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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia ¢ Ciéncias Humanas Tempos em Crise - a base temporal das contradicées da modernidade - Andri W. Stahel Tese de Doutorado em Ciéneias Sociais apresentada ao departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientagao do Prof. Dr. Laymert Gareia dos Santos Este exemplar corresponde & versio final da tese defendida e aprovada pela Comissio Julgadora em 13/08/2002 Banca Examinadora: LY Prof. Dr. Laymert Garcia dos Santos (Orient een Or Prof. Dr. Joan Martinez-Alier St 7/44 Prof. Dr. Joao Luiz Hoefel oz Prof. Dra. Leila da Costa Ferreira Prof. Dr. Octavio eo Prof. Dr. Anténio Ribeifo dé Almeida Jinior (Suplente) Agosto/2002 ‘Campinas, SP unIcCAMP BIBLIOTECA C' TRAL 1 ANTE UNiDADE cMo0174291-2 Blip 1D aSAOFY FICHA CATALOGRAFICA - BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP ‘S13 stahel, Andri Wemer \S4{4v — Tempos em Crise - a base temporal das contradigdes da modernidade / Andri Werner Stahel, Campinas, SP: [s.n.], 2002. Orientador: Laymert Garcia dos Santos. Tese (doutorado) - Universidade de |Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1, Tempo. 2. Politica do Tempo. 3 Modemidade. 4. Modemnizagao. 5. Sociedade do Risco. 6. Economia Ecolégica. 7. Teoria dos Sistemas. I. Santos, Laymert Garcia dos. II. [Universidade de Campinas. Instituto de Filosofia e |Ciéncias Humanas. IM. Titulo. Resumo: Este trabalho se prope a analisar a nogao e as praticas temporais que se tornaram hegeménicas na (re)organizago das sociedades modemnas, apontando para algumas das contradigées basicas que ‘emergem neste processo, tanto a nivel individual (alienagao, bem-estar psiquico e fisico, etc.) e social (polarizagao social, as tensdes inerentes & politica do tempo modema, desagregasio e desarticulagao social, etc.), quanto nos aspectos ambientais (os desequilibrios ecolégicos que acompanham e emergem do processo de modernizagao). Estudando o que denominamos tempo sistémico a partir da anélise da auto(te)organizacio dos sistemas fisicos, biolégicos, sociais e biosféricos, procuramos mostrar como a temporalidade hegeménica na modernidade (em sua dupla cara de tempo mecénico e tempo do progresso) entra em contradigao com esta temporalidade sistémica mais ampla que rege os sistemas que, no entanto, sustentam a organizagao social humana. Desta forma, analisamos as contradigdes temporais centrais do processo de modemizagio e como estas estiio na raiz da emergéncia da denominada 'sociedade do risco’ atual. Abstract: ‘The main aim of this thesis is to analyze the time practice and conception that became dominant in modem society (the mechanical and progressive time conception) and how this temporality is in contradiction with the more general systemic time which is at the basis of the self(re)organization of individual, social and ecological systems on which, nevertheless, human society is based on. Thus, we show how the so called modem ‘risk society’ is the product of the time contradictions brought by modernity and the modemnization process. "Nem a histéria, nem a evolugéo sto 0 tempo. Elas sdo sempre as consequiéncias. O tempo é um estado, a chama onde vive a salamandra alma humana, O tempo de wma vida é uma oportunidade dada ao homem para tomar consciéncia de si-mesmo e de sua aspiragdo a verdade enquanto ser moral. Um dom ao mesmo tempo doce e amargo. Uma vida é, assim, como uma permanéncia ao longo da qual o homem pode, e tem o dever, de por o seu espirito de acordo com a compreensiio que ele tem do objetivo da vida humana. Esta moldura estreita na qual se insere a vida humana apenas acentua a sua responsabilidade perante si mesmo e perante os outros. Assim, a consciéncia humana é tributdéria do tempo. Ela sé existe através dele." (Tarkovski)! Dedico esta Tese & minha avé paterna, Beatrice, e as minhas fithas Verena e Tais. Nos othos da primeira, eu pude ver 0 amor, a aceitagao do diverso junto a si, que, desde sempre, sustenta 0 Universo. Nos olhos das segundas, eu vejo a luz da vida que se prepara para herdar 0 futuro. Andrei Tarkovski; Le Temps Scellé; Paris: Editions de I'Etoile/Cahiers du Cinéma, 1989, p. 55-56. iv Preambulo "Eu ndo vejo como alguém pode escrever sobre idéias e no desenvolver ao menos um certo grau de consciéncia ecolégica. Trabalhos escritos conduzem inevitavelmente a percep¢do de que nossas préprias idéias sto uma interacéo complexa de idéias absorvidas de outros. Outros, cujas préprias idéias sdo, da mesma forma, idéias absorvidas de outros, e assim por diante."” (Warwick Fox)* Fazendo minhas as palavras de Fox, devo reconhecer, neste prologo, ndo sé a teia de pensamentos ¢ a imensa rede de existéncias individuais e coletivas - com suas vicissitudes, alegrias, gozos e tristezas - das quais o meu proprio pensar e sentir € tributario, como também a minha absoluta incapacidade de poder reconhecer e nomear a todos, ja que esta rede se estende muito além da linha do horizonte da minha consciéncia. Posso, de fato, dizer que a experiéncia mais profunda que tive ao escrever esta tese foi viver, durante sua redago, o que eu estive tentando argumentar com palavras: a existéncia de uma temporalidade sistémica que permeia a existéncia e pela qual nfo sé tudo esta interrelacionado, como também o que vemos so 0s frutos, dos frutos dos frutos, as emergéncias das emergéncias das emergéncias da continua danga dos sistemas... Ndo sé minhas palavras ¢ anélises brotaram de uma complexa ¢ sistémica ‘ecologia interior’, na qual se articulam € se dio forma reciproca as diferentes dimensdes da minha realidade existencial do momento - fisica, biolégica, emocional, intelectual e espiritual - como também esta se articula a ‘ecologia exterior’, da qual representa tanto produto, quanto a parte co(re)produtora. Neste processo, mais do que um processo linear e dirigido, a redago converte-se num caminhar, numa dialética na qual sujeito e objeto se confundem, jé que em muitos momentos, mais do que escrever a tese, era a tese que me escrevia ¢ transformava... Também na redaco de uma tese, podemos ver que 0 caminho se faz ao caminhar e os horizonte, paisagens ¢ realidades com as quais eu fui me deparando neste caminho, muitas vezes representaram surpresas para mim mesmo, fazendo com que 0 resultado final que aqui apresento, quase como um diario de viagem, ? Warwick Fox; Toward a Transpersonal Ecology: Developing New Foundations for Environmentalism, Londres: ‘Shambhala, 1990, p. XIII eitado por Jo8o Luiz Hoefel; Valores e Significados - A reflexdo de Arne Naess sobre questies ‘ambientais: Campinas: Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Doutorado em Ciéncias Sociais do IFCH, 28 de aio de 1999, p. 9. pouca relago tém com 0 quadro que eu imaginava encontrar e pintar ao partir, da mesma forma que eu também jé ndo sou mais © mesmo... Nesta caminhada eu pude experimentar também a dialética entre 0 que denominei rempo sistémico @ 0 tempo mecdnico e progressivo hegeménicos na (re)organizago da vida individual e social modema. Ao mesmo tempo em que as reflexdes aqui apresentadas brotavam da complexa dialética sistémica entre a minha ecologia intema e a minha ecologia externa, refletindo a qualidade temporal tunica dos seus distintos momentos de redag&o, elas foram condicionada (e muitas vezes limitadas) pelo contexto temporal dado pelas minhas ‘obrigagdes’ sociais, familiares ¢ académicas, com os seus horérios, agendas, datas limite... Além disso, tanto minha prépria ‘falta de tempo para escrever ¢ reflexionar sobre o tempo’, quanto minha luta final para tentar reduzir 0 seu volume - jé que nos tempos acelerados presentes ninguém parece mais ter tempo nem para escrever, nem para ler teses com mais de um certo nimero de paginas - so, em grande medida, conseqiiéncias da aceleragéo e da sobre-escala da vida social moderna, sobre a qual estive tentando reflexionar ao longo desta tese. Mais ainda, esta aceleregdo e esta sobre-escala dificultam, cada vez mais, a tio necesséria capacidade de parar e reflexionar com profundidade sobre os rumos que seguimos como civilizaso ¢, paralelamente, ameagam engolir teses como esta no seu caudal. Nesta confluéncia, inusitada, entre a teoria e a prética - j4 que a temporalidade modema e assim suas contradigdes com a temporalidade sistémica esto presentes mesmo neste aparentemente solitério exercicio de redagdo diante do computador - eu gostaria, na medida das minhas possibilidades e da minha consciéncia - desculpando-me desde jé pelas minhas limitagdes e omissdes - agradecer aqueles que, de forma mais imediata, me ajudaram nesta viagem. De entrada, ao meu orientador, Dr. Laymert Garcia dos Santos, que néo s6 aceitou assumir a orientagéo em um momento de incertezas e de urgéncia, como também soube, 20 longo de todo 0 processo, ser um inestimavel apoio tanto por propiciar a liberdade necesséria para seguir minhas exploragdes, quanto pelas suas leituras atentas ¢ seus comentérios precisos. Do ponto de vista académico, devo agradecer a0 CNPq pela bolsa de doutorado que permitiu dedicar-me mais integralmente nos primeiros trés anos, fundamentais, deste projeto. Devo agradecer também ao IFCH, com 0 seu secretariado, corpo docente e projeto académico que nao sé me receberam, como também abriram novos horizontes e rumos que, em grande medida, se véem refletidos nesta tese. Particularmente, devo agradecer aos professores que tive, os Drs. Renato Ortiz, Octavio Ianni, Roberto Cardoso de Oliveira e a Dra. Maria Suely Kofes que, sem excegdo, souberam trazer reflexes € introduzir autores que me ajudaram enormemente a ampliar 0s meus horizontes intelectuais. Nesta linha, também, devo agradecer aqueles professores que, ao longo da minha formacdo intelectual, tiveram uma influéncia profunda e duradoura no s6 pelos seus ensinamentos diretos, como também, e principalmente, pelo seu exemplo humano. Na minha formago escolar me véem & meméria os professores Blaich, Lanz, Marmo a professora Sénia; da USP, os professores Drs. Décio Saes, Paul Singer ¢ Vesentini; da FGV os professores Drs. Claudio Prestes Motta, Izidoro Blickstein e Mauricio Tragtemberg ¢, finalmente, do meu periodo de mestrado em Genebra, o Prof. Dr. Jacques Grinevald. Todo reconhecimento da minha divida intelectual no estaria completo se néo incluisse também os alunos que tive ao longo da minha atividade como professor, jé que em muitos casos o que pude aprender neste processo superou, em muito, 0 que pude transmitir e ensinar. Também nao estaria completo sem ineluir todos aqueles autores - como Polanyi, Illich, Mumford, Sachs, Campbell, Serres, Goldsmith ¢ Morin - que, através dos seus escritos, tiveram uma influéneia marcante sobre a minha propria trajetoria e cuja divida eu quis refletir com as (abundantes) citagdes. Finalmente, na medida em que 0 escrito no emerge de um campo isolado ¢ dissociado da ‘minha existéncia - a mente - mas da totalidade do meu ser, no que aqui se encontra plasmado também podemos encontrar a influéncia de todos aqueles, amigos familiares, que passaram pela minha existéncia e so hoje uma parte de mim, assim como aqueles que, pelas suas obras e criagdes artisticas - como Vivaldi, Marcello, Ditrer, Blake, Tumer, Dostojewski, Mann, Kazantzakis, Guimaraes Rosa, Bergmanm Tarkovski, Scola, Angelopoulus ¢ Kiarostami - tiveram uma profunda influéncia na minha sensibilidade e na minha forma de olhar para o mundo. Mais ainda, esta sensibilidade no foi apenas moldada pela influéncia de outras pessoas e suas criagGes, mas também - e de forma muito mais profunda, apesar de menos visivel - pelo movimento do meu meio natural, pelas criagdes da biosfera como um todo e pelo conjunto da evolugao da qual surjo. ‘Niés, seres humanos, no somos apenas seres sociais mas, antes de tudo, seres fisicos que nascemos, vivemos € morremos em um determinado mundo fisico, que herdamos do conjunto dos seres ¢ dindmicas que nos precederam e que legamos aqueles que nos seguiréo. Desta forma, estas reflexdes sto também tributarias das profundas ¢ insondaveis noites estreladas contempladas na minha infancia a0 farfalhar das folhas em Itu e do ensurdecedor siléncio absoluto do Atacama, onde, nas indspitas umes, eu pude ver e sentir um pequeno brago de digua que nascia para irrigar os vales abaixo, cheios de vida, cores © sons, experimentando, assim, a profunda imbricagéo da vida ¢ da morte como partes integrantes de um todo maior. Estas reflexes, assim, so tributérias das montanhas, dos ritmicos movimentos das ondas do mar, da danga da areia sobre as dunas, do vento criando os seus desenhos no capim-gordura em flor e do sol penetrando pela folhagem da floresta. Portanto, todo reconhecimento da minha divida, mesmo que considerando apenas o campo intelectual, estaria incompleto se ndo incluisse vii © meio fisico no qual se deu e dé minha autopoiesis individual. Render este devido tributo representa, assim, reconhecer que a preservago do nosso meio ‘natural’, dos espagos ‘selvagens’, nfo ¢ apenas uma questo de justiga com os demais seres, mas uma necessidade para a nossa propria sobrevivéncia no s6 fisica, como também espiritual, na medida em que tudo esta interrelacionado, eixo central da minha argumentago nesta tese. Enfim, apesar de enormemente incompleta, esta lista é apenas uma forma pela qual eu tento indicar a enorme divida existencial que possuo com todos os seres, animados e ‘inanimados’, conscientes de si mesmos ou no, com os quais comparto minha existéncia ¢ cujos ecos, préximos ou distantes no espago € no tempo, convergem e atravessam esta realidade fugidia, emergente, que denominamos ‘eu’. Todos eles, de alguma forma, também esto presentes nesta tese, apeser de, pela propria interioridade inerente ao tempo dos sistemas, a forma pela qual estas influéncias externas foram integradas e transformadas ¢ da minha inteira responsabilidade, de forma que devo assumir, também, todos os seus possiveis erros e limitagdes. vill INDICE Introdugao . pl Capitulo 1. Do Caos ao Cosmos, do Nada aos Sistemas: complexidade, organizacao da physis ¢ 0 tempo sistémico p33 la: A Cosmogénesis cee BBM Ib: A Dialética Sistémica Tc, Um universo em sursis: as bases fisicas da organizagao material.............. p.48 Id. O fim das certezas......cee eee eeeeeeeeeeee es ceeeeeeeeeeeteeeeeeaes p.62 Ie. A fenomenologia biologica: auropoiesis, tempo sistémico e a vida p72 If, O nascimento de Gaia: tempo sistmico, geo-biofisiologia terrestre e a emergéncia da Terra viva earatsa 24 3 p.92 Ig: Multicelulares, sistema nervoso e conduta do vivente ..........00005 p.1i9 Th. Autopoiesis social e a emergéncia da fenomenologia cultural ... = p. 125 Capitulo TI. A Dialética Humana: biosfera, cultura, auto-reflexividade ¢ as priticas e concepsies temporais na historia humana... . Ila, Linguagem e auto-reflexividade .... lb. Noventa e nove porcento da historia humana: do tempo sistémico ao tempo solar. p. 146 Ile, Revolugao Neolitica e 0 tempo solar...........esseeeeeeeteneteeeeeeees Capitulo TI: Tempo Mecanico e a Sociedade Moderna ..... Illa, Tempo abstrato: a produgio mecéinica dos ‘novos tempos’. IIIb. Ora et labora: 0 tempo dos mosteiros Ie. Tempos burgueses: tempo alienado, tempos do trabalho . Illd. Tempo ¢ dinheiro: a ética protestante ¢ o espirito do capitalismo . Ile. Tempo Mecdnico ¢ Cigncia Econémica: a nogao de valor modema Capitulo IV: Vida e Morte da nogao de Progresso: expansio, acelerago ¢ crise da modernidade . cen seeias HUBER HO beet eeeeeeeeeeeee eee: D321 IVa. O proceso de criagao-destruidora: modernizagao e a continua (re)modelago da realidade...... eo means seid ER estas ween ceee sees B.322 IVb. Da salvagaio ao progresso: o /elos da temporalidade moderna... . +p. 326 IVe. Meios de Transporte e de Comunicagdo na conquista ¢ compressao do espago modemo pelo tempo + p.334 IVd, Das Cruzadas ao desenvolvimento sustentdvel: levando - e impondo, se necessério - a fé (moderna) ao mundo . .. ceceeeees sees 7.380 Capitulo V: Contradigées temporais modernas: a base temporal da crise contemporanea .. p. 400 Va. Polarizagdo e contradigdes temporais modemas: acelerago da temporalidade econémica e social e wm primeiro nivel da crise da modemnidade . - p. 400 Vb. O tempo das necessidades e a necessidade de tempo: 0 conceito modemo de necessidades e a (re)definigo moderna da riqueza . +p.427 Ve. Técnica Moderna e o tempo da alienagdo: o ser humano como instrumento dos seus instrumentos -p.447 Vd. As contradigées sistémicas da temporalidade moderna: (re)produzindo a sociedade do risco atual one oop 470 Vé;. A dimenso subjetiva: inadequagéo cognitiva e o império da fantasia e do medo no interior da sociedade do espetéculo atual -. p.476 ‘Vd, A dimenséo concreta: sobre-exploragio, contaminacao e desorganizagao dos sistemas sociais e CCB GIOOE ws were se sats sare me BIRT REET p. 480 Consideragies Finais eee veeeeeeceeeeeeceeeeeeeeeee =p. 508 BimpOllticas esse sanaes sae 6 HAINES HAGENS Ch Became an eracos cesiwsn cto en p. 509 b. aescala adequada ++ p.523 Go RETIN cnietae crate ore csv coe ser AGERE he GPG Télteunare aepnere even wees p. 543 4G. aespiritualidade eee cece p.553 Bibliografia Citada .. coos p S61 INTRODUCAO "Mas aquilo que se presenta se demora no advento na medida em que também jé sai do desvelamento ¢ desaparece no velamento. O presentemente presente tem a sua propria demora Ele demora no advemo e¢ no desaparecimento. O demorar é a passagem desde 0 vir Para o ir. As coisas que se presentam demoram-se cada una a seu tempo (..). Ta ednta nomeia a harmoniosa multiplicidade do que se demora a seu tempo. Cada coisa que desta maneira se apresenta no desvelamento sempre se manifesta, a seu modo, a todas as outras coisas." (Anaximandro, interpretado por Heidegger)! A questo acerca do tempo € a questo acerca da propria existéncia. Ea questdo acerea daquilo que se apresenta e se demora a seu tempo. E a indagagao sobre o ser do homem, do cosmos, e da multiplicidade das coisas. Ela ¢ também a indagagdo sobre 0 set do que indaga, a questao acerea da Propria consciéncia. De fato, se a consciéncia nos aparece como a capacidade de fixar 0 tempo, Svardando no desvelamento da meméria ou na antecipagio do futuro aquilo que jé (ou ainda) esta ‘elado, ela se apresenta, simultaneamente, como ponto de partida e de chegada da questdo do tempo. Desta forma, se a existéncia (e assim a demora do que se desvela) é um dado empirico, o discurso sobre 0 Tempo, que se confunde com 0 discurso sobre o proprio ‘Ser’, é como no caso da ‘Teogonia apresentada por Jaa Torrano, um "discurso sobre a experiéncia do Sagrado, um discurso sobre © que néo deve ¢ no pode ser dito, quer por ser motivo do mais desgragoso horror (o Nefando), quer Por ser motivo e objeto da mais sublime vivéncia (o Inefavel)." Como seres temporais, transitamos entre a existéncia e 9 continuo desaparecimento (selamento}, a morte, Nos desvelamos em nossa prépria demora, que, como veremos no primeito capitulo, ¢ @ qualidade emergente de uma dada organizagao sistémica, de uma dada autopoiesis, ¢ dsixamos de existir com o fim desta organizaco. Estas duas dimens6es, a vida e a morte, sio as partes ‘nextirpaveis da propria dindmica da existéncia e assim do proprio tempo. Transitamos, assim, | Martin Heiddegger; A Sentenca de Anaximandro; in Os Pensadores/ Os Pré-Socriticos; Sto Paulo: Abril Cultural, 1978, p, 34, constantemente, entre 0 cosmos € 0 caos, 0 Inefével ¢ 0 Nefando. Ademais, enquanto seres conscientes, trazemos dexisténcia tudo aquilo que se desvela em nossa consciéneia auto-reflexiva, aportando, assim, ‘uma nova dimensio a dialética entre o ser e o nada, entre o desvelado e o velado ‘Agora, 0 objetivo do presente trabalho, néo é o de realizar um discurso sobre 0 indizivel, procurando de alguma forma transcender a palavra a partir de um diseurso, seja ele metafisico ou poético, Nao se trata nem mesmo de um discurso filoséfico sobre © tempo (mesmo se toda discusstio sobre 0 tempo, mesmo a mais abstrata levada na linguagem matemitica da ciéncia fisica moderna, ter por si sé uma dimensio filoséfica). Se trata apenas de buscar compreender a dimensio temporal subjacente e inerente a toda organizagdo ¢ dinamica da physis, contrastando esta com a particular concepgio cultural ¢ as préticas temporais associadas a esta concepefo na sociedade capitalista moderna. E a partir deste estudo que buscaremos compreender criticamente como esta temporalidade moderna - com sua dupla cara do que denominaremos fempo mecdnico tempo progressive - hegeménica a nivel de representaglo e organizagao da vida sociel ¢ individual na sociedade moderne, se articula com 0 tempo mais amplo da auto-(re)organizagao da physis como um todo, que denominaremos tempo sistémico. ‘Ao resgatarmos a nogdo de physis neste trabalho, devemos especificar que a consideramos, como na viséo pré-socritica grega, como "a totalidade de tudo o que é."" Neste sentido, "a physis no designa principalmente aquilo que nés, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural. Para os pré-socriticos, jé de saida, 0 conceito de physis ¢ o mais amplo e radical possfvel, compreendendo em si tudo que existe. (..) A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, 0 desabrochar que surge de si proprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-se, pois, de um conceito que nada tem de estatico, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética. (..) Neste sentido, a physis encontra em si mesma a sua génese; ela é arké, prineipio de tudo aquilo que vem 2 ser"* E esta autonomia, globalidade e dinamismo que, de fato, vamos reencontrar como elemento central em nossa discussio e definigdo do tempo sistémico no capitulo primeiro. Em contraste com este, utlizaremos 0 termo tempo mecdnico 20 longo deste trabalho nfo sé por que este tempo abstrato foi, originariamente, medido por um instrumento mecdnico (0 relégio mecdnico, sendo no entanto irrelevante para a nossa definico se esta [jaa Torrano: buroduydo d Teogonia -A origem dos Deuses- de Hestodo; Sto Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1986, p. 11 a Bomiein, Os Filsofos Pré-socrdticos; Sto Paulo Culrix, 1985. Citado em Carlos Walter Porto Goncalves; Os (desjcaminhos do meio ambiente; Sz0 Paulo: Contexto, 1990, p. 30. tots p. 30. E, de fat, esta concepedo profundamentesistémica edialtice da realidade de tudo que existe (incluindo al = uit ¢ a socieéade hurmena em sushistériae cultura), que Tos permitréabordar melhor @ nossa nogao de tempo sisi eertontraposigio a termos como natureza, matérie, etc. profundamente marcados pela visio compartamentalzada da ciencia troderna, com suas rigidas separagBes homern X natureza, objeto X meio, matéria X esprit, ec medida se dé por um instrumento eletrénico ou mesmo atdmico, como atualmente), mas mais fundamentalmente porque é esta a concepeio temporal central & mecdnica newtoniana que, de fato, se tommou o modelo paradigmiético da ciénia modema. Foi, de fato, esta concepsdo mecdinica do universo que, aos olhos da cultura do século XVIIL Tepresentou © triunfo da razio, capaz de identificar as leis universais que regem o universo. Assim, como afirmavam os seus contempordneos, "a natureza € suas leis dormiam escondidas na noite, Deus disse: Que seja Newton, ¢ tudo foi luz."* Newton, her6i nacional em vida, com sua mecénica baseada gm leis fisicas t8o simples quanto clegantes, parecia ter realizado o sonho de conhecimento absoluto e, com ele, @ possibilidade de dominio humano sobre um universo visto como constituide por objetos inertes, 8 mercé das forgas exteriores que sobre estes atuam, determinando suas trajetérias. Nesta concepsdo, bastava conhecer as leis que determinam as trajetorias dos objetos (ideal a ser alcangado Pelo progresso cientifico e, a nivel do imaginério coletivo da época, realizado por Newton) e controlar 8s forgas naturais que sobre eles incidem (ideal do progresso teeno-econdmico), para que a humanidade realizasse a sua predestinapdo dada pela escatologia judaico-crista de senhora da criagao, E desta perspectiva mitologica que podemos compreender a imensa ascendéncia e importancia que teve sobre a cultura da época a sintese newtoniana (ascendéncia esta que, como veremos, segue ecoando ao longo da época moderna até os dias atuais). Como colocam Prigogine e Stengers, "Newton € © «novo Moisés» a quem foram mostradas as «tébuas da lei. (..) Uma nagdo se reine para comemorar © evento: um homem descobriu a lingua da natureza e A qual ela obedece."* Com a determinagao teérica da existéncia ¢ localizagao dos planetas exteriores do sistema solar no século XIX. antes mesmo de que eles fossem avistados, o triunfo da fisica newtoniana parecia, de fato, estar confirmado, Foi neste contexto histérico que Laplace, com sua metéfora do deménio onisciente, nos Iegou uma das representagdes mais acabadas do ideal de um conhecimento e de um dominio absolutos sobre 0 universo visto como mecnico ¢ composto por objetos desprovidos de qualquer resquicio de autonomia. "Uma inteligéncia que, em um dado momento, conhecesse todas as forgas que animam a natureza € a posicdo relativa dos seres que a compdem, e, além disso, se ela fosse o suficientemente ampla para submeter estes dados & andlise, abarcaria em uma mesma férmula © movimento dos maiores corpos do universo € o movimento do mais leve dtomo, Nada seria incerto para ela ¢ tanto o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos."” | Projeto de epigraft para Isaac Newton, morto em 1727, escrito por A. Pope e citado em Ilya Prigogine e Isabelle Stenger; La Nowvelle Alliance; Paris: Gallimard, 1996, p. 57. thid, p57. 7 Pierre Sisnon, Marques de Laplace; Essai philosophique sur les probabilités; Paris: Courcier, 1814, citado em Etienne Klein; Le Temps; Paris: Flammarion, 1995; p. 28. 3 Foi este paradigma mecanicista, com sua particular concepgdo de um tempo mecdnico € exterior, que passou a ser a base paradigmética niio s6 da fisica e das demais ciéncias ditas exatas, como também das ciéncias humanas e, particularmente, da economia e assim da forma como esta legitimiza o sistema industrial e o livre mercado emergente, questo na qual nos aprofundaremos mais no final do capitulo IIL. Em contraste com esta concepgdo exterior do tempo, veremos que 0 que estamos denominando tempo sistémico ¢ que procuraremos fundamentar a partir da discussao da organizagao da dinmica dos sistemas fisicos, biolégicos, sociais ¢ culturais no primeiro capitulo, emerge como um tempo essencialmente interno, marcado, além disso, por uma irredutivel imeversibilidade e abertura ao novo, & evolugdo. E esta evolugo, nenhum deménio, por mais onisciente que seja, pode determinar a priori Como colocam Prigogine ¢ Stengers, "Jonge do equilibrio, a homogeneidade do tempo se encontra, de fato, duplamente destruida: pela estrutura espago-temporal ativa que dé ao sistema 0 comportamento de uma totalidade organizada, caracterizada por um ritmo ¢ dimensdes intrinsecas; ¢ também pela histéria que esté por detras da aparigdo de tais estruturas."* Este tempo sistémico se refere, assim, a um tempo essencialmente qualitative, e heterogéneo, inerente a dialética de auto(re)organizagao dos sistemas. Ele se refere a irreversibilidade dos processos fisicos ¢ assim & introdugdo na explicagio fisica mesma do componente histérico ¢ evolutivo, em oposigao ao paradigm newtoniano que, em sua busca de um saber absoluto e universal, ao ser transposto as ciéncias humanas, extirpou destas a dialética histérica levando 4 busca de leis universais, atemporais, no dominio das proprias ciéncias historicas E esta fundamentagao centrada na andlise da dinamica da physis, encontrada nos estudos de Prigogine € de diversos outros autores, que nés procuraremos desenvolver ao longo do primeiro capitulo (procurando realizar ai uma pequena sintese destas diferentes discussdes, bem como destacar os elementos centrais destas andlises para a nossa critica ¢ discussdo nos capitulos subseqilentes). ‘io se trata, assim, de procurar fundamentar este tempo sistémico no discurso dos filésofos e nem na concepgdo € praticas particulares de outras culturas ndo-modemas (0 que néo significa que tanto 0 discurso filos6fico, quanto 0 discurso antropoldgico nio estejam de certa forma presentes como um importante contraponto para a nossa discusséo ¢ que no possamos encontrar concepgbes que vao de encontro a esta visto em diversos filésofos ¢ culturas). Esta fundamentagdo na physis de nossa concepgao de tempo sistémico significa também, como coloca Luhman, que "o coneeito de sistema denota algo que é realmente um sistema € portanto assume a responsabilidade de verificar as suas * Prigogine e Stengers, op. cit. p. 228, préprias proposigdes" Estamos nos referindo, portanto, nfo a uma maneira de conceber 0 tempo a partir de uma perspectiva sistémica, mas fundamentalmente as caracteristicas sistémicas da realidade como tal e assim de um tempo cuja realidade deve ser afirmada e verificada em termos desta realidade mesma. Desta forma, as discuss6es ¢ a re-leitura do processo de evolug&0 nos primeiros dois capitulos procuram, antes de tudo, apresentar elementos para esta fundamentagiio empirica da nogao de rempo sistémico. Ao partir de uma fundamentagio fisica do nosso conceito de tempo sistémico, devemos, antes de mais nada, considerar a inevitével referéncia a relatividade geral de Einstein, uma vez que o seu nome, a nivel do imaginério coletivo, ficou indissociavelmente associado @ nogdo de uma revolucao na concepedo moderna de tempo. O que Einstein mostrou em sua teoria da relatividade, basicamente, foi a indissociabilidade do tempo ¢ do espago, tendo estes que ser vistos como um continuo espago-temporal € ndo como entidades separadas (e separdveis), conforme o representava a mecdnica newtoniana. Toda medigo temporal esté, assim, condicionada pelo referencial espacial e do movimento relativo que descreve 0 observador em relagdo ao objeto ¢ aos demais referenciais de medig&o. Decor, dai, a idéia da relatividade do tempo, jé que diferentes referenciais resultam em medigdcs distintas. E, desta perspectiva, na medida em que um rel6gio - seja ele qual for: mecfnico, atémico ou biolégico - nada mi é que um instrumento de medigéo, o seu 'tempo' esté condicionado pelo seu referencial espacial € pelo seu movimento relative. Rompendo com a nogao de um tempo absoluto € unico de Newton, Einstein apresentou a possibilidade de diferentes tempos associados a diferentes coordenadas espaciais, a diferentes movimentos relativos.” Indo mais além, em sua teoria da relatividade geral, Einstein estabeleceu a indissociabilidade deste espago-tempo da matéria ao incorporar a gravidade nao como uma forga de atragdo entre corpos, mas sim como uma curvatura, uma alteragdo do continuo espago-tempo em fungao dos processos materiais. Desta perspectiva, nas palavras do proprio Einstein, "as propriedades geométricas do espago nao séo independentes mas sim condicionadas pela matéria. Nao se pode, portanto, afirmar nada sobre on a estrutura geométrica do mundo se nao conhecemos antes o estado da matéria."'! A matéria (indis- * Niklas Luhmann; Sociedad y Sistema: la ambicién de la teoria; Barcelona: Ediciones Paidés, 1990, p. 41. °° Este resultado da teoria da relatividade ja pode ser comprovado experimentalmente em relogios atOmicos embarcedos em vides supersonicos ¢, antes disso, levou o fisico francés Paul Langevin a propor o denominado ‘paradoxo dos gémeos’, pelo qual, em uma hipotética viagem de um dos dois gémeos pelo espago com uma velocidade préxima & da luz, a0 retomar & terra ele se encontraria mais jovem que o seu irmao que, relativamente a este, permaneceu em repouso. Vide, para estes exemplos, Etienne Klein; Op. cit, pp. 43-51 " Albert Einstein; La relativité; Paris: Petite Bibliotheque Payot, 1991, p. 132. Este resultado da relatvidade geral também ja {i diversas vezes confirmado, sendo a primeira e mais importante aquela obtida a partir da observacdo da curvatura da tajctoria ‘da luz a0 atravessar 0 espaco-tempo curve do sol, observada no eclipse de 1919 por uma expedigdo britdnica enviada a A\rica, ‘Outras previsbes, como o fato de que as érbitas planetirias ndo seguem as trajetérias newtonianas, sofrendo alteragdes 20 longo do tempo devido & proximidade com 0 sol (ou seja o quo curvo esté 0 espago-tempo nestas regides), bem como a previsio de s sociavel, ademais, da energia como demostra a célebre igualdade E=MC”) nao existe, assim, no espago € no tempo, mas molda e determina o préprio continuo espago-tempo que, por sua vez, determina as trajetdrias e as dindmicas em seu interior. Como resume Hawking, "o espago e tempo so quantidades dindmicas: quando um corpo se move ou uma forga atua, afetam a curvatura do espago e do tempo e, inversamente, a estrutura do espago e do tempo afetam 0 modo em que 0s corpos se movem e as energia atuam. O espago € 0 tempo nao sé afetam, como também so afetados por tudo que ocorre no universo.""? Apesar destes elementos revoluciondrios na visio de Einstein em relagdo as. teorias newtonianas, a ruptura deste com o tempo mecdnico de Newton foi na verdade bastante parcial, na medida em que o tempo pera Einstein segue sendo visto como uma entidade abstrata, um pardmetro Puramente matemtico, exterior e fundamentalmente reversivel. Como coloca Klein, "a fisica contempordnea continua dolorosamente dividida entre os dois pilares do pensamento grego: de um lado Parménides (ca.515-ca.440 @.C.), 0 filésofo do ser e da imobilidade fundamental, e de outro lado 0 seu contemporiineo, Herdclito (ca.550-480 a.C.), 0 fildsofo do vir-a-ser e do movimento. (...) De um lado aquele que inclui Isaac Newton e Einstein, partidirios de uma erradicag&o do tempo na fisica, e de outro aquele que conta com fisicos como Ilya Prigogine, convencidos de que a irreversibilidade se encontra em todos os niveis da fisica."® “Lagrange ¢ também ’Alambert, na Enciclopédia, jé haviam adiantado que a duraggo e as trés dimensdes espaciais formam um todo de quatro dimensées. De fato, afirmar que o tempo nao é nada mais que um parimetro geométrico que permite medir desde o exterior e que, enquanto tal, esgota a verdade do movimento de qualquer ser natural, eis ai quase uma constante da tradigdo na fisica depois de trés séculos.(...) Em nossa época, Einstein encarma com maior vigor a ambig&o de eliminar o tempo. (...) Uma cena que ocorreu na Sociedade Filoséfica de Paris no dia 6 de abril de 1922 € bem conhecida. Henry Bergson argumentava, contra Einstein, a multiplicidade dos tempos vividos coexistindo dentro da unidade do tempo real, defendendo a evidéncia intuitiva de que estas miiltiplas duragdes participam de um mesmo mundo. Leiamos a resposta de Einstein: ele rejeita, sem apelo, por incompeténcie o «tempo que © tempo é mais lento quanto mais préximo se est de um campo gravitacional, também puderam ser confirmadas cexperimentalmente, sendo esta tiltima de fato um elemento central para a preciso dos sistemas de navegagdo a distancia atuais, 48 que um segundo medido por um relégio no espago néo coincide com o segundo medido sobre a tera... Para esta discuss, vide por exemplo Stephen Hawking; Historia del Tiempo; Barcelona: Critica, 1996, pp. 31-48. "Op. cit, p. 44. "Op. cit, p. 23. Devemos acrescentar que a critica de Prigogine & nosao abstrata, exterior e reversivel do tempo mecanico s¢ estende também a fisica quantica classica, que também néo se desvinculou do tempo newtoniano ¢ assim contribui para a polarizagdo entre as “duas culturas” que Prigogine busca acercar em uma ‘nova alianga’, Prigogine e Stengers, op. cit. 6 dos filésofos», convencido de que nenhuma experiéncia vivida pode salvar aquilo que nega a ciéneia."* Para compreender melhor esta postura de Einstein, € interessante lembrar suas confissdes de carter pessoal e cientifico a0 afirmar que "... um dos méveis mais importantes que impulsionam em diregdo a arte ¢ a cigncia é o desejo de escapar da existéncia terra-a-terra, com o seu doloroso gosto amargo € 0 seu vazio desesperador, escapar das correntes dos desejos individuais, etemamente mutiveis, Ele impulsiona os seres sensiveis para fora da existéncia pessoal em diregao ao mundo da contemplagéo e do conhecimento objetivo." Podemos encontrar outra passagem reveladora na mensagem de condoléncias escrita por Einstein a vitiva de Michele Besso, um dos seus amigos mais intimos e cujas preocupagdes quanto 4 questo da irreversibilidade e da morte e como esta se articularia coma teoria fisica sempre foram consideradas por Einstein como vis e equivocadas, Quando da morte do seu amigo, Einstein afirma, "Michele me precedeu por pouco para deixar este mundo estranho. Isto no tem nenhuma importancia ja que para nés, fisicos convictos, a distingao entre pasado, presente ¢ futuro no é mais que uma ilusdio, mesmo se ela € to persistente."" Citamos estas passagens porque ¢ justamente este distanciamento do mundo real, com as suas vicissitudes, transformagées, contradigdes ¢ sua pulsdo vital que encontraremos como um elemento central em toda busca de objetividade cientifica e, em tiltima andlise, na concepeao central a modemidade de um tempo abstrato, neutro, reversivel, absoluto e exterior aos processos e a realidade fisica. ‘A nivel pessoal podemos observar que esta busca de exteriorizagao, como no caso de Einstein, representa freqiientemente uma busca de seguranga, de prote¢do frente ao mundo marcado pelas contradigées, 0 amélgama do nefando e do inefivel de que nos fala a Teogonia e também 0 mito de Dionisio (que veremos no capitulo I, ao analisarmos a concepio dialética do tempo). E isso, mais ainda, na época modema, como reagdo as forgas de destruigdo € criagdo inerentes ao processo de modernizagdo, de um processo em que tudo que é sdlido se desmancha no ar, conforme discutiremos com mais detalhes no capitulo IV. 4 a nivel coletivo, enquanto elemento central da razo instrumental, esta concepgao de um tempo abstrato ¢ exterior se articula 4 concepgdo de um tempo linear progressivo, a outra cara da temporalidade modema, e que esta na base do mito modemo de progresso e do desenvolvimento, isto &, a idéia de que o avango das forgas produtivas humanas - a partir do avango ™ riya Prigogine e Isabelle Stengers, op. cit, p. 365, citando Henry Bergson; Mélanges; Paris: P.U.F., 1972, pp. 1340-1346. °S Tia Prigogine e Isabelle Stengers, op. cit, p. 48, citando Albert Einstein; Prinzipien der Forschung, Rede zum 60 Geburtstag von Max Planck, (1918) in Albert Einstein: Mein Weltbild; Ullstein Verlag, 1977, p. 107-110. ™ Prigogine e Stengers, op. cit., p. 366, citando Albert Einstein e Michel Besso; Correspondance Albert Einstein-Michele Beso, 1903-1955; Paris: Hermann, 1972. 