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Cinema e historiografi: trajetéria de um objeto historiografico (1971-2010) Cinema and historiography: trajectory of a historiographical object (1971-2010) Francisco das Chagas Fernandes Santiago Junior Professor adjunt: Universidade Federal do Rio Grande do Norte santiago.jr@gmail.com Rua Professor Moura Rabelo, 1326/21 59064-480 - Natal - RN Brasil 2A - Candelaria Resumo Este artigo visa a apresentar a forma como a historiografia tradicional incorporou 0 cinema entre seus objetos de pesquisas por meio de um didlogo ambiguo com os estudos do cinema e pela exclusdo direta da histéria do cinema. Acompanha-se a incluso do cinema entre os objetos da historiografia francesa e brasileira, a domesticaco do filme na operacdo historiogréfica e 2 sobrevivéncia dos marcos iniciais dessa inclusdo no atual momento das pesquisas, bem como os deslocamentos mais importantes dos Ultimos dez anos. Observaremos alguns aspectos da histéria da constituico do cinema como objeto historiagrafico, propondo, 20 final, um dislogo sistematico com a teoria da histdria e a propria historia do cinema, Palavras-chave 151 Cinema; Histéria da historiografia; Teoria da histéria. Abstract This article seeks to highlight how the traditional historiography has included cinema among its objects of research through an ambiguous dialogue with the film studies, and through the direct exclusion of film history. It is followed by the inclusion of cinema among the objects of the French. and Brazilian historiography, the domestication of films in the historiographical operation, and the survival of the early milestones for its inclusion in the current moment of the researches, as well as the most important shifts in the past ten years. We will observe some aspects of the history of the constitution of cinema as a historiographical object, proposing at the end a systematic dialogue with the theory af history, and with the film history itself. Keywords Cinema; History of historiography; Theory of history. Enviado em: 5/6/2011 Aprovado em? 2/8/2011 histéria da his abril + 2019 + 352-273 riografia + ouro preto « nimer Francisco das Chag: Fernandes Santiago Jtinior 152 histéria da Introducao Nos Ultimos dez anos surgiram expressivas publicagdes dedicades 4 indagagdo sobre a relagdo do conhecimento histérico com 0 cinema. Sao artigos, livros e coleténeas nos quais esto delineados preocupagées, métodos € perspectivas diversificadas de pesquisas. Tais empreendimentos apontam, contudo, 4 necessidade de sistematizagdo da discuss#o como um campo especifico da indagagao da historiografia. Nao so pouces os autores que exigem a tematizacdo e amadurecimento de um questionamento especifico para o cruzamento da histéria com o cinema (LAGNY 2009; NOVOA 2008; ROSENSTONE 2010; SANTIAGO JR. 2010) E sabido que a incorporagao do cinema como objeto da historia foi realizada decisivamente a partir da abertura tematico-metodolégico da nova historia francesa a partir da década de 1970. A obra pioneira de Marc Ferro desempenhou, nesse momento, um papel fundamental, quando um artefato, o filme, fol tirado de seu lugar funcional e transformado, pela “operagao histérica”, em objeto- fonte da disciplina histérica Este texto visa criar chaves de leituras para compreender como o cinema foi transformado em objeto no debate historiogréfico. Realizamos um deslocamento na discusséo convencional da érea, uma vez que aqui ndo hd foco na relacdo cinema e histéria tal como pensada nos marcos tradicionais da discussdo. Partimos de uma indagacdo de cunho historiografico, ou seja, da construgio do cinema como objeto da matriz disciplinar da ciéncia da histéria. Testamos aqui uma hipétese: a fundago do cinema como objeto historiogréfico deu-se pela exclusdo do debate direto com os estudos do cinema e com a histéria do cinema. Parece-nos que a refiexdo sobre a relacdo histéria e cinema na historiografia privilegiou a reflexdo metodolégica por meio da domesticagéo dos dois campos intelectuais interiocutores e aliados potenciais: a histéria do cinema e€ a teoria do cinema Observamos essa marca primeva em trabalhos atuais, nos quais o debate metodolégico, hoje muito sofisticado, continua a absorver as preocupagdes dos