raros, como as ilustragdes encantadoras de A boneca Wunderhold, uma das mais belas pecas da colecao de Hobrecker, so mais valiosas, para conhecedor, que os trabalhos posteriores, encontriveis ‘em qualquer antiquério, com seu formato uniforme e com a indicagao da editora: “Berin, Winckelmann e Filhos”. Além de Hosemann, trabalhavam Ramberg, Richter, Speckter, Pocei, para no citar os nomes secundérios. Através de suas xilogravuras em branco e preto um mundo proprio se abre & percepedo infantil. Sua importincia 6 equivalente A das gra- vyuras coloridas e desempenha uma fungo complementar. A imagem colorida faz a fantasia infantil mergulhar, sonhado- ramente, em si mesma, A gravura em branco e preto, a repro- dug sébria e prosaica, levam-na a sair de si. A imperiosa cexigéncia de descrever, contida nessas imagens, estimula na ccrianga.a palavra, Mas, assim como ela descreve com palavras cessas imagens, ela esereve nelas. Ela penetra nas imagens. Sua superficie nao 6, como a da gravura colorida, um noli me tan- gere — nem em si mesma, nem para a crianga. Ela tem um cariter meramente alusivo e admite a cooperacic da crianca. AN 20 WALTER BENJAMIN A crianga redige dentro da imagem. Por isso, ela nfo se limita ‘adescrever as imagens: ela as escreve, no sentido mais literal. Ela as rabisca. Gragas a elas, aprende, ao mesmo tempo, @ inguagem oral e a linguagem escrita: os hierdglifos. A verda- deira significagdo desses livros infantis, com seus modestos ¢rafismos, nada tem aver, portanto, com o rigorismo tacanho ‘que levou a pedagogia racionalista a recomendé-los. Também aqui se confirma que “0s filisteus muitas vezes tém razao no fando, mas no nes motivos”. Pois essas imagens sio mais cficazes que quaisquer outras na tarefa de iniciar crianca na linguagem e na escrita: convencidas dessa verdade, as velhas cartilhas desenhavam, ao lado das primeiras palavras, a ima- ‘gem do que elas significavam. As cartithas coloridas, como las existem hoje, 0 uma fonte de confusio. No reino das imagens incolores, a crianga acorda; no reino das imagens coloridas, ela sonhia seus sonhos até o fim. (© confronto com.o pasado recente € sempre polémico em qualquer historiografia. O mesmo ocorre na inofensiva histéria da literatura infantil. A divergéncia de opinides ¢ aqui ais freqiiente no que diz respeito ao siltimo quartel do século XIX, Ao condenar o tom pedante € didatico desse periodo, talvez Hobrecker tivesse sido indulgente com abusos menos visiveis. E verdade que no era essa sua intengio. Orgulhoso ‘com seus conhecimentos psicol6gicos sobre a vida interior da crianca (que, fo entanto, no se podem comparar em profun- didade e valor existencial com a velha pedagogia contida numa obra como Levana, de Jean-Paul), esse periodo en- gendrou uma literatura que, em seu esforgo complacente de atrair a atengfio do piblico, perdeu o contetido ético que dava sua dignidade mesmo as experiéncias mais toscas da peda- ‘gogia classicistica. Liberta dessa dimensii ética, tal literatura passou a depender dos esterebtipos da imprensa diria. A cumplicidade secreta entre 0 artesio andnimo e a crianca desaparece; escritores ¢ ilustradores se dirigem cada vez. mai A.crianca através da mediacio ilegitima da suas proprias preo: cupagies e das modas predominantes. A atitude sentimental, apropriada nfo A crianga, mas 4 concepgdo pervertida que dela se tem, adquire nas imagens direito de cidadania. Q formato perde sua nobre discricfo, tornando-se incémodo. E claro que em todo esse kitsch estiio contidos alguns valiosos documentos histérico-culturais, porém eles so ainda dema- [MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 20 siado novos para