7 da ciéneia e da técnica, permitiréo um crescente controle, por parte da humanidade do seu meio natural, bem como uma regulacio crescente das relagdes sociais por uma progressiva racionalizagao destas. Como veremos, particularmente nos capitulos III e V, a0 negar a autonomia essencial dos sistemas (isto é, a interioridade do que estamos denominando tempo sistémico), esta concepeao de um tempo mecdnico permite considerar tanto os homens (enquanto forga de trabalho ou enquanto massa), quanto 0 meio fisico como estando constituidos por objetos inertes, cuja determinagdo é dada pelas forgas externas que sobre estes atuam. E ao perfeccionar estas forcas e ao aumentar o controle sobre as energias que, em Ultima andlise, 0 mito de liberdade no sentido moderno se pode coneretizar: 0 progresso realizaria a nivel coletivo 0 que os cientistas e artistas, na concepgo de Einstein, buscam a nivel individual: a emancipagdo humana das vicissitudes naturais, da sua ‘lei da selva’ com suas forgas itracionais e incontroladas, em clara oposigéo a ordem, harmonia e ao controle racional que caracterizaria, nesta concepedo, a civilizagéo humana. Ja Francis Bacon (1561-1626), nos primérdios da revolugao cientifica moderna, propunha nao s6 0 controle € © dominio do homem sobre a natureza, como deste sobre os elementos irracionais da sua propria natureza. Como 0 coloca Marshall, "«Conhecimento poder» declarou Bacon em 1597. (...) A ciéncia, ele argumentava, vai restaurar 0 dominio do homem sobre 0s animais que ele perdeu depois da Queda. (...) Bacon considerava a natureza incompleta e corrompida, sendo dever do homem transformé- la e melhord-la. O homem no é apenas o rei da criagdo. E 0 seu principio de ordem: «O homem, se olharmos em termos de causas finais, pode ser visto como 0 centro do mundo. Se retirarmos o homem do mundo, o resto pareceria afastado do bom caminho, sem objetivo ou propésito ... e levando a nada. Pois © mundo inteiro trabalha junto a servigo do homem e nao ha nada no mundo de que ele nao possa desfrutar ou obter algum uso... Tanto que todas as coisas parecem seguir os interesses do homem e no © seu préprio interesse.»"” Para Bacon, em relagdo a sua propria natureza, "o homem tem um espirito ou razao que o faz ser semelhante a Deus e um apetite corporal que o assemelha aos animais. © homem de virtades deveria, portanto, buscar «uma vitéria sobre sua propria natureza» e «transformar e dominar a natureza» tanto interna, quanto extema a ele mesmo." E, portanto, neste ideal baconiano de emancipagdo, controle ¢ aperfeicoamento de uma natureza corrompida, imperfeita, objetificada e a servigo do homem que podemos ver um elemento central da concepgo modema de progresso, ideal este que encontrou na concepeaio mecanica do tempo a base de sua legitimagao. "Peter Marshall Nature's Web - Rethinking our Place on Earth; Armonk-New York: 1996; pp. 183-184, As citacies de Bacon se referem a Francis Bacon; Works of Francis Bacon; in_J. Speedding. E.L. Ellis e D.D. Heath (Editoves): 1857-9: vol. VIL, p. 283 e vol. IV, p. $17. * Ibid. p. 184, citando Bacon ‘Of studies, ‘Of Nature in Men'; Essays, The Wisdom of Ancients, The New Atlantis; Oldham Press, sd. pp. 134, 168, 8 "A revolugdo cientifica do século XVI ¢ XVII é uma das principais fontes da visio do mundo ocidental dominante. Enquanto que os gregos viam a natureza como um imenso organismo vivo, a cigncia do século XVII descobriu um mundo de matéria morta em movimento. Ao retratar 0 mundo como uma maquina governada por leis universais que devem ser pesadas, medidas e classificadas para serem compreendidas, os filésofos e cientistas abriram o caminho para a civilizacdo industrial e mecdnica moderna. Esta revolugo cientifica marcou uma transformagao radical na nossa relago com o mundo natural, nao mais considerado como a morada sagrada da humanidade e sim como um recurso a ser usado. Ao insistir em uma rigida separacdo entre o observador e 0 observado ela alienou ainda mais 0 homem da natureza, (...) Em um duplo proceso, ela no so dessacralizou a natureza, como também conferiu 20 homem um enorme poder sobre esta." Desta forma, é, paradoxalmente, justamente este ‘tempo frio' do relégio que esté na base da razo instrumental modema, que vai liberar as gigantescas forcas de transformacao, 0 ‘tempo quente’ do processo de modernizacdo, da transformagao irreversivel ¢ progressiva do mundo e do proprio homem. Podemos, assim, identificar aqui um elemento central desta dialética entre o tempo mecanico e 0 tempo do progresso ¢ da modemizacdo: estas duas caras da temporalidade modema, se reforgam mutuamente na medida em que foi a concepgdo mecanica que liberou as forgas da modemizagao das suas amarras éticas, morais e culturais anteriores, ao mesmo tempo em que € neste tempo neutro, abstrato e absoluto, que o homem busca refiigio das vicissitudes, de uma realidade marcada por ferro € fogo pelo processo de modemizagao e transformagdo incessante e cada vez mais acelerada (capitulo IV). Agora, eles também se negam, na medida em que estas forgas da modemnizagao liberadas geram ‘uma realidade marcada ndo pelo equilibrio, mas pela transformagio, contradizendo, assim, uma nogdo homogénea, universal e imutivel do tempo. Para vermos esta contradigao, basta, por exemplo, pensarmos no fosso que separa as érbitas placidas e regulares do universo newtoniano, da realidade em convulsao das revolugdes burguesas e da revolugdo industrial, do sangue e fogo que marcou o processo que Marx denominou de acumulacao primitiva, em cujas convulsdes histéricas Newton viveu. Frente & realidade histérica marcada pela irmupgao auténoma (¢ descontrolada) de processos revoluciondrios uma profunda transformaso da organizagao e da dindmica social anterior, os corpos newtonianos, em suas trajet6rias inerciais - perturbadas apenas por alguma forga exterior que sobre eles incidisse - realmente parecem pertencer a outra dimenstio. E este mesmo fosso que separa o paradigma mecanicista - com os seus movimentos reversiveis - da realidade histérica capitalista que, como jé sinalizou Marx, se caracteriza justamente por sua esséncia revolucionéria, de continuas e progressivas transformagées de cardter irreversivel. Enquanto Newton nos fala de uma eterna repetigao das érbitas planetirias, Marx aponta para uma hist6ria que s6 se repetiria enquanto farsa. Podemos, assim dizer, que 0 tempo 'frio’ da concepgo e o tempo ‘quente' em que este se realiza na realidade historica, aparecem como faces de uma mesma moeda, negando e engendrando-se reciprocamente. As contradi¢ées que podemos apontar entre estes dois pélos, no entanto, nao impediram que a fisica mecdnica se tornasse hegeménica nfo s6 no interior da fisica, como também que ela se constituisse na referéneia paradigmatica para as demais ciéncias, inclusive nos casos como a biologia e as ciéneias sociais em que 0 objeto de estudo (os seres vivos ou os sistemas sociais) claramente naio podem ser equacionados a objetos passivos descrevendo trajetérias inerciai: Nesta dialética entre as priticas sociais associadas ao proceso de modemizago e a concepgiio mecanicista que se torna hegeménica nas ciéncias, 0 que podemos observar, de fato, é uma crescente alienagao entre o saber e a realidade histrica que este, supostamente, procura aprender. Em sua busca por um saber objetivo e universal (atemporal ¢ a-espacial, j4 que relativo a todas as realidades, tanto no espaco quanto no tempo), esta ciéncia exclui, em tltima andlise, a propria capacidade de se compreender 0 processo da evolugo, da vida em sua constante criagdo, transformacdo, ireversibilidade e complexidade. Exclui também a possibilidade de se compreender a dinémica da realidade historica e 0 cardter complexo e aberto a emergéncia do novo dos processos sociais, conforme vVeremos no primeiro e no segundo capitulos. E esta incapacidade da raz3o instrumental (para retomar o conceito de Habermas que discutiremos no capitulo V) de compreender a dialética do todo e assim 0s efeitos sistémicos dos atos baseados nesta razio (isto € 0 proprio processo de modemizagio e © progresso das suas forgas produtivas e sua crescente transformag&o do meio), que est, como veremos neste capitulo V, em grande parte na base do que diversos autores denominam a 'sociedade do risco’ atual. Agora, a partir dos riscos crescentes e da (re)produg&o de uma realidade cada vez mais complexa, interdependente e instével trazidos pelo aprofundamento do processo de modemizagio, emerge cada vez mais um critica nos diferentes ramos do saber do paradigma mecanicista reducionista, na medida em que este é incapaz de dar conta desta realidade. E, nao por acaso, na propria fisica - ciéncia por exceléncia da modernidade e base tedrica da sua concepedo temporal - esta critica e cambio paradigmético - trazido, principalmente, pelas discuss0es atuais em torno da termodindmica - se apresenta, antes de tudo, como critica da concepgao mecanica do tempo ¢, assim, da base epistemoldgica nao s6 da fisica, como também das demais ciéncias modernas e, em tiltima andlise, da propria modemidade. E é nesta critica e apresentagdo de um novo paradigma que este trabalho, de fato, * Tbid., p. 168. 10 pretende se inseri, trazendo estas discuss6es e reflexdes para o contexto das cineias sociais ¢ do atual momento de crise da modernidade que vivemos. Este novo paradigma , traz em seu bojo uma concepsao temporal que, 20 no negar a interioridade do tempo, a auto-organizasdo dos sistemas, a ‘meversiblidade ¢ a novidade do desabrochar da piysis, coloca no s6 os limites da propria ciéncia modem, como também do processo de modernizagio e progresso nela calcado, ao mesmo tempo em ane ele aponta, do ponto de vista social e politico, para a possibilidade (e necessidade), de solugdes descentralizadas, de baixo-para-cima, em oposicio ao controle centralizado, heternomo, buscado pelo provesso de modemizagio e capitalizagao da realidade. Podemos ver, assim, que passados pouco mais de dois séculos que o iluminismo colocou as bases do ideal moderno de emancipaeao humana das vicissitudes naturais a partir da busca de controle do seu meio ¢ que a revolugao tecno-cientifica abriu as portas para uma transformacio sem precedentes deste meio, mais do que na sonhada libertago, a sociedade contempordnea parece ter desembocando na catdstrofe, na crise ecolégica generalizada e na denominada sociedade do risco. Frente a ela, cada veo tals vores, ao reconhecer a interioridade a abertura inerente aos sistemas, apontam para a irrealizabilidade deste ideal de controle externo do meio pelo homem. Como coloca O'Connor, "de fato, em relagdo a qualquer tentativa de determinago, os elementos da natureza, seja ela humana ou nfo, formalmente capitalizada ou nao, contém em si um cabal excesso de potencialidade, um capricho, uma ilegivel ambivaléncia, miltiplas possibilidades latentes (0 acidente ¢, portanto, um sinal da nao realizagio e da imealizabilidade do ideal capitalista (e socialista ttadicional) de uma perfeita funcionalidade. Os fendmenos de saqueio e revolta, catastrofe e acidente, ¢m sua peculiar ‘falta de sentido’ sio, portanto, co-produzidas ao longo do processo de racionalizagao cia natureza pela tecnologia." "Da mesma forma em que a sociedade, ao se normalizar, faz surgir na sua periferia todo tipo de loucos e de anormais, a raziio e © dominio técnico da natureza criam a sua volta a catistrofe ¢ 0 desfalecimento como imacionalidade do «corpo orgénico da natureza» - 'rracionalidade insuportavel jd que a razao se quer soberana e no pode nem mesmo conceber aquilo que Ihe escapa. E esta néio tém solugto, jé que no existem mais, para nés, rituais propiciatérios ou de reconciliagao: 0 acidente, como @ morte, é absurdo. Um ponto e nada mais. E uma sabotagem."™ Desta forma, para a razo modema, é como se "um deménio maligno esteja ai para que esta maquina tao bonita sempre descarrile." Emerge, assim, "a parania da razo, cujos axiomas suscitam 0 absoluto ininteligivel, a Morte como inaceitavel ¢ insohivel, 0 Acidente como perseguigdo, como Martin OCennor: Codependency and Indeterminacy: A Critique of the Theory of Production; In Capitalism, Nature Socialism. n° 3.1989; p. $6 * Jean Baudrillard; L’échange symbolique et la mort; Paris: Gallimard, 1976, p. 246 UL resisténcia absurda e maligna de uma matéria, de uma natureza que nfo quer se submeter as leis cobjetivas» as quais ela foi confinada."* E a impossibilidade de se conceber os acidentes, as crises ¢ as contradi¢des no interior da razio jluminista - a nfo ser negativamente, como irracionalidade ou sem-sentido - que faz com que na ‘sociedade do risco atual’ as contradigées decorrentes das préticas modernas sejam potencializadas a nivel da concepso. "Esta cultura racionalista, assim, esta sujeita, como nenhuma outra, @ parandia coletiva. O menor incidente, a menor irregularidade, a menor catastrofe, um tremor de terra, uma casa que cai, o mal tempo - € preciso que exista um responsavel - tudo € atentado."* ‘Agora, ¢ importante notar, neste sentido, que a 'sociedade do risco atual’ se da a dois niveis e que estes se reforgam mutuamente: a nivel da aceleragdo © generalizagiio dos processos de ‘modemnizagio, aumentando as contradigdes dos sistemas (conforme discutiremos, particularmente, nos capitulos IV e V) e a nivel da subjetividade moderna, em que a falta de controle ¢ interpretada como pura negatividade. Neste sentido, ela ndo parece ser inteiramente imputavel ao sistema em si (como parecem crer diferentes visbes catastrofistas), nem pode ser reduzida & subjetividade humana, ao paradoxo citado por Tenner de que " .5s vamos indo melhor, mas nos sentindo pior. Esta dimenso subjetiva do risco modemo, que Tenner denomina ‘efeito vinganga mental’ - reflete, em grande medida, uma conseqiiéncia do caréter alienado e desenraizado da existéncia ‘moderna, além do caréter difuso, impalpavel e tecnificado dos riscos atuais. Assim, como veremos - perticularmente no capitulo V - a generalizasao de um estado de riscos difusos e determindveis apenas por intermédio de sistemas de deteoso técnica e modelos cientificos abstratos, aliada a uma maior alienago do individuo com relag&o ao seu meio - um meio cada vez mais tecnificado € composto por mege-sistemas que escapam compreenso ¢ ao controle individual - dao origem a um estado generalizado de ansiedade psicolégica e de inseguranga, fazendo com que 0 projeto iluminista de ‘emancipagdo e supremacia da razo desemboque em novas formas de fantasmas e de medos em relagao 20 meio. Agora, por mais objetivo ¢ racional que possa parecer 0 discurso em que estes medos se apresentam, eles representam a irrupgdo (€ a supremacia?) de novas formas de irracionalismos. de novas formas de projegdes inconscientes sobre o meio. Ou, para citar outra vez a andlise que faz Baudrillard, "é de se notar que nés voltamos, em pleno sistema da razio e em plena conseq{iéncia logica deste sistema, visto ‘primitival de imputar todo evento - € a morte em particular - & uma vontade hostil. Somos nés € s6 n6s que estamos em plena primitividade (aquela com a qual ridicularizamos os primitives para exorcisé-los), ja que esta concepgaio no caso dos primitivos Ibid,, pp. 246 e 247. Ibid, p. 246. 2 respondia A légica das suas relagdes reciprocas ¢ ambivalentes com tudo que os cerca (...), enquanto que para nés ela é francamente paralogica, representa a parandia da razio".* Porém, apesar dos riscos modemos apresentarem de forma indissociavel este aspecto subjetivo, potencializador e deformador, eles refletem também um aspecto fundamental do que estamos denominando tempo sistémico, que é 0 seu carter aberto, criativo e parcialmente imprevisivel. E ¢ esta abertura 20 novo, incompreensivel a partir da perspectiva mecdnica, linear e determinista da conceps20 temporal moderna, que faz com que toda intervengo na realidade comporte, de forma indissociavel e irredutivel, uma dimenséo de imprevisibilidade e de risco. E ¢ esta distincia entre ¢ concepgao determinista e a realizagdo parcialmente indeterminada da dialética de modemnizagio que faz com que, a nivel do imaginério coletivo, o deménio de Laplace do século XIX seja substituido pelo deménio maligno de Baudrillard. De fato, a propria relatividade de Einstein, conforme nos mostram Prigogine e Stengers, levada as suas tltimas conseqiléncia, nega o esforgo de isolamento e de objetividade que Einstein buscava pelo seu esforgo cientifico, seguindo a tradigao da objetividade classica. "As leis de Newton nio pressupunham que o observador fosse um ser fisico. A objetividade se definia aj pela auséncia de referencial do objeto em relagao a quem o descreve. E se imaginarmos inteligéncias 'nio fisicas’, capazes de se comunicar a uma velocidade infinita, para elas (cujos pontos de vista tém © cariter absoluto que pressupunha a antiga objetividade), as leis da relatividade sao falsas. O fato de que a relatividade se fundamente em restrigBes que s6 séo verdadeiras para observadores fisicos, para seres que s6 podem estar em um lugar por vez e néo simultaneamente em todas as partes, faz desta disciplina uma fisica humana (...) E esta fisica, que pressupde um observador situado no mundo, e ndo 2 outra fisica, teoricamente imaginavel, a fisica do absoluto, que a experimentacdo nfo para de confirmar. O nosso didlogo com a natureza se d4 no interior desta ¢ aqui a natureza s6 responde positivamente aqueles que, explicitamente, reconhecem que & ela pertencem."* Neste sentido, seguindo as andlises de Prigogine, veremos ao longo deste trabalho como "as novas teorias da fisica enriquecem a nossa concepg%o do tempo. Elas introduzem, ao lado do tempo geral, do tempo do relégio, um ‘segundo tempo’, amplo, do devir termodinamico."” E neste tempo mais amplo, que nés estamos denominando tempo sistémico, que @ fisica contempordnea encontra um caminho possivel de reconciliagdo com o tempo intemo dos sistemas, de um didlogo em que o observador nao ¢ mais visto como exterior, porém como parte integrante do proprio proceso que este % Baward Tenner; Why Things Bite Back - New Technology and the Revenge Effect; London: Fourth Estate, 1996, p. 26 % Baudrillard, 1976, op. cit. p. 247. * Op.cit. p. 299. Ibid, p. 291 procura descrever e compreender. A concepedo temporal que emerge destes estudos no nega mais a dialética evolutiva da physis e nem a concepgao temporal que, no ocidente, seguindo a tradigao de Herdclito, desemboca na visto do ‘tempo que é criagdo ou no é nada’ de Bergson ou no tempo do ser de Heidegger. "A fisica atual no nega mais o tempo. Ela reconhece o tempo irreversivel das evolugdes rumo a0 equilibrio, o tempo ritmado das estruturas cuja dindmica se alimenta dos mundos que as atravessam, 0 tempo bifurcativo das evolugdes por instabilidade ¢ amplificagao das flutuagdes e mesmo este tempo microseépico (...) que manifesta a indeterminagdo das evolugées fisicas microscdpicas. Cada ser complexo est constituido por uma pluralidade de tempos, ramificados uns sobre os outros seguindo milltiplas ¢ sutis articulagdes. A histéria, seja de um ser vivo ou de uma sociedade, nunca mais poderd ser reduzida 4 simplicidade monétona de um tempo tinico, tanto se este tempo valora uma invaridncia, quanto se ele traga os caminhos de um progresso ou de uma degradago." * Inspirando-se metodologicamente na teoria dos sistemas e na teoria do caos, a teoria de Prigogine permite romper, de fato, 0 fosso que separava a fisica e as demais ciéncias ditas exatas, das ciéncias da vida, dos fendmenos dinémicos de evoluedo, criago, auto-regenerago e auto-organizago, conforme veremos no primeiro capitulo. Neste sentido, seguindo a linha de reflexao aberta por Poincaré Jéno final do século XIX, Prigogine péde demonstrar que "ressondincias ocorrem em todos os sistemas com interagdes continuas. Os fenémenos descritos pela mecénica newtoniana, em contraste, sto exemplos simples implicando interagdes transitérias tais como choques entre duas bolas de bilhar sem atrito, que so sempre idealizagdes."™ Frente a cles, "o caso geral, no entanto, ¢ 0 dos sistemas em que 2 ‘rajetéria nica no pode mais ser invocada: a tinica descrigfo possivel nestes casos é a descrigtio estatistica, em termos de uma fungio de distribuigao.""" Desta perspectiva, se antes a vida aparecia como um acaso altamente improvével (no caso da fisica cléssica) ou inclusive uma aberragdo (no melhor dos casos proviséria e temporal), ao contradizer © segundo principio da termodinamica, na termodinémica longe do equilibrio de Prigogine, fenémenos de auto-organizagao, qualidades novas emergentes e regeneragfo/evolugo puderam ser demonstradas ndo s6 nos fendmenos vivos da biologia, como também em fenémenos da fisica e da quimica nio animada.’' Como nos lembram Stengers Prigogine, "os processo irreversiveis desempenham um papel ® Ibid. p. 366, Sobre as teorias de Prigogine, em exposigées de cariter menos especializado, vide também os seus From Being to Becoming, San Francisco: Freeman, 1980 e o seu imo livro La Fin des Certtudes; Paris: Ba, Odile Jacob, 1996 5; Prigogine analizado por Frtjof Capra; The Time Paradox; in Resureence,n* 185, nov./dez. de 1997, p. 12. * Prigogine e Stengers, op. cit, p. 344. Lembremos que, no contexto dos estudos de Poincaré, um sistema simples composto por apenas trés corpos planetérios j apresenta flumuagGes devido as interagdes reciprocas entre estas, de forma que neste sistema jé aparece um grau de indeterminagao irredutivel. * Alguns exemplos discutidos por Prigogine sdo os fendmenos dios ‘convecgao de Berard’, pelos quais em um liquido aquecido de forma gradual em um determinado momento se observa um fenémeno espontineo de organizagio das molécules, que passam 2 circular de forma organizada da zona aquecida para as zonas de mais baixa temperatura, acelerando 8 difusto térmica; outros exemplos nos sto dados pelas reagdes quimicas de cristalizago ou no padrlo de formasio dos 14 construtivo. Os processos da natureza complexa ¢ ativa, a nossa propria vida, s6 s4o possiveis porque eles so mantidos longe do equilibrio pelo fluxo incessante que os nutre."= Este processo de vir-a-ser ao qual Prigogine denominou estruturas dissipativas mostrou-se ester mareado por uma essencial ¢ imedutivel abertura a novidade e a indeterminagio. A realidade fisica ¢ Particularmente a natureza emergem como constituidas nao por objetos isolados, passivos e inanimados (¢portanto controlados e controlaveis por forgas externas), mas sim como um todo dinémico em que as partes estéio em uma relago complexa de interdependéncia, a0 mesmo tempo em que cada parte possui componentes de autonomia ¢ de indeterminagio proprios. Do paradigma clissico, da objetividade (Separabilidade), universalidade (leis tltimas), causalidade linear, reversibilidade (tempo exterior, abstrato), simplicidade ¢ controlabilidade, passamos ao paradigma da complexidade com suas componentes de interdependéncia, co-determinagao, continuo processo de transformagio dado pela dialética de (reorganizagao dos sistemas, sua ireversibilidade intrinseca (flecha do tempo da entropia) ¢ da irredutivel indeterminaso (abertura para 0 novo, a evolugao). que procuraremos mostrar no primeiro capitulo é como estes estudos de Prigogine vao, de um lado, inspirar toda uma série de estudos que nos permite compreender de uma nova perspectiva a organizagdo ¢ a dialética da physis e, por outro lado, como estas teorias so congruentes com toda uma ttadigao bastante anterior a Prigogine e linhas de pesquisa que, em muitos casos, se desenvolveram paralelamente aos estudos deste, Em todos estes casos, ao enfocar-se a evolugao sob outra perspective, Janga-se uma luz nova nfo s6 sobre a organizagdo e a dinémica da physis, como também sobre a atual posigéo ¢ articulacdo da espécie humana com ela. Esta nova cosmogénese, como afirma Kauffman, “anuncia um novo lugar para nés, esperados em vez de imensamente improvaveis, em casa no universo de acordo com uma nova concepgao. (...) Entramos em um novo milénio. E melhor entrar com cortés reveréncia pelos sempre mutaveis ¢ imprevisiveis lugares, sempre novos, que produzimos um para 9 outro, Estamos todos em casa no universo, destinados a sacralizar da melhor forma possivel @ nossa curta e tinica estadia."* E € neste concepedo de tempo sistémico que encontraremos uma alternativa ndo sé ao tempo mecéinico, como também ao tempo do progresso, na medida em que este tempo nao nega a evolugao, a continua dialética de transformagdo criativa da physis, nem reduz esta a uma trajetéria linear, tinica ¢ cristais de neve sempre figis a um mesmo padréo e, a0 mesmo tempo, em formas sempre tinieas, infinitamente novas irrepetiveis. Ao nivel de sistemas mais complexos, é © que se observa nos fendmenos atmosféricos e, @ nivel mais global, podemos ver que é este tipo de auto-organizago que parece estar por detras da dinamica biosférica como um todo e de sus capacidade de homeostase, como veremos em nossa discussio das idéias de Vernadsky e da teoria de Gaia no capitulo | * Op. cit. p. 265. > Sat afin: Home nthe Unhese The Strh or Lave of Sf-Orgonsation and Coney, London Penguin Books, 1996, pp. VIII e 30, 1s predeterminada. Como veremos no capitulo I, a evolugdo aparece nao como um progresso linear ¢ determinista, mas sim como uma complexa rede dinémica, composta por imimeros fios, nds interrelagdes, animada por flutuagées intemas, numa eterna danga de mudanga e emergéncia do novo. Neste novo quadro, a physis (Fe)aparece como a antiga representagao do universo hindu sustentado e dinamizado pela danga de Shiva. "Na noite de Brahman, a natureza esté inerte ¢ nllo pode dangar até que Shiva o queira. Ele levanta do seu arrebatamento ¢ dangando lang onéas de som pulsante através da matéria inerte, despertando-a e, Oh!, a matéria também danga, aparecendo com loria ao seu redor. Dangando Ele sustenta as suas miltiplas manifestagdes. Na plenitude do tempo, sempre dangando, Ele destr6i todas as formas e nomes pelo fogo e concede um novo descanso. Isto € poesia, mas nfo deixa de ser ciéncia.” Trata-se de uma danga que ao criar destréi e ao destruir cria, as duas faces insepariveis de uma mesma moeda, como veremos com mais detalhe em nossa discussio sobre a dialética e que vemos plasmada com toda sua forga no mito Dionisiaco, outra magnifica personificagio mitolégica do poder criador do universo, que os gregos antigos também associaram & misica e 4 danga. Como coloca Walter Otto, "toda a intoxicago emerge das profundezas da vida, que se tornaram insondéveis por causa da morte, Destas profundezas vém mtisica - miisica dionisiaca - que transforma mundo em que a vida se transformou em um habito e uma certeza ¢ a morte um mal ameagador. Ela arrasa este mundo com a melodia incomum, que zomba de todas as tentativas de assegurar-se."* Desta forma, "a esséncia divina de Dioniso, a caracteristica basica da sua natureza, foi descoberta: é a loucura. Esta palavre, no entanto, tem infinitamente mais sentidos que uma tempordria ou persistente perturbagdo que pode afetar um mortal e ¢ representada no pensamento grego por uma forga demoniaca chamada Lyssa ou Erynis. A loucura que é chamada Dioniso nao ¢ doenga, uma debilidade da vida, mas uma companheira da vida em sua plenitude. E 0 tumulto que irrompe dos mais profundos recessos quando estes amadurecem e forgam o seu caminho & superficie. E a loucura inerente ao ventre da mie. ‘A. K. Coomaraswamy; The Dance of Shiva; New York: The Noonday Press, 1969, p. 78. Citado em Fritjof Capra; The Teo of Physics; New York: Bantam Books, 1980, p. 230. Como 0 coloca Capra, "Shiva, 0 Dangarino césmico, ¢ talvez @ mais perfeita personificagdo de um universo dinémico. Pela sua danga, Shiva mantém os miltiplos fendmenos do mundo, lnificando todas as coisas mergulhando-as em seu ritmo e fazendo-as participar de sua danga - uma magnifica imagem da unidade dindmica do universo.” Tbid,, p. 177. Jelter Otto: Dionysus - Moth and cult; Dallas: Spring Publications, 1989, p. 140. A reletiva erueza deste deus associado & misica, a danga e 20 éxtase, se o comparamos com a imagem de Shiva dos hindus, pode estar relacionada a observagao de Gro ao colocar que "a plenitude da vida ¢ a violéncia da morte sfo ambas igualmente terriveis em Dioniso. Nada foi atenuado, mas também nada foi distorcido ou transformado em algo fantastico, como seria 0 caso no oriente. Tudo segue @ Inaneira grega de olhar as coisas de frente, representando-as de forma clara e estruturada. Os gregos suportaram esta fealidade em todas as suas dimensbes e a veneravam como divina, Outros povos foram tocades pela mesma entidade € fiveram que responder a ela em uma variedade de representagOes e praticas." Ibid., p. 141. Neste sentido ¢ interessante Sbservar como na india uma série de atributos e caracteristicas de Dioniso estfo plasmados também na figura de Shakti, a Deusa da morte ¢ da vida e que no pantedo hindu representa o principio feminino por exceléncia, Shakti também ¢ 16 Isto afeta a todos os momentos da criago, constantemente transforma existéncia ordenada em caos ¢ conduz na primordial salvag8o no primordial sofrimento e, em ambos, primordial selvajaria da existéncia. (...) A profunda emogo com a qual esta loucura se anuncia se expressa na miisica e na danga.""* Esta loucura representada pela figura de Dioniso, que com sua chegada desarticula todas as estruturas, nos remete a outra caracteristica essencial do tempo sistémico, que é 0 fato de que este traz em seu amago a indeterminago © a abertura ao novo, uma imedutivel parte de acidente imprevisibilidade. Esta indeterminagdo ndo ¢ apenas uma caracteristica dos fenémenos microfisicos, conforme emerge da fisica quéntica, mas também da nossa realidade de macrossistemas ¢ inclusive do simbolo do universo newtoniano, ordenado ¢ previsivel, o nosso sistema solar, jé que sua estabilidade, a longo prazo, no pode mais ser afirmada com certeza.” Como coloca Prigogine, "o segundo desenvolvimento relacionado a reviso do conceito de tempo na fisica foi o dos sistemas instaveis. A ciéncia classica privilegiava a ordem, a estabilidade, enquanto que a todos os niveis de observacao atualmente nés reconhecemos o papel fundamental das flutuagdes ¢ da instabilidade. Associadas a estas nogées aparecem também as escolhas entre milltiplas possibilidades e 0s horizontes de previsdo limitada. (...) Desde que a instabilidade ¢ incorporada, o significado das leis da natureza assume um novo significado. De agora em diante, elas expressam possibilidades."* Reencontramos, assim, em nossa discussio sobre o tempo sistémico uma verdade que jé estava presente na imensa maioria das representagdes ndo-modernas,” que € 0 fato de que o universo no esta constituido por objetos inanimados e discretos (e como tais isolaveis de maneira absoluta), criados para servir a0 homem, mas sim que este é apenas parte de um todo, miltiplo ¢ uno, em que distintas dindmicas se sobrepdem, contrapéem, negam, complementam, fundem ou ignoram, em que as partes em seu devir ¢ suas interrelagdes esto continuamente (re)criando um todo que simultaneamente as condiciona e the escapa ao controle. representada como a mulher de Shiva, com 0 qual aparece entrelagada em profundos abragos sendo, assim, no eonjunto deste casa dialeticamente entrelagado que podemos ver a melhor contrapartida hindu a figura de Dioniso * Ibid, p. 143 * Prigogine e Stengers, op. cit, p. 332. Devemos lembrar que um dos grandes logros da fisica newtoniana, logro que parecia confirmar sua validez universal, foi a determinagdo teérica dos planetas exteriores do nosso sistema Solar, antes mesmo de que estes fossem observados pelos telescdpios humanos. Porém mesmo as érbitas planetérias ndo sto perfeitamente regulares, como nao 0 s8o 0 ritmos de rotardo dos astros. Mesmo estes astros no podem ser considerados como objetos isolados que descrevem trajetorias perfeitamente inerciais no vazio. Tratam-se de sistemas abertos, partes de sistemas maiores em que esto em constante interago com outros e cujas trajetérias © evolusao estio inscritas sob o signo da irreversibilidade e da abertura para o novo, % Prigogine 1996, op. cit, p. 12 € 13. > Uma notavel excesdo € 0 mito da criagdo encontrado na Génesis do velho testamento, em que 0 universo foi criado como objetos para servir ao homem, que, de fato, lhes confere realidade ao nomeé-los. Como veremos (cap. IV), é este mito que esta na base do mito modemo de progresso e que, ao Ser contraposto & visio que emerge da nossa discuss4o quanto 20 0 E esta autonomia interna de tudo o que existe ¢ a abertura da evolugio ao novo que podemos, de fato, encontrar na maioria das concepgdes temporais néo-modemnas, o que leva estas a terem um conceito radicalmente distinto do futuro, que ndo aparece como uma simples 'pagina em branco’, aberta A determinagio humana. E esta interioridade e esta autonomia intrinseca que nés podemos encontrar no que Gault denominou tempo cairolégico. Kairés, para os gregos antigos, significava o tempo aberto para o novo, "um tempo de oportunidades e eventos. E 0 tempo dos tempos certos, o tempo certo para as coisas acontecerem. E mesmo que o nosso sentido dele se encontra atrofiado, ainda temos uma certa nogdo do seu significado. Se sentimos fome e anunciamos 'é hora de comer’, nés nos referimos ao tempo cairolégico. Em contraste, se declaramos, como fazemos normalmente, 'é uma da tarde, hora do almogo,’ nés respondemos ao imperativo do tempo cronolégico: o relogio determina a atividade. (...) Tempo cronolégico é um eixo imével. Somo nés que estamos em movimento: montados na flecha do tempo, nés vigjamos incansavelmente neste rodovia temporal onde as datas so os marcadores de kms. (...) Como somos nés que estamos andando, nés podemos imaginar que podemos controlar a direg4o, a flecha do tempo, e dirigir nosso progresso para a frente. Nos podemos determinar © futuro, podemos planejer. Hoje em dia a previsto e o planejamento s4o to normais, que fica dificil apreciar a sua relativa novidade. No tempo cairolégico, a planificagdo temporal é inconcebivel. Aqueles que habitam o tempo cairolégico nao podem determinar antecipadamente o tempo certo para fazer isto ou aquilo. Eles aguardam um futuro desconhecido e se preparam para responder. A resposta é vital, j4 que o tempo cairolégico entrega nao um presente predeterminado e plenamente formado, mas sim oporunidades & desafios. E a resposta humana as possibilidades que emergem do futuro que produz o presente." E somente em um tempo vazio, desprovido de qualidades intrinsecas, que o futuro pode aparecer como desprovido de substéncia e portanto totalmente aberto a determinagao daqueles que controlam ¢ manipulam as forgas que animam o universo(através da técnica e de fontes externas de energia) ¢ assim determinam a trajetéria de objetos vistos como passivos, a natureza e a propria sociedade. E esta a base epistemol6gica da engenharia ¢ do planejamento e, em tiltima andlise, da razao instrumental como um todo, A liberdade, conceito central da modemidade, aparece assim como liberdade de dominar, isto é, a liberdade do sujeito as expensas do objeto. J4 no interior de uma cultura cairolégica ¢ conforme emerge da nogdo do tempo do devir termodinamico de Prigogine, a liberdade aparece como algo tempo sistémico, nos da a disténcia que separa esta nogo de progresso € evolugdo da nogdo de evolugdo subjacente & visio do desabrochar do tempo sistémico. intrinseco € central a todos e a cada sistema, base mesmo da possibilidade de evolugdo e mudanga. Enquanto que na modemidade a evolugio aparece como uma trajetoria linear de causa e efeito - A semelhanga dos movimentos newtonianos - sendo o ser humano 0 tinico sujeito potencialmente livre, da perspectiva do tempo sistmico a evolugto aparece como dialética complexa de co-evolugées de miltiplos sistemas interdependentes ¢ interrelacionados, caracterizados cada um por uma irredutivel autonomia. A prépria separado em termos absolutos de sujeito e objeto deixa de ser possivel, jé que um se define em relagdo a0 outro, Neste sentido ¢ interessante observar, como nos lembra Goncalves, que "a visto tradicional da natureza-objeto versus homem-sujeito parece ignorar que a palavra sujeito comporta mais de um significado: ser sujeito quase sempre é ser ativo, ser dono do seu destino. Mas o termo indica também que podemos ser ou estar sujeitos - submetidos - a determinadas circunstancias (..). O sujeito pode ser o que age ou o que se submete. A agdo tem a sua contrapartida na submissdo, a palavra sujeito denota tanto aquele que se afirma como um sujeito frente ao objeto, quanto aquele que esté sujeito a0 poder de outro." “! Se encontra, portanto, nesta palavra, tanto a dominago, como a subordinagao (ou seja, a idéia de co-dependéncia), ao contrdrio da leitura moderna que considera 0 sujeito unilateralmente, como sendo o ser humano potencialmente livre pelo processo de modemizagio, que 0 coloca em posic¢ao de dominio sobre a natureza objetificada. © que veremos, particularmente no primeiro capitulo, é que o vir-a-ser da physis, como o definiu Morin, esta baseado em uma constante desorganizago/reorganizagao da sua organizagao ou, analogamente, na capacidade de autopoiesis, termo introduzido por Maturana ¢ Varela, que denota a capacidade de auto-criagdo ¢ auto-reprodugio dos sistemas vivos. Se trata, assim, de um tempo essencialmente qualitativo, relacional e imeversivel, em oposig&o ao tempo do relégio da mecénica clissica, puramente abstrato, quantitativo, extemo (e portanto separado) e idealmente reversivel Enquanto neste itimo os objetos se movem no tempo, ao longo de uma linha temporal, no primeiro os sistemas so essencialmente temporais, sendo que do seu processo de organizagao/desorganizacio intema e de sua dialética com o seu meio, emergem qualidades sistémicas novas que, como o rio de Hericlito, jamais se repetem na mesma configuracdo, devido tanto a irreversibilidade que caracteriza a dialética de cada sistema, quanto & continua transformago do todo em que este sistema esti inserido. Prigogine estudou estas evolugdes em termos de trajetérias bifurcativas, apontando para uma constante ¢ irredutivel abertura dos sistemas, cujas trajet6rias no podem ser definidas de forma absoluta a priori, podendo apenas ser descrito a posteriori em fungao das trajetérias ‘optadas’ a cada “ Richard Gault in and Out of Time, in Environmental Values, 1° 4.1995, p. 135 e 156. Besta nogdo de "tempo ceno, da abertra para o novo que 0s cristdos primitivos vao abragar ao intrptetar kar como o momento chegado pars 2 nova cra vista como o advento da verdade crit. * Goncalves, op. cit, p. 27 19 momento, Assim como na microfisica quintica o determinismo teve que ser substituido pela descrigao estatistica, também nos fenémenos macro estudados por Prigogine, o determinismo da fisica newtoniana, plasmado no onisciente deménio de Laplace, aparece como um caso particular, idealizado, que s6 pode existir em ‘situagdes de laboratério', nas quais os objetos podem ser isolados de todo tipo de influéncias perturbadoras e esto sujeitos a forgas determinadas e isolaveis. E, desta forma, no contexto ndo sé dos estudos inspirados nas idéias de Prigogine, como também de uma ampla tradigtio que é bastante anterior a Prigogine e que, em alguns casos, desembocou em estudos paralelos aos de Prigogine, que podemos reencontrar a imagem de uma physis viva, dindmica e animada a partir de uma temporalidade interior, criativa e auto(re)organizativa da qual nos falam os mitos de Shiva/Shakti, Dioniso e a grande maioria das representagdes temporais ndo- modemas. £ esta visio também que emergird da nossa discussio da cosmogénese no capitulo I, seguindo as discusses metodolégicas de Morin, a vistio de autopoiesis de Maturana ¢ Varela, a nogdo de ‘degraus de complexidade' de Reeves, a biogeoquimica de Vernadsky e as discusses em torno da teoria de Gaia. Sobre esta base desembocaremos (capitulo II em diante) na nossa discussao quanto & centralidade que assumem nas distintas praticas e dinamicas sociais as diferentes concepgdes temporais e, particularmente, a concepgao temporal modema, dividida entre as aparentemente contraditorias nogdes do tempo do progresso, da eterna transformagdo (capitulo IV) e do tempo abstrato do reldgio, 0 tempo mecdinico do universo newtoniano, da eterna repeti¢ao (capitulo IID). que veremos no capitulo I, estudando a cosmogénese centrada na dialética sistémica ¢ como 20 longo da evolugao do universo a matéria se organiza de formas cada vez mais complexas, no que Reeves denominou degraus da complexidade ¢ que Morin estudou em termos de sistemas de sistemas de sistemas... Mais do que uma evolugio linear e tinica, o que observamos so derivas estruturais em que a matéria e a energia estio em uma constante transformagio e fluir de uma forma @ outra, em distintas historias e fios que se cruzam, sobrepdem, complementam, negam, fundem, bifurcam, diverge, convergem ou ainda seguem em paralelo. Mais do que por objetos, a physis esta constituida por sistemas organizados, que, nesta organizago, mantém a sua identidade na mudanga. Enquanto os seus elementos constituintes (ou, para ser mais preciso, subsistemas constituintes) estéo em um constante processo de transformagao, surgimento, decaimento e substituigdo, a identidade do todo se mantém enquanto propriedade emergente de uma dada organizagao. Assim como uma onda no mar est, a cada momento, constituida por novas moléculas as quais vai deixando para tras em seu avango, também um ser vivo mantém a sua identidade ao estar continuamente mantendo invariantes (ou estiveis dentro de certos pardmetros) as relagdes entre elementos, apesar de estes serem, continuamente, novos. E neste tipo de organizagao que Morin denominou organizagao ativa (em 2» oposigao a organizagdes passivas, rigidas como em uma rocha, por exemplo) que podemos identificar jum aspecto fundamental, qual seja: a abertura relativa dos sistemas ao seu meio e a centralidade que assumem para a sua organizac&o as interrelagdes que se estabelecem (tanto intemas, entre os seus componentes, quanto externas, com o seu meio). Prigogine denominou estes sistemas ativos de estruturas dissipativas, jé que se tratam de sistemas cuja identidade dindmica se nutre de um continuo fluxo de matéria c/ou energia que os atravessa, Neste processo observamos uma dissipagdo desta matéria e/ou energia (um aumento na entropia do sistema como um todo), porém podemos observar também uma redugdo local da entropia, com a constituico de um sistema ordenado e que, em sua deriva, pode eventualmente organizar-se em sistemas de complexidade crescente. Uma estrutura dissipativa é, assim, capaz de manter a sua identidade e a sua organizagao em um estado de baixa entropia, longe do equilibrio termodinamico de alta entropia. E 0 equilibrio de uma truta que nada pelo rio, por exemplo, mantida num estado dinémico pela sua (auto)organizago intema alimentada por um continuo fluxo de matéria ¢ energia que a atravessa. No outro polo, encontramos a pedra que repousa no fundo do lago, num equilibrio estitico que ndo necessita nenhum aporte de energia e de matéria externa para se manter neste estado e que s6 se altera pela incidéncia de forgas externas: uma correnteza ou 0 focinho da truta procurando o alimento escondido na sua base. Como veremos neste primeiro capitulo, partindo de uma origem comum do universo,? observamos como a propria materialidade das particulas surge como uma emergéncia da organizacao do sistema atémico. Nesta proceso, com a formagdo dos primeiros étomos leves, podemos observar um primeiro nivel de complexidade que se d4 ao nivel da fenomenologia fisica. Com a atuacio da forea eletromagnética e a forca da gravidade, a matéria passa a organizar-se no interior da fenomenologia fisico-quimica, na qual se formam, no nivel das macro estruturas, os conglomerados césmicos, com os seus aglomerados de galaxias, sistemas solares ¢ sistemas planetérios, com os seus diferentes dtomos e moléculas, em uma organizagao material de complexidade crescente. Desies primeiros dtomos leves, uma parte é transformada em elementos mais pesados no interior das fornalhas estelares pelo processo de fuséo atémica, sendo expelida por uma explostio de supernova ao espago. E esta matéria que serviré de base material para a formag&o de novos sistemas solares, entre 08 quais 0 nosso, que ja alberga no seu interior uma série de elementos quimicos mais pesados e © Seguiremos, em nossa discusso, 0 cendrio atualmente mais aceito na cosmologia, o cenario do ‘big bang’, pelo qual 0 Universo atual tem a sua origem em um ponto de singularidade, porém poderiamos também identficar estes distintos niveis de complexidade em um corte no tempo, isto é, em um dado momento ao observarmos como as distintas fenomenologias se dao na organizagio do sistema solar, da Terra, da vida sobre a Terra e na sociedade e cultura humanas. Ao privilegiar uma andlise evolutiva, isto é, histérica, queremos ressaltarjustamente a dimensdo temporal deste processo, com sua dimensio de irreversibilidade, de criacdo e de destruigdo. Esta discussio, no entanto, também & compativel com diversos outros cenzrios ccosmogénicos evolutivos. 21 complexos. Na Terra, algumas destas moléculas, em sua deriva estrutural, ao se combinarem com outros elementos e/ou outras moléculas, eventualmente desembocaram em uma cadeia molecular orgénica, isto é, uma molécula composta nfo apenas por poucos atomos, mas por uma cadeia (ou melhor, rede) molecular cujas configurages e desenhos potenciais so virtualmente infinitas. Entramos aqui no dominio da bioguimica. Como seguiremos analisando com mais detalhes no capitulo I, na deriva estrutural de algumas moléculas bioquimicas, estas, a0 se combinarem com outras e/ou ao incluirem novos elementos em sua organizagdo, desembocam em uma organizagio em que os préprios elementos constituintes do sistema participam ¢ catalisam as reagdes e os processos da sua (re)ctiagio. Atingimos, neste ponto, uma clausura operacional na qual, na definigo de Kauffman, observamos um sistema aufo-catalitico ou, no classico termo introduzido por Maturana e Varela, emerge uma organizagao autopoiética.