pesquisadores, os quais, em sua maioria, permanecem alheios as implicagdes tedricas que o cinema imprime 4 historiografia (LAGNY 2009; ROSENSTONE 2010) Este texto tem como proposta de fundo, portanto, constituir passos iniciais para um tépico na reflexdo historiogréfica e da teoria da histéria que se debruce sobre 0 efetivo impacto ( os deslocamentos) que o cinema produz na histéria € na historiografia. Obviamente, ndo sendo possivel pensar essa questo no todo, a primeira coisa a ser feita € historicizar a discussdo e entender como os historiadores recortaram os préprios trabalhos. Tentaremos esbocar, um pouco, uma histéria da formaggo da relacdo histéria e cinema na historiografia, passeando entre produgées francesas ¢ brasileiras e verificando algumas das bases da tradicgdo de estudos histéricos sobre cinema. Pedimos desculpas antecipadas pelas generalizagdes que seguem, mas que visam apenas serem Uiteis para tatear os caminhos da historiografia. historiografia Quantas sao as histérias do cinema? Apergunta “0 filme sera um objeto indesejével para o historiador?” (FERRO 1995, p. 199) abria o cldssico ensaio "O filme: uma contra-andlise da sociedade?”, de 1971, no qual Marc Ferro propés o problema do uso do filme pelo historiador, para a comunidade historiografica francesa, com o objetivo de legitimar e embasar metodologicamente uma critica histérica que contornasse a subjetividade do "novo objeto” Historiadores jé haviam falado em usar filmes antes, mas foi este texto que adquiriu forca fundadora Aresposta de Ferro tornou-se um trecho muito citado desde aquela data Partir da imagem, das imagens, No procurar somente nelas exemplificagdes, confirm ago ou desmentido de um outro saber, aquele da tradiggo escrita. Considerar as imagens tais como so, com a possibilidade de apelar para outros saberes para melhor compreendé-las, Assim o método que lembraria o de Febvre, o de Francastel, de Goldmann, desses historiadores da Nova Histéria, da qual se definiu a vocacSo. Eles reconduziram a seu legitimo lugar as fontes de origem popular, escritas de inicio, depois ndo escritas folclore, artes e tradicdes populares etc. Resta estudar o filme, associ1o ao mundo que o produz. A hipdtese? Que o filme, imagem ou no da realidade, documento ou ficc&o, intriga auténtica ou pura invengdo, é Histéria; 0 postulado? Que aquilo que no se realizou, as crengas, as intengdes, 0 imaginario do homem, é tanto a Histéria quanto a Histéria (FERRO 1995, p. 203). © historiador francés definiu o filme como um “novo" objeto junto aos temas e fontes da “Nova” Histéria. O campo de pesquisa aberto por Ferro associara a pelicula com a sociedade que a produziu, seguindo a tradigéo dos Annales na definig&o ambigua do social como “lugar de inventario” dos fenémenos interdependentes (REVEL 2010, p. 37). A este artigo sequiu-se uma série de textos, uns curtos, outros longos, escritos por Ferro, mais tarde reunidos no pequeno Cinéma et histoire, em 1977, nos quais foram desenvolvidas ideias seminais, j4 presentes no texto de 1971, tais como a do filme como agente histérico, a “leitura hist6rica do cinema” (0 filme como documento) e a “leitura cinematografica da histéria" (0 filme como representagao da historia). Tais ideias se tornaram marcos da preocupagao dos historiadores com o cinema. Nao haveria, contudo, singularidades nessa insergdo? Entre as muitas maneiras de inserir 0 cinema no tempo, formaram-se duas fortes tradigdes de discursos histéricos. A primeira fora a histéria do cinema stricto sensu, que tomara o filme como foco principal de interesse € 0 cinema (por mais dificil que seja defini-lo) como objeto e fim em si mesmo (sem necessariamente desdenhar da sociedade no qual € gerado), tendo referencias, metodologias e preocupacdes propria, as quais a partir de um determinado momento dialogaram com a teoria do cinema (BORDWELL 2005). A segunda fora uma histéria @ partir do cinema (€ nosso foco de interesse neste texto), realizada pela historiografia académica, a qual toma 0 cinema como fonte para analisar a sociedade. Essa segunda tradig&o sedimentou-se a partir da obra de Ferro, 0 que tem sido chamado por alguns de "relagdo cinema e histéria" (NOVOA 1995). 153

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