que possamos derivar de sua leitura um prazer integral. ‘Seia como for, reina na obra do proprio Hobrecker, tanto em sua forma interna como externa, o encanto caracteristico os livros infantis mais amAveis e mais roménticos. Xilogra- ‘yuras, ilustragbes coloridas de pagina inteira, sithuetas © de- senhos policrémicos acompanhando o texto 0 transformam ‘num livro caseiro extremamente agradavel, capaz de alegrar ‘0s adultos ¢ de estimular as criangas de hoje, que poderiam muito bem soletrar nas velhas cartithas ou copiar as ilustra- ‘ges. A alegria do colecionador 6 toldada por uma Gnica sombra: 0 medo de que os pregos se elevem demasiadamente. Esse medo 6 compensado pela esperanea de que um ou outro volume destinado a destruigio possa ter sido salvo gracas a ‘essa obra. 1924 Historia cultural do brinquedo No intcio da obra de Karl Grabert esta a modéstia, O autor se abstém de tratar da brincadeira infantil, para ater-se a seu material objetivo, consagrando-se inteiramente a his- toria do proprio brinquedo. Num procedimento imposto me- nos pela natureza do seu tema que pela extraordinaria solidez do seu projeto, Grdber se concentra no espaco cultural euro- peu. Se a Alemanha ocupava 0 centro geogrifico dese espaco, ‘podemos dizer que, no que diz respeito ao brinquedo, ela ocu- Paya também o seu centro espiritual. Alguns dos brinquedos mais belos que ainda hoje ornam os museus € quartos in- fantis podem ser considerados presentes olerecidos & Eu- ropa pela Alemanha. Nuremberg é a pitria dos soldadinhos de chumbo e dos garbosos animais da Arca de Noé; a casa de bonecas mais antiga de que temos conhecimento vem de Mu- nique. Mas mesmo quem nio se interessar por questdes de Prioridade, que de fato significam muito pouco, tera que admitir que as bonecas de madeira de Sonnebers (fig. 192), as “Arvores de aparas de madeira” do Erzgebirge (fig. 190), a fortaleza de Oberammergau (fig, 165), as lojas de condimen- tos e as chapelarias (fig. 274, 275, prancha X), ¢ a festa da (0) Grtber, Kas. Kinderpileug aus ler Zt Eine Gschche des Spe soup. (Biinqusdesnfali des velies tapes. Une Hsien do trnquedo.) Belin, Deatesher Ronsvrig, 1928. Vl, 68 py 306 seprodugtes, 12 peatchas calor a, MAGIA E TECNICA, ARTE F POLITICA 2s colheita, em estanho, proveniente de Hanéver (fig. 263), cons- tituem modelos de insuperiivel beleza. No entanto, esses brinquedos niio foram no inicio inven- bes de fabricantes especializados, e surgiram em primeira t€ncia nas oficinas de entalhadores de madeira, de fundi- dores de estanho, etc. Somente no século XIX a produgio de bringuedos seri objeto de uma indtistria especifica, O estilo e a beleza dos antigos tipos s6 podem ser compreendides se levarmos em conta a circunstincia de que outrora os bri quedos eram subprodutos das atividades produlivas regu- lamentadas corporativamente, 0 que significava que cada ofi- ‘cina s6 podia produzir 0 que correspondesse a0 seu ramo. ‘Quando durante o século XVIM comecou a surgir uma fabri- cacao especializada, ela teve que enfrentar em toda parte res- trigdes corporativas. Elas proibiam que os carpinteires pin- tassem suas bonecas de madeira, e produglio de bringuedos de varios materiais obrigava diversas inddstrias a dividirem entre sio trabalho mais simples, o que encarecia a mercadoria. Nessas condicdes, compreende-se que no inicio a venda ou pelo menos a distribuigtio a varejo dos brinquedos nao estivesse afeta a comerciantes especificos. Os animais de ma- deira entalhada podiam ser encontrados no carpinteiro, os soldadinhos de chumbo no caldeireiro, as figuras de doce nos confeiteiros, as bonecas de cera no fabricante de velas. O mesmo nio ocorria nos