® Penetramos. desta forma, no dominio da fenomenologia bioldgica, da vida, em que um sistema ¢ simultaneamente produto e produtor de si mesmo. Esta organizapao interna e dindmica da matéria abre um novo leque de possibilidades na organizagao dos sistemas materiais, um novo degrau na complexidade da organizayao das estruturas dissipativas em sua deriva estratural. Nesta deriva, algumas organizagées unicelulares procariontes se combinam em relagdes simbidticas estreitas com outras, a tal ponto que desta relagdo deriva uma fusdio da qual emergem as células eucariontes. Esta nova ‘individualidade composta’, ao possuir um micleo claramente delimitado, abre a possibilidade de uma transmissao nuclear da informagdo genética e, assim, o estabelecimento de ‘uma sucessio bioldgica centrada na transmissGo/transformago(parcial) da informag&o genética de uma gerago a outra, Abre-se a porta para a evolugdo biolégica de caréter cumulativo, na qual transformagSes na organizago de determinada linha, positivamente selecionadas, se estabelecem e se transmitem. Nestas sucessbes de geragSes de seres unicelulares, alguns em sua deriva estabeleceram relagdes recorrentes com outros, em um novo processo simbiético, que desembocou em organismos multicelulares. Na deriva evolutiva destes multicelulares podemos observar uma variedade crescente de formas e espécies, algumas das quais passam a se reproduzir de forma sexuada ¢ em outras ainda as relagdes recorrentes entre unidades autopoiéticas da mesma espécie abriram o campo para uma novo degrau na complexidade da organizagao material, que ¢ 0 campo da fenomenologia social. Nesta organiza¢ao social dos seres vivos, a identidade de cada individuo é ao mesmo tempo a base para a constituigao do todo social, como também é dada ou moldada por este. A nivel microsocial podemos ver esta emergéncia no muituo acoplamento estrutural entre individuos, necessdria para permitir o fenémeno da 2 Teprodugo sexual e, em alguns casos, a criagaio dos filhos. A nivel coletivo, observamos este fendmeno na formagao das espécies sociais, como por exemplo os insetos sociais e nés mesmos, a espécie humana, em que niio s6 a reprodugo como também a propria existéncia se dé em um contexto social A este nivel da organizacao, a identidade e a deriva estrutural de cada sistema vivo é dada nao s6 pela sua heranga filogénica (isto é, a deriva estrutural biolégica 4 qual ele pertence) como também pela sua interagao e insergdo no todo social, isto é, a heranga cultural coletiva do grupo social a0 qual cle pertence. Conforme discutiremos no capitulo Il, estas interagdes do individuo com o seu meio social se 4 no dominio da comunicayfo, que pode ser tanto de carter fisico-quimico, a trofolaxis predominante nos insetos sociais, quanto de carter auto-reflexivo, no dominio lingtiistico proprio aos seres humanos. Em todos estes casos, no entanto, 0 fundamental é ver que a autopoiesis se dé no interior do dominio cultural, isto é, de uma transmissdo de informagdo e de uma heranga exosomitica, que tanto precede, quanto sobrevive aos organismos individuais. Podemos ver como, em algumas espécies sociais, este acoplamento comunicativo passa a se dar de forma cada vez mais plastica, permitindo uma variedade de formas e, principalmente, uma variedade crescente de condutas ¢ de comportamentos que, cada vez mais, se dao no campo das condutas adquiridas (a partir da informagdo cultural exosomatica) e ndo das condutas inatas (endosomaticas, geneticamente predeterminada) Em uma destas derivas (ou algumas, se pensarmos por exemplo nos Neanderthalensis), esta comunicagdo desembocou em uma linguagem na qual a propria comunicag&o passa a ser um objeto passivel de uma descricao extema, isto é, de uma descrigdo semantica. Emerge, nesta deriva, a capacidade auto-reflexiva, uma consciéncia consciente de si mesma, um organismo que se apreende como sujeito. Penetramos aqui em um novo dominio de complexidade, que é o da fenomenologia auto- reflexiva, Neste ponto, passamos a ter uma fenomenologia cultural que se dé no campo da auto- reflexividade, no campo do simbélico. E é neste campo do simbélico que se abrem as portas para uma maior variedade de representagdes da realidade ¢, assim, um novo campo para a evoluedo cultural. Estabelece-se, assim, uma dialética nova entre a concepgdo ¢ as praticas sociais, entre a feoria ¢ a praxis, na qual cada uma ¢ simultaneamente produtora ¢ produto da outra, ao mesmo tempo em que ambas dimensées guardam um grau de autonomia propria e irredutivel. Nestes distintos niveis (ou no que Reeves denominou degraus de complexidade), o que podemos observar ¢ que cada nivel, ao mesmo tempo em que representa uma descontinuidade frente 20 anterior, uma ruptura dada pela emergéncia do novo, representa uma continuidade, na medida em que nao nega os niveis anteriores nos quais est fundamentado. Tratam-se, assim, de relagdes dialéticas, nas © do grego autos, proprio, e polesis, criago, quais cada nivel esta simultaneamente em relaao de continuidade e descontinuidade com os anteriores, de complementaridade ¢ negag&0. A. propria fronteira entre estes niveis, como veremos, representa uma relagdo dialética na medida em que estes niveis se entrelacam e excluem. Assim, por exemplo, autopoiesis humana se da simultaneamente enquanto organizagdo fisico-quimica da matéria e da energia, fenomenologia biolégica de um ser vivo em sua autopoiesis, fenomenologia culturel de um ser social ¢, finalmente, se dé no marco da auto-reflexividade, de um ser que, dentro da linguagem, é consciente de si mesmo e capaz de realizar descrigdes seménticas do mundo de que ¢ parte (ou inclusive de criar mundos em sua criag&o poética). Somos, como dizia Morin, simultaneamente "um ser totalmente bioldgico e um ser totalmente cultural." Dentro da auto-reflexividade cultural, das representagdes humanas e do significado que adquirem determinados objetos, determinados ritos determinadas crengas, veremos a importincia central para a organizagao social e assim para a deriva estrutural de determinado grupo socio-cultural, da representagao historicamente especifica do tempo, a forma como cada grupo representa nao sé a dinamica temporal do todo, como também a sua propria dindmica e insergao nesta. E esta concep¢ao ¢ representagéo temporal especifica que dé o referencial cultural tanto da posigao (e funcao) que assume cada membro da sociedade no interior do todo social, quanto a posi¢&o (¢ fungi) deste grupo social no interior da dialética da physis como um todo, Esta representagdo temporal e as praticas a ela associadas sto, em resumo, um elemento central tanto para a dindmica e a organizagio do todo social, quanto para a deriva ecoldgica de determinadas sociedades no seu meio, ponto central para a nossa discussio a partir do ponto IIb. do capitulo II. Veremos, desta forma, nesta discussio sobre o tempo sistémico a importéncia de uma continua recursividade entre os distintos niveis e sistemas, pela qual um novo nivel ndo so se fundamenta e emerge a partir de um nivel anterior (€ portanto se dé no interior desta legalidade), como também retroage sobre este, transformando-o profundamente. Assim, para dar um exemplo, a feromenologia biolégica, ao emergir da fenomenologia fisico-quimica enquanto uma organizagdo dinémica, auto(re)produtora de si mesma, de um lado se dé claramente no interior da legalidade das leis fisicas e, de outro, ao retroagir transforma profundamente esta fenomenologia fisica. Nao sé cria um campo interno ao organismo, fechado e controlado pela sua autopoiesis em que se dio as reegdes fisico- quimicas ‘em condigées de laboratério', gerando novos compostos materiais, como também catalisa, transforma e provoca determinadas reagdes externas ao organismo, alterando o seu meio fisico. Neste processo emerge toda a capacidade de sintese de compostos orginicos e de tecidos vivos no interior dos “ Edgar Morin, La méthode: 2. La Vie de la Vie; Paris: Seuil, 1980, p. 418. Lembremos que, no contexto da discussto de Morin, estes termos podem ser lidos na linha da nossa discussto como englobando e se referindo a um ser ‘otalmente fisico ¢ 4 organismos, a manutengo de uma homeostasis e de um controle ativo da temperatura interna ¢ também externa dos organismos, conforme veremos com a Teoria de Gaia. Mantém-se também os diferentes niveis criticos tanto das atividades metabélicas, quanto das concentragdes de determinados elementos através da fisiologia do vivente, Além disso, ocome também, a nivel exosomitico, uma transformag&o ativa do seu meio que vai desde a erosao fisica acelerada pela vegetagio e pela aco da fauna, os ciclos Ae circulago material ¢ energética nos ecosistemas locais, etc., até a transformasdo e manutengio de diversos niveis eriticos (temperatura, concentragéo ambiental de diversos elementos, concentragao ¢ composicao de gases atmosféricos, circulagdo ¢ reciclagem material no interior e entre diversos ccosistemas, etc.) na geofisiologia da Terra como um todo. Discutiremos, neste sentido, no primeiro capitulo, como a Tera, a partir da emergéncia da Tenomenologia biol6gica no seu interior, emerge como uma estrutura dissipativa que, coletivamente, apresenta niveis de organizagao material e energética cada vez mais complexos ¢ representa, assim, no interior do nosso sistema solar, uma negentropia crescente, alimentada pelo fluxo de baixa entropia da radiagdo solar que continuamente a attavessa. A partir do segundo capitulo, veremos como o mesmo Processo de transformagio e expansdo das possibilidades de um nivel anterior, sem no entanto negar- the a sua legalidade, pode ser observado na organizagdo social humana, em suas distintas historias, culturas ¢ derivas estruturais. Observaremos como a cultura, longe de negar a natureza jé que emerge ¢ se fundamenta nesta, retroage sobre ela ao transformar profindamente ndo sé a sua temporalidade (alterando, por exemplo, 0 ritmo ¢ © funcionamento da selegio natural das espécies que passa a ser tanto selegao natural, quanto selego cultural), como também a propria forma em que se organize a biologia em determinado contexto cultural. Veremos como a evolugao humana passa a se dar tanto no interior e a partir do contexto biolégico, quanto a partir € no interior do contexto cultural. Desta forma, na linha das idéias de Morin, Geertz, Maturana e Varela, poderemos ver que as interrelages que se estabelecem entre estes niveis, a partir da fundamentagfo ¢ retroagdio de um sobre o outro, fazem com que seja impossivel separar estas insténcias na medida em que a deriva estrutural humana passa a ser uma deriva bio-cultural. Neste sentido, a atual magnitude que adquire a transformagao exosomitica do meio pela sociedade humana, nada mais € do que um exemplo dramético desta interconexdo, interdependéncia ¢ co-determinagao entre os distintos niveis da organizag&o sistémica, apontando para © fato de que se um subsistema nao se mantém no interior de determinados parémetros nos seus efeitos sobre 0 meio, cle pode estar ameagando 0 seu préprio acoplamento estrutural & este meio transformado, como ocorreu com os primeiros seres abidticos que (re)produziram um meio no qual o oxigénio passou 4 ser preponderante e como parece estar ocorrendo hoje com a espécie humana, (re)produzindo cada totalmente auto-reflexivo, ven mais um meio que ameaca a sua sobrevivéncia biolégica e socio-cultural. Sao estas consideragbes sobre 05 equilibrios e as escalas adequadas do funcionamento dos sistemas que constituirdo, de fato, © miicleo dos nossos argumentos no capitulo V e nas conclusdes. Procurar estudar os distintos niveis sistémicos nas suas interrelagdes € nfo enquanto estanques, separados € separaveis implica, do ponto de vista metodolégico, considerar diversos autores © disciplinas que, em nossa tradigo cientifica modema, seguiram evolugdes desconectadas ¢ separadas, eqentemente em um profundo desconhecimento umas das outras. Como veremos ao longo deste trabalho, apesar de considerar autores to dispares quanto @ origem académica (fisicos, bidlogos, gedlogos, antropélogos, socidlogos, filésofos, economistas e um largo etc.), nfo deixard de ser fascinante como estas distintas discusses desembocam em uma visio coerente da organizagio dinémica da physis, em um quadro novo sobre a evolugdo ¢ a posi¢ao do homem no seu interior. Esta Visio rompe radicalmente com 0 quadro que, no entanto, segue sendo hegeménico na ciéncia contemporanea. No entanto, cada vez mais, nds podemos encontrar, inclusive no interior da academia, autores ‘indisciplinados’, que rompem com 0s limites estreitos e especializados dos diferentes ramos do saber modemo e que apontam para os limites do paradigma dominante, cada vez mais incapaz de dar conta da realidade dindmica, complexa e interdependente que emerge cada vez com mais forga do proprio proceso de modemizagdo. Neste processo, 0 que podemos observar, de fato, é como, por todos os lados, o paradigma dominante da moderidade se vai erodindo, num processo que, de forma alguma, é alheio @ crise mais ampla do projeto de modemizago e progresso ao qual a ciéncia modema (ou, em termos mais amplos, a razSo instrumental) esteve e esta vinculada. Como veremos ¢ procuraremos argumentar neste trabalho, esta crise de civilizagao atual €, antes de tudo, uma crise da representago temporal que Ihe serve de alicerce. De um lado, um dos seus pilazes, a nogdo de progresso, esséncia do projeto de modemizagio, ameaya cair seja em seu pélo contrério (catastrofismo ou a nogo de um ‘progresso negative’), seja em sua negagdo ora nostélgica (romantismo), ora inmovilista (ideia de parar o progresso, subjacente a visGes como 'erescimento zer0', etc,), De outro lado, podemos observar que o outro pilar da representago temporal modems, 0 tempo mecinico de Newton, se vé questionado no s6 no interior da propria fisica,"* como também fora desta na medida em que esta nog de tempo € incapaz de servir de base analitica para a compreensio da dindmica de um mundo em crescente ritmo de transformagao ¢ interdependéncia, Neste sentido, nfo deixa de ser paradoxal que possamos observar como, fruto de pouco mais de dois séeulos de um processo de modemizagao acelerada, centrada no tempo mecénico, emerge uma realidace global que, 26 paradoxalmente, escapa tanto & descrigdo analitica, quanto ao esforgo de se controlar e manipular esta realidade a partir desta concepco temporal modema, conforme analisaremos no capitulo V. Esta contradigao entre, de um lado, a nova realidade que emerge do processo de modemizagao @, por outro lado, a razo instrumental que Ihe serve de base epistemoldgica, se pode ver claramente se pensarmos, por exemplo, em duas das grandes questdes ecolégicas atuais: o problema das mudangas climéticas e a questo da perda da biodiversidade. Ambas questées, no seguem uma trajetéria linear, reversivel ¢ previsivel, estando marcadas pela interdependéncia e co-determinagdo dialética entre distintos niveis e vari is, pela irreversibilidade das dinamicas envolvidas e por uma irredutivel parte de imprevisibilidade e de acidente. Em relagao & mudanga climética, podemos ver que modelos lineares so incapazes de dar conta das dindmicas atmosféricas mais basicas, e muito menos das complexas interdependéncias biosféricas responsaveis pelas dindmicas atmosféricas e assim da evolugao do clima no médio e no longo prazo (ou, como se guarda em diversas linguas como no portugués, do fempo que fara). Além disso, a especializagao académica inviabiliza a compreensio de como este tempo que faz é afetado e, por sua vez, afeta as distintas dindmicas biolégicas, sociais e culturais. Em poueas palavras, a visio mecanicista e reducionista ¢ incapaz de apreender as complexas relagdes que se dio entre os distintos niveis da physis e, particularmente, a relagdo entre 0 fempo que orienta a organizagdo social moderna e 0 tempo que faz em cujo interior esta se desenvolve e que esta, cada vez mais, altera. O mesmo se pode dizer da perda na biodiversidade, j4 que esta implica nao sé numa perda de informacao genética, que poderia ser utilizada pela razZo instrumental para produzir novos compostos bioguimicos, como também - ¢ de forma muito mais fundamental - numa transformagao importante dos elementos constituintes das distintas derivas das espécies ¢, a nivel coletivo, dos processos biosféricos como um todo. ‘Na medida em que, como veremos no capitulo I, o ‘meio ambiente’ nao ¢ uma realidade estatica na qual se dé a evolugo das espécies, mas uma realidade dinémica co(re)produzida pelo conjunto dos fendmenos bidticos e abidticos que constituem a biosfera, e na medida em que a evolugio ¢ a constituigo da identidade de cada espécie se dé a partir das suas relagdes com este meio (sendo que, para cada ser, os demais so parte constituinte do 'seu meio ambiente’), @ extingio, transformacéo ou ainda a introdugo de uma espécie nova (fenémeno que se acelerou enormemente com 0 desenvolvimento da 'revolucdo verde' na agricultura e, mais recentemente, pelos avangos na engenharia genética) implica ndo s6 uma transformagzo, de maior ou menor grau, do préprio meio ¢ de sua dinémica, como também uma transformagao das condigdes de existéncia das demais espécies ¢, assim, ' primeiro pela teoria da relatividade ao postular um tempo relativo ao referencial de observagao e portanto proprio a cada processa, em seguida pelas descontinuidades e a indeterminag2o observada a nivel quintico ¢ Finalmente, de forma frontal 7 a sua dindmica e identidade. Neste sentido, a extingdo de espécies ou a introdugdo de uma espécie nova em determinado ecosistema, adquire 0 seu verdadeiro significado nfo na consideragao da espécie em si, mas em fungao das suas relages com as demais e com o conjunto da dialética sistémica na qual vai muito esta se insere. Assim, com relago aos seres humanos, a perda de uma determinada espé além do seu valor instrumental como recurso genético, podendo representar o desaparecimento de um elemento central da organizagao de determinados grupos socio-culturais, tanto a nivel de recurso basico para @ sua organizagdo social (determinada pesca, caga ou cultivo, determinada fonte energética ou mesmo de um ecosistema em seu conjunto), quanto a nivel simbélico (ao se tratar de espécies que desempenham um papel simbélico importante na identidade e coesdo de certos grupos). Mais ainda, indo além destas consideragdes de carter antropocéntrico, o desaparecimento de determinadas espécies ©u ecosistemas pode representar a perda de elementos que desempenham papéis centrais na manuteng2o dos processos e equilibrios biosféricos, levando a uma restruturacao radical de sua organizagdo ¢ dindmica. Esta nova dindmica ambiental acaba retroagindo sobre todas as espécies que fazem parte deste meio, expandindo 0 processo de extingio a um niimero crescente de espécies em um processo de retroalimentacao positiva pelo qual os desequilibrios em um elo da rede acabam repercutindo sobre os demais. Desta forma, se por um lado, conforme veremos no capitulo I, as condigGes para a emergéncia de processo vivos s40 muito mais 'esperados' do que se pensava ¢, coletivamente, Gaia se caracteriza por sua resisténcia e capacidade de recuperago, 0 que se discute hoje em tomo da preservarao da biodiversidade ndo € 0 valor monetério (ou monetarizavel) desta ou ‘aquela espécie ¢ também nio €, no outro extremo, a preservagao da vida sobre a Terra. O que se discute € a destruigo da riqueza e da complexidade evolutiva eriada a0 longo dos milénios e as profundas reperouss6es que esta pode ter tanto a nivel local dos diferentes ecosistemas, quanto da biosfera como um todo. E, finalmente, de uma perspectiva antropocéntrica, se discute a manutengdo das condigdes de existéncia, se ndo da vida humana no seu conjunto, pelo menos das condigdes de existéncia de determinada organizagdo cultural ¢ social capaz de promover o florescimento das potencialidades humanas. ‘Como veremos em alguns exemplos a partir do capitulo Il, a histéria esta recheada de casos em que determinadas dindmicas socio-culturais humanas, ao ultrapassarem determinados limites ecologicos, acabaram minando as condigées materiais (e simbélicas) da sua propria existéncia. E, no caso do ser humano, a prépria complexidade bio-cultural da sua existéncia (com suas instituigdes, crengas, valores, etc.) faz com que estes processos de degradagto possam ser muito mais espetaculares € acelerados, na medida em que se criam ciclos de retroalimentagao positiva entre a crise Pelo tempo mais ampio do devir termodinamico que estamos discutindo brevemente aqui. 28 ecolégica/econémica com uma crise a nivel das suas instituigdes e valores, conforme veremos no exemplo paradigmatico da queda da civilizagao polinésia na Ilha da Pascoa e cujos primeiros sinais ja podemos ver no atual momento de crise civilizatéria. De fato, como veremos, a partir da perspectiva do tempo sistémico, 0 que caracteriza a evolugao nao é um tempo linear exterior ao longo do qual os distintos objetos evoluem, mas sim uma complexa rede em que cada subsistema participa tanto da produgdo do todo de que € parte, quanto é o produto da dialética das relagdes entre este todo (meio) e a sua organizagdo interna. A evolugdo, como veremos, literalmente se produz a si mesma, em um processo de acoplamento e deriva estrutural entre os seus distintos elementos constituintes. A perda de determinado elemento pode significar, assim, a impossibilidade de manutengao de determinada organizagao e, portanto, das propriedades emergentes associadas a esta. A profundidade e a complexidade desta problematica so pode ser abordada © compreendida a partir de uma concepeo temporal sistémica, j4 que a abordagem linear ¢ mecanicista tende a escamotear a problemética ao reduzi-la a uma mera questo instrumental e monetaria, do valor econdmico (potencial ou nfo) de determinados recursos. E neste sentido que faremos a critica da no¢ao de valor na economia modema no final do capitulo III, mostrando como esta ciéneia se fundamenta na concepeto mecdnica do tempo, sendo incapaz: de dar conta das dialéticas sistémicas que sustentam tanto a ‘economia’ da biosfera, quanto a prépria economia humana. Finalmente, esta andlise nos leva a considerar, j4 nas conclusdes, a questo fundamental da escala adequada, dos equilibrios ¢ limites que no devem ser franqueados, em oposi¢ao 20 ideal de progresso e de acumulagdo ilimitada da modemidade. Isto nos levara a considerar, nestas conclusées, a necessidade de uma ética da escala, centrada no sistema ¢ nio no objeto/individuo, como ocorre com a ética e a nogio de valores da modemnidade. Uma tltima consideragao metodolégica que se impée nesta introdugao se refere a0 uso dicotomizado que estamos fazendo dos termos tempo sisiémico e tempo mecdnico ¢ progressive da modemidade. Como nos lembra Barbara Adam, a maioria dos estudos nas ciéncias sociais sobre 0 tempo do ‘outro! "se caracteriza por um trago comum: elas dicotomizam as sociedades entre tradicionais © modemas, nas quais as primeiras so construidas em oposi¢ao 4 imagem dominante do nosso 'tempo ocidental!."* Esta forma de construir o tempo do ‘outro! ignora a concepsdo temporal, culturalmente determinada, do proprio pesquisador e cria, assim, uma relagio de poder desigual, na medida em que esta forma de encapsular a concepgio temporal culturalmente determinada destas outras culturas em uma categoria tinica, freqiientemente nos fala mais dos pressupostos temporais (implicitos) do pesquisador, do que das miltiplas e variadas temporalidades destas distintas sociedades. Esta reducdo a 2» uma simples categoria, que ignora tanto a diversidade cultural entre distintas sociedades, quanto as suas dinémicas histéricas ao longo do tempo (nas mudangas intemnas das praticas e concepgdes temporais de cada grupo), faz com que a historicidade destas sociedades seja negada. Todas elas sdo representadas como existindo em um nico e homogéneo tempo tradicional, o tempo ciclico do etemo retorno e da etema repeticao, em contraposi¢ao ao tempo linear histérico, evolutivo da sociedade ocidental. Esta concepgao reduz as demais sociedades a objetos vazios, ahistéricos ¢ portanto desprovidos de uma autonomia € dinamismo préprio. Perdidas em seu sono eterno, estas sociedades se encontram 4 mercé de serem despertadas pela expansio espacial da sociedade ocidental, trazendo (¢ impondo) a sua propria historicidade e légica temporal, da mesma forma em que a ‘natureza' objetificada pelo paradigma mecanicista se encontra a mercé da razo instrumental ¢ das forgas produtivas modemas, dispostas a submeté-la a ordem do progresso da civilizagao ocidental... Analogamente, ao construir aqui @ nossa argumentac&o sobre a centralidade da concepso temporal mecanica para a modernidade, também n&o podemos esquecer que "ndo existe um tempo ‘unico, mas uma multiplicidade de tempos que se interpenetram e permeiam a nossa vida quotidiana."” Isto, portanto, ¢ verdadeiro tanto para as sociedades nao capitalistas, quanto para a sociedade capitalista modema. Distintos padrdes temporais, qualitativos, quantitativos, intemos, extemos, lineares, sistémicos, mutaveis, estéveis, etc., podem ser identificados em toda atividade concreta, seja no ‘trabalho fabril, seja na organizagao para a caga em sociedades cagadoras e coletoras ou ainda na caca enquanto esporte ou lazer na sociedade moderna. O que muda é a intensidade entre estas distintas dimensbes ¢ as relagdes que entre estas se estabelecem. Neste sentido, os nossos dois termos fempo sistémico ¢ tempo mecdnico devem ser compreendidos enquanto construgao analitica (no sentido dado por Weber a sua nogao de tipos ideais, que como tais nfo existem em seu estado puro na realidade, porém nos permitem langar uma luz analitica sobre a realidade concreta)."* Como colocam Prigogine e Stengers, "a natureza 4 qual a nossa ciéncia se dirige hoje em dia ndo € mais aquela que podia ser descrita por um tempo invaridvel e repetitive, nem aquela cuja evolusdo podia ser resumida por uma fung#o monétona, crescente ou decrescente. Nés exploramos, de agora em diante, uma natureza com evolugdes multiplas e divergentes, que nos leva a pensar no em um tempo as expensas de outros, mas sim na coexisténcia de tempos irredutivelmente diferentes ¢ articulados."* Isto significa que estes diferentes aspectos e dimensées temporais so uma parte integrante do que estamos denominando tempo sistémico, em contraposigao a unidimensionalidade da ‘Barbara Adam; Timewatch - The Social Analysis of Time; Oxford: Blackwell Publishers, 1995, p. 28. © ibid, p. 12. S Max Weber; The Theory of Social and Economic Organization; New York: Free Press, 1969, capitulo I: The Fundamental Concepts of Sociology, pp. 87-157 30 definigdo temporal mecénica, que reduz o tempo a sua dimensto quantitativa ¢ quantificavel, pensando este como uma entidade externa, abstrata e tinica. O tempo sistémico se caracteriza justamente por sua multidimensionalidade, em que continuidade (evolug4o) e descontinuidade (revolugdo/ruptura), qualidade e quantidade, o vir-a-ser eo durar, etc., devem ser vistos como pares dialéticos, que simultaneamente se negam ¢ se complementam. Neste sentido devemos considerar também como a dimensdo mecénica (abstrata, quantitativa ¢ exterior) se articula dialeticamente com a dimensdio auto- organizativa, qualitativa ¢ interna dos sistemas. Isoladas, estas duas dimensdes parecem negar-se mutuamente, porém, enquanto par dialético, ambas s6 existem em fungdo e em relagdo uma com a outra. E nesta interdependéncia e exclustio miitua que devemos compreender o tempo dialético do vir-a- ser sistémico, conscientes de que cada situagdo concreta esté permeada ¢ constituida por estas miiltiplas dimensées. O que, podemos observar, ¢ que ambas as dimensGes esto na base de dois paradigmas distintos © opostos. De um lado o paradigma da simplicidade, da objetividade e do comportamento simples (¢ determinado) e, de outro lado, o paradigma da nova ciéncia da complexidade e da dialética sistémica. Como notam Stengers e Prigogine, "a primeira, a sintese newtoniana, nfo podia estar completa: a forga de interag4o universal, cujo comportamento é descrito pela dindmica, é incapaz de dar conta do comportamento complexo ¢ irreversivel da matéria. Como nos tempos de Newton, duas ciéncias se véem confrontadas: a ciéncia da gravitagdo, que descreve uma natureza intemporal ¢ legal, ¢ a ciéncia do fogo, a quimica. Ignis mutat res, nés ja citamos este antigo lema, os corpos quimicos so as criaturas do fogo, as criaturas do devir irreversivel. Como franquear este abismo que separa o tempo dos processos complexos € 0 tempo que reduz tudo a identidade da lei, a ciéncia do devir e a ciéncia do ser, Guas cigncias que tudo opdem e no entanto descrevem © mesmo mundo?" Nesta oposigdo, no entanto, o importante a notar ¢ a predominancia da multidimensionalidade do tempo sistémico inerente a dialética da physis, em que a dimensdo mec: ‘ica, quantificavel, aparece como um dos seus aspectos menores, em contraste com a hegemonia (no sentido gramsciano do termo), que assume a temporalidade mecdnica e progressiva no interior do sistema industrial capitalista modemo, organizado em tomo das relagdes de livre mercado, Assim, enquanto que em uma realidade constituida por sistemas dindmicos, ativos, 0 tempo mecdnico na base da mecdnica newtoniana nos aparece como um caso particular, € esta concepsdo e légica temporal que esté na base da organizagdo da economia de mercado e, em termos mais amplos, do processo de apropriago, transformagio organizac&o da natureza humana e nfic-humana por parte do capital. E esta inversdio radical dos papéis, © Brigogine e Stengers, op. cit, p. 52. * Tid, p.266. 31 pela qual 2 concepgio e as priticas temporais mecdnicas se tornaram hegem@nicas, negando a autonomia, a abertura ao novo, a indeterminagao, ireversibilidade e interdependéncia inerente a dialética da physis, que est na base das contradigdes encontradas no processo de modemizagio capitalista e da atual crise ecolégica, tese central que procuraremos defender neste trabalho," © que procuraremos mostrar é como estas crises decorrem de uma raiz comum, que é a contradigdo entre a expansdo ¢ imposigdo da temporalidade moderna de um lado (procurando abarcar ¢ impor a sua légica a cada vez mais dimensdes tanto da esfera socio-cultural humana, quanto da esfera biosférica ndo-humana) ¢ as miltiplas dimensdes temporais com as quais esta expansio se choca e que, em sua autonomia irredutivel, resistem, ponto que analisaremos no capitulo V e nas conclusdes finais. A questio ecologica, emerge assim, como uma questo eminentemente politica, relativa a politica do tempo na qual diferentes formas de se conceber a realidade e os objetivos da ago humana se véem confrontadas. Se refere, assim, a forma pela qual determinadas concepgies temporais (e as priticas & elas associadas) afetam nao s6 a forma pela qual o ser humano se relaciona consigo mesmo ¢ com os seus semelhantes, como também com o seu meio, * Tomamos aqui o termo ecolégico em seu sentido amplo e radical, na medida em que o homem € a sociedade sio uma parte constituinte da pinsis e no exterior 2 esta, permitindo, assim, pensar em termos nao s6 da ecologia classica (relativa aos demais seres vivos), mas sim de uma ecologia humana e politica por definigo, Inclui, assim, no s6 a crise ambiental contaminas4o do ambiente, mudanga climatica, perda na biodiversidade, desertificagao e perda de solo agricola, etc. - como também a crise social, politica, econémica e a atual crise cultural, de representagdo, em suas miltiplas articulagoes (retro)alimentacdes miituas no que, verdadeiramente, podemos considerar como uma crise de civilizagao, j& que engloba as rmiltiplas dimensées, cada vez mais entrelacadas, da civilizagio modema, 32 Capitulo I. Do Caos a0 Cosmos, do Nada aos Sistemas: complexidade, organizacao da physis ¢ 0 tempo sistémico. "4 volta é a forma pela qual 0 caminho se move, a fluidez 0 meio que ele emprega. A multiplicidade dos seres nasceu de alguma coisa. E esta coisa, do nada." (Lao Tseu)* ® traduaido da versio francesa, Lao Tseu; Tao Te King; Paris: Albin Michel, 1984, versiculo 40, sn. 3 Ia. A Cosmogénesis "Entdo nem o nada nem a existéncia existiam. Nao existia o ar, nem os céus detris dele, O que 0 cobria? Onde estava? Quem o cuidava? (..) Primeiro 6 existia a escuridao coberta pela escuridao, Tudo isso eram apenas dguas néo iluminadas. Aquele Uno que veio a ser, envolto por nada, emergiu por fim, nascido do poder do calor. No inicio 0 desejo descendeu sobre ele, Esta foi a semente primordial, nascida da mente. Os sdbios que procuraram a Sabedoria nos seus coragdes sabem que aguilo que é esté aparentado com 0 que ndo é. (..) Mas, no final, quem sabe e quem pode dizer quando tudo surgiu e como ocorreu a criacdo? Os préprios deuses sdo posteriores @ criagdo. Quem sabe, assim, realmente quando tudo emergiu? Quando toda a criagdo teve sua origem, Ele, tanto se Ele 0 criow ou ndo, Ele que observa tudo do mais alto céu, Ele sabe - ou talvez nem Ele saiba.” (Rig Veda)® © David Adams Leeming ¢ Margaret Adams Leeming; 4 Dictionary of Creation Myths; Oxford: Oxford University Press, 1994, pp. 140-141 34 "No inicio Deus eriou 0 Céue a Terra, A Terra era solidao ¢ caos ¢ as trevas cobriam 0 abismo; ¢ o espirito de Deus flutuava sobre as dguas, Deus disse: «faca-se a luz», e houve luz. Viu Deus que a luz era boa, ¢ a separou da escuridéo. (..) Deus disse, «faga-se 0 homem & nossa imagem e semethanga. Que domine sobre os peixes do mar, as aves dos céus, 0 gado, as feras dos campos e os répteis da Terra». Deus criou 0 homem & sua imagem, a imagem de Deus 0 criou, macho e fémea os criou. Deus 05 abencoou ¢ disse: «sedes fecundos y multiplicai-vos, povoeis a Terra e a submeteis, domineis os peixes do mar, as aves dos céus € todos os animais que se movam sobre a Terra». E acrescentou «Eu os dou todas as plantas com sementes que haja sobre a superficie da Terra e toda drvore que dé frutos com sementes. Isto sera vossa comida, (...)». E assim foi. Deus viu tudo que tinha feito e viu que tudo estava ‘muito bem." (Génesis)* 1 Santa Biblia; Génesis 1,1 € 1,2; Madrid: San Pablo, 1996, pp. 22-23. 35 "Quando apenas existiam as éguas primordiais, dois gansos negros voavam de um lado para 0 outro sobre elas. Um era realmente Deus, 0 outro era o primeiro ser humano. Ele era, no entanto, também 0 diabo, e ndo podia resistir ao impulso de tentar voar mais alto que Deus. Naturalmente Deus o fez cair as dguas. Quando 0 Homem-Diabo implorou por perdao, Deus tne fez trazer uma pedra e depois também Terra, que Deus transformou no mundo. Quando Deus ihe pediu gue trouxesse mais Terra, 0 Homem-Diabo o fez, porém escondeu um pouco na sua boca, pensando que poderia criar 0 seu préprio mundo secretamente uma vez que Deus néo estivesse olhando. Tanto a Terra que ele deu a Deus ¢ a Terra que ele guardou na boca comegaram a crescer imediatamente. Sofrendo pela enorme inchagdo da sua boca, 0 Homem-Diabo pediu outra vez ajuda a Deus e Deus 0 castrou antes de permitir que cuspisse a matéria da sua boca. E esta Terra que se rransformou nos péntanos do mundo." (Mito da Criagaio Altaico)* "Cerca de 15 bilhdes de anos atrés, em uma imensa explosdo cujos ecos ainda podem ser detectados sob forma de uma radiagéo de JFundo uniforme a trés graus Kelvin detectada por Penzias e Wilson em 1967, surge, a partir de um ponto de singularidade, 0 nosso universo atual que, desde entdo, se encontra em um continuo Proceso de expansiio e evolugdo (...).” (Cosmologia cientifiea contempordnea) Conforme a cosmologia atual, acredita-se que o nosso universo surgiu cerca de 15 bilhdes de anos atrés, num evento denominado o ‘big bang’, a grande explosio. Mais ainda, conforme a teoria da inflagdo, cada vez mais aceita nos meios cientificos, houveram dois momentos de deflagracao/transformago do universo, de forma que “na fragdo de segundo que durou a segunda explosio, o Universo ressoou como um instrumento musical. Este fenémeno deixou uma marca na tadiagdo de fundo compardvel 4 uma nota principal e os harménicos que compde o som de um instrumento. (..) Novas observagdes apresentadas em um congresso em Washington captaram por primeira vez dois harménicos da vibragio ancestral do universo. (..) «Utilizando uma analogia musical, no ano passado podfamos dizer que notas escutévamos, se era um do sustenido ou um si natural. Agora podemos dizer no sé que nota escutamos, como também que instrumento a toca Podemos comegar a ouvir com detalhes a musica da criagdo», declarou Andrew Lange, co-diretor do projeto Boomerang."** Desta forma, também na cosmologia modema, do nada, 0 cosmos se fez. Da penumbra insondivel emerge a luz, Na tradigao relativistica este big bang marcou nao sé 0 inicio da matéria/energia do nosso universo, como também do préprio espago-tempo.*” De um ponto de singularidade, nasce por processos inacessiveis ao conhecimento da fisica contemporénea (j4 que nas altas temperaturas dos primeiros instantes do universo as prdprias leis fisica de organizacao da matéria e da energia nfo se manifestavam em sua atual forma) um universo que desde entdo caracteriza-se por sua constante expansio espacial e transformagao temporal. Nesta visdo da cosmologia contempordnea de um universo em constante expansdo e evolugo, podemos ver 05 ecos da maxima de Herdclito de que tudo esté em constante movimento, transformagao. Assim, todo ser vivo, enquanto ser temporal ¢ inserido em uma realidade temporal, deve manter o que Maturana e Varela denominaram identidade estrutural em um contexto dindmico, de transformagio, tanto intema, quanto externa ao sistema. Dai a necessidade de situar-se temporalmente, isto é, buscar antecipar ocorréncias futuras, bem como manter a sua identidade frente aos cambios presentes, No caso do ser humano, como veremos com mais detalhe no final deste capitulo, esta experiéncia se da no contexto de uma consciéncia reflexiva ¢ portanto ocorre niio s6 enquanto experiéncia direta, mas como experiéncia mediada pela linguagem € o campo do simbélico. Neste sentido, devemos ressaltar 0 “cardter fundamental da nossa experiéncia do tempo, a saber, que ela nunca é vivida diretamente, que * Leeming ¢ Leeming, op. cit, p. 7. Josep Corbella; Los Cosmdlogas captan los ecos del “big bang’; in La Vanguardia, 1 de maio de 2001; p.23 * Como coloca Hawking, "da mesma forma que ndo se pode falar dos fendmenos do universo sem as nogdes de espaso ¢ de tempo, na relatividede geral nfo tem sentido falar do espago e do tempo fora dos limites do universo." Hawking, op. ci, p 444, Neste ponto ¢ importante lembrar as ainda altamente especulativas consideragies de Prigogine de que "a possibilidace de que o tempo nao tenha principio, de que 0 tempo preceda a existéncia do nosso universo é uma alternativa razodvel." Vide Prigogine 1996, op. cit. p. 215. Para a fundamentagdo destas consideragies, vide o cap. VIIl, pp. 189-215. Para a nossa discussio, esta possibilidade, mais que o fato per se, nos serve como um indicio a mais da distdncia que separa a nogdo temporal de Prigogine do tempo da fisica relativistica, ao mesmo tempo em que ela pe em destaque o fato de que rio existe uma teoria final e acabada do universo. "A relatividade geral ndo é fechada, assim como nio o so a mecanica cldssica ou quantica. Particularmente, devemos unificar a relatividade e a teoria quintica considerando a instabilidade dos sistemas dinémicos. A partir deste ponto a perspectiva se transforma, (..) Durante toda sua vida Einstein perseguiu 0 sonho de uma teoria unificada capaz de incluir todas as formas de interagao. NOs chegamos aqui a uma conclusio inesperads: talvez a realizagdo deste sonho exija uma concepgio evolutiva do universo! Uma teoria unificada seria, neste caso, insepardvel da simetria temporal destrufda do universo. (..) A unificagdo implicaria, portanto, uma concepsao dialética da natureza.” Ibid., pp. 215 ¢ 214. 37 cla jamais consiste em uma vivéncia imediata e muda, estando sempre articulada por sistemas simbélicos de graus variados, dos quais uns, légica e cronologicamente anteriores, sio imanentes as nossas distintas culturas, outros, construidos sobre os anteriores, sfio 0 objeto de reflextio de segundo grau que se articula ao nivel das filosofias, das religides e das sabedorias."** Neste ‘situar-se no tempo a nivel dos sistemas simbélicos’, fundamental para a existéncia humana, a idéia que constrdi cada cultura sobre a Cosmogénesis ocupa um lugar privilegiado, ja que € este relato que situa de fato cada sociedade e cada um dos seus membros, assim como os elementos que compe a realidade, no seu lugar. Como coloca Eliade, "para o homem primitive das sociedades arcaicas, 0 conhecimento da origem de cada coisa (animal, planta, objeto césmico, etc.) confere uma espécie de poder magico sobre estas: sabe-se onde encontré-las e como fazer que reaparegam no futuro. Poderiamos aplicar a mesma férmula aos mitos escatolégicos: 0 conhecimento do que ocorreu ab origine, da cosmogonia, fornece a cigncia o conhecimento do que passaré no futuro. (...) Este comportamento ndo é apenas arcaico. desejo de conhecer a origem das coisas caracteriza também a cultura ocidental, (...) Nos esforgamos por conhecer a origem e a histéria de tudo que nos rodeia."*? Indicativo destas diferengas culturais e destas diferentes formas de se conceber os objetivos da organizagio social, no Rig Veda a impossibilidade de um conhecimento absoluto e final jé esta presente em sua Cosmogénesis, indicando os limites do dominio que possa ter 0 homem sobre o seu meio, bem como a posigdo subordinada que Ihe toca neste cosmos. Jé em oposigio a esta visio, na Génesis do velho testamento, base das grandes religiées monoteistas atuais, esta criagdo se deu no s6 como um ato perfeitamente controlado ¢ deliberado de um Deus onipotente e onisciente, exterior a criagdo mesma, como também nesta criagao cabe ao homem, feito a imagem ¢ semelhanga deste Deus, uma posigo de ascendéncia e dominio sobre tudo que existe, Diversos autores ja enfatizaram a estreita relacdo existente entre este mito e a relagdo do homem moderno com o seu meio ambiente, ndo nos interessando aqui estender esta discussao.® Agora, 0 que cumpre lembrar é que este mesmo ideal de ascendéncia e controle do meio ressoa na visto mecanicista do universo - ¢ nos relatos cosmogénicos nela fundamentados - legitimando o projeto iluminista de dominagao do meio através do saber ¢ da técnica, a0 mesmo tempo em que € a nova concepgao do universo e da evolugdo, que procuraremos apresentar neste capitulo, que nos indica os seus limites € riscos. 