estabelecimentos de distribuicao por atacado. Também cles apareceram primeiro em Nuremberg. Ali as firmas exportadoras comegaram a comprar brinquedos produzidos nas manufaturas da cidade e principalmente na indiistria artesanal dos arredores, e a distribuf-los ao comércio vargjista. Na mesma época, © avango da Reforma obrigou muitos artistas que costumavam trabalhar para a Iereja “a clo em fungao da demanda por pro- ", fabricando “pequenos objetos de arte para decoragio caseira, em vez de obras de grande formato”. Foi assim que se deu a excepcional difusfio daquele mundo dé coisas microscépicas, que alegrava as criangas nos armérios de brinquedos ¢ os adultos nas “salas de arte e maravilhas”, € foi assim que se consolidou, com a fama dessas “‘quinquitha- rias de Nuremberg”, a hegemonia até hoje inquestionada dos brinquedos alemies no mercado mundial. 26 (WALTER BENJAMIN Considerando a histéria do brinquedo em seu conjunto, verifica-se que 0 formato tem nessa histéria um significado muito maior do que se supe. Com efeito, quando na segunda metade do século XIX esses objetos comeram a declinar, observa-se que os brinquedos se tornam maiores, perdendo 208 poucos seu aspecto discreto, mintsculo, sonhador. Nao seria nessa época que a crianga ganha um quarto de brin- quedos especial, um armfrio especial, em que pode guardar seus livros separadamente dos que pertencem acs seus pais? io resta dévida de que os velhos livros em seu pequeno for- mato exigiam de modo muito mais intimo a presenga da mae, 20 paso que os modernos livros in quarto, com sua ternura vaga e insipida, parecem ter como funcao manifestar seu des- prezo pela auséncia materna, O brinquedo comega a emanci par-se: quanto mais avanga a industrializaclo, mais ele se es- quiva ao controle da familia, tornando-se cada vez mais ¢s- tranho no s6 as eriangas, como também aos pais. Na base dessa falsa simplicidade do novo brinquedo ha- via uma nostalgia genuina: o desejo de recuperar 0 contato ‘com um mundo primitivo, com o estilo de uma indiistria arte- sanal que, no entanto, justamente nessa época travava na ‘Turingia, no Erzgebirge, uma luta cada vez mais desesperada por sua sobrevivéncia. Quem examina as estatisticas dessas inddstrias sabe que seu fim € inevitivel. Isso é duplamente lamentivel, se se tem em vista que de todos os materiais nenhum é mais apropriado ao brinquedo que a madeira, por sua resisténcia e por sua capacidade de absorver cores. E jus- tamente essa perspectiva exterior — a questiio da técnica e do ‘material — que permite ao observador mergulhar mais pro- fundamente no mundo dos brinquedos. Grober apresenta essa perspectiva de um modo altamente plistico e instrutivo. Se além disso pensamos na crianca que brinca, podemos falar ‘numa relagio antindinica. Por um lado, verifica-se que nada & mais préprio da crianga que combinar imparcialmente em suas construgdes'as substfincias mais heterogéneas — pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais, s6brio com relagdo'aos materiais que a crianca: um simples fragmento de madeira, uma pinha ou uma pedra retinem na solidez.¢ na simplicidade de sua matéria toda uma plenitude das figuras mais diversas. E20 imaginar para criangas bo- necas de bétula ou de palha, bergos de vidro; navivs de zinco, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 2 0s adultos esta interpretando a sua moda a sensibilidade in- fantil. A madeira, 0s ossos, 0s tecidos, a argila, sio 0s mate- riais mais importantes nesse microcosmos, ¢ todos eles foram utilizados em €pocas patriarcais, nas quais o brinquedo ainda era um segmento do proceso produtivo, conjuugando pais filhos. Mais tarde vieram os metais, o