5 Paul Ricoeur et al; Le Temps et les Philosophies; Paris: Payot, 1978, p. 11. * Mircea Eliade; Aspects du Mythe; Paris: Gallimard, 1963, pp. 96-97. © Vide, por exemplo, Fritjof Capra; © Ponto de Mutacdo - A Ciéncia, a Sociedade ¢ a Cultura emergente; Sto Paulo: Cultrix, 1993 e, para uma discussio mais aprofundada, Peter Marshall, op. cit, pp. 97-136. 38 ‘Uma clara indicagdo quanto aos riscos e perigos inerentes ao atuar do homo faber, que busca colocar-se A altura do Criador divino, nés podemos encontrar no mito da criagio Altaico, Estas tribos Altaicas, da Mong6lia tém os seus mitos influenciados tanto pelo seu passado xamanistico, quanto pelo seu contato com as principais religiées como o Islamismo, Cristianismo, Budismo e Zoroatrismo, 0 que faz com que sua mitologia apresente uma interessante mescla de todas estas tradigdes. Assim, se por um lado temos a dualidade tipica das religides monoteistas, nesta dualidade 0 homem aparece no como ‘criado a imagem e semelhanga de Deus’, mas sim como a prépria origem do mal ao tentar Jevantar-se 4 altura do criador. Vemos aqui, claramente, a idéia dos limites, das restrigdes que 0 homem deve colocar as suas ambigdes para assegurar a harmonia do cosmos, um dos temas mitolégicos por exceléncia e que, na mitologia modema, reaparece nas figuras do aprendiz de bruxo ¢ do Fausto de Goethe, ou no Dr. Frankenstein de Shelley." Esta necessidade de respeitar os limites, os equilibrios, de controlar a capacidade criadora ¢ transformadora do homem (simbolizada pela castragao simbélica do homem no mito Altaico), é, como emergiré com maior clareza ao longo da nossa discussdo neste trabalho, de fato um elemento central para a concepeao sistémica tempo. E € a ruptura com esta nogio dos limites ¢ dos equilibrios, que representa, de fato, um elemento central na constituigao da sociedade modema, conforme veremos ao longo deste trabalho, particularmente nas concluses quando analisaremos a questio da escala adequada. Procuraremos, neste capitulo, identificar este tempo sistémico no relato cosmogénico cientifico atual, do qual, mais do que os seus detalhes - ja bastante popularizados pela literatura de divulgacio cientifica® - nos interessa identificar a dialética da organizagao/desorganizagao dos sistemas em suas manifestagdes e arquiteturas cada vez. mais complexas "© fato de que 0s dois principais arquétipos modemos do transgressor dos limites sejam dois Doutores em busca de conhecimento, por si s6 ja é um interessante indicativo do papel e da importancia que assume a razlo instrumental na construgao do mundo modemo, bem como das suas caracteristicas intrinsecas. * Como € 0 caso do livro de Hawking, op. cit., transformado em best-seller, ou ainda os livros e a série tele editada em livros) Cosmos de Carl Sagan. 39 Ib. A Dialétiea Sistémica Oser e o vazio se engendram um ao outro Fécil e dificil se complementam. Longo e curto se definem Alito e baixo se encontram uum com 0 outro. Notas e sons concordam. Antes e depois se misturam. (Lao Tseu) * Todas as coisas est@o em contradigdo em si mesmas. (...) A contradigdo teria que ser considerada como 0 mais profundo essencial. De fato, frente @ ela, a identidade ¢ apenas a determinagao do simples imediato, do ser morto. Em troca, a contradicéo é a raiz do movimento e da vitalidade, pois é sé ao conter em si uma contradigdo que uma coisa se move, tém impulso e atividade. (..) Algo se move ndo sé porque esteja neste movimento aqui e em outro momento ali, mas sim porque em um e no mesmo momento se encontra aqui e ndo aqui, porque neste aqui existe ndo existe simultaneamente. (..) QO movimento é a prépria contradicao em sua existéncia, (..) Portanto algo esta vivo somente quando contem em si a contradigdo e é, justamente, esta forca de conter e sustentar a contradicao. (Hegel) Conforme ja aparece no pensamento dialético, 0 movimento - a continua transformagao de que esta feita a realidade - repousa na tenso, na polaridade do que existe tanto em funeao, quanto negacao ¢ complemento do outro. © Lao Tseu, op. cit., canto segundo, “ G. W. FP. Hegel: Ciencia de la Logica - 2° Parte; Buenos Aires: Hachette, 1954, pp. 72-74. 40 ‘Como notou Morin, a primeira tens&o central da dialética sistémica ¢ a relagao entre ordem ¢ desordem, que se véem articuladas pela nog&o de organizagéo. Toda organizagao é ao mesmo tempo a desorganizacao e a reorganizagéo de uma ordem prévia. A identidade da ordem se mantém através do continuo proceso de sua reorganizagdo, frente pressio de desorganizac4o dada pela tendéncia & entropia crescente a que esto sujeitos todos os sistemas. Assim, todo processo organizado é, antes de tudo, um processo de (des)(re)organizagfo. "A organizagio deve, portanto, ser concebida como a organizagao da sua prépria organizagdo. Isto quer dizer que ela se fecha sobre si mesma ao fechar 0 sistema com relagao ao seu meio." Mais do que pélos de uma dicotomia, ordem e desordem, caos e cosmos, entropia e organizagao devem ser vistos como faces da mesma moeda, base negativa e complementar da existéncia uma da outra. E esta idéia que podemos encontrar no conhecido simbolo da dialética chinesa antiga, no simbolo do Tao. Conforme analisa Morin, "o anel circular ¢ um circulo cosmogénico simbolicamente turbilhondrio pelo S interior que simultaneamente separa e une o yin € yang. A figura forma-se nao a partir do centro, mas da periferia e nasce do encontro entre movimentos de sentidos contrarios. O yin e 0 yang esto intimamente aparentados um dentro do outro, porém distintos. Eles sio simultaneamente complementares, concorrentes ¢ antagonistas. A figura primordial do Yi-King é, portanto, uma figura de ordem, de harmonia, comportando em si, no entanto, a idéia turbilhondria e o principio do antagonismo. £ uma figura da complexidade."* "A percepgi taoista do mundo real difere fundamentalmente da nossa visio ocidental tradicional. Nos tendemos a pensar esquematicamente, em um mundo de coisas separadas -algumas delas vivas- organizadas em um espago independente. Assumimos que estes trogos de ‘coisas’ independentes ‘causam' uma a outra, 'atuam' uma sobre a outra enquanto se ‘vo movendo' no espago vazio ¢ passam por uma série de estados estéticos de mudanca. (...) Nés atuamos baseados no pressuposto de que 0 nosso mundo é uma estrutura construida com sélidos tijolos de diferentes formas e tamanhos, todos independentes do observador. De cada conceito que denota um destes tijolos e sua relagdo com outros ow a sua atividade, nés cremos poder excluir para sempre 0 seu oposto ou o seu proprio negative. (...) ‘és assumimos que a mudanga ocorre com uma ‘coisa’ se transformando em ‘alguma coisa diferente’. A forma em que experimentamos e medimos o tempo é dividindo-o em momentos mensuréveis, cada qual separado e, em uma forma abstrata, idéntico a todos os demais (...) © Taoismo vé tudo isso como esquematico, vulgar ¢ absurdo. Ele reconhece que, apesar de conceitos fixos ¢ estaticos poderem ser extraidos da realidade dindmica pelo pensamento humano ¢ poderem ser © Eagar Morin; La Méthode . La Nature de la Nature; Pais: Ed. du Seui © Did. p. 28. 1977, p. 134, Vide tb. cap. 2, pp. 94-151 41 lteis, ndo existe, em ultima instincia, nenhuma forma de se reconstruir a mobilidade do real somando conceitos fixos. Desta forma, o elemento mais importante - 0 tinico elemento que conta - é deixado de Jado nas idéias ordinérias que a maioria de nés temos, nas quais baseamos os nossos mundos e com as quais tentamos chegar a termos com estes mundos. (...) O Tao (...) € uma teia sem costuras, de movimento e mudanga continua composta por oscilagées, ondas, padrées de ondulagdes ¢ ‘ondas temporalmente fixas', como em um rio. Cada observador é ele mesmo uma parte e fungio integral desta teia. O Tao nunca para, nunca volta e nenhum dos seus padrdes dos quais pociemos tirar instantaneos conceituais é real no sentido de ser permanente, mesmo no mais curto intervalo de tempo que possamos imaginar. Como nuvens fluindo, os objetos ¢ fatos de nosso mundo sio para um Taoista simplesmente formas ¢ fases, que duram o suficiente em uma forma genérica para que nds as possamos considerar como unidades. Com um vento forte as nuvens mudam a sua forma rapido. No mais lento dos ventos de Tao as montanhas e rochas da Terra mudam a sua forma muito lentamente - porém continua e inevitavelmente. O homem simplesmente tem dificuldade de observar 0 fato. Todas as separagdes que o homem afirma decifrar na rede do Tao so construgSes titeis, conceitos sendo eles mesmos ondulagdes na parte ‘mental’ desta corrente. Cada ser humano est tecido de um complexo sistema de interagdes totalmente mutaveis com o seu meio ambiente. O seu corpo esté em perpétua mudanga, no por saltos de estado a estado, ja que o seu envelhecimento no corresponde a minutos, horas ou aniversérios, mas se dé continuamente. O leitor deste parégrafo nao é o mesmo que iniciou a sua leitura. E apenas a convengao pratica que justifica que vejamos mesmo um homem, uma arvore, uma pedra, como uma ‘coisa’, em vez de um conjunto de planos, cada qual representando mudanga ¢ transformagdes enquanto passam, algumas sendo visiveis ‘fora’, outras invisiveis 'dentro'."” No ocidente, encontramos a concepgo mais préxima a esta visdo taoista na dialética, que teve em Heréclito, em sua oposigao com a visto de Parménides - e que se tornaria dominante no ocidente - 0 seu maior expoente na Grécia Antiga. em sua oposigao A visto estitica de Parménides e a subseqiiente visio atomista da realidade. Como coloca Konder, "no sentido modemo da palavra, 0 pensador dialético mais radical da Grécia antiga foi, sem divida, Heréclito de Efeso (aprox. 540-480 a.C.). Nos fragmentos deixados por Heréclito, pode-se ler que tudo existe em constante mudanga, que o conflito é © pai e 0 rej de todas as coisas. (...) Os gregos (...) chamaram 0 filésofo de Herdclito, o Obscuro. Havia certa perplexidade em relagiio ao problema do movimento, da mudanga, O que € que explicava que os seres se transformassem, que eles deixassem de ser aquilo que eram ¢ passassem a ser algo que antes Laszlo Legeza e Philip Rawson; Tao - The Chinese Philosophy of Time and Change; London: Thames and Hudson, 1995, pp 9-10, 2 no eram? Herdclito respondia a esta pergunta de maneira muito perturbadora, negando a existéncia de qualquer estabilidade no ser." J& na concepedo da dialética sistémica que estamos analisando aqui, a resposta 4 questio da identidade/mudanga do que existe deve ser procurada nfo numa substancia imutavel, mas sim na manutengo de um determinado padréo organizativo, do qual a iluso da permanéncia nada mais € do que a visio extema de uma emergéncia sistémica, que se mantém enquanto se mantém este padrdo organizativo do sistema. Toda ordem, toda identidade, esconde, assim, no seu interior um continuo processo de transformago, de (re)eriagdo (vida) e de destruigao da ordem anterior (morte). Na mitologia grega, um dos simbolos mais acabados deste poder transformador e criador inerente & physis pode ser encontrado na figura de Dioniso, mito que plasma em si os elementos tanto da mais abundante e sublime criag&o, quanto da mais terrivel destruigao ¢ aniquilag&o. Como o coloca Walter Otto: "Quem é Dioniso? O Deus do éxtase e do terror, da selvajaria e da mais abencoada salvacao - 0 Deus louco cuja aparigéo mergulha a humanidade na loucura - ja em sua concepgao e nascimento dé sinais da sua misteriosa e paradoxal natureza. Ele era o filho de Zeus e de uma mulher mortal. Porém, mesmo antes de leva-lo em seu ventre, ela foi consumida pelo holocausto dos raios do seu noivo celeste. (...) O pai mesmo assumiu o papel de mie. Go) Portanto, o ‘duas vezes nascido' jé teve, antes de entrar neste mundo, suplantado tudo que é mortal. Ele se transformou em um deus, 0 deus do intoxicado deleite. No entanto ele, o portador da alegria, estava predestinado ao softimento e a morte - 0 sofrimento e a morte de um Deus! (..) Debaixo dos raios reluzentes de Dioniso se desenvolveu a certeza de um Deus enigmético, 0 espirito de natureza dual e do paradoxo, tinha uma mie mortal e, portanto, era, ja pelo seu nascimento, um nativo de dois reinos distintos."* Dioniso é, assim, um Deus que, apesar da sua natureza divina, nfo vive nas alturas metafisicas do COlimpio, mas sim no que Aristételes chamou de mundo sublunar, na realidade terrestre em constante transformagao, criagdo-destruidora e destruigao-criadora. E esta a razio pela qual ele € associado as ‘Aguas, das quais emerge e nas quais desaparece novamente;”” é 0 Deus do vinho”! e é 0 Deus dos Leandro Konder; O que é Dialéica; Sao Paulo: Brasiliense, 1984, p. 8 ® Walter Otto, op. cit, pp. 65 e 71. 7 mpara a imaginagdo mitopoética, a dgua € o elemento em que todos os mistérios primordia da vida esto. Nascimento © morte, passado, presente futuro entrelagam as suas dangas aqui. Ai onde esté a fonte do devir esté também a profecia. (..) Oceanus, na Iliad, é chamado de pai dos deuses, sim, 0 pai universal.” Ibid. p. 161. Vide tb. cap. 14, pp. 160-171 e cap. 17, pp. 189-201. Notemos também que nas 3 cosmogénesis citadas no inicio deste capitulo, na origem de tudo se encontravam as Yiguas primordiais, ainda nfo iluminadas, apontando para a esséncia dialética que esté na raiz de tudo que existe. Steg vinho (..) € uma metifora do proprio deus. Como ele, o vinho também s6 se completa através do milagre de um segundo nascimento." "O elemento que distingue a vinha de todas as outras plantas € justamente aquele que Ihe assegurou 0 6 elementos vegetativos ¢ da exuberdncia criadora da natureza.” As mulheres que o acompanham o criaram e formam o seu séquito” representam ao mesmo tempo o mais profundo principio maternal, de criago, a0 amamentarem ¢ criarem nfo sé ao préprio Dioniso, como também a animais ¢ bestas selvagens, celebrando a vida e a criagao em suas dangas e miisica, como também o mais profundo impulso de destruigao ao esquartejar, devorar e destruir os seres que um instante antes estavam ctiando.”* "Dioniso (...) é tanto a vida quanto a morte, jé que o seu espirito se revela a partir das incomensuraveis profundezas em que vida morte estio entrelagadas. Em todos os elementos associados a Dioniso, vemos o fato de que ai onde se manifesta a criagdo, esta a destrui¢ao, verdade que a imaginac0 mitopoética procurou captar em todo o seu poder e profuundidade Aj onde a dialética do devir se desdobra, vida e morte se encontram. E por esta razao que Dioniso é 0 deus da mascara por exceléncia, mascara que ¢ 0 simbolo mesmo da dualidade ao ser simultaneamente velamento ¢ presenga imediata.”* E 9 Deus que pode aparecer no mais enlouquecedor pandem6nio, como também no mais absoluto e paralizante siléncio;”” é 0 Deus louco e que traz a loucura ¢ 0 caos com sua presenga. "Aquele que engendra algo que esté vivo deve mergulhar nas profundezas primordiais em que residem as forgas da vida. E quando ele volta a superficie, encontramos uma centelha de loucura em seu olhar pois nestas profundezas a vida e a morte se encontram lado a lado. O mistério primordial ¢ ele mesmo louco - a matriz da dualidade ¢ a unidade de desunitio. (...) A experiéncia humana Ihe conta que sempre que ha sinais de vida, a morte esté A vista. Quanto mais viva a vida, mais a morte se aproxima, até 0 momento supremo - o momento encantado em que algo novo ¢ criado - quando vida e morte se encontram em um abraco de louco éxtase. O arrebatamento € 0 terror da vida so tdo profundos porque esto intoxicados pela morte. Cada vez que a vida se recria 7% novamente, a parede que a separa da morte é momentaneamente destruid: su lugar no culto dionisiaco. E o poder inerente de encantar, de inspirar, de elevar o espirito. (..) Revela aguilo que estd to. Vinho ¢ verdade ja estio associados de longa data nos proverbios." Tbid., pp. 146, 145 e 149. ‘A Terrase inunda de leite, se inunda de vinho, se inunda com o néctar das abelhas "; ibid, p. 96, citando as Bacantes de Euripedes, outro elemento da sua duslidade, ja que Dioniso € ao mesmo tempo masculino, o deus filico por exceléncia, da dominagdo, da guerra e da destruigdo, como também um deus cuja simbologia esta impregnada de elementos femininos “Em Esquilo ele ¢ chamado depreciativamente ‘o afeminado', em Euripedes, ‘o femininamente estranho'. As vezes ele é chemado também '‘masculino-feminino’." Ibid, p. 176. "Como contrapartida dos instintos matemais, isto se manifesta inclusive com as bestas selvagens, cujos filhotes as ‘meneadas ndo s6 amamentam nos seus seios, como também esquartejam e devoram." Ibid., p. 106, Ibid, p. 190. Vide também o capitulo 9 desta obra, pp. 103-119, em que esta associasio de Dioniso com o Hades, o reino dda morte ¢ discutida. . 7* "A mascara é pura confrontagHo - antipoda ¢ nada mais, Ela ndo tém reverso. E um simbolo e a manifestag8o daguilo que esta simultaneamente ai e nao ai: aquilo que est agudamente préximo, o que esté completamente ausente - ambos em uma 6 realidade.” Ibid, p. 91 e cap. 6, pp. 86-91 ” Tid. cap. 7, pp. 92-95. ™ Ibid, pp. 136-137, Fsta relagdo de antagonismo, de tensio em que criagaio e destruigo so as duas faces da mesma moeda € que vemos plasmada no mito dionisiaco, nés podemos ver governando 0 desenvolvimento do universo desde os seus primeiros instantes. Podemos vé-lo na dinémica de auto(re)organizagao de um ser vivo atual ou no ciclo de vida das estrelas em que a tensio existente entre a gravidade de sua enorme massa € a poténcia expansiva das explosdes em cadeia decorrentes das fusdes atémicas governam a sua dindmica ¢ 0 seu destino. Neste sentido também, a primeira materializagfio (com 0 surgimento das particulas) pode ser visto tanto como a emergéncia de uma nova ordem, como também tum processo de desintegrago da radiacdo primordial. Ordem e desordem se condicionam um & outra e, como o Yin e o Yang dos chineses, em seu continuo abragar-se, condicionar-se, negar-se © complementar-se mituo regem a dialética do que existe no seu processo de duragao e de transformagao. “As mucleossinteses, no seio das nuvens e no seio dos astros incandescentes, so insepardveis das colisdes ¢ chogues aleatérios. A formagdo das estrelas inseparavel dos cortes e rupturas no seio da vem e a formagao das galaxias ¢ inseparivel dos cortes ¢ rupturas no seio da protogaléxia. A igni¢ao das estrelas se d4 no ponto de exploséo, com risco de explosio. Vemos portanto bem que a idéia rompente da catistrofe é essencial para conceber o naseimento da organiza¢ao © da ordem césmica."”? ‘esta dialética, vemos emergir 0 conceito basico de sistema e, no centro deste, a idéia de organizagao e, como veremos, de auto-organizagdo. O que antes se via como objeto simples, emerge como um sistema organizado. Nao mais um objeto, passivo e a-temporal, mas sim uma realidade dindmica, complexa que existe nfo como algo fora do tempo, mes intrinseca essencialmente temporal, "E devido ao fato que existe uma organizago que falamos de physis. E, no entanto, 0 conceito ausente da fisica, A ordem € @ nogo que, aniquilando todas as demais, eliminou também a idéia de organizagao Depois do surgimento da desordem e dos primeiros refluxos da ordem, vimos enfim a idéia de interagdo se transformar na idéia central da fisica modema."*” Esta idéia de sistemas se impSe nfo s6 a nivel macro, dos grandes sistemas complexos organizados como a sociedade, mas a nivel micro, na base fisica da realidade mesma. Como coloca Morin, a partir do inicio deste século "o étomo nfo é mais a ade primeira, irredutivel e indivisivel: ¢ um sistema constituido de particulas em interagdes miituas."*' A crise na determinagao da identidade das particulas com o advento da fisica quintica foi ainda mais profunda, na medida em que "a particula ndo passa apenas por uma crise de ordem ¢ uma crise de unidade (supde-se, atualmente, que existam mais de duzentas particulas). Ela softe sobretudo uma crise de identidade. Nao se pode mais isolé-la de forma Morin 1977, Op. cit, p. 47. Morin se refere aqui ds muvens cOsmicas. Provavelmente por uma falha na revisto, no original ‘a sequencia aparece invertida, associando a eriagdo das estrelas & protogaléxia © da galaxia & muvem césmica, elag0 que alteramos em nossa tradugao. © Thid, p. 94, 4s Precisa no espago € no tempo. Ndo se pode mais isolé-la das interagées advindas da observagio. Ela hesita entre a dupla contraditéria identidade de onda e corpuisculo. As vezes ela perde toca substincia (0 foton em repouso ndo tem massa). E cada vez menos provavel que ela seja um elemento primeiro. As vezes ela é concebida como um sistema composto de quarks, (e 0 quark seria ainda menos redutivel 20 conceito clissico de objeto ou particule), outras vezes a imaginamos como um ‘campo’ de interagbes especificas."* Esta crise paradigmatica nao nos leva apenas a alterar o foco das partes para o todo, mas sim a necessidade de focar nas (inter)relagdes, nas articulagdes que se estabelecem entre as diferentes partes ¢ destas com 0 todo. Nos leva a buscar compreender a organizaedo pela qual, na dialética dos sistemas, 0 ‘odo € simultaneamente mais ¢ menos do que a soma das suas partes. Compreender a forma pela qual 5 partes tém a sua identidade dada e limitada pela sua dialética com o todo. Assim, por exemplo, nfo 6 a identidade de cada ser humano é a qualidade emergente da dialética entre a sua aufopoiesis propria com 0 meio fisico histérico/cultural no qual esta se da, como também a propria identidade das articulas mais do que uma realidade ultima é a qualidade emergente das relagdes estabelecidas no Imterior do sistema atémico. Como lembra Morin, "As particulas possuem as propriedades do sistema, Imuito mais que este possul as propriedades das particulas. Nao podemos compreender, por exemplo, a coesdo do micleo, composto por prétons associados ¢ néutrons estaveis, a partir das propriedades especificas dos protons, que no espaco livre se repelem mutuamente, e dos néutrons que, exiremamente instéveis no espago livre, se decompéem espontaneamente em um préton e um elétron cada um." © todo sistémico apresenta, assim, qualidades emergentes que ele confere retroativamente as suas Partes. Os elétrons em sua identidade oscilante entre particula e onda tém, além disso, uma identidade individual, conforme mostra o principio de exclusio de Pauli, fazendo com que os diferentes elétrons Scupem diferentes niveis energéticos em tomo do miicleo e nio se precipitem todos ao nivel mais profundo. Assim como toda cultura e toda sociedade ¢ ao mesmo tempo a base de onde nascem as potencialidades individuais e, simultaneamente, o fator que limita cada um em fungo do todo, também no interior do sistema atémico a liberdade e a manifestagio de cada parte ¢ limitada pela organizagdo do todo. Estas qualidades emergentes so um aspecto central da realidade e a base mesma da nossa existéncia. Como coloca Morin, citando as idéias de Serres, "as nogdes aparentemente clementares como matéria, vida, sentido, humanidade, correspondem na verdade a qualidades emergentes dos "Ibid. p. 97. " Boid p97 © Ibid. p. 98. A nogao de autopoiesis proposta por Maturana e Varela seré discutida com mais detalhes mais adiante. 46 sistemas."** "(...) As emergéncias nao constituem virtudes originarias, mas virtudes de sintese (...) Sempre cronologicamente segundas, elas so sempre as primeiras por sua qualidade. (...) A consciéncia, a liberdade, a verdade, o amor, so frutos, flores. (...) Os fins sublimes aos quais nos consagramos so florescéncias de sistemas de sistemas de sistemas, a emergéncia de emergéncias de emergéncias..."** ‘A materialidade das particulas surge como uma qualidade emergente das interagdes subatémicas. Por sua vez esta qualidade emergente seré a base para a formagio dos 4tomos ¢ que, combinando-se em novas organizagées sistémicas moleculares dardo vida a uma nova qualidade emergente, como € 0 caso da gua liquida que emerge da combinagdo de dois gases.“ E como qualidade emergente da combinago de moléculas em dada organizagdo sistémica, que surge a vida, em sua multiplicidade de formas e combinagées, e que, em algum ponto da sua evolugdo, desembocou em uma consciéncia auto- reflexiva -o homem em sua cultura, sua historia e sua capacidade de amor e de édio. E também de dada conjungio da autopoiesis individual e da cultura coletiva que emerge a criagdo artistica © sua capacidade de plasmar estes sentimentos e conectar com algo que vai além da prépria consciéneia do seu criador, em uma certa combinaso de cores, de palavras ou de sons e siléncios. Como coloca Morin, "o nosso mundo organizado é um arquipélago de sistemas em um oceano de desordem. Tudo que era objeto virou sistema, (...) O que & notavel € o cariter polissistémico do universo organizado. Ele é uma impressionante arquitetura de sistemas construindo-se uns sobre os outros, uns entre 0s outros, uns contra os outros, implicando-se e imbricando-se entre si (..). A Natureza esté feita de sistemas de sistemas em capas, em cachos, em pélipos, em moitas, em arquipélagos."*” © Michel Serres; Le point de vue de la bio-physique; in Critique, n° 346, 1976, p. 276, citado em Morin, 1977, 0p. cit. p. 107 tid p. 111. ® 4 dada temperatura e pressio, como por exemplo as condigdes ambientas em que escrevo estas lias. © Morin 1977, op. cit., p. 99. a7 Ie. Um universo em sursis: as bases fisicas da organizagdo materi "A tinica forma de se olhar para a morte de forma religiosa é de sentir e concebé-la como parte integrante, condigdo sagrada da vida e ndo - 0 que seria 0 contrério de nobre, razodvel, saudével ¢ religioso - separd-la na raziio e pé-la em oposigdo 4 ela (...). A morte é venerdvel como bergo da vida, como colo materno da renovacdo. Separada da vida ela se converte em fantasma, em careta - ¢ em algo muito pior. Pois a morte como poder espiritual independente é um poder risivel, cuja atragdo oprimente significa, sem diivida, uma das mais terriveis confusdes do espirito humano." (Thomas Mann)* Como lembra Reeves, a imagem que nos vem do universo primordial ¢ "de um vasto caos incandescente 4 uma enorme entropia. Nao se observa nenhum contraste, nenhuma estrutura, nenhum trago de uma ordem original e de uma matéria altamente organizada."*” De fato tudo leva a crer que 0 nosso atual universo organizado emerge de um estado indiferenciado, de méxima entropia, das profundezas das “éguas primordiais ainda nao iluminadas’. A tensfio que pés em marcha a dialética universal aparece nos primeiros instantes como um diferencial minimo, porém fundamental da distribuigao espacial da energia, que leva os cosmélogos, conforme vimos no inicio deste capitulo, 2 falarem do universo primordial em termos de um harménico, de uma vibragdo composta por vibragdes distimtas. Neste universo de altissima temperatura, toda associago ¢ imediatamente dissociada. A energia contida nas particulas era téo alta que “cada vez que colidissem se produziriam muitos pares particulas/anti-particulas diferentes.”*° A energia cinética ainda supera a energia nuclear na base da organizacao dos étomos. E sé com a continua expansio do universo e a correspondente queda de temperatura que as atuais leis de organizagdo/desorganizagdo da matéria se consolidam ¢ 0 universo pode iniciar o que Reeves denominou a escalada dos degraus da complexidade. Esta expansio e a correspondente diminuigao na temperatura do universo € fundamental para permitir a diferenciagdo progressiva e a crescente complexidade de organizagfo sistémica, a0 mesmo tempo em gue esta crescente complexificagao engendra uma intensificagdo e acelerago da dial ica organizativa. ** Nas palavras do personagem Settembrini da Montanha Magica. In Thomas Mann; Der Zauberberg; Frankfurt: Fischer, 1995, p. 276. © Hubert Reeves: L’heure de s'enivrer - L’Univers a-t-il un sens?; Patis: Seuil, 1986, p. 85. ” Stephen Hawking, op. cit, p. 147. 48 O movimento surge como base e fruto do movimento, a dialética se encontra contida e engendrada em si mesma © que emerge, de fato, destes cenarios contemporineos da cosmologia é 0 caréter dialético da propria fisica que, mais do que uma cigneia que estuda e busca compreender uma ordem universal ¢ eterna, se vé como uma busca de compreender uma physis em continuo processo de transformagao, como ja coloceva Heraclito. As leis de organizagio desta phy'sis, mais do que leis imutaveis, aparecem como leis emergentes em um processo evolutivo, Em seus primeiros instantes marcados pelos efeitos quinticos, leis desconhecidas @ fisica atual prevaleciam. Acredita-se que a temperaturas superiores aos 10 °C todas as forgas fisicas se encontravam unificadas.”' E somente a temperaturas mais baixas, decorrentes do resfriamento do universo pela sua expansio, que a forga nuclear forte ¢ fraca, bem como a atragGo gravitacional e a radiagao eletromagnética se manifestam como forgas distintas ‘A matéria também emerge gradualmente neste processo. "Quando a temperatura baixa ao trilhdo de graus, os quarks, unindo-se trés a trés, formam os mucleons. Quando chegamos ao bilhao de graus, uma fragio dos nucleons se associam para criar os primeiros micleos de hélio. O relogio césmico marca, entdo, aproximadamente um minuto. Um milhio de anos mais tarde, os primeiros dfomos as primeiras moléculas (de hidrogénio) se formam quando, gragas & diminuigao do calor, os elétrons podem fixar-se em orbitas em tomo dos protons. E este o momento da radiagao fossil. ye E nesta época que a matéria inicia o seu proceso de agrupamento ¢ a gravidade comeya o seu protagonismo na organizagdo das estrelas e das protogaléxias, enquanto que a forea nuclear ocupa um papel central na organizagao atémica. Conforme nos mostra Reeves, "a matéria nuclear ‘congela! a um 5p worla da grande unificagto continua sendo um dos grandes objetivos da fisica neste século, Depois que Einstein logrou em suas equagBes unifcar a forga gravitacional ea forga eletromagnética, restaunificé-las com as forgas mucleares, isto ¢ a Tiere fisica (estudada arualmente pela fsica quintica) e a macro fisica (estudada pela fisica relativistca), Uma teoria Gudntica da gravidade ¢ fundamental para que Se possa compreender o comportamento da matéria ¢ da luz em um campo avtacional demasiado intensojé que, conforme mostou por primeira vez Planck, os atuais conhecimentos da fisice nko se aplicam quando a matéria alcanga temperararas acima dos 10 graus, chamada temperatura de Planck. E esta a temperatura are to entato, nas fases inicais do universo ou a beirae no interior de um buraco nego. E por esta raz, como qeaiss Reeves, que "nao podemos, com todo rigor, falar de um «principio do universo» ou de uma «criagdo da materia» “Tratam-se de expressdes imaginarias(.). O universo, nesta época, se «planca> detrés do muro de Planck. Dentro da nossa cronologia convencional, este muro nos servira de «tempo zero.” Reeves, op. cit, p. 142. Se seguims o exerciio proposto for Klein de manipular as tés constantes centrais da fisca contemporinea (a constante G da gravidade, » const. ¢ da Prlocidede da luz e a constante de Planck, nés obtemos uma unidade temporal dada por (Gh) = 10% que ‘nultiplicado por c nos dé uma distincia de = 10” metros, que so 05 chamados tempo ¢ distancia de Planck, "as dimensdes i partir das quais o espaso-tempo nfo pode mais ser consderado ‘iso’. Para distincias ou tempos mais curtos (como no snerso primordial), 3 imagina que o espago ¢ 0 empo se apresentem, de fato, de uma forma bem diferente, dtiilmente Jnogindvel Eles poderiam ser descontinuos ou futuantes, 0 que mudaria radicalmente as préprias leis fisicas” Klein, op sree GD Finalmente, como vimos na nota de Prigogine no inicio deste capitulo, esta fisica ainda deve ser unificada com cer inamiea, quer dizer, incorporar 0 tempo como uma variével essencialmenteirreversivel, © que muda radicalments a [opi sea , asim, nosta concept do univero, gpomtando pars um univers. ‘essencialmemte dialétic. 2 Reoves, op. cit, pp. 66-67. Neste processo, denominado micleossintese primordial, cerca de V4 da matéria césmica & cracformade em bélio e 0 resto mantido no estado de protons, se constitird no hidrogénio universal, sendo a produso de clementos mais pesados praticamente nul 49 bilhdo de graus (N21), A temperaturas mais elevadas, os micleos estdo livres, como as moléculas de agua de um Nquido. Abaixo desta temperatura, a forga nuclear as fixa juntas. O micleo de ferro é, na nossa comparacdo, 0 equivalente ao bloco de gelo."** Os étomos de ferro representam, assim, 0 estado de maxima entropia nuclear, de equilibrio. Porém a sintese deste ferro é um processo relativamente demorado que, frente a velocidade de expansto ¢ resfriamento do universo primordial, ficou inacabado. E justamente este desequilibrio nuclear que faz com que a energia nuclear esteja hoje disponivel no universo. Como definiu Reeves, "a informagdo aparece na natureza quando uma fonte de entropia fica disponivel, mas néo é imediatamente dissipada."™ Encontramos, aqui, uma das primeiras 'constantes ‘universais! que nos permitem hoje estar tentando compreender e pensar sobre estes processos: uma sxpansto demasiado lenta teria consumido jé nos seus primérdios a informacao nuclear, privando as esirelas do combustivel para a sua existéncia, e uma expanséio demasiado répida teria inviabilizado a formagdo dos primeiros niicleos atémicos. A expansio do nosso universo se deu justamente na ‘elocidade intermediéria que permitiu, em iltima andlise, a emergéncia da vida sobre o nosso planeta AS estrelas 20 fusionarem 0 hidrogénio e 0 hélio primitivo, iniciam nao sé a sua existéncia como sistemas dindmicos, no qual o tenso equilibrio entre as forgas opostas da gravidade e da radiagao vao Encontramos aqui outro elemento crucial decorrente do abandono por Prigogine das situagdes idealizadas da fisica cléssica, que € 0 abandono da nogo de trajetéria linear e Unica, central para esta primeira (¢, j4 podemos adiantar, para o projeto de conhecimento/controle total da razdo instrumental), pela qual um objeto tende a manter a sua inércia na auséncia de forgas extemas incidindo sobre ele, ou seja, ma situago idealizada de um objeto isolado no vazio. "A fisica clissica estava deminada pelo ideal do conhecimento maximo, total, aquele que reduziria o devir a uma repeti¢ao tautoligica do ©° Prigogine e Stengers, op. Op.cit, p.8 ™ Para uma abrangente exposigao do principio antropomérfico, vide, por exemplo, John D. Barrow ¢ Frank J. Tipler; The Anthropic Cosmological Principle; Oxford: Oxford University Press, 1986, 60 it, p.215 mesmo. Este era, como vimos, seu mito fundador. Hoje em dia a fisica das trajetorias nao parece mais que uma ilha rodeada pelas ondas da instabilidade e da coeréncia quantica. © problema do tempo que estivemos perseguindo através deste livro apresenta-se desde agora de uma forma radicalmente nova.""4 Enquanto que para os objetos da fisica classica, como coloca Reeves, "todos os eventos sto reversiveis ¢ tém a caracteristica comum de no produzir nada de novo: 0 futuro ¢ 0 passado so permutdveis (...), fora do contexto de equilibrio, os resultados dos eventos da natureza s4o parcialmente imprevisiveis. E deste fato que surge 0 inédito do presente.""** "A expansio é reversivel, mas as condi¢des que ela impie & matéria so a fonte de irreversibilidade e da novidade na natureza. Ao provocar os desequilibrios, ela introduz a imeversibilidade e, em conseqiiéncia, permite a possibilidade de crescimento da complexidade e da variedade no universo. A 26 « percep¢0 —> representago) mas sim como fruto dialético do acoplamento estrutural entre a organizagao aufopoiética dos seres vivos ¢ o meio em que vivem.'? Como coloca Goldsmith, no sé os sentidos humanos detectam estimulos em dado espectro ¢ ignoram os demais, como resultado da seleg4o genética da espécie ao longo das eras," como também esta percepgio é dada pelo contexto cultural e a histéria individual do observador. "Em qualquer momento, nds detectamos apenas uma pequena porcentagem dos dados que estamos geneticamente capacitados a detectar -aqueles que a nossa formagio e cultura nos ensinaram a ver como relevantes para o nosso comportamento. A percepcao s6 pode ocorrer baseada em um modelo mental prévio, cujos aspectos gerais refletem a experiéncia da espécie e cujas caracteristicas particulares sio em grande parte aquelas do individuo no interior do seu grupo cultural. E luz deste modelo que a relevancia dos diferentes dados para o seu padrao de comportamento é determinada."!** A percepso ndo € passiva ¢ sim dada em fungao da dinamica interna do sistema nervoso em sua clausura operacional. Nesta perspectiva 0 conhecimento, na terminologia de Maturana ¢ Varela, tem como funcao essencial assegurar 0 acoplamento estrutural entre o ser vivo ¢ 0 seu meio, isto é a propria existéncia/sobrevivéncia deste ser.'* E neste sentido que podemos compreender melhor a afirmagao de Goldsmith de que mais que racional, o homem é um ser racionalizante. Enquanto seres vivos, 0 que nos poe em movimento, 0 que nos faz. atuar, sA dimensées cronol6gica ¢ logicamente anteriores & nossa ‘= Ponto que discutiremos com mais detalhe adiante, seguindo a discussto de Humberto Maturana ¢ Francisco Varela, El ‘Arbol del Conocimiento; Madrid: Editorial Debate, 1996, especialmente pp. 134-150. '® Edward Goldsmith; The Way - an ecological world view; London: Rider, 1992, p. 65 Ibid, p. 65 66 capacidade de consciéncia, de auto-reflexividade. Atuamos, primordialmente, impulsionados por nossas emoges ¢ toda uma esfera existencial em grande medida inconsciente. No entanto, ao termos a capacidade de reflexionar sobre os nossos atos, surge também a necessidade de justificar e explicar os ‘mesmos, Enquanto que para uma dguia o ato de cagar e destrogar sua presa é um ato que se dé como parte integral de sua auto-organizaco, sem envolver nenhum tipo de explicago moral ou ética, no caso da autopoiesis humana este mesmo ato envolve também uma dimensdo de auto-reflexividade, isto é, de justificagdo e racionalizagao no interior de um determinado quadro cultural e cédigos morais ¢ éticos. E é neste ponto que aparece a razilo humana, incluindo nao sé nossas construgées morais e éticas, como também as nossas construgdes te6ricas, em grande medida racionalizando a posteriori determinadas agdes motivadas por uma emoco inconsciente (podemos ver esta relacdo na etimologia da palavra, como no inglés, no parentesco entre motion - movimento - e emotion - emogao, por em movimento). Nao é dificil fazer uma leitura histérica retrospectiva da ciéncia modema (assim como do pensamento religioso ou mitolégico nas diferentes culturas), mostrando o quanto suas afirmagSes legitimavam e reforgavam determinada forma de aco e organizacao social. Porém, mais do que nos dedicarmos a esta re-leitura, 0 que nos interessa é ressaltar como ela apenas mostra o quanto no caso do ser humano fazer esté intimamente articulado ao conceber, como a prétis se articula a teoria. Isto implica em compreender com humildade os limites de toda a teorizagao, ja que se, por um lado, toda consciéncia se estrutura no didlogo do ser humano com o seu meio, por outro lado ela parte ¢ reflete as condicionantes da sua existéncia e assim a sua propria auto-organizapfo interna. Mais ainda, o préprio conhecimento, assim como a realidade que ele procura retratar, nunca se encontram acabados, mantendo sempre uma irredutivel abertura para o novo. Neste acoplamento estrutural entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ (isto é, a consciéncia representante ¢ a realidade representada), a realidade exterior engatilha (na expresso utilizada por Maturana ¢ Varela) uma reagao interna.'*° Neste sentido, "€ evidente que o sistema nervoso se pode definir, quanto a sua organizago, como um sistema que possui uma clausura operacional. Isto é, 0 sistema nervoso esté constituido de tal forma que quaisquer que sejam suas alteragdes, estas geram outras alteragdes dentro dele mesmo e o seu funcionamento consiste em manter certas relagdes entre os seus componentes inalteradas, frente as perturbagdes nele geradas tanto pela dinémica, quanto pelas interagdes do A wi37 organismo que integra.""” cit, p. 24, Veja também cap. VI ¢ VIL, pp. 103-150. abemos, no entanto, que os sistema nervoso como parte de um organismo opera com determinacio estrutural e, portanto, a estrutura do meio nfo pode especificar as suas mudangas, apenas engatilhi-las.” id.,p. 112. "Tid, p. 140 67 Reencontramos aqui um dos elementos centrais identificado por Morin na organizagao sistémica, que € a sua simulténea abertura ¢ fechamento. Enquanto que a sua organizagfo e assim o seu funcionamento esta dada pelo seu fechamento sistémico, é, no entanto, do seu acoplamento estrutural a0 organismo (conectado as superficies motoras e sensoriais do organismo), caracterizado por sua abertura (ou acoplamento estrutural) ao meio, que o sistema nervoso recebe os estimulos (ou perturbagées) aos quais responde de acordo com sua dinémica intema. "Assim o sistema nervoso contribui ow participa no operar de um metazoério ao constituir-se, mediante miiltiplos circuitos entrelacados, em um mecanismo que conserva as constincias intemas que so essenciais para a manutengio da organizagao do 138 organismo como um todo.’ © que estes autores denominam ‘manter uma contabilidade légica’ para a explicacéo do conhecimento consiste justamente em dar o peso respectivo aos elementos intemnos ¢ extemos (dados respectivamente pelo fechamento e pela abertura do sistema que conhece). “Assim, por um lado, podemos pensar um sistema no dominio do operar dos seus componentes, no dominio dos seus estados internos ¢ dos seus cambios estruturais. Desde esta perspectiva, para a dindmica interna do sistema, 0 ambiente nio existe, ¢€ imelevante. Por outro lado, também podemos avaliar uma unidade em suas interagdes com 0 meio ¢ descrever a sua historia de interagdes com ele. Desta perspectiva, em que o observador pode estabelecer relagdes entre certas caracteristicas do meio e a conduta da unidade, a dindmica interna desta é irrelevante. Nenhum destes dois possiveis dominios de descrigao ¢ problemético em si mesmo ¢ ambos sao necessarios para satisfazerem a nossa compreensio cabal de uma unidade. E 0 observador que desde a sua perspectiva externa as correlaciona. E ele que reconhece que a estrutura do sistema determina as suas interagdes a0 especificar que configuragdes do meio podem engatilhar nele mudangas estruturais E ele que reconhece que o meio nao especifica ou instrui as transformagdes estruturais do sistema.">? Todo conhecimento, portant, esté ancorado no funcionamento e na organizagao fisica do sistema que conhece/representa, 20 mesmo tempo em que se refére a uma realidade dinfmica e, em sua esséncia, aberta & novidade, que, no maximo, podemos representar como probabilidade estatistica entre distintas vias bifureativas. Tanto do lado do sujeito cognoscente, quanto da realidade representada, ambos parte de um todo sistémico maior, existe uma historia pessoal e irreversivel que Ihes confere tanto a estrutura presente como as potencialidades futuras. Diferentes histérias desembocam em diferentes realidades; e, do lado do sujeito cognoscente, diferentes formas de representi-la. Isto leva, por sua vez, a diferentes * Ibid, p. 140. °° tbid., pp. 114-115. 6 formas de atuar, uma vez que, como emerge claramente do estudo de Maturana ¢ Varela, conhecer atuar estdo intimamente ligados. Dentro dos elementos constituintes desta representagdo da realidade nenhum é mais fundamental do que a concepgao espao-temporal implicita ou explicita que lhe serve de base, E esta que dé a forma em que se organiza a dinémica desta realidade e portanto a forma em que 0 ser cognoscente concebe a sua inserg&o nesta dindmica e atua, Isto é verdadeiro nao s6 para o ser humano, onde diferentes conceppdes ¢ representagdes espago-temporais esto na base de diferentes formas de organizagio social ¢ de diferentes dialéticas homem/natureza, como também para 0 comportamento de qualquer ser vivo, jé que a antecipagdo (e assim uma ‘representagdo” consciente ou nao da dialética do meio) ¢ fundamental para a sobrevivéneia de todos, seja uma ameba antecipando e deslocando-se em diregao do seu alimento, seja um bando de leoas antecipando os movimentos de migracio, deslocamento cotidiano ¢ fuga das suas potenciais presas. E também 0 caso de uma semente que germina na primavera ou do homem modemo que, frente & magnitude dos efeitos de sua interferéncia no meio, atualmente se vé obrigado a reconsiderar a sua representagéo da organizagao e da dialética sistémica deste todo. Uma falsa representagdo ¢ assim um comportamento baseado em uma antecipacao equivocada pode resultar na impossibilidade de manter-se a autopoiesis do ser vivo ao romper-se 0 acoplamento estrutural deste com o seu meio. E 0 caso da ameba ou das leoas que ndo encontram o seu alimento, da planta que a0 germinar no outono no encontra as condigies climéticas adequadas para o seu posterior desenvolvimento, ou da espécie humana que pode ndo estar adaptada em sua constitui¢ao biolégica c/ou organizagio socio-cultural para sobreviver na nova realidade biosférica que ela mesma esté ajudando a produzir. Desta perspectiva, assim como a particular maneira de conceber a dinémica temporal subjacente & realidade esteve indissoluvelmente vinculada & emergéncia do projeto de dominagao/emancipagao da moderidade, é na discussdo do que estamos denominando tempo sistémico, que podemos encontrar as bases para a sua critica. Isto implica no apenas em reconsiderar de outra perspectiva a realidade presente (¢ assim a forma em que o ser humano deve inserir-se nesta dinémica), como também ‘reler’ passado com outros olhos. ‘Neste processo uma das primeiras coisas que nos vemos forgados a fazer € abandonar a pretensio de ‘um conhecimento total ¢ ultimo da realidade, E esta a razo que levou Prigogine a titular o seu ultimo livro'O Fim das Certezas' e que levou Maturana e Varela, no inicio do seu livro, a convidando o leitor a abandonar a ‘tentagdo da certeza’, "porque justamente 0 que este livro vai mostrar, ao estudar mais de perto o fenémeno do conhecimento ¢ nossas ages guiadas por ele, ¢ que toda experiéncia cognitiva implica a0 que conhece de uma forma pessoal, enraizada em sua estrutura biolégica, na qual toda o experiéncia de certeza é um fendmeno individual cego ao ato cognitivo do outro, em uma solidio que (como veremos) s6 se transcende no mundo que se cria com ele.""? Mesmo assim nos resta, no entanto, 0 objetivo mais humilde - e, talvez, mais vivo e palpitante - de buscar um conhecimento aberto, em continua transformagao, através do qual possamos encontrar algumas regularidades e aspectos gerais, que certamente podem ajudar a preparar a forma de responder ao novo, ao futuro em gestagdo. Com isto 0 conhecimento € resgatado do espago a-fisico da tore de marfim objetivista (espago de um conhecimento universal, sem tempo nem espago, habitado pelo onisciente deménio de Laplace), para voltar a ser a emergéncia sistémica da autopoiesis da matéria viva, profundamente ancorado em sua organizagao ¢ dinémica. O conhecimento deixa de estas dissociado, exterior & physis, para voltar a ser a propria physis que se observa e apreende a si mesma, “As ciéneias implicadas nesta aventura, a nossa, refrescam tudo que elas tocam e esquentam tudo em gue elas penetram, a Terra sobre a qual vivemos e as verdades que nos impulsionam a viver. (..) E por 'ss0 que as grandes descobertas no so, como as de Copémnico, escondidas sob 0 leito de morte, mas oferecidas, como as de Kepler, sobre 0 caminho dos sonhos despertos ¢ das paixées bem vivas.""4! Assim, esta tese, para dar um exemplo que me inclua ¢ retire da posigdo de mero observador, é o fruto complexo (e, em nenhum dos seus aspectos inteiramente inevitével e determinado) da minha historia e realidade individual, historia esta que emerge da confluéncia de uma biogénese minha e da espécie em uma dada dinamica ¢ realidade sécio-cultural. Esta confluéncia, por sua vez, pode se dar como resultado da dialética historiea de uma espécie dotada de consciéncia auto-reflexiva, por sua vez a qualidade emergente de um dos ramos do desabrochar da prépria vida. O fendmeno do vivente, finalmente, € uma qualidade emergente da organizagao pré-biética da matéria e da energia, fruto emergente da evolugao do nosso universo. Desta forma, esta tese nfo surge do nada, mas sim de uma historia muito conereta (¢ tinica), da qual resultam tanto suas riquezas, quanto suas limitagBes. Agora, nestes processos de organizacdo sistémica, alguns parimetros podem ser fundamentais para explicar ndo esta tese em concreto, mas 0 quadro geral em que uma tese deste tipo pode emergir. Como coloca Kauffman, "eu desconfio que a evolugéo mesma seja, em sua esséncia profunda, como um algoritmo incomprimivel. Se desejamos saber os detalhes, devemos observar com assombro ¢ ‘admiragdo, contando e recontando os numerosos riachos de vidas em suas ramificagdes e os miltiplos detalhes moleculares ¢ morfoldgicos. E mesmo assim, se € verdade que a evolugao é um destes processos incomprimiveis, nao se conelui que nos no possamos encontrar profundas ¢ belas leis governando este fluxo imprevisivel, pois nao se “"Op. cit, p. 12 e Prigogine 1996, op. cit. 70 exclui a possibilidade de que diversas caracteristicas dos organismos ¢ de sua evolugio sejam profundamente robustas ¢ insensiveis aos detalhes. (..) Nunca podemos esperar prever a ramificagao exata da drvore da vida, mas podemos descobrir leis poderosas que predizem e explicam a sua forma geral. (..) Por falta de uma frase geral melhor, eu denomino estes esforgos ‘a busca de uma teoria da sk emergéncia'.""* “© Serge Moscovici; Quelle unité de "homme?; Paris: Christian Bourgois, 1974, pp. 297-298, citado por Prigogine ¢ Stengers, op. cit.,p. 364 *© Op. cit, 23. 1 Ie. A fenomenologia biolégica: autopoiesis, tempo sistémico e a vida "A vida € mutirdo de todos, por todos remexida e temperada." (Jouo Guimaraes Rosa)'? Nesta busca de uma teoria da emergéncia sistémica, de fato, um quadro inteiramente novo emerge na explicagao do fendmeno vivo. No paradigma clissico a vida é o grande mistério, 0 elemento ausente, jé que em um universo mecanicista néo ha espago para o fendmeno da auto-organizacao. Os objetos sao, jd em sua definigdo, inanimados e passivos, organizados e manipulados a partir de uma forga externa. A probabilidade de que, de uma organizagio aleatéria, tijolo sobre tijolo, étomo sobre étomo possa emergir algo capaz de se auto-reproduzir e auto-organizar é infinitamente pequena, como também 0 é 0 proceso de ontogénese, o desenvolvimento de um organismo adulto a partir de miiltiplas divisdes celulares partindo de uma célula tinica inicial. Porém € este fendmeno de autopoiesis que continuamente se manifesta fora dos laboratérios, no desabrochar da vida, e em seu interior, no corpo do cientista e das cobaias que, vivas, respiram inalando 0 oxigénio necessario para a combustio intema, fonte de energia que anima um corpo em continua re(des)organizagao. Com suas células em constante rocesso de decaimento e morte, formagao e cria¢do, o organismo vivo esté, como vimos na citagao de Hegel, marcado por seu cardter dialético, inerentemente contraditorio. A realidade viva, como 0 rio de Heréclito, € sempre nova, outra ¢ a mesma, mantendo e sua identidade na transformagibo. Ja de uma perspectiva da auto-organizagdo inerente dindmica sistémica, a organizago do vivente aparece no como uma aberrago altamente improvavel, mas sim como um passo a mais, esperado, do gue Reeves denominou os degraus da complexidade. Isto nao implica, no entanto, cair num determinismo, uma vez que, como vemos ao longo de nossa discussio, 0 que lhe € préprio é 0 carater criador, porém ndo determinado. Alimentada por um fluxo externo de baixa entropia, uma nova forma de organizagdo sistémica da matéria pOde emergir, constituida no mais por moléculas de alguns poucos étomos, mas sim por imensas cadeias moleculares compostas por milhares e milhares de dtomos, centradas nas cadeias carbénicas. Como colocam Maturana ¢ Varela, "devido ao fato de que os atomos de carbono podem formar, s6s ou com a participagaio de muitas outras classes de étomos, uma quantidade ilimitada de cadeias distintas em seu tamanho, ramificagdes, dobras ¢ composigio, a diversidade morfolégica ¢ quimica das moléculas organicas é, em principio, infinita. E é, justamente, esta diversidade morfoldgica n ¢ quimica das moléculas organicas que possibilita a existéncia de seres vivos, ao permitir a diversidade de reagdes moleculares implicadas nos processos que realizam.""* Podemos supor que a matéria organica foi sendo criada continuamente de forma abiética nos mares da ‘Terra primitiva, a partir da energia fomecida pela radiagao solar, pelos fenémenos vuleanicos, pela imensa energia geotérmica remanescente do proceso de formacio da Terra, pelas violentas tempestades com suas descargas elétricas e ondas sonoras, etc. O exemplo clissico deste tipo de processos é 0 célebre experimento de Miller, quando em 1952 ele bombardeou um tubo de ensaios composto pelo que se imaginava ser 2 composicao da atmosfera primitiva (basicamente amoniaco, metano, diéxido de carbono, hidrogénio e vapor de Agua) com descargas elétricas (simulando raios). Para surpresa geral, a0 cabo de alguns dias, encontrou compostos orgénicos em forma de aminodcidos nas paredes do seu tubo de ensaio.'** Mesmo se a composigao utilizada por Miller nao corresponde & imagem atual que se tem da atmosfera primitiva, o experimento de Miller foi crucial para fechar 0 elo entre a quimica inorgénica e a quimica orgénica: compostos orginicos complexos podem ser produzidos 2 partir de compostos quimicos simples, de forma abistica, a partir de uma fonte extema de energia em um processo que Prigogine denominou 'ordem por flutuagdes'.'* © fato de que esta produgdo de moléculas orgénicas se deu em um estado distinto do existente na Terra primitiva indica 0 quanto este tipo de processo parece ser universal ¢ ‘esperado’. "Experiéncias similares mostraram que ¢ possivel (mesmo se com muito mais dificuldades) formar 0s tijolos constituintes do micleo de DNA ¢ RNA, e moléculas gordurosas e portanto, através destas, o material estrutural para as membranas. Uma "7 E, de fato, baseado nesta possibilidade de criagio abidtica de cadeias organics que todo um importante ramo da série de outros pequenos elementos moleculares foram sintetizados abioticament indistria moderna (e da tecnologia e da ciéncia com ela relacionadas), a bioquimica, se pode constituir ‘Assim, néo é de surpreender que "a vida saltou do ventre fundido da Terra tio logo a queda de massas meteoriticas formando a protoTerra se reduziu significativamente e a temperatura da superficie terrestre esfriou o suficiente para suportar agua liquida, um campo em que os elementos quimicos se podiam combinar para formar metabolismos. A Terra tem aproximadamente 4 bilhdes de anos. Ninguém sabe @ 15 Grande Sertdo: Veredas; Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 434. “4 Op. cit., 31. “© S.L. Mille, in Science, n° 117: $28, 1953. 6 mg vivente funciona longe do equilibrio, em um dominio em que as conseqiiéncias do aumento da entropia nfo podem mais ser intepretadas segundo o principio de ordem de Boltzmann. Ele funciona em um dominio em que os processos produtores de entropia, os processos que dissipam energia, esempenham um papel construtivo, so fonte de ordem. Neste Jominio. a idéi de leis universas abre caminho para a exploragao de estabilidades e instabilidades singulares, a oposiao nae a aleatoriedade das configuragdes iniciais particulares ¢ @ generalidade previsivel da evolugio que elas determinam Sbve caminho para a coexisténcia de zonas de bifureagBes e zonas de instabilidade, a dialetica das flutuacGes descontroladas eras leis deterministas das médias." Prigogine e Stengers, op. cit, p. 263. Para a discussto da nogdo de ‘ordem por fTutuagao’, vide o cap. VI, pp. 239-266 desta obra B que se pareciam os primeiros sistemas moleculares auto-reprodutores, porém hA cerca de 3,45 bilhdes de anos atras formas arcaicas de células se agarraram a alguma superficie rochosa ou argilosa, foram enterradas e deixaram os seus tragos para as nossas posteriores indagagées.""** Para a nossa discusstio, mais do que os detalhes deste processo, nos interessa reter um aspecto central para a compreenstio do que estamos denominando tempo sistémico, que é 0 aspecto de globalidade deste processo. Enquanto emergéncia sistémica, o fendmeno do vivente é um fenémeno inerente ao todo © portanto inexistente em suas partes isoladas. "A vida, nesta visto, emergiu inteira sempre permaneceu como um todo. A vida, nesta visdo, no deve ser buscada nas partes, mas nas propriedades coletivas emergentes do todo que elas criam.""” Assim como a materialidade é uma qualidade do sistema atémico como um todo que este confere, retroativamente as suas partes, a vida é wna qualidade do ser vivo que este confere, enquanto sistema, retroativamente as suas partes. Todos os nosso érgios ¢ células pulsam e vivem, sendo continuamente (re)produzidos pelo funcionamento global do organismo que estes co-(re)produzem, Uma vez que cesse a autopoiesis do organismo, os diferentes érg: s deixam de existir enquanto subsistemas vivos (em um maior ou menor espago de tempo, segundo a sua inéreia de auto-organizagao propria), A qualidade emergente essencial da organizacao do vivente ¢ a sua capacidade de autonomizar-se frente a seu meio (enquanto sistema) ¢ produzir-se a si mesmo. Assim, como 0 colocam Maturana ¢ Varela, para 0 ser vivo o seu ser e 0 seu fazer se sobrepdem e de fato so uma e a mesma coisa.!® "4 nossa proposigio € que os seres vivos se caracterizam porque, literalmente, se produzem continuamente @ si mesmos, 0 que indicamos ao denominar a organizagao que os define organizag@o autopoiética,"'5! A dificuldade que se encontra no paradigma classico para explicar a vida é justamente 0 fato de que esta propriedade € uma propriedade do todo, inexistente no nivel das suas partes. A tentativa de explicar a emergéncia da vida de maneira reducionista, passo a paso, tijolo a tijolo, buscando identificar a menor molécula auto-reprodutora existente sempre se choca com 0 fato de que a reprodugao envolve a totalidade do sistema autopoiético, em uma complexa rede em que todos os elementos aparecem tanto como produto, quanto como bases essenciais para a produgiio. O primeiro candidato sério na visio convencional, o DNA, em sua forma tridimensional de dupla hélice, capaz de se dividir e replicar em duas cépias idénticas posteriormente, teve que ser abandonedo frente a evidéncia de que 0 DNA isolado é inerte. De fato o proceso de réplica do DNA exige uma complexa rede de proteinas (principalmente enzimas) € outras informagées bioquimicas (de cardter hormonal, ° Kauffman, op. cit, p. 36. Ibid, p. 31 "© Ibid, p. 24 “Op. cit, p. 41 ” etc.) mediando ¢ direcionando este proceso. A divisdo celular (mitose) pela qual uma célula se reproduz por divistio em duas e6pias, envolve a globalidade da célula, em um processo que se dé "sem interrupgo da autopoiesis celular, como resultado dela (...). A diviséo celular é um caso particular de reprodugo que legitimamente podemos denominar auto-reprodugao.""*> Outro candidato, o RNA (écido ribonucléico), elemento central para o funcionamento da célula, apesar da sua versatilidade potencial, € instavel enquanto instincia auto-reprodutora jé que, na auséncia de mecanismos de controle extemos, os erros de mutagdo em sua auto-reproducao parecem néo sé ser inevitiveis, como também se amplificariam com o tempo (ou seja um erro inicial em uma copia ‘aumentaria a probabilidade a importancia dos erros subseqilentes em um processo de auto-ampliagao das flutuagdes).!*° Todas estas consideragdes nos evam a compreender melhor a evidéncia empitica de que nenhum ser vivo existe atualmente abaixo de um certo nivel de complexidade. Como coloca Kauffman, “as células livres vivas mais simples so denominadas pleurémonas, uma forma altamente simplificada de um tipo de bactéria, com membrana celular, genes, RNA, mecanismo sintetizador de proteinas - o equipamento bésico completo. O nimero de genes na pleurémona é estimado em diversas fontes entre algumas centenas e cerca de mil, comparado aos estimados 3.000 da Escherichia coli, uma bactéria dos nossos intestinos. A pleurémona é a coisa mais simples que sabemos estar viva. pict grande problema para a explicagdo reducionista da origem da vida ¢ que a probabilidade de que uma tal complexidade minima se criara de forma puramente aleatéria, na auséncia de uma forga de auto- organizagio inerente a propria dialética dos sistemas, é virtualmente nula. "A probabilidade do evento é comparavel as possibilidades de que um furacdo pasando por um depdsito de ferro-velho montasse um Boeing 747 com os materiais af existentes."'** ‘Pid, p. 36. 2 Ibid, p. 56 € p. 57, 155 ng ribossoma auto-reprodutor necessariamente produz variantes mutantes. Provavelmente estas variantes mutantes, no entanto, também sero menos eficientes do que as ribossomas normais ou selvagens e, portanto, ter80 ums maior probabilidade de produzirerros com maior freqUéncia. Estas ribossomas frouxas tenderéo a reproduzir-se com ainda mais Trutantes. por eépia do que o tipo selvagem. Pior, as ribossomas frowxas sto capazes de catalisar a reproducio das Hbossomas,selvagens, criando ainda mais mutanies. Através dos ciclos, 0 sistema poderia produzir um espectro {escontrolado de variantes mutantes." Kaufman, op. cit, p. 42. Vide tb. pp. 38-43. STbid, p. 42. Devemos lembrar também que "os virus, que so amplamente mais simples que a pleuromona, nio vivem livres, Eles sfo parasitas que invadem as células e controlam 0 mecanismo metabélico da célula para realizar » sua propria auto-reprodugao, escapar da célula anfiria ¢ invadir outra. Todas as células vivas livres tém, pelo menos, a diversidade da pleuromona.” Ibid, p. 42. Tes hid. p. 45. Citando as estimativas de Hoyle e Wickramasinghe sobre as possbilidade de se obter algo parecido com uma colt, iuada em tomo dos 1/10", Neste sentido, 0s 2,5x10" intentos que concede Robert Shapiro para @ formacio aleatoria da vida 20 longo da evolugto terrestre (lembremos que 5 bilh&es de anos correspondem ‘apenas’ a cerca de 46x10" segundos), significam que "se o niimero total de tentativas para a formagéo da vida é de apenas 10° © a probabilidade de suceso € de 1 em 10°, entdg a vida simplesmente nfo poderia ter surgido.(..) O nimero wr de ‘omos de hidrogénio no universo € de cerca de 10®. Assim 10% ¢ imensamente maior que enorme, inimaginavelmente 75 Este quadro, no entanto, muda radicalmente se consideramos a auto-organizago como o eixo central dos sistemas e assim buscamos encontrar na histéria do que Maturana e Varela denominaram de ‘deriva estrutural dos sistemas’ a base para a emergéncia da autopoiesis, a auto-produgdo inerente a organizaséo do vivente. Como coloca Kauffman, "eu espero convencé-lo de que a vida é uma propriedade natural de sistemas quimicos complexos, de que quando o niimero de diferentes moléculas em uma sopa quimica passa um certo limite, uma rede auto-sustentavel de reagdes -um metabolismo autocatalitico- de repente aparecerd."!"° Mais do que os detalhes da argumentagao de Kauffman, nos interessa aqui considerar os principais aspectos que emergem destas consideragées sobre a dinémica de organizagao material do vivente e que nos permitem definir com mais preciso o que estamos denominando tempo sistémico. Além dos aspectos ja discutidos (como globalidade, novidade, irreversibilidade e imprevisibilidade), cumpre aqui destacar 0 aspecto de ‘intemalidade’ que emerge destas consideragées. De fato a organizacdo sistémica aparece como auto-organizagdo e no como uma forga externa que organiza objetos inertes. Como vimos, todo sistema caracteriza-se por ser simultaneamente aberto ¢ fechado. A autonomia basica é, neste sentido, a parte indissociivel de uma destas caras, 0 fechamento sistémico, e portanto Vincula-se & sua auto-referéncia, a forma pela qual todo sistema esta definido estruturalmente pela forma de organizagao que Ihe € prépria. Enquanto unidade estruturalmente determinada, sua identidade esta dada por esta organizacao auténoma e de fato independe do exterior que aparece, desta perspectiva, como uma fonte externa de perturbagdes. Estas perturbagdes, como classificam Maturana e Varela, podem ser congruentes com esta organizacao (e, podemos adicionar, essenciais no caso das estruturas dissipativas j4 que estas se alimentam deste fluxo de baixa entropia que as atravessa) ou destrutivas, quando desregulam a organizacao interna do sistema, eliminando-o e desestruturando-o.'? Em todos os casos, ¢ sempre a estrutura interna, a organizapdo interna que determina a forma que dado sistema afetado pelo meio € nao o contrario. A influéncia de um ‘tempo extemo! esti, portanto, limitada pelo grau de abertura do sistema, pela permeabilidade deste aos estimulos do meio. Esta organizagao interna, como lembra Morin, pode ser ativa (caso, de forma genérica, das estruturas dissipativas, em constante (des)(re)organizagao da sua identidade) ow passiva, fixa, caso dos sistemas inanimados, cuja histéria € um continuo resistir (dado, no devemos esquecer, pela sua estrutura interna) 4 gradual desintegrago entrépica decorrente de suas interrelagdes com o meio. Como coloca Morin, "os sistemas nao transacionais perduram sem viver, se desintegram sem morrer. A meia-vida, hiper-astronémico.” Kauffman, op. cit, p. 44, itando a diseusso de Robert Shapiro Origins: a Skeptics Guide to the Creation of Life on Earth, New York: Summit, 1986. Tid, pp. 47-88 Op. cit, pp. 83-84, 16 apenas meio-mortos."!®* A organizac&o passiva, no entanto, é uma caracteristica minoritaria do nosso universo, ainda mais se consideramos que toda estrutura inanimada esta constituida, em sua base ‘mesma, por um turbilhao de atividade atémica, que a mantém enquanto sistema organizado. "Agdo significa (. interagdes, palavra chave e central, que compreende distintamente reagdes (mecénicas, quimicas), transagdes (agbes de troca), retroagdes (agbes que atuam de retormo sobre os processos que as produzem e, eventualmente, sobre sua fonte e sua causa), Estas interagdes, reagdes, transagdes, retroagbes geraram as organizacées fundamentais que povoam 0 nosso universo, atomos ¢ estrelas. Estes milhares e milhares de seres nao séo de nenhuma forma simples montagens de elementos fixos, organizagdes em repouso. Eles esto, uns e outros, em atividade permanente. Eles mesmos esto constituidos de interagbes, de reagbes, de transagdes, de retroacdes ¢, como veremos, as retroagdes representam ai um papel fundamental, sobredeterminando, acentuando, inibindo, modificando, transformando as ages e interagées. (..) Portanto, o elemento central da physis nfo € apenas a idéia de organizacdo, mas a idéia de organiza¢ao ativa. Os sistemas em repouso so secundarios e segundos." E nesta organizagao ativa que reside a autonomia essencial dos sistemas. De fato, j4 em um exemplo de ‘um sistema bastante simples da matematica, as ‘transformagbes do padeiro’,'®” surge a necessidade de se considerar um tempo interno 2o sistema. "A idade cronolégica, a idade da dinamica, ¢ uma idade convencional; aqui nés observamos, em um exemplo simples porém significativo, a génese de uma idade interna, relacionada ao estado de um sistema. (...) Nés estamos agora diante de dois conceitos de tempo: o tempo das trajetorias, aquele que nés lemos nos nossos reldgios, exterior ao nosso organismo e a todas as coisas naturais, e que nos serve a medir € comunicar; e, de outro lado, 0 tempo interno, aquele que, no caso da 'transformagao do padeiro’, se mede pelo nivel de fragmentagao das divisbes que, no caso dos organismos vivos, poderia sem divida se aproximar do que se imagina sob o conceito de «idade biolégican"'* Esta idéia de um tempo interno ao seres vivos, sem que isto Ihes seja exclusivo, aparece claramente nas ‘andlises de Maturana e Varela quando estes mostram que "a caracteristica mais particular de um sistema autopoiético é que este se levanta por seus proprios limites, constituindo-se como distinto do meio circundante através da sua prépria dindmica, de forma que ambas as coisas so insepardveis. (...) Os seres vivos so unidades auténomas."" 8 Morin, 1977, op. cit. p. 123. 4 Tid. pp.155-156. © Veja, por exemplo, Amold, V. Te Avez, A., Problémes ergodiques de la mécanique classique; Paris: Gauhiers Villers, 1967, Citado em Prigogine e Stengers, op. cit, p. 329, Para esta discussao, vide também, pp. 329-346 desta obra "81 prigogine e Stengers, op. cit. pp. 341-343 "Op cit, pp. 39-40, n E esta autonomia dos sistemas aparece como uma propriedade emergente do todo € nao algo que possa ser analisado de forma reducionista a partir das partes isoladas, Como jé indicava Oparin, "quanto mais © estudo bioquimico concreto dos processos de auto-reprodugo dos corpos vivos esta avangado, mais evidente fica que este processo nao esta ligado unicamente a uma certa substncia ou a uma molécula constituida por esta substéncia, mas que ele é determinado pelo sistema de organizagao do corpo vivo. Esta organizaro tem o cardter aberto ¢ no pode ser comparada a um estampador com uma matriz invariével.""* E somente ao constituir-se enquanto um todo, em seu fechamento sistémico ou no que Maturana ¢ Varela denominam ‘clausura operacional’ que podemos observar uma rede de interagbes que especifica 0 dominio de legalidade de dado sistema vivo (isto é, a sua identidade, dada por sua organizagao especifica), que no caso da organizagdo ativa dos seres vivos é capaz de produzir-se a si mesma. E esta a base da proposi¢ao de Kauffman de que a vida nao surgiu tijolo por tijolo, do simples 20 complexo, mas sim como uma totalidade auto-organizada, "A vida, eu sugiro, ndo emergiu simples. mas complexa, Surgiu como totalidade e permaneceu complexa ¢ total desde entio - nflo por causa de algum misterioso élan vital, mas gragas a simples e profunda transformagdo de moléculas mortas em uma organizayo em que a formagto de cada molécula é catalisada por alguma outra molécula da orgenizagao."'* "Em seu amago, um organismo vivo é um sistema de elementos quimicos que tem a capacidade de catalisar a sua propria reprodugao. Catalisadores como as enzimas aceleram reagdes quimicas que poderiam ocorrer de outra forma, porém de maneira extremamente lenta. O que eu estou denominando lum sistema coletivamente autocatalisador € aquele em que as moléculas aceleram as reagées pelas uais elas mesmas so criadas. (..) Dada uma fonte de moléculas de alimento, a rede sera capaz de continuamente recriar-se a si mesma. Assim como a rede metabélica que habita cada célula viva, ela estard viva, O que eu procurarei mostrar é que, se uma mistura suficientemente diversa de moléculas se acumula em alguma parte, a possibilidade de que um sistema autocatalisador - um metabolismo auto- mantenedor ¢ auto-reprodutor - aparega se toma quase uma certeza. (..) A vida em sua raiz repousa na propriedade de fechamento catalitico entre uma colegao de espécies moleculares. Isolada, cada espécie molecular esti morta. Juntas, uma vez alcangado 0 fechamento catalitico entre elas, o sistema coletivo de moléculas est vivo. Cada eélula em nosso corpo, cada célula de vida livre, é coletivamente autocatalisadora. Nenhuma molécula de DNA se replica s6 em um organismo vivo livre. O DNA s6 se replica como parte de uma complexa rede de reagdes ¢ enzimas na célula, coletivamente autocatalisadora. Nenhuma ‘© A. Oparin; L'Origine et 'évolution de la vie, Moscou: Editions de la Paix, p. 28. “ Kauffman, op. cit, pp. 47-48. 8 molécula de RNA se reproduz a si mesma. (...) Com a excego das ‘moléculas alimentares,’ cada espécie molecular de que uma célula esté construfda é criada por catilises de reagdes ¢ a catilise mesma é feita por um catalisador criado pela célula."'® © fato da vida aparecer como um sistema autocatalisador e auto-(te)produtor aponta para outra caracteristica central introduzida na dialética temporal pelo fendmeno do vivente, que € a aceleracdo temporal relativa que acompanha a sua emergéncia. Esta aceleracdo esté associada néo apenas ao incremento na complexidade da organizacao da matéria (levando a uma maior polarizagao no sistema como um todo), como também a esta capacidade que tem o fenémeno vivo de intensificar/acelerar a transformago material enquanto sistema autocatalisador € auto-intensificador. Dadas as condigées adequadas (isto é, uma fonte de energia/alimento abundante © um meio fisico adequado para a manuteng&o dos processos metabélicos), as transformagies materiais introduzidas pelo fendmeno biolégico seguem uma trajetoria exponencial e nfo linear, pela propria caracteristica de auto- reprodugdo que esté em sua base. Além disso, a mobilidade propria do vivente (isto ¢, associada & sua autonomia existencial) introduz uma fonte adicional de transforma¢ao material ao permitir 0 transporte, armazenamento, concentragio e mobilizagdo em termos gerais da matéria e da energia, levando a um maior dinamismo do sistema como um todo, fato que, como veremos com mais detalhes, assume especial importancia na organizagio da biosfera. A autonomia do fendmeno vivo estd claramente marcada pela existéncia de uma membrana que separa © espago interno do espago externo da célula e que de fato € uma das especificidades da dinamica biolégica em comparagio com todos os outros processos de transformagio natural. Isto se da tanto no nivel de cada célula, quanto no do organismo como um todo no caso dos seres multicelulares, que além das membranas delimitando as células individuais, possuem tecidos de células especiais - muitas vezes compostos por células mortas como € 0 caso da casca no reino vegetal, ou da superficie da pele no reino animal - separando © organismo do seu meio ¢ assim delimitando ¢ protegendo 0 espaco do ‘metabolismo interno. Esta separagfo tem que ter existido desde os prinoipios da vida, jé que ndo sé lhe 6 propria, como também sem ela nio se poderiam ter formado as concentragdes necessérias de moléculas para que se pudesse iniciar um processo autocatalisador, j4 que, apesar de moléculas orgénicas poderem ser formadas a partir de processos inorgénicos, na imensidéo das aguas primordiais clas estariam demasiado dispersas para poder dar origem a um sistema vivo complexo. ‘Uma possivel solugao para esta questo pode ser encontrada nos estudos do biofisico russo Alexander Oparin. "Quando a glicerina ¢ misturada com outras moléculas, cla forma estruturas gelatinosas © pid, pp. 49-50. Ou, em outra passagem, "os componentes metabélicos no precisam ser construidos tjolo por tjolo. Eles podem brotar completos da sopa primordial. Eu o denomino ordem de grava.” Tbid., p. 45. 9 Genominadas coacervatos. O coacervato € capaz de concentrar moléculas organicas em seu interior € trocé-las através dos seus limites. Em poucas palavras, coacervatos séo como células primitivas, que separam a atividade molecular interna da diluida sopa aquosa. Se estes estreitos compartimentos se formaram nas aguas primordiais, eles podem ter concentrado os elementos quimicos apropriados para formar um metabolismo.""* "Obtemos facilmente estas formagdes em laboratério pela simples mistura da solugao de diferentes proteinas ¢ outras substincias a macromoléculas, a temperatura ambiente (...). As moléculas das substéncias participam entio na formagdo do coacervato: moléculas que estavam dispersas por todo o volume do solvente, se retinem em pontos determinados do espaso, formando espécies de nuvens nas quais blocos inteiros de moléculas, depois de ter alcangado uma grossura determinada, se isolam da solug%0 como um todo sob forma de gotas com contornos claramente delimitados (...). Esta forma de organizagao e de movimento da matéria s6 pode aparecer a partir da evolugio de sistemas polimoleculares unificados, que se separaram da «sopa universel primitivay Possivelmente ainda bastante primitivos no inicio, estes sistemas eram capazes de, no entanto, devido 40 seu proprio isolamento do meio externo, interagir com este. E justamente durante estas interagdes ¢ a0 longo da selegao que a acompanha (...) que se produziu uma adaptagio progressiva da organizagio interna destes sistemas 4s condig6es exteriores. (...) E assim que se formaram sistemas polimoleculares unificados constituindo um conjunto que possuia, cada um, uma certa individualidade e, neste sentido, se opunha ao seu meio extemo. A continuagao da histéria de uma gota de coacervato podia ser bastante Mesmo se, ao fazer esta distingdo entre nivel micro e macro devernos lembrar sempre que estas forgas atuam sobre um continuo, ou seja, tem efeitos a todos 03 niveis (basta pensarmos em uma estrela ¢ sua radiago decorrente da liberayo da Sua energia nuclear, afetando o cosmos circundante, bem como sua enorme gravidade que organiza a sua matéria a nivel stomice em forma de plasma, ete). E apenas em fungdo de suas caracteristicas especificas que podemos ver uma ou outra forga mais televante para a organizagio de um ou outro nivel, desde que nto esquecamos que a organizagao se dé em fungéo dda ago conjunta de todas elas. 85 4 dada informagao - seja ela bioquimica, eletromagnética, de pressao fisica, etc. - capaz de ‘engatilhar’ uma transformagio no funcionamento intemo destas células) ¢ as células motoras (isto é, as células capazes de provocar um movimento, tanto interno, quanto externo do organismo). Esta separacdo espacial leva 4 necessidade de uma nova instancia, capaz de transmitir esta informagio das células sensoras para as células motoras ¢ de ‘coordenar’ tanto o metabolismo interno, quanto a conduta do organismo no seu meio. Nos organismos multicelulares dotados de movimento auténomo, esta fungo é desempenhada pelas células nervosas e a criagdo de uma rede especializada na transmisséo de informagao bio-elétrica, o sistema nervoso, além da intensa informagao bioquimica hormonal que circula pelos sistemas sangliineo e linfatico. Agora, estes grandes sistemas integradores da autopoiesis do vivente, pelos quais circula a informagtio que rege sua organizaco, possuem uma clausura operacional que Ihes é propria (isto é, uma autonomia propria), © que permite uma maior plasticidade no dominio de conduta dos seres vivos e, conforme veremos mais adiante, um novo degrau de complexidade na organizagio material e social associada ao vivente, Ademais, uma vez que a informago biol6gica da organizagao do vivente no ¢ inerente & matéria per se (como 0 € a informacdo fisico-quimica), coloca-se a questio da transmissio desta informagaio, tanto no nivel vertical, de geraco em gerago, quanto no nivel horizontal, entre individuos da mesma espécie. A transmissdo vertical encontra na informagao genética um poderoso instrumento que, ao estar sendo continuamente reproduzido no operar dos seres vivos, permite a sua transmisso ao longo das geragbes e divisdes sucessivas de forma que podemos encontrar nos atuais seres vivos informagao gerada desde os primérdios da vida, a mais de 3,5 bilhdes de anos, Ja a informagao horizontal, como veremos, abre um novo capitulo na organizago material e energética da physis, que ¢ 0 dominio comunicativo. A cada estigio da organizacao do vivente esta transmissio da informagao se complexifica ¢ assume uma nova plasticidade € autonomia prépria. Inicialmente esta transmisséo se da por simples multiplicagao por divisdo, como podemos ver por exemplo nas bactérias. "Podemos imaginar que nas primeiras unidades autopoiéticas (...) sua primeira reprodugdo se deveu a uma fragmentagéo em conseqiiéncia de um choque com outros entes exteriores. Na rede histérica assim criada, algumas variantes chegaram a fragmentar-se como resultado de sua propria dindmica interna e dispunham, assim, de um mecanismo de divisio que derivou em uma sucessio histérica estavel."'® &, assim, ao incorporar a reproduc&o ¢ transmissao vertical da informag&o genética ao seu operar intemo, & sua autopoiesis, que os organismos vivos estabelecem uma nova forma de identidade na transformaco: a identidade da espécie ao longo das geragdes, da vida ¢ morte dos individuos. Com a reprodugo sexuada um novo degrau de plasticidade e complexidade € atingido, na medida em que a reproducdo passa @ implicar ndo apenas a informagao contida em um individuo, mas a combinagao de dois ou mais, bem como a necessidade de uma ago coordenada entre pelo menos dois individuos. Ela exige, portanto, 0 comportamento social, mesmo que seja de forma espordidica ¢ limitada a dois individuos. a Ja nas células eucariontes a sua maior complexidade ¢ 0 seu cardter composto implica ndo 96 a transmissao da informago genética nuclear, como também a informago genética contida nos demais Orgos celulares. Nos seres multicelulares que, como vimos, apresentam uma “individualidade’ composta por diversos simbiotas, a transmissdo dos diversos componentes desta ‘individualidade’ se da no s6 por via vertical, mas freqlentemente por via horizontal. Assim, por exemplo, no caso dos cupins com a sua ‘individualidade’ composta por uma importante parte de microorganismos, "quando 0 cupim troca de pele, ele protege todo 0 contetido do seu intestino em forma de um pacote. Individuos de muda recente recebem uma nova fauna microbiana por alimentagao anal, pela qual um cupim infetado presenta a sua parte traseira para a boca de um cupim nao infetado. Cupins recém-nascidos obtém a sua fauna intestinal da mesma forma." Esta transmisséo horizontal de informagao é encontrada por toda parte, incluindo os anticorpos que sto transmitidos ao feto ao recém-nascido primeiramente pela placenta e posteriormente pelo leite mateo, até a transmiss’o de informago genética entre espécies distintas, como € 0 caso da ‘contaminagdo’ genética entre plantas ou mesmo entre espécies de reinos distintos. Assim, por exemplo, 498 Manurana e Varela, op. cit, p. 57. 18 Na matoria dos animais, esta nevessidade de coordenaso no espago e no tempo do comportamento dos individuos de sexos distintos levou a diferentes rituais de acasalamento e/ou migrasio, sendo que talvez um dos exemplos mais interessantes deste tipo de relagdo possa ser encontrado no Albatroz sua complexa danga de acasalamento. "Muitos animals selvagens evitam 0 contato fisico e inclusive a proximidade com outro da sua espécie, e em muitas especies laborados rituais evoluiram para permitir que dois estranhos possam se juntar e virar parceiros. Para mim nenhum animal Gemonstra esta nogto de maneira mais teatral que os albatrozes. Estas grandes aves marinhas passam a sua juventude sobre © spar como vigjantessolitérios, sem sequer vir & Terra firme. Quando eles voltam a sua ilha de nascimento é para realizar una danga de scasalamento sem rivais quanto & sua complexidade. (.) Os albatrozes danam para formar casais, uma questo Seria para pissaros que freqUentemente se acasalam de forma vitalicia e vivem quase tanto quanto os seres bumanos, De uma forms que nenhum cientisa conseguiu explicar, a danga serve como um teste de compatibilidade entre dois pareiros potenciaise # execugao correta do complexo ritual refete o comportamento cooperativo que uma criagH0 exitosaexige, Os pais necessitam de sete meses para criar um tinico rebento e, durante este tempo, eles se altemam chocando ¢ wrazendo Pomida « eada poucos dias. Depois que a sua cria esta emplumada, os pais se separam ¢ voltam para o mar. Meses depois les voltam para reunit-se para o préximo ciclo, frequentemente chegando com poucos dias de diferenga um do outro no tnesmo espago de procriagdo, O reconhecimento enrecasais¢ imediato, mesmo em colonias multtudinéris com dezenas de tnilhares de passaros, O dominio da danga é uma pesa central da vida de um albatroz e requer uma longa pratca. Apesar de qados os albetrozes nascerem com um conhecimento bisico da coreografia, eles s6 conseguem encontrar um casal depois de alias o ritual com vigor e autoconfianga. (.) No estigio final do ritual, um easal de albattozes fice semanas dangando € tepresentando um para outro. O acaslamento, no entanto,s6 vai corer na proxima estaplo, quando eles voltam depois Teineses sobre 0 mar e se unem outra vez com uma danca apaixonada. Os passaros parecem iguais, mas uma mudanga Sindamental aconteceu: os némades viraram parceiros.” Franz Lanting; Eye to Eye; K6ln: Tashen Verlag/Terra Editions (Davenport Ca.), 1997, p. 118. ™ Margulis et al. 1996, op. cit. p. 175 87 "Robert Trench da Universidade de Santa Barbara na California, observou que a Tridachia crispata, um tipo de lesma marina, perfura o citoplasma da alga verde ¢ extrai os cloroplastos. 'Entdo’, diz Trench, ‘a Tridachia introduz os cloroplastos em suas préprias células intestinais e continua o seu caminho pretendendo ser uma planta." Outro exemplo foi observado por Linda Goff, que "descobriu uma notivel associagdo entre certas grandes algas vermelhas. Uma variedade invade a outra criando conexdes por filamentos. Ela observou com microscépios entre os quais o microscépio de elétrons, que @ alga invasora envia micleo intacto das suas células as células da vitima. Assim, através de um Proceso de transmisso nuclear semelhante ao sexo, um tipo de alga domina completamente o metabolismo de outra.""