vidro, o papel, € até ‘mesmo o alabastro. Somente as bonecas tiveram de fato aque- les bustos de alabastros cantados pelos poetas do século XVII, © muilas vezes pagaram esse privilégio com a fragilidade da sua existéncia. Uma resenha como esta s6 pode aludir de passagem & densidade desse trabalho, a seu cardter exaustivo, a objetivi- dade de sua apresentacao. Quem nao examinar atentamente essa obra ilustrada, (Zo bem executada inclusive do ponto de vista técnico, mal pode saber o que € um bringuedo, e muito menos 0 que ele significa. Essa diltima pergunta ultrapassa sua moldura original e leva a uma classificagao filoséfica do brinquedo. Durante a vigéncia de um naturalismo obtuso, nfio havia nenhuma perspectiva de revelar 0 verdadeiro resto da ‘erianga que brinea. Hoje podemos ter a esperanga de superar © erro basico segundo qual o contetido ideacional do brin- quedo determina a brincadeira da crianga, quando na reali- dade € o contrério que se verifica. A crianga quer puxar al guma coisa ese transforma em cavalo, quer brincar com arci ‘ese transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma ‘em bandido ou policial. Conhecemos bem alguns instrumen- tos’ de brincar, extremamente arcaicos ¢ alheios a qualquer mAscara ideacional (apesar de terem sido na origem, presu- mivelmente, de carster ritual): bola, arco, roda de penas, pa- pagaio — verdadeiros brinquedos, “tanto mais verdadciros quaiito menos dizem aos adultos". Pois quanto mais atraentes so 0s brinquedos, no sentido usual, mais se afastam dos ins- ‘trumentos de brincar; quanto mais eles imitam, mais longe eles estio da brincadeira viva. As varias casas de bonecas reproduzidas por Gréber ilustram esse fenémeno. Podemos descrevé-lo da seguinte Inaneira: a imitago esta em seu ele- ‘mento na brincadeira, e ndo no bringuedo, ‘Mas niio entenderiamos 0 bringuedo, nem em sua reali dade nem em seu conceito, se quiséssemos explicé-lo unic mente a partir do espirito infantil. A crianca nao € nenkum Robinson, as criancas no constituem nenhuma comunidade 28 (WALTER BENJAMIN separada, mas sio partes de povo e da classe a que pertencem. Por isso, o brinquedo infantil nfio atesta a exist@ncia de uma vida autOnoma e segregada, mas & um didlogo mudo, baseado com signos, entre a crianga ¢ © povo. Um didlogo de signos para cuja decifragio a obra de Gréber oferece um fundamento seguro. 1928 Brinquedo e brincadeira Observagies sobre uma obra monumental* O teitor desnoraré. até comoraraler este tivo, th fasci nante 60 espetfculo interminével dos brinquedos que Ihe ofe- recem as ilustracdes. Regimentos, carruagens, teatros, coches, arreios — tudo isso esté no livro, em dimensbes liliputianas. J6 era tempo de desenhar a drvore geneal6gi¢a dos cavalinhos de balanco © dos soldados de chumbo, de escrever a arqueo- logia das lojas de brinquedo e dos quartos de bonecas. O texto do livro realiza essas tarefas de modo plenamente cientifico sem qualquer pedantismo de arquivista. A parte escrita € tio importante como parte ilustrada, E uma obra de uma s6 témpera, que nada revela sobre os esforgos feites para pro- duzi-la, ¢ 6 tio indispensével que nfio podemos entender como Pudemos até aqui viver sem ela. ‘lids, tais pesquisas correspondem a uma tendéncia no nosso tempo. O Museu Alemao de Munique, 0 Museu de Brinquedos em Moscou, 0 departamento de brinquedos do Musée des Arts Décoratifs em Paris — criagBes atuais ou do assado recente — mostram que em toda parte, e por boas razies, cresce o interesse pelos verdadeiros brinquedos. Ja passou o tempo das bonecas “realistas”, em que os adultos (2) Gree, Kae. Kinderpieleng us eter Zeit. Kine Gushichte das Spe ug. (Bringuedos