** Finalmente, ponto ao que voltaremos com maior detalhe, 0 surgimento do sistema nervoso confere maior plasticidade a0 comportamento dos seres vivos, j4 que este comportamento passa a estar composto nfo s6 pelo comportamento inato (geneticamente transmitido) mas também pelo comportamento adquirido, implicando toda uma teia de transmisséo de informago que conformaré 0 individuo em sua autopoiesis. A complexidade desta teia aumenta com 0 comportamento social dos seres vivos dotados de sistema nervoso e alcange, na sociedade humana com sua auto-reflexividade, um grau de complexidade na qual, como coloca Morin, "a definiggo do homem deve ser simultaneamente una ¢ dupla: 0 homem é um ser bioe>cultural. Estes dois termos ndo esto apenas associados. Eles sao as duas partes constituintes de um mesmo anel, referindo-se ¢ se co-produzindo um ao outro. Eles ndo se dividem 0 conceito de homo. Eles se ocupam um e o outro inteiramente.""85 No exemplo que vimos da transmissdo da capacidade de fotossintese do reino vegetal ao reino animal, encontramos também uma indica¢do para a compreenstio do caso mais geral da origem da capacidade fotossintetizadora no reino vegetal. Provavelmente os primeiros organismos vivos se alimentaram da abundante matéria orgnica produzida de maneira abiética nos primérdios da terra, sendo que somente mais tarde a autotrofia (a capacidade de produzir a sua propria matéria orgiinica a partir da fotossintese) se desenvolveu nas primeiras cianobactérias. Nos organismos miulticelulares, a capacidade fotossintetizadora € decorrente de uma associagdo simbiética pela qual os cloroplastos (antes seres auiénomos) foram absorvidos no interior de um organismo maior no qual, na medida em que este Processo de simbiose se transforma em uma fustio maior, passam a ser uma parte essencial da sus propria existéncia. A forma pela qual este processo parece ter ocorrido é um exemplo interessante de como um processo inicial de predagao pode transformar-se em uma associago simbistica e, finalmente, em um elemento "© Tid, p. 176. ™ Tbid., p. 176. 88 central da evolugo de organismos mais complexos, ilustrando a proposigde de Morin de que "em termos gereis, podemos pensar que, assim como o parasitismo mituo vira simbiose, a servidio mitua vira associagdo, as alienagées mituas viram interdependéncia, as exploragdes mituas viram trocas."'® Neste sentido, um forte candidato para ser o elo entre as células procariontes ¢ as células eucariontes deve ter sido tum organismo parecido a0 Thermoplasma, um microorganismo resistente que vive em fontes dcidas e quentes. Como outras bactérias, 0 Thermoplasma tem 0 seu DNA solto na célula. (..) No entanto, o Thermeplasma se diferencia de outras bactérias pelo fato de que o seu DNA esté envolto por uma proteina parecida & histona, semelhante & que encontramos com 0s cromossomos dos euceriontes. (..) Inicialmente o Thermoplasma maior pode ter sido invadido e mesmo destruido por outras bactérias pequenas, compactas, que possuiam o material metabélico necessério para usar © oxigénio em process0s respiratérios. No entanto a vantagem para as bactérias aerdbias de ter 0 seu alimento a vontade, diretamente na boca, transformou a sua agressfio em tolerdncia, Neste meio tempo 6 Thermoplasma no s6 tinha um meio através dos seus novos parceiros pequenos de eliminar oxigenio t6xico, como também se beneficiava do ciclo de Krebs, muito mais eficiente na decomposicgao dos carbohidratos em suas partes constituintes de diéxido de carbono ¢ gua. Os eucariontes emergiram, assim, do conséreio formado pelo Thermoplasma e os seus predadores potenciais. Todos os eucariontes ancestrais obtinham 0 seu alimento absorvendo os excessos, a excrego ambiental de bactérias fotossintetizadoras. Mas em alguns descendentes esta relago também se converteu em Uma simbiose ao se ingerir 0 proprio fotossintetizador. De fato, na medida em que se resistiam & digestao, parte das candidates comida intracelular foram retida € se converteram nos cloroplastos. Através da simbiogénese, as oélulas de algas verdes ¢ assim os ancestrais da linhagem de plantas verdes estavam em proceso de evolugao."""” Exemplos deste tipo de processos abundam atualmente nfo s6 no nivel microbiano (em que existe um intensivo intercdmbio de material genético entre os microorganismos, processos de fusio efou incorporagao, etc.), como também no nivel macroseépico. Assim, por exemplo, Kwang Jeon, em suas experigncias, observou amebas do tipo "Amoeba proteus, das quais uma partida tinha sido infectada acidentalmente por cerca de 150,000 bactérias que tinham resistido a digestio ¢ que, 20 reves, tinham- se voltado contra 0 protista e 0 devastaram, Jeon, no entanto, cuidou cuidadosamente de algumas amebas que tinham sobrevivide ao massacre, Elas haviam incorporado algumas das dezenas de milhares de bactérias em seu citoplasma. Mais ainda, estas amebas jé nao podiam sobreviver mais sem 185 Morin 1980, op. cit. p. 418. Ibid, p24. 87 Margulis et al. 1996, op. cit. p- 170. ° a bactcria ¢ vice-versa. Curiosamente também o mimero de bactérias tolerado era de cerca de 40.000 - qualquer uma em excesso era digerida,""* A capacidade de observar os processos no nivel microscépico, de fato, nos permite identificar uma “aneza enorme de variedades, combinagdes e estratégias de autopoiesis que nos obrigam areconsiderar & ROSES noGes antropocéntricas, baseadas na generalizago das observagées feitas 20 nivel ‘esose6pico humano, sobre a organizagdo e a evolugdo do vivente. Assim nfo s6 os mais de 80% da evolusdo da vida sobre este planeta, em uma organizagdo estritamente unicelular, no podem ser Considerados uma fase inerte € monétona, como também as estratégias e a forma em que esta se organiza no parecem corresponder aos conceitos tradicionais de competicdo, linearidade, ete. com os ahsts Stamos acostumados a observar o processo evolutivo. Mesmo atualmente, os seres unicelulares nio podem ser considerados inferiores e menos adaptados, jd que nfo sé eles apresentam uma maior ‘versatilidade se pensamos em suas capacidades metabélicas, como também, como veremos com mais detalhes, eles representam a base da manutengfo tanto dos Processos fisiolégicos dos seres ‘multicelulares em geral, quanto da dinamica da biosfera em seu conjunto. Mais ainda do ponto de vista de diversidade genética esta é muito mais acentuada nos MeToorganismos que no nivel dos multicelulares. Assim, por exemplo, “a medicao das diferengas de aminodcidos entre os seres humanos e os grandes simios afticanos vivos (gorilas e chimpanzés) levou 0 resultado mais surpreendente de todos. Nés somos virtualmente idénticos nos genes que foram estudados, apesar das nossas grandes diferengas morfolégicas. A diferenga média entre os humanos e os simios africanos é de menos de um porcento (0,8 porcento Para ser preciso)."" diversidade genética, como lembra Margulis, "€ dificil de medir. Uma andlise da relagdo de guanina para a citosina, no Sntanto, pode ser utilizada como um indicador da distincia genética entre diferentes organismos ‘Tomemos por exemplo o género Bacillus onde a razSo guaninalcitosina no total do DNA varia acima dos 50 porcento. No entanto a variagdo G-+C de todos os vertebrados, incluindo eixes, passaros, aves e homem € muito menor. A razio & que nés percebemos imediatamente diferencas morfolégicas, porém 0S noss0s olhos nilo esto equipados para notar diversidade bioquimica, (..) Compartir 0 genoma, como ocorre com as bactérias, ¢ a intrusfo de um tipo de bactéria na outra, Nansportando os atributos inteiros em uma mesma gerago, produziu novos organismos compostos, acelerando 0 proceso da evolugdo - afastando-nos do dominio das nogdes darwinianas de como as especies evolucionaram, Nés devemos dispensar rétulos antropocéntricos para descrever as Zorgas por atmosfera com mais vapor -> redugdo da temperatura) enquanto que as capas de gelo atuariam como uma retroalimentago positiva (aquecimento —> reduco das capas de gelo — mais aquecimento).** Devemos lembrar também que é através da formagio de nuvens (condensagdo) em torno das emissdes de gases de origem biosférica (particularmente das algas e das arvores) que um importante ‘© campo gravitacional terrestre nfo ¢ forte suficiente para reter os atomos leves de hidrogénio, Se a fuga de hidrogénio tivesse continuado, nés poderiames ter perdido grande parte dos oceanos ou mesmo ter chegado ao estado arido de Marte e Venus.” "Uma vez que 0 oxigénio aparece no estado livre no ar, a fuga de hiidrogénio toma-se insignificamtemente pequena. Isto € porque s6 tragos de hidrogénio ou gases contendo hidrogénio como o metano podem existir em estado livre em uma atmosfera de oxigénio. A tinica excesto é a agua, que nao pode ser oxidada mais ¢ € Confinada na atmosfera inferior pela baixa temperatura na base da estratosfera." Lovelock 1995, 0p. cit, pp. 70-71 ep. 110 SI Enquanto que © primero efeito é ainda um elemento de polémica, jé que o vapor de gua tanto reflete diretamente @ radiagdo solar, quanto a radiagdo terestre, sendo portanto também um gas de efeto estufa, nfo se sabendo qual é o resultado Tiguido do processo, o segundo efeito, bastante aceto ao se tratar de uma retroalimentagd0 positiva (nos dois sentidos), pode ser uma des explicagdes da relativa rapidez com que ocorreram as transigbes entre as eras glaciares ¢ inter-glaciares. Vide Lovelock 1995, op. cit, pp. 128-133. 103 mecanismo biosférico de regulago climatica local pode funcionar. De fato, na auséncia destes niicleos (como 0 sulfeto dimetila produzido pelas algas marinhas e a propria evapotranspirasao da vegetacao terrestre), a atmosfera, apesar da alta umidade, permaneceria translticida por falta de formagio de nuvens. Como coloca Lovelock, ao se referir aos efeitos sobre a temperatura global que pode ter a condensa¢’o de vapor sobre os oceanos devido a emissio do sulfeto dimetila, "que pode ser comparavel, em termos da magnitude, com o efeito estufa devido ao gas carbénico.""* Nao so apenas os oceanos, as aguas em geral © os gases na atmosfera que funcionam, potencializados pelos processo biosféricos, como poderosos meios de transmiss&o ¢ circulagao material ¢ energética, como também as préprias placas continentais que, através dos movimentos tectonicos, as sedimentagdes marinhas, os fenémenos vulcanicos, etc. atuam como poderosos meios de transformagdo e cireulagao material e energética ao longo das eras geolégicas. O importante a notar aqui € que também neste processo a presenca de vida mudou radicalmente a dindmica que caracterizaria 2 Terra sem vida. Nao s6, como jé notou Vernadsky, todos os minerais que conhecemos hoje na crosta terrestre nao existiriam, como também, caso se confirme a hipétese quanto a origem biosférica dos movimentos tectonicos, a Terra, na auséncia da vida, caracterizaria-se por seu imobilismo tectdnico em lugar do dinamismo atual. Como lembra Lovelock, existem indicios ¢ razdes para se supor, mesmo que ainda nao de forma conclusiva, de que é a imensa pressGo decorrente da acumulagaio de sedimentos nas Tegides costeiras ao longo do tempo que estaria na origem dos movimentos das placas tectonicas. Sao estes movimentos que, por sua vez, asseguram que 0s sedimentos penetrem nas capas geolégicas mais profundas, sendo transformados pelas altas temperaturas € presses ai existentes, para depois de um ciclo de varios milhdes de anos reaparecerem na superficie terrestre pela atividade vulcdnica ou pela formagdo das montanhas. A crosta terrestre, como o sugere 0 titulo do livro de Lapo, um dos seguidores das teorias de Vernadsky, esta composta, assim, por tragos de biosferas passadas.*" Nesse proceso, novamente, os ecossistemas maritimos desempenham uum papel fundamental, j4 que 05 oceanos caracterizam-se por sua capacidade de retengo de matéria. Enquanto que nos ecossistemas terrestres a matéria que entra nos ciclos de vida é ou quase que totalmente reciclada no interior dos ecossistemas locais, em um ciclo constante (como, por exemplo, nos ecossistemas florestais), ou expelida em forma de gases 4 atmosfera ou de dejetos orgénicos pelas 4guas. Assim, nos ecossistemas terrestres, praticamente nio existe acumulagdo de matéria organica “inativa” (isto ¢, excluida dos ciclos biosféricos). Jé nos oceanos, a maior parte da matéria queda retida, seja no interior dos ciclos ecossistémicos marinhos, seja como depésitos em “suspens&o” nas 4guas ou no fundo do 2 Tbid,, p 139. ** Ibid., pp. 99-107 e A. V. Lapo; Traces of Bygone Biospheres; Moscou: Mir, 1982. 108 mar. Isto ocorre tanto com os gases, como as enormes quantidades de oxigénio ¢ gas carbénico retido nas guas e que lentamente vao sendo liberados pela superficie a atmosfera, ou sob forma de sedimentos sélidos que se vio acumulando no fundo dos mares sob forma de silicatos, carbonatos, etc. Desta forma no s6 novos compostos minerais so criados pela atividade biosférica marinha, como também imensas quantidades de elementos como cAlcio, silicio, carbono e fosforo v8 sendo retirados da citculagao biosférica imediata ao serem acumulados e neutralizados nos fundos dos mares. Um dos mecanismos importantes neste processo € a eliminagdo do céleio e do fésforo em forma de corais pela atividade dos microorganismos aquaticos. Estes corais, além de formarem a estrutura e 0 esqueleto dos ecossistemas costeiros, em forma de atdis e recifes, vo criando lagunas, que ao longo das eras geolégicas atuam como zonas de dessalinizagdo pela evaporacdo da agua e a acumulagao de imensas quantidades de sal. Este € um processo vital para a sustentabilidade dos ecossistemas maritimos (e em consegtiéncia, da biosfera como um todo) uma vez que desta forma o excesso de salinidade, fatal para a vida j4 que romperia as membranas celulares, ¢ eliminada. Quanto 4 magnitude deste processo, como bem lembrou Lovelock, "os problemas da regulago salina excedem em dificuldade tudo que o ser humano até hoje foi capaz de fazer em termos de engenharia planetéria. No arqueoz6ico, (..) @ tinica forma de eliminar as enormes masses de sal dos oceanos seria a de confinar agua do mar em lagoas e permitir que 0 sol evaporasse esta Agua. Isto requeria a construgao de enormes arrecifes de coral para aprisionar agua em lagoas de evaporagdo. A simples magnitude destes arrecifes toma pequena qualquer construgao humana que se possa conceber."=" ‘Assim, se pudéssemos ver em um filme acelerado ou em uma animagdo por computador o ciclo material e energético no interior da biosfera, 0 que veriamos seria uma intensa atividade ¢ ciclos sobrepostos, contrapostos, interconectados ¢ interdependentes pelos quais os diferentes elementos penetram no dominio dos processos vivos (podendo perdurar ai por longuissimos periodos), sendo entio expelidos pela respiragao ou em forma de residuos s6lidos ou liquidos, circulando pela atmosfera, oceanos, Aguas € no interior da crosta terrestre, para novamente serem absorvidos, ingeridos © transformados no interior dos organismos vivos e entéo serem expelidos novamente. A Terra caracteriza-se, assim, claramente por ser uma estrutura dissipativa, formada por diversos subsistemas jinterconectados e eujas organizagdes se nutrem de um continuo fluxo material e energético que os atravessa, assim como a Terra em seu conjunto se nutre da radiagio solar que @ atravessa para estruturar-se em niveis crescentes de negentropia. Neste processo observamos ciclos de temporalidades distintas, com duragSes que podem ir desde os milhdes de anos em que dado elemento fica retido no interior dos ciclos geolégicos (ou 10s mesmo bilhdes de anos no interior de um ciclo solar), até os poucos instantes de um g45 no interior de um organismo. E da diferenga de ritmos entre estes distintos ciclos que emergem fendmenos de deposigdo e acumulacao de longo prazo, como por exemplo a camada protetora de oz6nio e a gradual climinagao de CO2 atmosférico ao longo das eras geolégicas. Nestes processos, novamente, os microorganismos desempenham um papel fundamental e essencial, no sé como suporte (e muitas vezes a base) dos sistemas digestivos dos multicelulares, conforme vimos, mas sobretudo, conforme jé apontou Vernadsky, devido ao seu enorme potencial de propagaco/multiplicagao. Assim, por exemplo, "as bactérias ocupam uma posi¢ao especial entre estes organismos. (...) Elas possuem 0 maior poder de propagagao. Elas se reproduzem por diviso, cada célula duplicando-se varias vezes ao dia. As bactérias com o maior poder de propagagdo o fazem cerca de 64 vezes por dia, em média a cada vinte dois minutos, com a mesma regularidade com que um cupim fémea pde os seus ovos ou um planeta dé as suas voltas em torno do sol. As bactérias vivem em espagos timidos. A sua intensidade de propagagéio corresponde a uma alta energia. A reprodugdo € tao prodigiosa que as bactérias poderiam cobrir a Terra inteira com uma capa fina dos seus corpos em 36 horas, uma tarefa que as plantas verdes ou os insetos realizariam s6 depois de varios anos." Vernadsky, reconhecendo que "a difusao da vida é uma manifestagao da sua propria energia interna,” deu a esta "energia da vida, pela qual a vida é levada a todas as partes da biosfera, eriando novos compostos e organismos, 0 nome de energia geoquimica da vida."*" E esta energia geoquimica, alimentada pela baixa entropia solar, que de fato poe em movimento a auto- organizacao da Terra como uma macro estrutura dissipativa de dimensdes césmicas. "O movimento da matéria viva resultante da multiplicagao dos organismos opera com uma extraordinéria regularidade. (...) Por intimeros anos, sem parar, este movimento esteve realizando um gigantesco trabalho geoquimico, espalhando a energia solar e a matéria da biosfera sobre a superficie terrestre, Apesar do movimento da matéria viva estar se dando continuamente 4 nossa volta, nés nao somos conscientes dele. Nés apenas temos a impressio geral dada pela beleza e a diversidade de formas, cores € movimentos na natureza. Nés s6 Vemos os campos ¢ florestas com sua vida vegetal e animal; os tanques ¢ mares, transbordando de seres vivos; e o solo, aparentemente morto mas de fato impregnado de vida. Raramente somos capazes de ver 0 movimento da matéria viva. Vemos apenas 0 resultado estatico de um equilibrio dindmico."*"” * Lovelock 1995, op. cit., p.102. 2” Vernadsky, op. cit, pp. 28-29, "* Ibid., p24 (ambas citagdes), * Thid., pp. 28-29, 106 Neste processo, "a distribuigio da matéria viva esta sujeita (...) A necessidade constante de intercdambio de gas entre 0 organismo ¢ 0 seu meio, em poucas palavras, pela necessidade de respirar.""”" Para a tendéncia expansiva da vida pela biosfera, portanto, "as principais limitagdes so impostas pela dimensto do espago disponivel ¢ pelo tipo de meio -particularmente quanto ao seu potencial de fornecer gases para fins respiratorios- no qual os organismos estio localizados."”*! Vemos aqui, novamente, uma tenso essencial entre, de um lado, 0 potencial auténomo de propagacao dos organismos vivos (0 potencial geoquimico definido por Vernadsky) e, por outro lado, as restrigSes/resisténcias colocadas pelo seu meio (em termos de condigdes espaciais adequadas € relagdes com os demais organismos). Desta tensio emerge, de fato, um poderoso mecanismo de retroalimentagao pautando a dindmica tanto dos espacos/ecossistemas locais, como da biosfera como uum todo. Assim, por exemplo, um espago 'vazio' porém propicio a vida, como por exemplo uma area incendiada, uma terra arada, uma nova ilha, 4reas inundadas por lava recente ou ainda construgdes humanas abandonadas, sao rapidamente colonizadas e transformadas. Isto se da, conforme a disponibilidade de nutrientes, primeiramente pelos organismos de alta energia geoquimica e, conforme a tensio com 2 disponibilidade de espaco/nutrientes e a saturacao pela multiplicago de organismos aumenta, o ritmo de transformagio vai reduzindo-se até aleangar-se um novo estado de equilibrio dinamico em que as transformagées se dao a ritmo lento, predominando os ciclos de transformagao material ¢ energética cada vez mais fechados. O caso classico deste processo ¢ o que se denomina colonizacio ou sucesso ecolégica que ocorre "quando uma area fica disponivel para o desenvolvimento de uma comunidade (por exemplo um campo de cultivo que se abandona e se deixa ao seu desenvolvimento natural). As espécies vegetais e animais oportunistas « colonizam em uma série de comunidades temporais ou pioneires (...). Gradualmente vao-se desenvolvendo comunidades mais permanentes até chegar & madurez ou elimax, 0 qual esté em equilibrio com - ou determinado pelo - clima da regio, substrato local, topografia e disponibilidade de agua." Assim, tanto a limitagio imposta pelo espaco abistico, ‘como os diferentes organismos entre si, funcionam de barreira a propagagio desta energia geoquimica vital, 0 mesmo tempo em que o alto potencial energético desta energia (em geral virtualizado por estas restrigdes) tua como uma rapida fonte de transformagdo em situagdes de desequilfbrio, reconduzindo dado ecossistema a um equilibrio dinamico de baixa entropia. E este mesmo ‘espago vazio’ - composto de abundante matéria organica criada de forma abistica nos oceanos primordiais e com uma baixa densidade de ocupagdo por parte de organismos - que 9 Tbid,, p. 25. *" Dold, p. 30. 107 encontraram os primeiros microorganismos sobre a terra. Nestas condigdes, uma vez que as primeiras reagdes autocatalisadoras incorporam a autoreprodugiio & sua organizago autopoiética, tudo leva a supor que a propagago da vida deu-se de forma bastante acelerada, ocupando rapidamente os meios aquaticos (em que se desenvolveram os primeiros capitulos da vida sobre a Terra) disponiveis. Se observamos 0 alto potencial de reprodugdo e de transformag&o das bactérias (intercambiando ¢ transformando sua informagao genética), tudo leva a crer que esta primeira explosio de vida unicelular deu-se tanto em niimero, como em variedade, até alcangar um ponto em que os mecanismos de retroalimentagdo negativa do meio passaram a atuar. 5 somente neste momento que a sele¢ao natural cobra importincia na organizagao do vivente, jé que, como coloca Kauffman, "a historia da vida eria a ordem natural, na qual a selegdo é privilegiada de atuar."> "A auto-organizacao € um requisito prévio para a possibilidade de evolugao, (...) ela gera o tipo de estruturas que se beneficiam da selecZo natural. Ela cria o tipo de estruturas que so robustas e que podem evolucionar gradualmente."" A selegao do tipo darwiniana funciona, assim, como um mecanismo de feedback pelo qual cada organismo faz parte do meio ambiente dos demais ¢ assim como fonte de perturbagio/restrigdo da sua autonomia prépria. E, ‘Ro entanto, nesta autonomia propria (a autopoiesis do vivente) e nfo na restrigGo/comptetigéio que devemos procurar a fonte primeira da evolugdo. Como metéfora, poderiamos dizer que a auto- organizagdo gera a pedra, a selegdo externa a lapida. As duas sfo essenciais para a organizagdo do todo, na medida em que elas correspondem a faces da mesma moeda: a autopoiesis gera o dinamismo, a selecdo do meio a estabilidade. Uma vez que esta explosdo de autopoiesis inicial propaga-se pelo globo, os mecanismos de feedback ¢ selegao do meio levam a um novo equilibrio dinamico em que, da interagdo entre os seus diferentes clementos, emerge a Terra viva. Neste processo, conforme procura indicar Kauffman, enquanto a ordem dos organismos individuais e das células € subcritica, a ordem da biosfera como um todo parece ser supracritica, isto é, dé-se em um nivel de complexidade da organizagao sistémica em que a evolusao © 8 criagdo de diversidade ¢ complexidade engendra uma maior possibilidade de combinagées e assim a ampliagao da diversidade e da complexidade.225 E. P. Odum, op. cit, p. 187. Op. cit, p.25 =" Tbid., p. 188. ©" fantastica possibilidade que se apresenta é que a diversidade de moléculas da biosfera causa a sua prépria exploséo! A diversidade alimenta-se de si mesma, impulsionando-se para a frente, Células interagindo com outras células com o meio criam novas moléculas que, por sua vez, criam outras moléculas em uma investida de criatividade. Esta profusdo, que eu denominarei comportamento supracritico, tem a sua origem no mesmo tipo de transigo de fase que vimos na conexio em rede de reagdes autocatalizadoras, que deram origem as moléculas de entrada. (...) Em reagdes quimicas supracriticas, espécies moleculares dio origem a novas espécies moleculares até que a fantastica nuvem condense-se em todos os seres vivos, de trilobitas até os flamengos.” Kauffinan, op. cit, p. 114 108 "Enquanto a biosfera como um todo é supracritica, as células que compdem a biosfera devem ser subcriticas. Do contrétio, a explosio interna de diversidade celular seria fatal. Esta ¢ (...) a tensdo criativa que esta na base da sempre crescente diversidade da biosfera."""* "Nés podemos estar descobrindo uma nova lei universal na biologia: (...) a0 longo da explosdo supracritica da biosfera, as células desde o paleozdico, as células desde 0 inicio, as células desde 3,45 bilhdes de anos atrés tiveram que permanecer subcriticas. Se ¢ assim, esta fronteira suberitica- supracritica deve ter colocado sempre um limite maximo & diversidade molecular que pode ser abrigada em uma célula. Existe, portanto, um limite a complexidade molecular da eélula."**7 Neste ponto, é a selegdo natural que leva as eélulas, os organismos ¢ inclusive os ecossistemas locais a se manterem em um nivel de complexidade maxima que seja sub-critica, na medida em que a supracriticalidade das partes (célula, organismos ou ecossistemas) inviabiliza a sua sobrevivéncia ou 0 que Maturana e Varela consideram 2 manutengdo da sua identidade em seu acoplamento estrutural. Esta subcriticalidade, no entanto, deve-se dar a um nivel bastante préximo do limite maximo, ou o que Kaufmann descreve como uma transig&o de fase para o comportamento supracritico, na medida em que neste ponto se mantém um dinamismo suficiente para assegurar a adaptacdo aos estimulos ¢ as ‘mudangas no meio, sem cair em um dinamismo que desorganize sua autopoiesis ¢ assim @ manuten¢ao da sua identidade.”* Encontramos aqui, novamente, um contexto de tenséo ¢ de desequilibrio na base da organizagao material, fonte do seu dinamismo e da sua criatividade. "A presstio gémea do regime supracritico em ditegdo a0 suberitico e do regime subcritico em diregao ao supracritico, pode se encontrar no meio, na fromeira entre o comportamento suberitico € supracritico. (...) Néo podemos deixar de imaginar se ecossistemas Jocais evolucionam até 0 limite subcritico-supracritico (...) ¢, depois, ficam presos ai para sempre, mantidos pela presséo da oportunidade se sto suberiticos e da morte se so supracriticos. (..) Enquanto que cada ecossistema por si s6 esta na fronteira entre a sub- © supracriticalidade, ao trocar entre si o seu material, eles coletivamente produzem uma biosfera supracritica, uma biosfera que inexoravelmente fica mais complexa. Se esta hipétese é correta, o comportamento da biosfera é andlogo ao de uma reagao nuclear, n&o a0 de uma explosio. Em uma explosao nuclear, a reagdo em cadeia 'escapa! autocataliticamente. Mas em uma ® bid, p.115. =" Ibid, p.128. 3 Vide Kauffman, op. cit., cap. 6, pp. 113-130. Cumpre lembrar que existe variagdes importantes neste equilibrio entre distinas celula, especies ¢ eeossistemas, 0 que explica as variagBes encontradas em termos de estabilidade/dinamismo. As Sctategias de sobrevivéncia e organizagao do vivente, apesar de seguirem cenas regras comuns, apresentam ume diversidade crescente de estratégias locais, plasticidade esta que, como vimos, ¢ justamente uma das caracteristicas ‘mergentes do fendmeno do biol6gico frente 8 organizagio fisica e quimica da matéria 109 reagdo nuclear, varas de carbono absorvem o excesso de néutrons e asseguram que a probabilidade de bifurcagdes na reago em cadeia fique igual ou menor que o valor critico de 1,0 (...) As membranas celulares bloqueiam diversas interagdes moleculares, impedindo assim uma explosao supracritica, da mesma forma em que varas de carbono nos reatores absorvem néutrons ¢ assim bloqueiam a colisio destes néutrons com os niicleos, o que levaria a uma reagdo em cadeia supracritica."”9 Nesta situacao a identidade das partes se mantém, ao mesmo tempo em que a biosfera como um todo evoluciona rumo a uma complexidade crescente, assegurando uma negentropia local tanto frente as mudangas € aos impactos advindos do seu meio (principalmente 0 ciclo de vida solar, com suas varlagSes na radiag4o, como o impacto de planetesimais sobre a superficie terrestre), quanto as mudangas decorrentes de sua propria organizagao interna. Frente @ ambos os casos, tanto as mudangas decorrentes da dialética da biosfera com 0 meio césmico, quanto as transformagbes advindas da sua propria dialética intema, a face da vida sobre a Terra jé foi radicalmente modificada, modificasdo esta que significou avalanches de exting&o em larga escala ¢ alteragdes importantes na prépria dindmica biosféric , como atestam o fim da era anaerébia (com 0 surgimento de uma atmosfera rica em oxigénio) eo fim da era dos répteis gigantes, talvez os exemplos mais espetaculares de mudangas advindas da propria dindmica intema e de uma perturbagao externa, respectivamente. “A historia da vida esteve marcada por répidos episédios de exting&o em massa (.... A mais completa ¢ exaustiva tabulagéo de dados jamais reunida, mostra claramente cinco episédios de mortes em massa que estdio bastante acima das extingdes 'de fundo' dos tempos normais. (...) O desastre do ereticeo, ocorrido 2 65 milhdes de anos atrés ¢ separando a era do mesozbico do cenozdico na nossa escala de tempo geolégico, figura com destaque entre elas. Praticamente todo o pléncton marinho (criaturas Alutuantes unicelulares) morreu de forma geologicamente repentina. Entre os invertebrados marinhos, quase 15% de todas as familias se extinguiram, incluindo diversos grupos previamente dominantes (...). Sobre a Terra, os dinossdurios desapareceram depois de mais de 100 milhées de anos de dominacdo incontestada,""° Tbid, pp. 129-130. ®* Stephen Jay Gould: The Flamingo's smile; London: Penguin Books, 1991, p. 419. Segundo o cenatio atualmente mais aceite sobre a extingao dos dinosséurios, acredita-se que "a 65 milhBes de anos atras, um asterdide de dez quilometros de didmetro se chocou com a Terra a 100,000 kmvhora, liberando uma energia equivalente 2 100 milhdes de bombas de hidrogénio. Durante seis meses o planeta ficou escuro por causa do pé levantado que tapou os raios do sol. Quando chovia, a gua arrastava as particulas dcidas que tinham ficado no ar. Depois o diéxido de carbono acumulado na atmosfera provocou lum aumento das temperaturas na superficie da Terra. Todos 0s ecossistemas mudaram. 90% dos seres vivos morreram 50% das espécies se extinguiram." Secreto de Dinosaurio; in La Vanguardia/ Magazine, 10 de janeiro de 1999, p44. Para uma discussio mais aprofundada de quando esta teoria foi langada por primeira vez, vide Luis W. Alvares, Walter Alvares, F. Asaro eH. V. Michel; Extraterrestrial cause for the Cretaceous-Tertiary extinction; in Science, n° 208, 1980, pp. 1095, 110 Em todos estes exemplos, a recuperagao da vida ¢ a escalada rumo a niveis de complexidade crescente, apontam para 0 cardter supra-critico e auto-regulador da biosfera como um todo. Neste sentido, a Biosfera é, coletivamente, muito parecida com os ecossistemas pioneiros, quando @ vida ocupa um novo espago propicio s suas dinémicas, porém, contrariamente a estes ecossistemas (que tendem a assumir uma organizagdo suberitica uma vez alcangada a maturidade ¢ um equilibrio com a biosfera como um todo), mantém este comportamento, em maior ou menor grau, assegurando no sb a sua constante adaptagiio ou, como diriam Maturana e Varela, 0 seu acoplamento estrutural ao meio ‘césmico, como também a sua marcha rumo a niveis de organizagao de complexidade crescente, apesar das flutuagdes periédicas que se podem dar neste proceso. Como coloca Kauffman, "a explosto supracritica da biosfera est4 imanente no caréter combinatSrio da propria quimica, levada adiante pela vida, o mais fino triunfo da supracriticalidade."*! A Terra primitiva, com 0s seus vuleSes, furacdes, oceanos, bombardeada por meteoros © planetesimais remanescentes da formagao do nosso sistema solar e pela radiago solar, que nesta época se calcula era cerca de 30% mais baixa que a atual, era de fato a arena de intensas transformagées materiais ¢ energéticas e que criaram o ambiente favorivel para a emergéncia da fenomenologia biol6gica sobre 0 planeta, Assim, conforme mostra Lovelock, "ndo s6 a quimica terrestre estava perfeita para que a vida comegasse, como também o clima deveria ser favordvel. Algumas rochas aneestrais apresentam a evidéncia de terem sido formadas pela sedimentagdo de particulas. A sua estrutura em camadas sugere uma origem em lagos ou mares ras0s, ¢, portanto, @ presenga de gua liquida. A existéncia da vida ¢ de compostos quimicos pré-bidticos requer temperaturas que estejam entre 0 ¢ 50°C. A Terra nao podia estar congelada, nem a temperatura podia ser suficiente para que os mares fervessem."** Caleulos feitos sobre a possivel temperatura da Terra ao surgir a vida apontam para valores que vdo desde a temperatura atual até temperatures ligeiramente mais elevadas. Isto signifiea que a concentragio de gases de efeito estufa teria que ser bastante mais elevada que a atual, contrabalangando assim a radiags0 solar mais fraca nesta época.”"® Holland, citado em Lovelock, "propde uma Terra com uma atmosfera rica em diéxido de carbono; com a presenca de nitrogénio, no entanto sem oxigénio; e com tragos de gases como sulfeto de hidrogénio ¢ hidrogénio, Os oceanos estavam carregados de ferro ¢ outros elementos € compostos que s6 podem existir em solugo aquosa na auséncia de oxigénio, (..) A Tos; LW. Alvarez; Experimental evidence that an asteroid impact ted tothe extinction of mary species 65 milion years oa Proesdings of the National Asadem of Scenes. 89, Bp 627-612. 21 Op. cit, p. 128. 2 Lovelock 1995, op. cit. pp. 68-69 2 Estimativas citadas em Lovelock 1995, op. cit. P. 69. m Presenga destes gases ¢ substdncias ¢ importante, pois eles sdo agentes redutores, reagindo rapidamente com 0 oxigénio e removendo-o, evitando, assim, a sua aparigdo no estado livre."24 micos e fisicos bem como sua posterior evolugdo, estio sujeitos a muita controvérsia, jé que distintos modelos plausiveis podem ser construidos. © que temos hoje ¢ um meio ambiente jé tio ‘ransformado pela propria vida, que nenhum estudo arqueolégico & capaz de desenterrar 0 seu aspecto original... Neste sentido, o importante a ressaltar € que apesar da vida encontrar um ambiente propicio ara a sua primeira manifestago, uma vez instaurado o fendmeno biolégico, este passa a ser parte integrante da dinamica biosférica e como tal produz-o seu préprio dominio de legalidade. ‘Uma das dindmicas mais importantes desta primeira fase surge com a emergéncia das cianobactérias, Gue, pela fotossintese, encontram uma abundante forma de obter ¢ armazenar energia. Como lembra Margulis, "heterotrofia, a ingesto de compostos orgiinicos pré-formados como alimento sem dtivida Prevedeu & fotossintese, porém era muito mais limitada em termos de comida ¢ energia que podia fomecer. Atavés da fotossintese baseada na clorofila, as cianobactérias produzem oxigénio. A fotossintese, no entanto, ndo esta associada exclusivamente & decomposigdo da gua e & produgao de oxigenio. A fotossintese implica, em sua esséncia, na remogdo de elktrons de diferentes fontes, oPtendo-se a energia para este proceso da luz solar. Assim, por muitos anos, o unico subproduto da fotossintese foi o enxofie. O oxigénio 6 apareceu em cena depois que alguma bactéria do enxofte evolucionou para retirar elétrons da 4gua."> Vemos aqui um bom exemplo de como a fenomenologia biol6gica amplia o dominio da fenomenologia fisico-quimica, apesar de estar firmemente ancorada nesta. Neste sentido, a fotossintese, por exemplo, deve ser vista essencialmente como uma reagdo Guimica no interior e controlada pelo organismo, que inclui aquela em sua autopoiesis. Neste Proceso Se converte a abundante informagao nuclear contida na radiagdo solar em informagdo eletromagnética, ue passa a estar disponivel nas cadeias organicas. Uma vez no interior dos ciclos biol 0S, nas cadeias tr6ficas, "a energia, na medida em que se usa € dispersa nesta corrente sucessiva de transformagdes, muda de forma e converte-se em outra mais concentrada € com maior contetido de informagao."° fenomenologia biologica permite, assim, franquear um novo degrau na complexidade da organizagio da material ¢ energética, criando uma egentropia no nivel local. Além disso, ao nivel da biosfera como um todo, observamos que a energia dissipada de uma etapa & outra "ndo & energia desperdigada, j4 que ela realiza um trabalho itil em cada ria 9 70. Vide H. D. Holland; The Chemical Evolution. of the Atmosphere and Oceans; Princeton: Princeton University Press, 1984, Margulis et al. 1996, op. cit, p. 182, E. P. Odum, op. cit, p. 77. 12 transferéncia, nfo exatamente na parte biolégica, mas 20 longo de toda cadeia. Por exemplo, a dissipagao da radiagdo solar, na medida em que ela atravessa a atmosfera, os oceanos ¢ 0 cinturdo verde, aquece a biosfera até niveis capazes de sustentar a vida, pde em movimento o ciclo hidrelégico (e evaporagio da dgua que volta em forma de chuvas) e move os sistemas climaticos.(.. Necessita-se cerca de uma quarta parte do fluxo de enengia para mover 0 ciclo da égua, um dos servigos da biosfera mais vitais e menos apreciado."*7 sta capacidade que tem a fenomenologia biolégica de criar um novo espago de legalidade para es transformagses fisico-quimicas no interior da biosfera ndo impede, no entanto, que como coloca Lovelock, “o éxito da evolugdo dos fotossintetizadores poderia ter levado & primeira erise ambiental sobre a Terra ¢ eu costumo pensar, a primeira evidéncia do despertar de Gaia. (..) As cianobactérias tusaram 0 dibxido de carbono como alimento. Elas estavam comendo @ capa que mantinha a Terra quente, Havia nesta época uma vigorosa entrada de didxido de carbono dos vulebes, mas capacidade potencial de soterramento pela absorgdo das bactérias poderia té-la excedido amplamente. Se apenas existssem fotossintetizadores, 0 seu abundante florescimento nos oceanos ¢ na superficie poderia ter reduzido 0 didxido de carbono em poucos milhdes de anos a niveis perigosamente baixos. Muto antes das cianobectérias ficarem sem didxido de carbono para comer, ¢ Terra teria se resfriado até um estado congelado (...."* Esta crise munea ocorreu ¢ uma possivel explicagéo dada por Lovelock ¢ a emergéncia j& neste periodo "de uma dindmica interagGo entre 0s primeiros fotossintetizadores, 0° organismos que processavam a produso destes € 0 meio ambiente planetirio Disto evoluiu um sistema estavel, auto-regulado, um sistema que manteve a temperatura da Terra constants ¢ confortavel para a vida"? Podemos presumir, portanto, que existiam entdo "metandgenos, camivoros € descendentes dos decompositores originals de elementos quimicos orginicos. Estas bactérias primordiais, capazes de existir somente na auséncia de oxigenio, viviam de decompor matéria orgénica, convertendo 0 carbono nela encontrado em didxido de carbono ¢ metano, que elas retomavam 20 a las serviam, no arqueozéico, como os consumidores de hoje, para devolver quase tanto carbono quanto havia sido retirado pelos fotossintetizadores.""° _ = pia, p. 76. Assim, enquant a ftossintesisabsorve apenas 0,8%6 da energia solar incidente 30% sto refletidos, 46% ddivtenarte convertidos em calor, 02% converidos em energia cinéties edica, das ondas ¢ covets rmarinhas © 0s aera aao responsiveis pelo ciclo bidrol6gico. Ibid, p. 77, Tabela 4.1. Dados tomados de M. C Hulbert, The Snorgy resources of the earth, Scientific American 224(228V(3), 1971, pp. 60-70. # Lovelock 1995, op. cit, pp. 72-73. 2 Ibid, p73. 0 pid. 75; Apesar de reconhecero carter especulativo desta reconstruyio po falta de dados, Se forma que os detalhes possum fer sido bastante distintos,o que nos ineressa aqui ¢ « consideragao dos aspects gerais pelos quais uma auio- Prsanzagto ao nivel planetario pode emergi asim exemplificar uma dialéticasistémiea de auto-regulagao. 13 “qui, novamente, da tensAo inerente a relag#o de predagto, emerge uma cooperagto a um nivel mais alto da regulacao planetéria, Esta regulaglo, ademais, envolve ndo s6 0s seres vivos mas também a Terra como um todo, na medida em que a emissdo constante de metano leva & constituig’o de uma atmosfera na qual ele, decomposto pela radiaydo ultravioleta, levaria A constituigo de uma capa composta basicamente pela recomposigo deste metano entre si e com outros elementos que "seria o equivalente no arqueozdico da camada de ozono ¢ teria atuado, exatamente como o faz 0 ozono, tanto Para estabilizar a existéncia da estratosfera, quanto para filtrar a radiagao ultravioleta."™*! Um modelo deste tipo jé apresenta uma complexa rede de interagdes em um processo de auto-organizagao na qual (como emerge claramente das simulagSes feitas por computador deste tipo de cenérios) observamos tuma grande estabilidade € a eapacidade de, neste processo, estabelecer os equilibrios intemos e assim tum dominio de legalidade no qual a vida possa evoluir apesar das perturbacdes externas, Fol esta estabilidade que permitin a evolugdo e a persisténcia da vida sobre a Terra, apesar do gradual ‘nsremento na radiag&o solar ¢ 0 impacto de planetesimais. "Existiram pelo menos dez destas colisces, cada qual uma eatéstrofe grande o suficiente para destruir mais da metade de toda a vida planetaria.