infants dos los tres. Uns histiria do trngued.) Bet, Deutscher Kunstverag, 1928. Vil 68 p 906 reprodoees, 12 pranchns eloridas 20 WALTER BENJAMIN. invocavam supostas necessidades da crianga para satisfazer ‘suas prOprias necessidades pueris; o individualismo esquems- tico do artesanato e a imagem da crianga, baseada na psico- logia individual, os quais no fundo tinham tantas afinidades, romperam-se por dentro. Ao mesmo tempo, os investigadores ‘ousaram dar os primeiros passos além do Ambito da psicologia © do esteticismo. A arte popular ¢ a concepedo infantil do mundo queriam ser compreendidas como configuracdes cole- tivas. Em termos gerais, a presente obra corresponde a esse cestdigio da pesquisa, se 6 que podemos classificar segundo uma posieto teGrica trabalhos documentirios desse género. Esse estigio, com efeito, fornece a transigdo para uma fixagto mais exata das coisas. © mundo perceptivo da crianga est mar- ‘cado pelos tragos da geraclo anterior e se confronta com eles; ‘omesmo ocorre com suas brincadeiras. E impossivel situé-las num mundo de fantasia, na terra feérica da infiincia pura ou da arte pura. Mesmo quando néo imita os utensflios dos lultos, 0 brinquedo é uma confrontagio — no tanto da crianga com 0 adulto, como deste com a crianca. Nao so os adultos que dao em primeiro lugar os brinquedos as criancas? E, mesmo que a crianga conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (bolas, arcos, rodas de penas, papagaios) de certo modo terao sido impostes & crianca como objeto de culto, que somente gragas A sua imaginacdo se transformaram em brinquedos. E, portanto, um grande equivoco supor que as proprias necessidades infantis criam os brinquedos. E uma tolice a tentativa contida em obra recente, no conjunto meritéria, de ‘explicar o chocalho de recém-nascido com a afirmagio de que “yia de regra a audica0 6 0 primeiro sentido a ser exercitado”. Pois desde os tempos mais remotos o chocalho & um instru- mento para afastar os maus espiritos, que deve ser dado justa- mente aos recém-nascidos. E possivel que mesmo 0 autor desta obra tenha se enganado nas reflexdes seguintes. “A crianga s6 deseja na sua boneca 0 que vé e reconhece no ad to. Por isso, até o século XIX a boneca vinha de preferéncia ‘com roupas de adultos; o bebé com fraldas ou 0 bebé que hoje predomina no mercado dos brinquedos no existiam antes. Nao, esse fato nao se deve as crianeas; para a crianga que brinea, sua boneca 6 as vezes grande ¢ &s vezes pequena, ©, [MAGIA E TECNICA, ARETE POLITICA 2s como um ser mais fraco, mais freqlentemente pequena que grande, A verdadeira explicagdo € que até o século XIX a crianca como ser inteligente era totalniente desconhecida, a0 que se agrega o fato de que para o educador 0 adulto era o ideal proposto como modelo as criangas. De qualquer modo, esse racionalismo hoje Uo ridicularizado, que vé na crianga um pequeno adulto, tinha pelo menos o mérito de compreender que a seriedade & a esfera adequada & crianga. Em contraste, com 0 advento dos grandes formatos, aparece no brinquedo 6 “humor” subalterno, como expressio daquela inseguranga ti- pica do burgués em seu convivio com as criangas. A joviali dade devida a consciéneia de culpa vem 2 tona nas ridiculas distorpbes que exageram 0 tamanho dos brinquedos. Quem quiser ver a caricatura do capital mercantil precisa apenas pensar numa loja de brinquedos tal como ela existia ha cinco ‘anos ¢ como continua existindo nas cidades pequenas. A ridade infernal era sua atmosfera bésica. Mascaras zom- bavam nas tampas dos jogos de salio ou no rosto das bonecas, atrafam os incantos de dentro dos negros canos de canhio, iam nos engenhosos vagdes programadios para se desfazerem em acidentes ferrovidrios. ‘Noentanto, mal a maldade militante havia desaparecido, © carter de classe desse tipo de brinquedo veio 4 tona em outro lugar. A “‘simplicidade” tornou-se uma palavra de or- dem das oficinas artesanais. Porém, no fundo, a simplicidade dl est na forma dos brinquedos, e sim na transparéncia do sey processo de producdo. Ela ndo pode, pois, ser avaliada segundo um cfinone abstrato, mas varia segundo as distintas regides e depende to pouco de-aspectos formais que muitos tipos de claboragdo, principalmente o entalhe em madeira, podem aplicar num objeto tesouros de arbitrariedade capri cchosa sem se tornarem com isso incompreensiveis. Como ou trora, a verdadeira e espontanea simplicidade dos brinquedos nilo tem a ver com sua construcao formal, e sim com a sua técnica. Pois um traco caracteristico de toda arte popular — imitagao de técnicas refinadas, trabalhando com materiais preciosos, por uma arte que utiliza técnicas primitivas e ma- teriais grosseiros — pode ser identificado com clareza exata- mente na produco dos brinquedos. Porcelanas das grandes manufaturas czaristas, perdidas nas aldeias russas, oferece- ram modelos para bonecas e cenas de género talhadas em 22 WALTER BENUAMIN madeira. 0 folclore mais recente j6 abandonou a idéia de que as formas mais primitivas so necessariamente as mais an- tigas. Muitas vezes, a chamada arte popular nada mais € que jam bem cultural vulgarizado, procedente das classes domi- nantes, e que se renova ao ser acolhido numa coletividade mais ampla. ‘Nao é 0 menor dos méritos de Grober haver mostrado convincentemente esse condicionamento do bringuedo pela cultura econémica e principalmente pela cultura técnica das coletividades. Se até hoje 0 brinquedo tem sido visto dema- siadamente como produgio para a crianga, se nfo da crianga, © erro opesto é ver a brincadeira excessivamente na perspec tiva do adulto, do ponto de vista da imitacao. Nao se pode negar que estfvamos apenas 2 espera dessa enciclopédia do bbringuedo para renovar a teoria da brineadeira, que nfo vol- tou a ser tratada como um todo desde que Karl Gross pu- biicou em 1899 a importante obra Spiele der Menschen Ulogos ‘rumanos). Ela teria que se ocupar em primeira instancia com aquela “doutrina gesttica dos gestos lidicos", dos quais os, {rés mais importantes foram ha pouco (18 de maio de 1928) enumerades por Willy Haas. Sao eles: em primeiro lugar, o do gato e rato (toda brincadeira de perseguigio); em segundo Ingar, 0 do animal-mae que defende seu ninho com 0s filhotes (por exemplo, 0 goleiro, o tenista); e, em terceiro lugar, o da Iuta entre dois animais pela presa, pelos ossos ou pelo objeto de amor (Futebol, polo). Caberia ainda a essa teoria investivar a misteriosa dualidade do bastio e do arco, do pido e do bar- bante, da bola e do taco, e 0 magnetismo que se estabelece entre as duas partes. E possivel que aconteca o seguinte: antes que © amor externo nos faga penetrar na existéncia © nos ritmos freqiientemente hostis de um ser humano estranho, ensaiamos primeiro com of ritmos originais que se manifes- tam, em suas formas mais simples, nesses jogos com coisas inanimadas. Ou antes, éjustamente através desses ritmos que nos tornamos Senhores de nés mesmos. Enfim, esse estudo deveria investigar a grande lei que, além de todas as regras e rimos individuais, rege o mundo da brincadeira em sua totalidade: a lei da repeti¢lo. Sabemos ‘que a repetigio 6 para a crianga a esséncia da brincadeira, que ‘nada the dé tanto prazer como “brincar outra vez”. A obscura compulsao de repeticlo nao € menos violenta nem menos as- MAGIA E-TECNICA, ARTE E POLITICA 2s uta na