(...) E um mérito do vigor de Gaia de que 0 nosso lar planetirio tivesse sido reconstruido tio rapida e efetivamente depois destes acontecimentos,"2 Esta estabilidade é, no entanto, uma estabilidade dindmica, um equilfbrio ative e no Passivo. Como em lim €eossistema depois de um incéndio, a propria tendéncia & supracriticalidade de biosfera como um ‘odo, conforme vimos, jd leva em si o germe da sua transformagao e da sua recuperacdo. Neste Brocesso, do ponto de vista das partes, podem ocorrer violentas transformagoes, mantendo-se, no entanto, a estabilidade do todo. Uma das transformagées mais radicais neste Processo foi justamente a ave POs fim a0 periodo arqueozdico e deu origem ao paleozéico. Esta transigéo, normalmente datada Por eritérios geol6gicos, na verdade, conforme mostra Lovelock, do ponto de vista geofisioligico melhor definida como uma transformagao nos processos de organizagdo biosférica @, de fato, onseqilneia destes, A gradual liberapao de oxigénio pela fotossintese, uma vez esgotadas as fontes de oxidasto abistica que evitaram a sua acumulagdo no meio ambiente, resuliou em uma radical mudanga me Somposiao da atmosfera terrestre. Como coloca Lovelock, "como um geofisiélogo, eu prefiro colocar os meus marcadores no momento em que o meio ambiente tomou-se predominantemente oxidant, ou, para dizé-lo de maneira mais profissional, na transi¢o de um meio ambiente dominado Por moléculas doadoras de elétrons, como © metano, para um dominado por tomadores de elétrons, como 0 oxigénio, (...) Ibid, p. 75, * Ibid. p. 81 14 Entre 0 arqueozdico ¢ 0 proterozdico, a apari¢ao do oxigénio como um gés dominante foi o evento principal e representou uma profunda mudanga no estado geofisiolégico da Terra. As manifestagdes extemas ¢ secundarias desta mudanga (a emergéncia de uma nova quimica atmosférica, da superficie ¢ dos ecossistemas na medida em que o oxigénio comeca a dominar a atmosfera) provavelmente se alargaram por um considerdvel intervalo de tempo ¢ ocorreram em diferentes periodos nos distintos lugares." O oxigénio, pela sua forte reatividade, é também um dos elementos potencialmente mais téxicos para a vida, na medida em que ao entrar em contato com certas cadeias orgdnicas ele inverte 0 processo da fotossintese, decompondo-as ¢ resultando basicamente CO2, égua e energia. Neste sentido, segundo Margulis, "a acumulagdo atmosférica da emissio de oxigénio livre foi uma das primeiras catistrofes ecolégicas sobre a Terra, na medida em que este gés ameagava a vida, Mas a vida mudou a sua estratégia e, através da evolugdo, os organismos aprenderam a conviver com 0 oxigénio ¢ a exploré- Jo." Esta mudanea, conforme aponta Lovelock, pode ter sido bastante rapida do ponto de vista geolégico devido aos mecanismos de retroalimentagao positiva que podem ter atuado no processo2* Agora, ela nao sé nao inviabilizou a evolug%o da biosfera como um todo, como também abriu novas possibilidades para esta com o desenvolvimento dos organismos aerdbios. Estes, que antes devem ter emergido em alguns nichos ecolégicos ricos em oxigénio e assim em relacdo simbiética com as bactérias produtoras deste oxigénio, passam, a partir de entdo, a assumir um papel predominante nos processos biosféricos, beneficiados pela sua capacidade nao s6 de neutralizar o efeito potencialmente letal do oxigénio, como também de sacar deste uma valiosa fonte energética. Como coloca Margulis, "podemos imaginar que, comparados com hoje, 0s ecossistemas nos primérdios da vida estavam ao revés, no sentido de que os organismos anaerdbios se encontrariam nas camadas superiores € 0s organismos aerébios, como as cianobactérias, por debaixo, proximas aos substratos rochosos, ricos em ferro, onde o oxigénio de fato estava sendo produzido. Uma vez que 0 oxigénio comegou a se acumular na atmosfera, as capas foram invertidas e os organismos anaerdbios passaram a se encontrar nos fundos turvos.""* Nesta biosfera mais complexa e reativa com a apari¢do do oxigénio atmosférico, uma série de relagdes simbidticas so potencializadas entre os organismos aerdbios € os organismos anaerdbios decompositores. Destas relagdes, como vimos. emerge no s6 a célula eucarionte, como também as algas fotossintetizadoras. Emerge a base para os organismos multicelulares e, como vimos, a emergéncia de ‘individualidades compostas', nas quais organismos 28 Thid, pp. 94-95 > Margulis etal. 1996, op. cit, pp. 182-183. ® Lovelock 1995, op. cit, pp. 94-96. > Margulis etal. 1996, op. cit, p. 183 macroseépicos asseguram um meio ambiente estavel para uma infinidade de organismos microseépicos, que, por sua vez, asseguram as fungdes digestivas essenciais para a sobrevivencia deste individuo. Nesta adaptagdo, vemos no s6 a estabilidade da autopoiesis de Gaia, como também a sua potencial plasticidade. Ela repousa, em iiltima anélise, em uma das caracteristicas essenciais do que estamos denominando tempo sistémico, que ¢ 0 fato dele desenrolar-se em rede € no como um fluxo linear. A evolugao dos seres vivos nao se dé como uma simples linearidade, mas sim como uma rede em que os distintos fios seguem trajetérias muitas vezes divergentes, outras vezes convergentes, outras vezes paralelas "em uma deriva natural fruto da invaridincia da autopoiesis e da adaptagao.""” Os diferentes nos da rede (que nesta metifora representam os diferentes organismos ou espécies) interconectam-se de miiltiplas formas com distintos outros nés, por sua vez conectados a outros. Neste processo, mais que uma direcionalidade e linearidade da evolugao, observamos um quadro em que a propria supracriticalidade potencial ja inscrita no cardter combinatério da quimica desabrocha em miltiplos caminhos ¢ possibilidades. "A evolugdo parece-se mais a um escultor vagabundo que passeia pelo mundo ¢ recolhe este fio aqui, esta lata ali e este pedago de madeira ai, unindo-os conforme a sua estrutura e circunstancias permitem, sem nenhuma outra razo que 0 fato de que pode uni-los. E assim, no seu vagabundeio, vao produzindo-se formas intrincadas compostas de partes harmoniosamente interconectadas, que no so produtos do desenho, mas de uma deriva natural. Assim também, sem nenhuma outra lei que a conservagdo de uma identidade e a capacidade de reprodugdo, surgimos todos; © € isso que nos relaciona a todos no que é fundamental: a rosa de cinco pétalas, o camardo de agua doce € 0 executivo de Santiago.""** A “érvore da vida’ decorrente destas miltiplas derivas caracteriza-se por seu cardter descentralizado ea sua plasticidade potencial, plasticidade esta que repousa tanto na plasticidade propria aos diferentes organismos (em termos de evolugio € de conduta), quanto na diversidade de formas em que estes se inter-relacionam e interconectam entre si. Outro exemplo desta plasticidade do fendmeno biolégico e de como um obstaculo potencial nio sé é superado como também acabou abrindo as portas para um novo nivel de complexidade do vivente, pode ser encontrado na regulacéo do ciclo do céleio. Como lembra Lovelock, "se 0 oxigénio foi 27 Maturana ¢ Varela, op. cit., p. 98. Em uma definigfo ligeiramente mais técnica, os autores colocam “que a evolugao ‘corre como um fenémeno de deriva estrutural sob uma constante selecéo filogénica, na qual nfo ha progresso nem otimizagao do uso do meio ambiente, mas apenas conservacdo da adaptagao ¢ autopoiesis, em um processo no qual o ‘orgenismo eo ambiente permanecem em um continuo acoplamento estrutual." Ibid., p. 99. Nao se trata, assim, da selego natural do tipo darwiniano em que o ambiente seleciona a sobrevivéncia do mais forte, mas de um processo de derivas miltiplas que gera nfo s6 as espécies individuais, como também o ambiente em seu conjunto, em que ‘qualquer maneira de viver vale a pena’, partiepando em seu viver na evolusao e dinamica do todo * Tbid., pp. 98-99. 16 fundamental na evolugdo geofisiolégica da atmosfera, entdo o calcio deve ser, com certeza, o elemento determinante da geofisiologia dos oceanos e da crosta terrestre. (...) E 0 terceiro fon positivo mais abundante da dgua do mar, depois do sédio e do magnésio. Tendemos a pensar no céleio como um elemento benigno e nutritivo por ser essencial para a estrutura dos nossos ossos ¢ dentes. Ele também é essencial em numerosos processos fisiolégicos internos, da coagulagdo sangiiinea a divisio celular. Ele € essencial para a vida, porém, paradoxalmente, é muito téxico em seu estado ‘nico livre. No interior das nossas células, uma concentrago de célcio maior do que algumas poucas partes por milhao é fatal, compardvel em toxicidade ao cianeto. No entanto, ions livres de célcio encontram-se em concentragdes dezenas de milhares de vezes mais alta nos oceanos.""? Os organismos marinhos tiveram, assim, que descobrir uma maneira eficiente de lidar com este excesso de fons de célcio. A forma como esta adaptagao deve ter ocorrido também nos mostra como uma estratégia local pode ter efeitos de regulagdo global de largo alcance. "Imagine alguma bactéria nos ‘oceanos primordiais capaz de converter o abundante calcio solivel em agua do seu ambiente interno em carbonato de célcio insolivel. Esta simples reago teria reduzido eficazmente a concentragao potencialmente toxica de ions de célcio no interior da célula ao aprisionar o célcio em uma forma insolivel e segura. Esta ago, caso 0 calcio estivesse em excesso nos oceanos como ele costuma estar, teria aumentado as chances de sobrevivéncia do organismo ¢ dos seus descendentes. Estes organismos estariam em vantagem se comparados com os organismos que apenas se adaptam ao excesso de calcio. Nas zonas ensolaradas dos oceanos abertos, 0 crescimento destes organismos levaria a enormes massas de carbonato de ciilcio sendo depositadas no fundo do oceano. A chuva de microscépicas 'conchas marinhas’ (...) da superficie ensolarada as profundezas, funciona como uma esteira de produgéo. Alimento é levado para os consumidores mais abaixo, 0 oceano € varrido ¢ limpo - tornando-se mais transhicido - ¢ elementos potencialmente toxicos, como 0 cédmio, séo eliminados das zonas superficiais, Diéxido de carbono ¢ cdlcio so transportados juntados por comunidades bacterianas para formar as cidades rochosas, planas ou em forma de cogumelo, chamadas estromatolites. A concentragao de ions de célcio nos oceanos seria reduzida e com isso toda a vida poderia florescer. A ubigiidade de depésitos caledrios de origem ocednica indica o éxito ¢ a continuidade deste proceso." > Lovelock 1995, op. cit, p. 97. 29 pid, pp. 98-99.Devemos lembrar que a estratégia altemnativa, de ‘bombear’ os fons de calcio para fora da célula, em uma cosmose em sentido contrario, é um processo extremamente custoso em termos energéticos e assim comparativamente ineficiente. Além disso este processo, a0 niio neutralizar 0 excesso mas siruplesmente ‘borabear o veneno para fora’, a nivel slobal néo impediria um gradual aumento da concentra¢to ambiental deste ion, dificultando ¢ eventualmente inviabilizando esta adaptagao no longo prazo. uy Desta forma, como lembra Lovelock, "o passo da precipitagdo do carbonato de calcio (...) levou no s6 a regulagao do calcio, diéxido de carbono e do clima, mas também a enorme engenharia das estruturas de carbonato de célcio (os estromatolites). Posteriormente, estes mesmos processos evolucionaram de forma que as nossa proprias células possuem um intrincado mecanismo pelo qual cdlcio é depositado sob forma de ossos e dentes. Ainda mais notavel € 0 fato de que os depésitos de carbonato de calcio de origem biolégica possibilitaram 0 funcionamento eficiente do ciclo endogénico - 0 lento movimento de elementos da superficie e dos oceanos para a crosta rochosa e novamente de volta."*5! Este processo de micro regulago local se traduz, assim, em uma macro regulago em nivel global. Além disso, este mecanismo simultaneamente gera 0 processo pelo qual, com a produgdo dos esqueletos, um novo passo essencial na evolugio da complexidade da organizagiio dos multicelulares fj estabelecido. Este processo, conforme sugere Don Anderson, também pode estar na base da ativacaio do tectonismo das placas, outro elemento fundamental na regulago geofisiolégica, uma vez que se trata de um elemento central na circulagdo e transformago material terrestre e que, efetivamente, nao é encontrado nos nossos 'planetas mortos’ vizinhos. "A Terra também é, aparentemente, excepcional por possuir um tectonismo de placas ative. Se 0 diéxido de carbono na atmosfera de Vénus pudesse se transformar em calcario, a temperatura superficial e do manto superior cairia. A transiggo de fase basalto-eclogite migraria para profundidades mais superficiais, provocando a instabilidade da parte inferior da crosta. Existe, assim, a interessante possibilidade de que o tectonismo das placas existe na Terra devido & evolugdo aqui de vida produtora de calcdrio."**? Mais ainda, "o caledrio no é Gepositado nem aleatoriamente ¢ nem seguindo as expectativas da fisiea ou da quimica. (...) Os depésitos calcarios, no mundo real, so principalmente o resultado de organismos vivos. (...) A deposigao de carbonato de calcio por colénias de microorganismos ocorre principalmente nas 4guas rasas em tomo das placas continentais, onde a abundancia tanto de nutrientes, quanto de bicarbonato é maior. Sem nenhum planejamento ou previsto, os estromatolites de caledrio se formariam no mar e, eventualmente, fechariam lagoas nas quais a 4gua marinha progressivamente evaporaria ¢ 0 sal se depositaria. Inicialmente, o efeito da construgao de corais teria apenas um efeito local, mas com 0 tempo a prépria massa do calcério afetaria a maleavel crosta terrestre, afundando esta e aumentando 0 tamanho da lagoa, Novos formadores de rocha estariam continuamente colonizando a superficie dos arrecifes, mantendo, assim, a lagoa intacta. Se, como sugere Don Anderson, 0 movimento da crosta terrestre depende do continuo depésito de carbonato de calcio nos mares, os recifes de caledrio podem Did, p. 99. ** Don Anderson in Scfence: 1984; citado em Lovelock, ibid. p. 99. ng ter levado & complexa dinémica da formagao de montanhas o desdobrar de rochas nas margens continentais, Isto, por sua vez, aumentaria a extenséo de costa onde lagoas de evaporagao poderiam se formar."" Desta forma, 0 processo de neutralizagdo dos fons de calcio e de sédio pelos processo biosféricos ao mesmo tempo provocam ¢ dependem de um mecanismo geolégico ativo (a dindmica das placas tecténicas) pela qual nfo s6 a atmosfera, como também a propria litosfera passam a ser uma parte integrante ¢ fundamental na regulagio ¢ reciclagem material e energética da Terra viva, da qual ‘Também aqui, podemos ver que a fronteira entre o produtor ¢ 0 produto desaparece na medida em que a retroagdo de um nivel sistémico sobre 0 outro transforma a propria base da qual este nivel superior emerge. Ig. Multicelulares, sistema nervoso e conduta do vivente Conforme vimos, a apari¢ao dos organismos multicelulares de carter macroseépico foi um fendmeno relativamente recente (a cerca de 800 milhGes de anos surgiram os primeiros multicelulares ¢ somente & cerca de 500 milhdes de anos surgiram os primeiros organismos de maior porte, comparados com 05 mais de 3.5 bilhdes de anos de evolugo da vida sobre a Terra). Quando estes organismos macroscépicos emergiram, os principais mecanismos geofisiolégicos © os principais principios da organizacio biolégica jé se haviam constituido, mecanismos estes que continuam na base da organizagio do vivente até os dias atuais. Os seres multicelulares, de fato, nlo so essenciais para a manutengio do processo vivo, apesar de (como no caso das distintas transigBes de um nivel ao outro), terem aumentado enormemente as suas possibilidades. Assim, no inicio do que se denomina periodo cambriano, ha cerca de 550 milhées de anos, observamos uma verdadeira explosio de formas ¢ variedades, grande parte posteriormente extinta, Esta explosdo, como lembra Kauffman, parece estar associada as possibilidades abertas pela existéncia de um campo aberto experimentagdo, antes que a celesio natural, pela competigio entre distintos caminhos evolutivos, diminua as possibilidades abertas Esta explosdo é também um testemunho do imenso potencial criativo da vida em seu funcionar. pu Com o surgimento dos multicelulares, nfo s6 um novo estégio na complexidade da organizagio material foi atingido, como também esta evolueio implicou em um novo nivel de complexidade da informagio. De fato, em um organismo multicelular, trata-se de coordenar o funcionamento de células 5 Lovelock 1995, op. cit, pp. 104-105, 2st Sige Kauffman, op. eit, especialmente pp. 13-15 ¢ 199-203. Uma interessante descrigdo deste periodo pode ser encortrads em Stephen Jay Gould: Wonderful Life: The Burgess Shale andthe Nature of History, New York: Norton, 1989 119 independentes, com sua autopoiesis prOpria, dentro deste todo maior." Isto implica em uma complexa rede de informagdes que permeie este organismo e, particularmente, uma rede capaz de conectar as celulas (ou superficies) sensoras as eélulas (ou superficies) motoras. Esta interconexdo intema é a base Para uma conduta congruente do organismo em seu meio e assim imprescindivel para a mamutengiio do acoplamento estrutural organismo/meio. Conforme mostram Maturana ¢ Varela, enquanto que nos organismos unicelulares a superficie sensora © @ superficie motora so as mesmas e portanto 0 seu acoplamento é imediato, nos multicelulares este acoplamento & mediado pelo sistema nervoso. Os neurénes, de que estd constituida esta rede, "através Ge sua presenga fisica (..) aeoplam, de muitas maneiras especificas e diferentes, grupos celulares que, 4S outra forma, $6 se poderiam acoplar através da circulapao geral de humores internos do organismo A presenga fisica de um neuréne™ permite o transporte de substincias entre regides através de um caminho muito especifico, que ndo afeta as células circundantes,"2.7 Assim, tanto nos unicelulares Guanto nos multicelulares, observamos que certos estimulos do meio engatilham mudangas no estado intemo do organismo que, por sua vez geram uma conduta (ou movimento) especifico na medida em Gus se busca um reequilibro destas instdncias intemas ao organismo que foram perturbadas, Isto é ‘erdadeiro tanto para uma ameba a ponto de ingerir um pequeno protozoo pela formagto © extensio de tum pseudépode, quanto para uma bactéria em um laboratério que se dirige rumo a uma maior coneentagao de agicar ou ainda para um ser humano que retira a sua méo frente a uma pressdo exercida sobre esta. A diferenca basica é que neste tiltimo exemplo esta reag&o esta mediada pelo sistema nervoso, © que aumenta 0 campo das respostes possiveis. Na ameba, "a presenga do protozoério gera uma concentrag&o de substincias no meio capaz de interagir com @ membrana da ameba, engatilhando mudangas da consisténcia protoplésmica, que resulta na formagio de um pseudépode. O pseudépode, por sua vez, produz mudangas na posicao do animal que se desloca, alterando assim a quantidade de moléculas do meio que interagem com sua membrana, Este ciclo se repete, ¢ a seqiiéncia de deslocamento da ameba, portanto, produz-se através da manutengdo de ‘ima correlagdo interna entre o grau de modificagdes da sua membrana e aquelas modificagdes Protoplésmicas que vemos como pseudépodes."" No caso da bactéria "acontece que em sua “Esta questo fica ainda mais clara se pensumos na possvel origem composta dos organismos multicelulares, a partir da rere Gimbotica ene unicelulares e, assim, a necessidade de se coordenar dois ou mais indivduos em uma aucpoiess ica, conforme vimos e que sugere Margulis, op. cit Ness evolufto, come lembram Maturana ¢ Varela, “nto devemos desprezar a delicada série de tansformagdes no cana, Gus & requer para que uma eélula que inicialmente mede uns poucos milhionésimos de milimeto chegue a ter ramificagbes de formas especificas que podem aleangar dezenas de milimettos." Op. cit, p. 130-131. Para a dscussao que se segue, veja em particular Maturana e Varela, op. cit, cap. VI, pp. 119-150, 2 "Ibid, p. 131 =, Exemplos dados em Maturana © Varela, op. cit, pp. 120-122; 126-127 e 136-137 * Ibid, p. 125. 120 membrana existem moléculas especializadas, capazes de interagir com os aglicares, de tal forma que ao haver uma diferenga de concentrago em seu entorno préximo produzem-se alteragSes no interior que determinam a mudanga na diregdo do giro do flagelo. A cada momento, portanto, se esta estabelecendo outra vez uma correlagdo estavel entre a superficie senséria da célula e a superficie motora, 0 que permite esta conduta claramente discriminatéria de dirigir-se até as zonas de maior concentragao de certas substéncias.""® Uma situagdo andloga acontece no caso da conduta humana em que existe "um neurénio sensério da pele capaz de responder (elétricamente) frente a um aumento da pressio neste ponto. (...) Este neurdnio conecta-se ao interior da medula espinhal, onde entra em contato direto com um motoneurdnio capaz de, pela sua atividade, engatilhar a contragdo de um misculo que provoca um movimento, Este movimento altera a atividade sensoria ao diminuir a pressio sobre 0 neurdnio sensorio, com 0 que se restabelece uma certa relagio reciproca entre as superficies senséria ¢ motora.'”*' Em todos estes casos vemos que a conduta decorre da manutengo de um equilibrio interno, sendo que nos casos em que existe a presenga de um sistema nervoso intermediando este processo, 0 dominio comportamental é enormemente aumentado na medida em que se expandem as possibilidades de respostas possiveis. Isto é assim, em primeiro lugar, pela propria forma em que esta constituido este sistema nervoso, no como uma conexo linear ¢ direta entre pontos especificos, mas como uma complexa rede cujo funcionamento dé-se como um todo com clausura operacional, isto é, uma globalidade cujo “fancionamento consiste em manter estveis certas relagdes entre os seus componentes, frente as continuas perturbagdes que produzem nele tanto a dindmica interna, quanto as interagdes com 0 meio por parte do organismo que este integra.” Podemos observar que “em cada neurénio, na sua arvore dendritica, existem normalmente muitos milhares de terminagdes sindpticas de muitas centenas de neurénios diferentes. Cada uma das terminag6es faré uma contribuigdio pequena para a mudanga total da atividade elétrica do neurénio ao qual se conecta. Além disso, cada neurénio é capaz de influenciar de forma quimica a estrutura de todas os neurénios que conectam-se a ele, ou com os quais ele conecta- se através da difustio de metabolitos que saem e penetram pelas superficies sindpticas e sobem pelos axOnios ou pelos dendritos até o corpo celular correspondente. Deste duplo trafego elétrico metabélico depende, em cada instante, o estado de atividade, assim como o estado estrutural de cada neurénio no sistema nervoso." E esta constituig&o em rede que permite que uma dada perturbacdo seja amplificada ao longo da rede, levando a necessidade de uma resposta re-equilibradora (da qual, como 2 bid, p. 127. 28 Tid, p. 136. © Tid, p. 140. *© hid. p. 131. 11 vimos, também emerge a conduta do organismo), ou pode ser abafada e perder-se ao longo da rede. O ‘efeito borboleta’ ¢, assim, particularmente importante no funcionamento do sistema nervoso: um pequeno estimulo pode ter efeitos enormes (como por exemplo o choro de um bebé afetando a percepgdo € 0 estado interno da mfe) e um grande estimulo pode passar totalmente desapercebido (como no caso dos trens que sio ignorados pelo funcionamento interno do sistema nervoso dos vizinhos de uma linha ferrovidria). Tudo depende de como um determinado impulso é ampliado ou abafado no interior da auto(re)organizagao do sistema como um todo. ‘A segunda forma basica pela qual o sistema nervoso amplia as possibilidades de interago (ou conduta) dos seres vivos é pela variedade potencialmente infinita de geometrias que ele pode assumir e assim as diferentes formas em que intermedia a relago entre o estimulo e a resposta. Assim, o sistema nervoso, nas palavras de Maturana e Varela, “acopla as superficies sensoras e motoras através de uma rede de neur6nios cuja configuragao pode ser muito variada. Mecanismo muito simples, mas que permitiu, uma vez estabelecido, a filogenia dos metazoarios em uma variedade e diversificagdo imensa de dominios de conduta, De fato, os sistemas nervosos das distintas espécies se diferenciam essencialmente apenas na configuragao especifica das suas redes interneuronais.""* Esta forma em que esta constituido o sistema nervoso, tanto no nivel de cada individuo, quanto no nivel da espécie como um todo, é mais um exemplo do cardter eminentemente irreversivel do devir sistémico ou das vias bifurcativas estudadas por Prigogine no seu estudo da evolugio das estruturas dissipativas. sistema nervoso, fruto de uma deriva estrutural tanto filogénica quanto ontogénica, é de fato uma estrutura eminentemente histérica, uma razio a mais para afirmarmos o cardter historicamente determinado de todo conhecimento nele fundado. Nesta deriva histérica, "o sistema nervoso, a0 participar através dos érgaos sensoriais ¢ de agao nos dominios de interagio do organismo que selecionam as suas mudangas estruturais, participa na deriva estrutural deste organismo com a conservagao da sua adaptagao Agora, a mudanga estrutural do sistema nervoso nao acontece, normalmente, sob forma de mudangas radicais nas suas grandes linhas de conexdo. Estas, em geral, so invaridveis e, normalmente, as mesmas em todos os individuos de uma mesma espécie. (...) Onde acontecem as mudangas estruturais entao, se ndo é nas grandes linhas de conexGes? A resposta € que elas acontecem nao nas conexdes que unem os grupos de neurénios, mas sim nas caracteristicas locais destas conexdes. Quer dizer, as mudangas acontecem ao nivel das ramificagdes finais e das sinapses. Ali, mudangas moleculares resultam em mudangas na efetividade das interagdes sindp' * Toid., p. 136. que podem modificar drasticamente a forma de funcionar de grandes redes neuronais. 165 Todo sistema nervoso tem, assim, 0 seu operar dado por "uma deriva estrutural continua, que segue o caminho em que, a cada instante, conserva-se 0 acoplamento estrutural (adaptagdo) do organismo ao seu meio de interagao.""* Nesta deriva, o sistema nervoso segue vias bifurcativas ¢ irreversiveis, nas quais a abertura de uma porta implica no fechamento das demais. Isto é verdadeiro tanto para o cordeiro que, separado do contato com a mae nos primeiros instantes de vida (e assim, privado dos estimulos técteis que esta Ihe dé ao limpar o recém nascido com a lingua) fica apético e no participa dos jogos de infincia dos cordeiros, quanto no caso das meninas-lobo encontradas na india no comego do século ¢ que nunca mais puderam acoplar-se inteiramente ao contexto humano2” F esta deriva do sistema nervoso que, 20 custo da irreversibilidade, permite uma enorme plasticidade e capacidade de adaptagdo do ser ao meio em que evolui, plasticidade esta bastante distinta entre as diferentes espécies com as suas distintas configuragdes nervosas, como podemos ver, por exemplo, a0 observarmos as diferengas existentes tanto ao nivel de conduta, quanto de sistema nervoso, entre os insetos ¢ os vertebrados ou mesmo no interior destes, entre distintas espécies. Estas diferencas entre espécies, por sua vez, sio fruto de distintas derivas filogénicas pelas quais, conforme mostram Maturana e Varela, duas tendéncias basicas emergiram: "1) a de reunir os neur6nios em um compartimento (corda nervosa), € 2) a de concentrar um maior volume neuronal no extremo encefilico (encefalizagao) (.. resultado disto é que o funcionamento do sistema nervoso diversifica- se enormemente com 0 aumento da variedade de formas de interagao neuronal que traz consigo crescimento da porgdo encefélica, como 0 mostram todas as linhagens de vertebrados, cefal6podes ¢ insetos." Assim, no homem, “uns 10'' (cem bilhdes) interneurénios interconectam uns 10° (um rmilho) de motoneurénios que ativam uns poucos milhares de misculos, com umas 10" (uma dezena de rmilhées) células sensoriais distribuidas como superficies receptoras em varias partes do corpo. Entre 05 neurnios motores ¢ sensores esté interposto o cérebro, como um gigantesco tumor de intemeurdnios 68 que as interconecta (em uma raz4o de 10/100,000/1), em uma dinmica sempre mutavel. ° Ibid. p. 143, * Ibid.,p. 146. 27 Bxempios citados em Maturana ¢ Varela, op. cit, pp. 108-111. Assim, por exemplo, apesar de fisiologicamente apras estas meninas ndo tinham adquirido o andar ereto em seu contexto nio-humano e, uma vez neste, nfo conseguiram aprender Salar cometamente. Em contraste, evoluindo num contexto quadripede, adquiriram uma coordenagéo motora avancada para andar agilmente sobre suas ‘quatro pata’, além de varios habitos de conduta proprios 20s lobos. E, no caso do cordeiro, remo nos bebés humanos, a falta ou a presenga de determinados estimulos marca irreversivelmente a configuragio do seu sistema nervoso e, assim, 0 seu dominio de condutas. * Ibid, p. 141 2 Ibid, p. 136. 123 O que se observa na deriva do sistema nervoso humano € que "ao nascer 0 cérebro de um bebé contém cerca de 100 bilhdes de neurSnios, (...) mas enquanto © cérebro contém praticamente a totalidade das células nervosas que ele possuird, 0 padréo de conexidade entre elas ainda ter que ser estabelecido. (...) Iniciando-se pouco depois do nascimento, o cérebro de um bebé, em uma mostra de exuberdncia biologica, produz trilhdes de conexées a mais do que ele poderd possivelmente necessitar, (..) As sinapses em excesso num cérebro de uma crianga passam por um corte draconiano a partir dos 10 anos de idade ou antes, deixando para traz uma mente cujo padrdo de emogdes ¢ pensamento, para bem ou para mal, € tnico.""”” Assim, "aos dois anos de idade, 0 cérebro de um bebé possui duas vezes mais sinapses ¢ consome o dobro de energia que um cérebro de um adulto normal. (..) Esta profusao de conexdes da ao cérebro que cresce uma excepcional flexibilidade ¢ elasticidade."?”! O sistema nervoso, portanto, nao pode ser equacionado aos sistemas informativos humanos como os computadores, jé que se trata de um sistema dindmico ¢ auto-organizado (¢ que encontra neste dinamismo interno a sua esséncia). "Um cérebro nao ¢ um computador. A natureza no o monta ¢ depois 0 acende. Nao, o cérebro comeca a funcionar muito antes de estar acabado."?” Como colocam Maturana ¢ Varela, "o sistema nervoso (ou o organismo) nao foram desenhados por ninguém. Ele é 0 resultado de uma deriva filogénica de unidades centradas em sua propria dindmica de estados, O correto, portanto, € reconhecer 0 sistema nervoso como uma unidade definida por suas relagdes intemas, nas quais as interagdes s6 atuam modulando a sua dinémica estrutural, isto é, uma unidade com clausura operacional. Dito de outra forma, 0 sistema nervoso néo ‘capta informagdes’ do meio, como freqtientemente se diz. Pelo contrario, ele traz um mundo na sua mo ao especificar quais Configuragdes do meio sdo perturbagdes e que mudangas estas engatilham no organismo."73 E assim, desta autonomia propria e da sua deriva estrutural, que emerge a plasticidade do sistema ervoso © portanto a forma pela qual este permite ampliar os modos de conduta, interagio ¢ organizagéo do vivente. E da deriva filogenética que surgem as distintas configuracées hoje encontradas nas diferentes espécies (com suas correspondentes variagdes de conduta) e é da deriva ontogénica do sistema nervoso, (re)produzindo-se continuamente em uma deriva estrutural que se dé Por seu operar interno, que emergem a variedade de condutas individuais e acoplamento estrutural deste sistema nervoso tanto ao organismo, quanto 20 seu meio concreto. Esta plasticidade é, a grosso modo, tanto maior quanto maior é a especificago interna ao proprio sistema (isto é, 0 operar auténomo da rede de interneurénios, que encontram na encefalizagao a sua méxima expresso). A plasticidade do 2” J, Madeleine Nash; Fertile Minds; in Time, 10 de fev p52. *" Ibid. p. 56. *” Ibid., p. 52. Op.cit, p. 145. 128 sistema nervoso ¢, particularmente, do eérebro, vé-se bastante bem exemplificada nos easos de bebés cou eriangas que, por uma razio ou outra, tiveram parte do seu cérebro danificado, Como coloca Nash, vo cérebro, durante os primeiros anos de vida, ¢ to maleavel que eriangas muito pequenas que sofrem gotpes ou lesdes que podem destruir um hemisfério inteio, ainda podem desenvolver-se para ser adultos altamente funcionais."””* No ser humano, que entre as espécies atuais conta com o maior grau de encefalizacto, a plasticidade é particularmente acentuada, permitindo a adaptayio dos diferentes sndividuos, a partir de uma estrutura comum, & multiplicidade de meios ambientes © organizagoes sécio-culturais humanas. E este fato que faz com que 0 processo de aprendizado e de dependéncia do ser humano em relag20 ao seu. progenitores seja particularmente longo, ja que, contrariamente as espéeies que funcionam com uma maior quantidade de condutas inatas, {4 predeterminadas pelo sistema nervoso, no set humano esta especificagio é muito mais genérica. Mais ainda, como voltaremos a discutir com Mumford nas conclusBes, aumentam tantos as possiblidades, quanto os riscos associados a deriva histérica humana j4 que, junto com sua major racionalidade, emerge sua ‘irracionalidade superior’, 2 capacidade de auto-engano e de desvios auto~destrtives. Ih, Autopoiesis social e a emergéncia da fenomenologia cultural |A diversidade e flexibilidade conferidas ao comportamento dos seres vivos pelo sistema nervoso abre ‘um novo horizonte nao so para o comportamento dos individuos, como também pars 0 comportamentos € fenémenos sociais, decorrentes da interagdo recorrents entre organismos distintos. Conforme colocam Maturana e Varela, "é evidente que, do ponto de vista da dinamica interna de um organismo, o outro representa uma fonte de perturbagbes que ¢ indistinguivel daquelas provenientes do meio «inerte>. No entanto, & possivel que estas interaydes entre organismos adquiram 20 longo da sua oniogenia um caréter recorrente e que, portant, se estabeleya um aceplamento estrutural que permita a manutengdo da individualidade de ambos no longo devir das suas interagoes. Quando se dao estes acoplamentos entre organismos com sistema nervoso, nasce uma fenomenologia particular (..) a fenomenologia de terceira ordem. (...) Esta fenomenologia baseia-se em que os organismos participantes satisfazem as suas ontogenias individuais fandamentalmente através dos seus acoplamentos mitues, na rede de interagies reciprocas ; an que conformam ao constituir as unidades de terceira ordem."”"* _ Op. cit, pp. 53-54 > Op. cit p: 134 ep. 165, Ao limitarem a sua definigdo aos organisms providos de bw ASST nervoso e as interagbes, nue copaniemes, da mesma espécie, 08 autores ceramente buscam limita 8 disassto 1 Oe ‘campo particular da Izidoro Blikstein; Kasper Hauser ou a fabricacdo da realidade; Sto Paulo: Cultrix, 1985, pp. Para uma discussao ‘mais abrangente, na qual se discute fato de ndo se poder equacionar a realidade com o referente, ja que entre estes se interpoe a percepsao/cognisto humana com suas limitagbes de ordem filogenética e ontogénica (isto é, dada pela constituigdo organica e pela praxis - deriva estrutural - de cada um), veja também 0s caps. VII-XI, pp. 43-83, deste ivr, bem como nossa discussao no capitulo anterior. © Nash, op. cit, p. 57. "Op. cit, p. 180. Toid.,p. 181 134 © que fundamental para a nossa discusséo € que esta abstragdo crescente da conduta lingdistica, centrada na palavra, permite uma reflexio lingiistica a partir da qual "as descri¢des podem ser feitas tratando outras descrigées como se fossem objetos ou elementos do dominio de interagdes. Quer dizer, 0 dominio lingtiistico mesmo passa a fazer parte do modo de interagdes possiveis. Sb quando se produz esta reflexGo linguistica temos linguagem, surge 0 observador, ¢ os organismos que participam de um dominio lingtistico comegam a operar em um dominio seméntico."** Emerge, assim, uma nova fenomenologia, a fenomenologia da auto-reflexividade, Neste ponto, podemos dizer que a organizagao da materia e da energia se da nfo s6 no dominio da autopoiesis social ecultural, mas também no dominio seméntico, observando-se e descrevendo-se a si mesma, Nés ndo s6 ‘agimos, como também temos consciéncia de agir e podemos nos descrever em nossas condutas. Ndo so existimos temporalmente, como também temos consciéncia desta temporalidade, de sermos seres cuja existéncia esté limitada temporalmente, o que leva Heidegger a ver neste set-para-a-morte (Sein zum Tode) a especificidade mesma do ser humano.”** Nao s6 existimos (cada qual produzindo o seu préprio tempo), como pela nossa consciéncia lingtistica mos descrevemos como existindo no tempo. Ao presente, @ consciéncia reflexiva agrega o pasado da meméria ¢ 0 futuro dos anselos ¢ das antecipagoes.. Pela nossa capacidade de auto-reflexividade lingtistica, assim, no s6 vivemos, como todos os seres, ne demora do presentar-se cada um a seu préprio tempo, como também o proprio tempo passa 2 ser passivel de uma descrigo seméntica, isto é, na representapao humana pode ser dissociado dos objetos para ser visto como uma realidade per se, separada. Neste processo, na medida em que "o dominio semantico passa a ser parte do meio no qual os que nele opera conservam a sua adaptagao" 255 4 particular concepgdo que se tenha deste tempo passa a ser uma dimensdo central no s6 das condutas individuais, como também das condutas sociais em sua organizasio interna e em sua inter-relago com o seu meio ambiente, Com a reflexividade lingtistica surge, portanto, a possibilidade de uma deriva estrutural dos conceitos como parte integrante ¢ constituinte da deriva cultural mais ampla. E nestas derivas dos distintos conceitos, a concepedo cultural e historicamente determinada de ‘tempo’ tem uma particular proeminéncia na medida em que se tata de uma dimenséo central e fundamental de todos os demais conceitos, ao se referirem estes @ entidades que também sao temporais (¢ como tais 'demoram-se cada uma a seu tempo’). Todos os > [pid. pp. 181-182. 2 Martin Heidegger; Sein und Zett; Tdbingen: Max Niemeyer Verlag, 1993, particularmente o eapitulo primeiro da segunda parte, pp. 235-267. 5 Maturana e Varela, op. cit. p. 182. 135 conceitos ¢ toda concepgdo da realidade levam, assim, subjacentes (mesmo que nem sempre de maneira visivel) uma concepso particular de tempo em sua definigo ‘Vemos, na forma em que se constitui a conseiéneia reflexiva e a forma em que esta se articula e passa a Set parte constituinte da autopoiesis humana, que a tradicional dissociago entre reoria e preixis ndo se sustenta, A polémica associada quanto & primazia de uma ou outra na dindmica histérica humana, se revela, de fato, um falso problema na medida em que ambas configuram um todo dialético em que tanto # nossa consciéncia se estrutura e emerge a partir da nossa prética social, quanto nossa consciéneia individual ¢ nossos valores culturais configuram nossa prixis. E, outra ‘vez, somente em uma concep¢aio Linear de tempo que podemos buscar uma anterioridade causal entre uma dimensio e outra e nao, como vimos em nossa discusséo sobre o tempo sistémico, um processo que poderiamos denominar de sinerdnico, de co-produgdo e retro-determinacdo matua. Compreender esta auto-reflexividade como uma caracteristica emergente da forma em que se deu a imteragao comunicativa (¢ assim o fendmeno cultural) nos primérdios da hominizac&o, nos permite ver ane @ nossa consciéncia reflexiva ( o livre-arbitrio que a ela podemos associat) niio algo que nos Permita colocar um abismo entre a espécie humana ¢ as demais espécies, como algum tipo de privilégio !7 Podemos observar esta retroalimentagdo, pela qual a autopoiesis do ser humano deve adaptar-se 20 meio formado por suas criagées culturais e técnicas, na criagdo das ferramentas de pedra ou da faca primitiva, "inventos aos quais parecem ter seguido ndo sé uma posi¢do mais ereta, uma dentigo menor © uma mio dominada pelo polegar, como também a expansto do cérebro humano até alcangar as suas atuais dimens6es. Como a fabricagio de ferramentas depende da destreza manual e da previsio, a sua introdugio deve ter determinado um deslocamento da press2o seletiva, de forma que elas favoreceram 0 rapido crescimento do cérebro anterior, assim como, com certeza, favoreceram os progressos na 18 organizagao social, na comunicacdo e na regulago moral. Esta discussdo, é importante lembrar, no significa cair em um determinismo estrutural (seja ele fisico, biologico ou cultural), na medida em que, como vimos, o tempo sistémico é essencialmente interno, um tempo que brota na autonomia organizacional e pelo qual os seres vivos esto continuamente reestruturando 0 seu meio e selecionando 0 seu campo de interagSes. Significa, isto sim, compreender 0s limites desta autonomia e, principalmente, buscar compreender a dialética que se estabelece entre os distintos niveis e entre os diferentes seres, pela qual cada um é simultaneamente co-produtor ¢ produto do seu meio e de si mesmo. Podemos, assim, ampliar o alcance do dito de Machado, acrescentando: caminhante, ndo hé caminho nem caminhante. Ambos se fazem ao andar. Compreender a forma em que os distintos objetos se inserem no campo de interagdes humanas significa, para a nossa discussdo, buscar estudar também nao s6 as concepsées ¢ as praticas temporais humanas, como também os instrumentos e as formas que serviram de base para a sua medida e que Maturana ¢ Varela, op. cit. p. 146 °* Geertz, op. cit. p. 69. 144 sempre estiveram intimamente articuladas a estas concepgdes ¢ praticas. Como coloca Attali, "a genealogia de todos os objetos se inscrevem na das sociedades e culturas em que estes tomam forma. Elas as explicam e delas decorrem, simultaneamente, em histérias miltiplas e ambiguas. A utilizagao e depois 0 abandono de um objeto revelam em parte a ordem social 4 qual pertence e da qual ao mesmo tempo ele participa. E destas seqiiéncias nasce a multiplicidade de leituras possiveis do nosso tempo. ) Para compreender 0 nosso mundo reflexionar sobre o nosso futuro, necessitamos dispor das historias dos miltiplos objetos cotidianos que simultaneamente nos servem e dominam. (...) Eu gostaria que se encontrasse aqui, antes de tudo, uma meticulosa historia dos instrumentos de medico do tempo, do primeiro gnémon aos mais estranhos objetos atuais. Uma historia dos seus tedricos, seus inventores ¢ seus fabricantes. E, além disso, a histéria do uso, inocente ou perverso, cotidiano ou desmesurado, que deles fizeram os homens.""” Tragar a genealogia e buscar compreender a forma particular de concepso e praticas temporais na nossa sociedade contempordnea para, a partir de ai, buscar analisar a forma como esta se articula com 0 tempo sistémico mais amplo que buscamos identificar na base da organizacao e da dindmica da physis passa, assim, pela necessidade de procurar articular estas distintas dimensdes da autopoiesis humana ¢ social entre si, bem como destas com o meio mais amplo em que se inserem. Como coloca Geertz, "o caminho que conduz ao geral, as simplicidades reveladoras da ciéncia, passa através do interesse pelo particular, pelo circunstancial, pelo concreto. Mas aqui, trata-se de um interesse organizado e dirigido, prestando aten¢do & andlise tedrica 4 qual me referi - andlises da evolugdo fisica, do funcionamento do sistema nervoso, da organizagao social, dos processos psicolégicos, dos esquemas culturais e, muito particularmente, prestando atengao a suas interagdes reciprocas. Isto significa que o caminho passa, como ocorre em toda genuina indagagdo, por uma surpreendente complexidade."