brineadeira que no sexo. Nao € por acaso que Freud acreditava ter descoberto nesse impulso um “‘além do prin- cipio do prazer". Com efeito, toda experiéncia profunda de- seja, insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repeti¢ao e retomno, restauragdo de uma situagao original, que foi seu ponto de partida. “Tudo seria perfeito, se pudéssemos fazer dduas vezes as coisas”: a crianga age segundo essas palavras de Goethe. Somente, ela no quer fazer a mesma coisa apenas duas vezes, mas sempre de hovo, cem e mil vezes. Nao se trata apenas de assenhorear-se de experiéncias tertiveis ¢ primor- diais pelo amortecimento gradual, pela invocaclo maliciosa, pela parédia; trata-se também de saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vit6rias e triunfos. O adulto alivia seu coragio do medo e goza duplamente sua felicidade ‘quando narra sua experiéncia. A crianga recria essa experién cia, comega sempre tudo de novo, desde o inicio. Talvez seja esta a raiz mais profunda do dupio sentido da palavra alema Spielen (brincar e representat): repetir o mesmo seria seu ele- ‘mento comum. A esséncia da representago, como da brinca- deira, nao é “fazer como se", mas “fazer sempre de novo”, a transformacio em habito de uma experincia devastadora, Pois é a brincadeira, e nada mais, que esta na origem de todos os hébitos. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se, devem ser inculeados no pequeno ser através de brincadeiras, acompa- nhados pelo ritmo de versos e cangtes. E da brincadeira que nasce © habito, © mesmo em sua forma mais rigida 0 hibito conserva até o fim alguns residuos da brincadeira. Os hibitos silo formas petrificadas, irreconheciveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror. E mesmo o pedante mais Grido brinea, sem o saber — nao de modo infantil, mas sim- plesmente pueril —, e 0 faz tanto mais intensamente quanto mais se comporta como um pedante. Apenas, ele nao se lem- bra de suas brincadeiras; s6 para ele uma obra como esta per- maneceria muda. Um poeta contemporfineo disse que para cada homem existe uma imagem que faz 0 mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem no surge de uma velha caixa de brinquedos? 1928 Sobre o autor "Nascido em Berfim a 15 de jutho de 1892, Walter Benjamin fo um «dos mais notiveis ntelectuais alemaes deste século, Graduada em Filo fia pela universidade de Freiburg-im-Breisgan, doutorou-seem 1919com ‘atese “O Conceitode Critica de Arte no Romantismo Alero". Noini- ‘io des anos 20, em meio efervescfnicia cultural eds turbuléncias polii- ‘as da Repiblien de Weimar, aproximou-se de Adorno, Horkeimer © ‘Marcuse, entso jovens professoresempenhados na critica da cultura eda ‘azAo capitalistas. Essa aproximasto € o dslogo intenso que travon a0 Jongo de toda a vida com esse grupo de inelecuais, em especial com ‘Adorno, naoimpediram que elaborasse uma reflexdo originale particule Fissima — nem sempre bem-aesta pelo meio univesitério genninico Prova disso fot a recusa formal de sua tee de ive-doctncia sobre a r= ens do barraco alemo, como que vu fristrada seu itento deingreseat ‘a carrera académica. Em virtude da ascensio do nazismo em seu pls, Benjamin vai para Dinamarea, ondeescreve A Obrade Artena Epocadesua Reprodlivide- dd Técnica, e em seguida para Pats. Na capital francesa, 8s véoperas da invasdo pelo exército alemao, termina Teses sobre o Concelto da Hist. via. Quando a nvasto se consuma, Benjamin tentafugi paraa Espanta. Difieuldades para ingressar no pals e0 avango das topasraristas leva: ‘no ao desespero: suicida-se a 77 de setembro de 1940 na cidade frotestign dePont Bot, —

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