*"” 3 Jacques Atali; Histoire du Temps; Paris: Fayard, 1982, p. 7. A ordem dos pardgrafos foi invertida, sem alterar-se, no entanto, o seu sentido. Op cit, p. 58. 145 Ib. Noventa ¢ nove porcento da histéria humana: do tempo sist@mico ao tempo solar "Eu nasci a mil anos atrés, eu nasci na cultura do arco e da flecha ... Nascido em uma época em que as pessoas amavam as coisas da natureza e se referiam a ela como se ela tivesse uma alma." (Chefe Dan George)" "A vida, a sabedoria e a lei tém sua origem na chundua, as cumes nevadas ¢ os lagos. Dependemos da natureza que nos dé vida e cada coisa que existe tém 0 seu préprio espirito. Dependemos de chundua. Mas chundua depende de nés para manter o equilibrio Cada animal, cada érvore, cada rio e cada pedra, o sol, a lua, as estrelas: tudo tém vida espiritual, tudo necessita sustento como nds necessitamos alimento, Se eles ndo o recebem, morreriio. Os rios se secardo, as drvores murchardo e até 0 sol morreré. Tudo necessita sustento, como nds necessitamos alimento." (Filosofia Arhuaco)” E, assim, na dialética do seu acoplamento estrutural ao seu meio biosférico, fruto emergente comum das distintas fenomenologias fisicas, biolégicas e sécio-culturais, bem como do seu acoplamento ao seu meio sécio-cultural especifico, que podemos ler as distintas historias individuais ¢ coletivas do ser humano. Nesta evolugio os seres humanos, como coloca Ponting, "por todos - com a excegiio dos ultimos poucos milénios - dos seus dois milhdes de anos de existéncia (...) obtiveram a sua subsisténcia de uma combinagao de coleta de alimento e caca de animais. Em praticamente todos os casos as pessoas viviam em pequenos grupos méveis."* Esta forma de autopoiesis social todavia persiste em alguns grupos marginalizados com as bem conhecidas dificuldades de manter sua forma de vida tradicional, ao se ver esta autopoiesis perturbada tanto pelas transformagdes do meio, como pela transformagdo dos ®Citado em Goldsmith, op. cit. p. 119. itado em Honor Drysdale (Editor); Cada vez que respiras; in Guardianes de la Tierra: Survival Internationa}, 1994. Os Athuacos vivem no extremo norte da América do Sul, na Serra Nevada de Santa Marta na Colémbia. Apesar de ser um povo Jit agricola, sua filosofia é basicamente animistee ndo heliocéntrica, residindo ai talvez, conforme argumentarcmos, o caréter igualitario da sua organizagao social além de conviverem lado a lado com outras tribos indigenas, os Kogi e os Arsario. *© Clive Ponting; A Green History of the World -The Environment and the Collapse of Great Civilizations, New York Penguin Books, 1993, p. 18. 146 elementos culturais internos e estruturadores de sua auto-organizagao social pela introdugo de elementos culturais exogenos. ‘Atualmente, no nivel dos ecossistemas ocupados por estes grupos base de sua subsisténcia, vemos que estes so, em geral, de tamanhos reduzidos (comparativamente as Areas antes ocupadas ¢ relativamente & pressio demografica decorrente da ruptura nos métodos culturais tradicionais de controle demografico), marginais (¢ assim de menor produtividade que os originais) ¢ frequentemente em um processo de deterioragaio por raz0es tanto locais (sobre-exploragio por pressao demogréfica e/ou produgo para 0 mercado, cuja légica introduz um elemento revolucionirio ¢ desagregador a0 vir acompanhado de novas necessidades e um processo de polarizagdo econémica ¢ social), quanto globais (pelos efeitos que tém os problemas de caréter global como as alteragbes climéticas ¢ a perda de biodiversidade sobre os ecossistemas locais, as grandes obras promovidas pelos Estados nacionais desenvolvimentistas e capitais privados - grandes represas, rodovias, mineracao, etc.) No nivel cultural, temos néo s6 os efeitos mais diretamente visiveis (como a mudanga nos valores culturais, na cestrutura das necessidades, nas priticas de organizagio social e econdmica) como também os efeitos muitas vezes devastadores da introdugio de novos objetos exosométicos e que podem alterar radicalmente o meio cultural em que determinada autopoiesis social se da. Isto inclui no s6 os casos mais evidentes (como a introdugdo de meios de comunicagio de massa ¢ de longa distancia, que introduzem um novo elemento lingtifstico e poderiamos dizer ‘recitador de mitos ¢ historias’ que passam @ fazer parte da conformagio da identidade, da autopoiesis cultural local), como também casos menos evidentes, como a introdugdo de machados novos em uma sociedade tradicional. "Lauriston Sharp conta a histéria (..) que mostra como uma pequena ¢ aparentemente inofensiva inovayio tecnolégica - neste caso a introdugdo de machados de ferro em substituigdo aos machados de pedra em uma tibo Aborigene australiana - pode algumas vezes ser suficiente para detonar a répida Gesintegragio de uma sociedade. Os mais idosos desta tribo tinham praticamente © monopélio da utilizagdo do uso dos machados de pedra e s6 os emprestavam de acordo com um conjunto rigido de regras que asseguravam que eles retomavam as suas maos. O poder dos mais velhos ¢ de fato toda a estrutura social, conforme mostrou Sharp, dependia da manutengio deste sistema. No entanto, missiondrios, ansiosos por modernizar a sociedade tribal e reduzir a carga de trabalho, introduziram machados de ferro que foram distribuidos de forma indiscriminada, Desta forma os mais velhos foram privados de um dos mais importantes meios & sua disposigao para manter a ordem ¢ a organizaglo da sociedade, Ela rapidamente desintegrou e nfo demorou muito para que os membros agora alienados 147 ‘comegassem a vaguear pelas periferias das cidades e das estagdes de missionérios."*** Outro exemplo citado por Goldsmith, que nos remete diretamente ao carter desagregador e isolador dos utensilios modemos, se refere aos efeitos das geladeiras em sociedades tradicionais. "Quando um cagador mata uma caga, ele nfo vai vendé-le ou guardé-la para um dia chuvoso. Pelo contrério, ele organizaré uma festa. Em certo sentido isto Ihe dara todas as vantagens que ele poderia ter de vender ou guardé-la, jé que ele sabe que a sua hospitalidade sera, algum dia, reciprocada. (..) Dar uma festa é como por o seu dinheiro no banco ou usar o seu amigo como congelador, e permite, além disso, receber comida fresca em vez de congelada, com uma festa de brinde. Ao mesmo tempo, o sistema cria uma verdadeira rede de obrigagdes miituas que ajudam a unir os membros da sociedade, aumentando sua coesio ¢ wiabilidade. Uma vez que as pessoas conseguem o equipamento para conservar alimentos pereciveis, muito da necessidade aparente para dar festas ¢ eliminada. Em uma das ilhas do Pacifico administradas pela Nova Zeldndia, congeladores foram instalados nos principais centros populacionais. Como resultado, a reciprocidade deixou de ser a forma preferida para conservar alimento excedente. O numero de festas diminuiu ¢ a vida social se ressentiu, resultando uma menor coesio nas comunidades locais.""5 Podemos imaginar 0 resto da historia: maior competi¢ao pelas melhores zonas de pesca: polarizagao social e econémica em fungdo dos diferentes resultados ¢ capacidades de pesca individual: estimulo & acumulagdo € & produgdo para o mercado - levando alguns a adquirir, em troca da recessidade de maior resultado econémico, outros bens modemos como ridio, televisio, fogio, geladeira familiar, etc., que tém todos como denominador comum independentizar ¢ isolar os membros dia comunidade, # marginalizagio social dos menos eficientes na competigdo e corrida social que se ‘nstaura, levando a um aumento no alcoolismo, delingiténcia, etc. Em poucas palavras, a introdusfo de novos objetos nestas culturas pode resultar no quadro familiar de degradagdo social, com suas altas ‘axas de alcoolismo, violéncia € estresse social visivel em tantas sociedades que, até entio, foram capazes de manter a sua autopoiesis social por virios milénios, centrada em uma forte coesao social, respeito ds tradig6es e em estreita relago com 0 seu meio. Apesar deste quadro de deterioragdo e muitas vezes ruptura na estabilidade autopoigtica destas sociedades némades que ainda existem, estudos antropolégicos mais detalhados das iltimas décadas, Particularmente nos anos 50 ¢ 60, puderam "desarrumar o que era - e permanece -, sem diivida, uma das crengas mais solidamente estabelecidas no Ocidente modemo: a miséria dos selvagens. Contradizendo © senso comum ¢ os preconceitos etnocéntricos ¢ evolucionistas que levavam a apresentar as sociedades primitivas como sociedades de peniiria, onde os homens, por causa de seu subequipamento Goldsmith, op. ct. pp. 313-314, se referindo& obra de Lauriston R. Sharp; Stee! Axes for Stone Age Australians, In Peter Boyd Hammond (org. An Jntroduction to Cultural and Social Anthropology: London: Macmillan, 1971. 148 téenico, exauriam-se numa Iuta continua pela subsisténcia, esses autores colocaram em evidéncia, com pesquisa etnografica, que algumas sociedades primitivas eram, de féto, freqitentemente muito ‘ricas’ - ainda que de uma absoluta pobreza aos olhos dos modemos -, dispunham de téenicas adaptadas as suas necessidades ¢ ao seu meio onde, mesmo que trabalhando pouco, vivia-se bem." Neste longo periodo da existéncia humana sobre a terra’®” se estabeleceram os principais rasgos da autopoiesis humana, tanto a nivel biolégico (processo de hominizagio, com a constituigao do homo sapiens), quanto cultural, ao se desenvolverem 0s rasgos culturais tipicamente humanos (@ linguagem ¢ a auto-reflexividade; a capacidade e as priticas rituais em que o culto aos mortos ¢ a fertilidade sejam talvez os mais claros indicios de uma reflexividade temporal ¢ da dissociagao passado/presente/futuro a ela associada; a produgdo e manipulagdo generalizada de objetos exosométicos - mesmo se, obviamente, em uma escala muito menor que nas sociedades sedentarias, ja que para um estilo de vida essencialmente némade toda acumulagio material representa um empecilho; etc.) E também deste periodo que data a ocupacio global do planeta pela espécie humana, process que parece ter comegado com a expansio do homo erectus para fora das fronteiras africanas ha cerca de 1,5 milhdes de anos, inicialmente ao longo dos ecossistemas semitropicais asidticos (ja que a base tecnolégica destas sociedades nao permitia ainda ocupar ecossistemas menos produtivos € com climas mais frios, como @ Buropa euja ocupagto parece ter-se iniciado ha cerea de 730.000 anos, completando-se em toro de 350.000 anos atras). Este processo seguiu com a ocupagio das ilhas do pacifico pelos polinésios que, mais do que cagadores e coletores puros ja apresentavam priticas proto-agricolas, ¢ culminou com a ccupagdo das iltimas grandes ‘terras virgens’, em torno do século VIII da nossa era, a Nova Zelandia pelos polinésios e algumas ilhas do oceano indico e Madagascar por parte de povos Indonésios. Desta forma, 'as principais reas da Terra (com excego da Antartica) haviam sido colonizadas por humanos. Grupos de cagadores e coletores tinham, ao longo de centenas de milhares de anos, se adaptado a todos os possiveis meio ambientes da Terra, das areas semitropicais da Africa & Europa da era glacial, do ‘Artico aos desertos do sudoeste afticano. As técnicas de subsisténcia empregadas nestes diferentes rmeios variavam amplamente da dependéncia na coleta e caga de pequenos animais até 0 pastoreio de Renas, caca de bisontes ¢ a altamente complexa combinacio de estratégias no Artico."** Esta capacidade de adaptar-se aos mais distintos ecossistemas, ao longo de dezenas de milhares de anos, ¢ por si s6 um exemplo do enorme potencial e plasticidade que confere a auto-reflexividade humane 20 5 Goldsmith, op. cit, pp. 304-305. + pine Alpenhdsry, Plere Bitoun e Yves Dupont; O Equtoco Ecolégico- Riscos Politicos Sto Paulo: Brasilienss, 1992, >. 106-107. Pengo eatvamente, nfo enquant espécie mas sim s© © comparamos com os poucos milhaes de anos de exstncia das sociedades sedimentadas posteriores a revolugao neolitca. 5 ponting, op. cit, P. 32 149 seu acoplamento estrutural ao meio, traduzido em uma enorme variedade de organizagdes autopoiéticas, em derivas culturais locais marcadas néo s6 pelo sinal da irreversibilidade ¢ da novidade, como também da recursividade tipica da temporalidade sistémica em que cada grupo, em seu acoplamento estrutural ao meio, é simultaneamente produtor e produto dele. Ela é também a base do &xito biolégico, até o presente, da espécie humana, ocupando todo o globo e os mais diversos nichos ecossistémicos. Esta grande variedade de priticas culturaislocais é também um indicio claro da falsidade do prejuizo moderno que tende a ver estas culturas como ‘atemporais' (ahistéricas) ou estéticas. Como, senéo, P Préticas locals a partir eno interior de uma autopoiesis cultural estitica? O que se pode observar, ponto indo de troncos comuns, podemos imaginar que emergiriam as ricas (e, muitas vezes opostas) 80 ue retornaremos com mais detalhe no capitulo IT, € que longe de serem a-historicas (ou pré- historicas, termo que denota 0 mesmo preconceito) estas sociedades, uma vez alcangada uma estabilidade dindmica em seu acoplamento estrutural ao meio, possuiam uma série de mecanismos ou Préticas sdcio-culturais que buscavam manter a estabilidade deste acoplamento ao inserir a ‘emporalidade social na temporalidade sistémica mais ampla do meio ambiente local em que estavam inseridas, Estas sociedades, longe de viverem em um estado de pentria e precariedade permanente, viviam de fato em um estado de grande abundancia, ja que 0 tempo necessério para a consecugfo da sua subsisténcia material, de fato, ocupava uma parcela bastante reduzida do seu cotidiano. Também aqui devemos considerar uma grande diversidade de situagdes distintas, decorrentes nfo sé da produtividade natural dos ecossistemas locais (e suas flutuagées ciclicas e/ou ireversiveis decomentes tanto das ‘ransformagdes decorrentes da intervengo humana, quanto das transformagdes geoligicas ¢ Seossistémicas mais amplas), como também das distintas estratégias sécio-econémicas adotadas, permitindo aos distintos grupos apropriar-se da riqueza ecossistémica local 22? Em termos gerais, no emtanto, “obter comida e outras formas de trabalho ocupam apenas uma pequena parcela do Getxando uma boa parte livre para o lazer e atividades cerimoniais. A maioria dos grupos sobreviviam com poucos bens porque suas necessidades eram escassas e eles viam bens adicionais como um empecilho para a sua forma de vida ndmade. (..) Tempo livre é muito valorado e preferido a uma maior Producao de alimentos (j4 mais do que adequada) ou produzir mais bens materiais."*° Como coloca {Fara uma discusto edefiniedo mais detalhada do que entendo por iqueza ecossistémic’, vide a dstngdo entre riqueza ¢,yalor econdmico introduaida no capitulo IIL = Ponting, op. cit, p. 21. Esta discussio sobre a ‘ebundéncia dos selvagens' conta com uma bibliografia cada ver mais Ampla e ctescente, que nfo nos interessaresumir aqui Desde 0s precursores mais conhecidos des anos 60 e 70, come Marshal Sahlin 0 seu ‘A Primeire Sociedade de Abundéncia’publicado em frances como ge de Pierre, ge ** Este tipo de relato pode ser encontrado sobre praticamente todos os territérios antes do processo de colonizegdo ¢ posterior capitalizagao, pelo qual a natural produtividade ecossistémica foi gradualmente sendo substituida pela produgao de valores de troca para o mercado, centrada, como veremos no capitulo III, na temporalidade mecdnica. Assim, continua Goldsmith, "na Africa, um continente em que a fome se tomou crdnica e onde 27 milhdes de pessoas estavam ameagadas de morrer de fome apenas no ano de 1991, falta de comida parece ter sido pouco comum. (...) Mungo Park, em seu Viagens na Africa, conta que 0 rio Gambia abundava em peixe e que a natureza, ‘com mio liberal’, tinha dado aos habitantes da area a 'béngao da fertilidade ¢ abundancia’. Dois viajantes franceses do século XVIII, Poncet € es inspires para esta isussto come o proprio Poon, AlGed Crosby, David Worter, Edvard Gelsmith capialo V Go obra de Pere Alptandéry etal, ee Mais recentement,esero em forma romanceadaeslangando um largo pubic, & ese o pout centrale que se bssla Dans] Quinn em su tia radial 6 socledadecootempordnesidentican a az Ga crise un! na rani eollen ona rodupto do que ele danomina'grcuur toalluia” © enonne Ext de yendss de seus livros nos podem dar, eventualmente, uma indicaglo do contexto cultural em que esta reapreciacio dos ditos povos primitives = pode da. Confome argamertaremos com ais dette no capfilo V, esa redescobera Gu oundlnca den selvagens’, ndo pode ser dissociada da crise ¢ da descoberta da 'peniria dos modernos’, na medida em que a riqueza que nos promt a soledade so abet, aos cenrar ba temporadade ea produgo mectnicadesestblizos de fala 2 tutopeiesis (social, cultural, ecesistémicee bistrca conrada no que eamos denominando tempo sistmice que merpulkamos em una eise de ehvilzago em qe a existncia dos modemos eno mals a dos primitives ns aparevs como i Clastres; La Socété contre Eta; Pars: Ed, de Minuit, 1974 p. 165, citado em Alphandéry etal, op.cit, p. 107. Um claic sobre o bom estado geal de se desta sociedades, fadamertado em ua cae complet ict, Go vo de Weston Price; Nutrition and Physical Degeneration; San Diego: Price and Pottenger Nutrition Foundation, 1945. Vide também Sally Fallon; Nasty, Brutish and Short?: The Ecologist vol. 29,1n° 1, janciro/fevereiro de 1999, pp. 20-27 2 John Bakeless; Our Land as it was; in Th ist, vol. 7, n° 2, 1977 descrevendo a regio das grandes planicies dos EUA ea regio de Manhattan, citado em Goldsmith, op. cit. p. 173. 151 Brevedent, descrevem que na regio de Gezira no Sudo, hoje ocupada por campos de algodao crosionados, havia uma vez 'florestas agradaveis com Acacias em flor, cheias de pequenos papagaios' e ‘campos férteis ¢ bem cultivados’ e que era chamada a terra de Ald (Belad-Allah) ‘devido a sua grande abundancia." Esta ‘abundancia’ dos selvagens é, no entanto, fruto no do trabalho humano e sim de uma economia baseada em coletar a riqueza (em termos de valores de uso) (re)produzida pela dialética ecossistémica mais ampla em que estas sociedades estavam inseridas. E, portanto, "de forma alguma resultado do acaso. E o produto de uma ldgica social, de uma série de opgées conscientes e voluntérias: a manutengdo de uma simbiose com o meio que acompanha um certo niimero de priticas ecolégicas, demograficas, téenicas e culturais; a utilizagao do 'progresso’ téenico nao para produzir mais, mas para trabalhar menos; e enfim a autolimitago de necessidades, ou seja, a recusa do excedente, da 3 acumulagao"***, que, como vimos, seria antagénica e de fato uma negagao do seu estilo de vida. "Nés nos sentimos humilhados ao vermos 0 pouco que poderiamos dar aos pigmeus. Quase tudo parecia dificultar a sua vida ao se somar ao peso e ao volume da sua bagagem didria. Eles mesmos praticamente no tinham posses: uma tira para a cintura, uma capa e um saco de couro. Nao havia nada que eles nao pudessem juntar em um minuto, jogar nas suas cestas e levar nas suas costas em uma caminhada de mil milhas. Eles ndo tinham o sentido de posse."**> Além disso, como se pode observar na desagregacdo de diversas comunidades tradicionais pela introdugo de praticas mercantis e valores culturais modernos, a acumulago € 0 excedente, como ja indicavam Sahlins e Clastre, introduzem, no proprio seio da comunidad, a divisdo, o poder e a perda da liberdade com a chegada do estado e assim a desarticulagao de sua autopoiesis e do seu acoplamento estrutural 20 meio. ‘Neste processo de manutengilo de sua autopoiesis socio-cultural, podemos observar que, uma vez que a subsisténcia e existéncia destes grupos esto intimamente acopladas a dindmica dos ecossistemas locais, 0 conhecimento desta dialética e 0 seu reflexo nas praticas sociais se converte, de fato, no elemento central da manutengdo da sua autopoiesis social no longo prazo. Muito pelo contrario, o que observamos € uma enorme diversidade de concepgdes e priticas temporais, refletindo a propria diversidade de ecossistemas e de culturas. Como mostra Ponting, "a coleta de alimento exigia um conhecimento detalhado ¢ uma consideravel compreensto donde os recursos podiam ser encontrados nas diferentes épocas do ano de forma que a ronda anual de subsisténcia pudesse ser organizada em fungao disto. O pastoreio e a caga de animais, igualmente, exigia um estudo detalhado dos seus habitos ® Goldsmith, op. cit, p. 173-174, eitando Mungo Park; Travels in the Interior of Africa; Londres: Folio Society, 1984 (digo original de 1799) ¢ O. G. S. Crawford; The Fung Kingdom of Sennar; Gloucester: John Bellows, 1951 2° Alphandéry et. al., op. cit, p. 107. ® Laurens van der Post; Venture into the Interior; Londres: Hogarth, 1958, p. 276, citado em Goldsmith, op. cit, p. 175. 1sz € movimentos. Também existem evidéncias de que alguns destes grupos tentaram conservar recursos com a finalidade de preservar a subsisténcia por um largo periodo. Restrigdes totémicas a caca de certos animais em certos periodos do ano ou um padréo periddico de cagar em determinada rea sé a cada poucos anos ajudariam a manter a populagZo dos animais cagados. Alguns grupos tinham dreas sagradas onde @ caga estava proibida, outros como os Cree do Canada, usavam uma forma de caga rotativa, s6 voltando para uma érea depois de um considerdvel periodo de tempo, 0 que permitia a recuperacao das populagées animais depois dos turnos de matangas."** Como caracteristicas gerais, uma vez que a principal fonte de subsisténcia é dada nao pela intervengdo/trabalho humano e sim pelo processo de auto-organizacao biosférica, ¢ natural que nestas sociedades a physis, conforme jé discutimos, aparega composta no por objetos inanimados, mas por uma série de sistemas interdependentes, hierarquicamente organizados, em que cada elemento (¢ 0 todo) possuem uma autonomia propria. A natureza, da qual a sociedade humana ¢ os seus membros sio uma parte integrante e dependente, aparece como uma imensa rede animada, cabendo ao homem, pelo respeito de uma série de restrigdes culturais especificas, a manutengdo dos seus equilibrios. Nesta situagao, no nos deveria surpreender que o animismo seja a forma dominante de religiosidade, conferindo vida prépria aos distintos elementos do seu meio. A concepeao temporal correspondente ndo & @ concepedo exterior, abstrata, do tempo do relégio, mas sim o tempo intemo, dos processos, particular a cada coisa "Os cagadores, os pescadores, os pastores, viviam fora do tempo mensurdvel, abstrato. O seu tempo era © tempo concreto, pois se regia pela atividade que estes homens realizavam. Era esta atividade que determinava a hora e 0 seu valor, enquanto que as nossas principais ocupagies se regem pelo horétio, pelo relégio. A diferenga é fundamental: podemos mudar para outro momento uma classe, uma sesso de parlamento, uma hora de trabalho em uma fabrica mecanizada. Podemos deslocar estas coisas como se fossem pegas de um tabuleiro ou substituir uma pela outra. Nao se pode, no entanto, deslocar @ hora em que a caga chega ao bebedouro ou a hora em que um cardume de peixes chega a costa. Também a semeadura e a colheita, as procissdes ¢ as festividades esto submetidas a uma coacdo objetiva ¢ concreta. Esta coagdo, no entanto, ¢ diferente da coagio abstrata e automdtica que rege em nossas fabricas (...). A coago objetiva e concreta vai associada uma liberdade que em seguida nos chama a tengo ao observarmos uma comunidade primitiva e que nos sobrepuja quando participamos nela. (...) Os selvagens conhecem 0 clima e os ciclos césmicos melhor que nés em nossa vida quotidiana. E um conhecimento que faz parte dos seus elementos auxiliares ¢ Ihes resulta tdo imprescindivel como para ** Ponting, op. cit, p. 32 153 nds 0 relégio. (...) Esto em condicées de combinar pontos de encontro remotos no espago e no tempo Acudirdo a estes encontros ndo com uma pontualidade absoluta, mas suficiente. (...) Quando um europeu ¢ um indigena combinam um encontro, trata-se ndo sé de um encontro de duas ragas, mas de duas concepgdes temporais distintas. Isto explica a possivel critica de pouca confianga que homem branco gosta de fazer ao homem de cor. Desde logo, esta critica s6 ¢ valida no que diz respeito ao tempo mensuravel. Quando se trata de um encontro para ir 4 caga e 0 branco e o negro penetram na selva com as mesmas armas, o segundo regressaré com uma caga mais abundante. Esta familiarizado com os diferentes tempos -o tempo dos animais ¢ dos seus deslocamentos, ou o tempo das pegadas, cuja antigiiidade sabe ler como nés lemos 0 tempo no relégio."*3” Esta conexfo com a temporalidade dos processos vai inclusive além, conforme podemos ver no relato do antropélogo Hugh Brody convidado a participar de uma caga com indigenas na Colémbia Britanica. "Depois de uma pequena caminhada, o grupo se di iu em individuos ou pares para a caga matinal, combinando de se reencontrarem em um determinado local para comerem. Brody descreve: «nenhuma hora foi fixada para 0 encontro, De fato, o tempo do relégio nao tem nenhum significado aqui ... Todos, no entanto, surgiram da floresta e se dirigiram ao ponto de encontro no intervalo de poucos minutos». Ele conclui, «esta coordenagao de atividades nao se compreende facilmente...»" 3** Trata-se de uma temporalidade miltipla e diversa, na qual, como coloca Andrade, "tudo tem o seu tempo e ha um tempo para cada coisa." ""Nés sabemos que o tempo! escreve Lévy-Bruhl, referindo- se aos primitivos, ‘ndo se representa nos seus espiritos como no nosso. Eles ndo véem se estender infinitamente diante de sua imaginagdo esta espécie de linha reta, sempre igual a ela mesma, sobre a qual se situaro os eventos, onde a previsio os pode situar j4 antes em uma série unilinear irreversivel, dispostos necessariamente um depois do outro. O tempo nfo ¢, para o primitivo, como 0 é para nés, uma espécie de intuigao racionalizada, uma «ordem de sucessdes». E ainda menos um quantum bomogéneo. Ele é sentido qualitativamente, mais do que representado.""**° Neste sentido, intimamente vinculados e dependentes do espago local para a sua existéncia e percebendo 0 tempo como uma propriedade interna, inerente aos diferentes processos, cada grupo em sua deriva cultural vai destacar certos processos, certas temporalidades especificas, representadas aqui Emst Jiinger; El Libro del Reloj de Arena; Barcelona: Tusquets, 1998, pp. 28-30. Hugh Brody; Maps and Dreams; Middlesex: Penguin, 1981, citado em Gault, op. cit., p. 154. Como nota Gault na determinacZo do movimento do objeto), mas como uma dialética pautada, conforme jé vimos na discusséo de Maturana e Varela, pela forma em que processos exteriores provocam perturbagdes que podem ‘gatilhar’ uma alteragdo nos equilibrios internos e assim uma alteragdo que, por sus vez, pode aparecer como uma perturbacéo capaz de provocar alteragdes no seu meio. E neste sentido que podemos compreender também como, apesar da importéncia que possam assumir determinados processos ecossistémicos biosféricos como um todo para determinados grupos (como 0 pode sero sol, a lua, 0 ciclo de determinado recurso - certa caga, frutas, raizes - etc.), a forma em que cada processo apareceré representado em cada cultura dependeré no s6 da sua importancia relativa, como também da deriva cultural especifica de cada grupo, de uma histéria que, como vimos, segue no 86 uma trajetéria marcada pela irreversibilidade, como também pelos caminhos bifurcativos trilhados em determinado momento. Assim, por exemplo, os Athuacos que citamos no inicio deste capitulo, apesar de serem um povo agricola, mantiveram uma concepdo animista da realidade conferindo anima a tudo que existe. Desta forma, também na cultura humana e nas suas representagdes, hé um tempo para tudo e tudo tem 0 seu tempo... Assim, apesar de estarem inseridos em realidades biosféricas bastantes parecidas, em diferentes grupos (¢ no interior destes em sua tajetéria) podem emergir diferentes formas de organizago sécio-cultural e, a partir destas, diferentes derivas locais (incluindo tanto a deriva autopoiética do grupo humano particular, como a deriva do ecossistema como um todo de cuja dialética este grupo participa). Enquanto ser auto-reflexivo, é na representagdo temporal especifica a cada grupo humano que podemos encontrar a base que vai pautar esta dialética homem/natureza. Assim, em resumo, nas sociedades tradicionais, apesar dos elementos comuns que podemos identificar (associados, de fato, ao que € comum a todas), podemos encontrar (¢ imaginar, para as que jé ndo *° Lucien Lévy-Bruhl Le Merdalité Primitive; Pais: Félix Alcan, 1933, 126 ado em Andra, op. ct p11 15 existem mais) uma variedade e multiplicidade de representagSes temporais associadas nfo sé a diversidade de ecossistemas locais, como também a diversidade de derivas sécio-cultursis que, em seu jsolamento uma das outras, podem ter seguido trajetérias bastante divergentes. Um elemento comum que podemos observar nas diferentes culturas é a importancia que assume o sol e 0s ciclos anuais e didrios a ele associados. Isto nfo nos deveria surpreender j4 que, como vimos, a Terra, em termos gerais, aparece como uma estrutura dissipativa alimentada pela baixa entropia solar, que continuamente a atravessa ¢ esta temporalidade esté marcada na propria organizaco bioldgica da vida pelos denominados ciclos circadianos. Também a Lua, com sua influéncia sobre os ciclos das aguas - marés, mensturagdo, etc.- da fertilidade, nos processos migratérios ¢ uma série de processos biolégicos), costumava ser um elemento importante para a referéncia temporal, estando, em geral, associada a sociedades de cardter mais matriarcal. Outros elementos vao introduzir, por sua vez, particularidades locais, como por exemplo, a latitude e as caracteristicas climaticas locais com os diferentes graus de mudanga das estagdes; a importincia que assumem certas atividades agricolas (lembremos que o plantio e a intervencao direcionada nos ecossistemas, bem como o pastoreio com a domesticagdo de certos animais pode ser encontrada praticamente em todas as sociedades cagadoras e coletoras); os habitos e necessidades migratorias (no 6 do grupo, como dos animais cagados); a necessidade de cagar e colher os alimentos materiais no momento exato (assegurando sua maior durabilidade, maior contetido nutricional, respeito a seu ciclo y* e uma série de outros fatores centrais & de reprodugdo para assegurar a proviso no longo prazo, etc.) dialética do grupo com o seu meio. Todos estes fatores exigem uma observagao e representagao detalhadas nao s6 dos ciclos solares, como dos demais ciclos astrais (particularmente da lua, mas também das estrelas, importantes elementos na determinagao da localizagao tanto espacial, quanto temporal), permitindo a elaboragiio de calendarios anuais. Como simbolo de centralidade, a predominancia da representago solar (em detrimento de uma representagao mais descentralizada, de miiltiplas temporalidades ou energias/espiritos constituintes da realidade) parece estar associada nao sé a sociedades mais hierarquizadas e centralizadas, como também a diferentes relagdes de género internas ao grupo na medida em que, na maioria das culturas, 0 Sol apareca como um simbolo do poder e da energia masculina, assumindo, como veremos, sua plena * Neste sentido, com vimos, devemos nao s6 destacar a forma como certas restrigdes s6cio-culturais buscavam assegurar a estabilidade de certas populagdes de caga, como também abater certo animal ou coletar certo alimento no momento adequado. Assim, para dar um exemplo, “obter a racdo adequada de gordura na dieta era um desafio importante para os aborigenes australianos (..). Eles eram observadores atentos da natureza e sabiam exatamente quando os animais estavam mais gordurosos. Por exemplo, os cangurus estavam mais gordurosos quando a silva estava em flor (..). Outros sinais indicavam quando a cobra do campo, o cangurt pigmen, o mexilho, as ostras, 2s tatarugas e as enguias esiavam no seu melhor ponto." Fallon, op. cit, p. 24 136 significago a partir das transformagdes do neolitico. Na visio animista, pelo contrério, ainda predomina uma concepsdo miltipla e descentralizada, segundo a qual cada ser e cada coisa possui um ‘espitito' e uma temporalidade propria, co(re)produzindo no seu conjunto a danga da realidade. De todas as formas, pela importancia que tém para a vida, em todas as cosmovisbes 0 Sol deve ter representado um papel de destaque, podendo, a partir de ai, assumir uma predominancia enquanto medida externa do tempo. Como 0 coloca Jiinger, "quando na pré-histéria duas pessoas combinavam um encontro, a medida de que se serviam era dada com certeza pelo sol de dia ¢ pelas estrelas de noite. Como pontos cardinais se apresentavam entio o amanhecer, 0 meio-dia ¢ 0 entardecer. A posigéio do sol determinava também o tamanho da sombra. (..) Os seres humanos estavam familiarizados antes de tudo com sua propria sombra, que podiam observar continuamente. Mediam o tempo pelo tamanho da sua propria sombra. .) Também conheciam os diferentes tamanhos de sombra nos distintos momentos do dia e nas diferentes estagdes do ano. Quem media assim o tempo pela sombra que ele mesmo projetava, considerava o seu proprio corpo como um gnémon. Um gnémon é um objeto vertical -por exemplo um bastao- cuja sombra serve de ponteiro solar." Agora, na medida que os ciclos solares se encontram impressos e manifestos em uma série de outros processos biosféricos, eles podem ser lidos tanto diretamente no Sol, como indiretamente na observagao de outras temporalidades cujas autopoiesis encontram-se pautadas nele, como ocorre na visio animista. De qualquer forma, nestes povos, tendo a produgfo de subsisténcia centrada ndo na produg&o humana e sim na apropriag&io de uma riqueza criada pelos processos biosféricos mais amplos, nés podemos encontrar na sua concepsio temporal uma série de aspectos que tendem a limitar a intervengGo humana nestes processos, permitindo, assim, 0 seu proceso de auto-regulago ¢ auto- organizagao. Isto implica considerar com atengdo a temporalidade intrinseca a cada elemento, considerar 0 ‘espirito' imanente a cada ser ¢ coisa. Partindo, assim, de uma concep¢o qualitativa e interna, na qual, como vimos, ‘tudo tem o seu tempo e hé um tempo para tudo’, nestas sociedades a intervengao humana nos processos biosféricos como um todo ou em determinados aspectos se via restringida seja a determinadas épocas, seja a determinados aspectos ou ainda a determinadas proporges. Mais ainda, uma série de praticas e rituais visavam restringir nao sé a intensidade, quanto a forma de intervengao humana sobre 0 meio. © resultado € que 0 tempo sécio-econémico, o tempo da intervengao humana e do trabalho humano, esté amplamente restringido e, de certa forma ‘freado' ¢ regulado pela sua superestrutura cultural. Além disso, esta limitagao do tempo social estava reforcado pela desvalorizagaio do tempo 187 historico concreto na medida em que, como nos mostra Eliade, o que caracteriza as sociedades tradicionais € "a sua revolta contra o tempo concreto, histérico, a sua nostalgia de um regresso periédico ao tempo mitico das origens, idade do Ouro." Contrariamente ao tempo progressivo da modernidade - voltado 2 uma transformagao continua da realidade, calcada na crenga no poder de um tempo que avanga - © que encontramos nas sociedades arcaicas é "a necessidade (...) de se renovar periodicamente, através da anulagio do tempo. Coletivos ou individuais, periddicos ou esporidicos, os ritos de renovagdo contém sempre na sua estrutura ¢ significado um elemento de regeneraydo pela repeti¢o de um ato arquetipico, quase sempre do ato cosmog6nico. (...) E, em suma, a recusa de atribuir um certo valor 4 «meméria» e, consegiientemente, aos acontecimentos invulgares (isto é, sem modelo arquetipico) que constituem, de fato, a durago concreta. Em dltima anélise, descobrimos em todos estes ritos e atitudes a vontade de desvalorizagao do tempo. ..) Se nfo Ihe prestar qualquer importancia, o tempo nao existe; por outro lado, quando se torna perceptivel (devido aos «pecados» do homem, isto é quando este se afasta do arquétipo e mergulha na duraco) o tempo pode ser anulado. No fundo, encarada na sua verdadeira perspectiva, a vida do homem arcaico (reduzida a repetigio de atos arqueti cos, ou seja as categorias ¢ nfo aos acontecimentos, (...)) se bem que se desenrole no tempo, ndo suporta a sua carga (...). Tal como o mistico ¢ 0 religioso em geral, o primitivo vive em um presente continuo," O futuro, neste concepgdes, como vimos na andlise de Gault sobre a concepgiio cairolégica do ‘tempo, no aparece como uma pagina aberta a ser construida pela ago humana, pela histéria, mas sim como uma realidade que se manifesta em seu devido momento, fruto do desabrochar ¢ manifestar-se das diferentes coisas ¢ seres. O homem nao € o dono do tempo e nao constréi este futuro, cabendo-lhe, no entanto, a responsabilidade de assegurar a harmonia tanto interna da sociedade, quanto desta com 0 seu meio, ao dar as respostas adequadas a0 que se manifesta. Esta 'resposta adequada’ se consegue a0 respeitar determinadas atitudes e um ‘correto agit’ dado pela visio cultural mais ampla desta sociedade (com suas cosmogéneses, mitos e ritos que situam cada elemento da sociedade ¢ do seu meio, determinando também a forma das relagdes que se devem estabelecer entre estas). Ela se da respeitando procurando repetir os gestos arquetipicos que asseguravam, in illo tempore, a harmonia representada por um passado dourado mitico. Neste sentido, se, por um lado, representar 0 presentar-se de cada coisa e ser no seu préprio tempo, seguindo uma ordem ciclica de um eterno retorno, reflete a periodicidade propria do ano solar e Op. cit., p.31 % Eliade, 1985, op. cit, p.11 ** Ibid. pp. 100-101 158 dos meses lunares, com suas diferentes estagdes, marés, etc.,** por outro lado esta representago reforga a crenga na necessidade das ages humanas seguirem a forma e o padréo moral definido no interior da sua cultura, de seguirem o padréo ritual revelado no ato da criagdo mesmo. A etema repeticao é, assim, simultaneamente, fruto e base para a estabilidade e a harmonia social, conseguida através do respeito as tradig6es culturais. Ela depende do respeito humano as normas e os preceitos culturais para que 0 ato de criago, em seu eterno ciclo de vida e morte possa se repetir, sendo que, reciprocamente, é este carter ciclico que permite a crenga na corregdo dos atos sociais mantidos dentro destes pardmetros culturais. "O que significa «viver» para um homem das culturas tradicionais? Antes de mais nada, viver segundo os modelos extra-humanos, de acordo com os arquétipos. Por conseqiiéncia, viver no seio do real, uma vez que (...) $6 0 arquétipo é verdadeiramente real. Viver de acordo com os arquétipos equivalia a respeitar a «lei», pois a lei nao era mais que uma hierofania primordial, a revelagdo in illo tempore das normas de existéncia (...). Nao deixava por isso de viver de acordo com os ritmos césmicos; poderiamos até dizer que ele se integrava nesses ritmos (recordemos apenas como para ele so «reais» 0 dia e a noite, as estagdes, os ciclos Iunares, os solsticios, etc.)."™ Podemos, a partir desta discuss4o de Eliade, retomar a nossa proposigio lancada na introduc, de que esta concepgao ciclica do tempo, longe de converter estas sociedades em sociedades ahistéricas - isto é, estiticas no tempo, nao sujeitas transformagdes internas ao longo de sua evolugao - insere as suas praticas espago-temporais na realidade espago-temporal mais ampla em que estas esto imersas. Particularmente, ela limita a inerente plasticidade da conduta auto-reflexiva humana (conforme vimos no capitulo anterior), reduzindo a variabilidade e flutuagdes tanto nas relagdes internas da sociedade, quanto desta com © seu meio, que poderiam desarticular tanto a sua organizacdo/identidade intema, quanto o seu ‘acoplamento estrutural’ a seu meio. Ao ser uma tradigo cultural que busca a repetigtio dos gestos que historicamente asseguram 0 equilibrio e nao a busca de transformar o presente, ela retém ritmo da temporalidade humana, contrariamente ao estimulo de aceleragao inerente & concepgao do progresso e central, como veremos, temporalidade moderna. "Os Deuses do homem catoniano eram antes de tudo os guardides da ordem critica da hierarquia césmica. Como tais, eles personificavam as leis que eram vistas como governando 0 cosmos e que o homem tinha que observar se ele queria garantir a ordem critica da sua prépria estrutura. Isto significava que ao observar estas leis 0 homem também estava cumprindo com suas obrigagdes frente aos Deuses apropriados. (...) Os Deuses também personificavam a energia vital que fluia pelo mundo animado, refletindo a sua estrutura critica © 5 Sobre a importancia das "feses da Lua - apareeimento, crescimento, decrescimento, desaparisao seguida de reapari¢ao 20 fim de tésnoites de trevas -(.) na elaboragao da concepdes cilicas", vide Eliade 1985, op. cit pp. 101-103 e 0 seu Tratado de Historia das Religides, p. 195 e seguintes. © Eliade, 1985, op. cit, pp. 109-110. 139 sacralizando esta. (...) 'O culto aos ancestrais' parece ser comum a todas sociedades tribais do mundo, apesar do termo ser enganoso jé que os ancestrais nao eram cultuados como o homem modemo cultua 0 seu Deus. A sua relagéo com eles era antes de tudo uma de obrigagSes miituas. Assim, mais do que rezar por favores, 0 homem tribal lembrava os seus deuses de que ele tinha cumprido com suas obrigagdes e esperava que eles atuassem da mesma forma. (...) Robert T. Parsons, escrevendo sobre os Kono da Nigéria, resume a natureza e a fungo da religidio vernacular: nfo € «apenas uma organiza¢ao das relages humanas, mas inclui também as relagdes das pessoas com 0 mundo como um todo, com a sua prépria terra € com o mundo invisivel de seres e forgas estruturadoras nas quais ele acredita. A religido os inclui todos em um todo consistente.» As relagdes entre os povos catonianos com os seus deuses era uma de obrigagdes miituas. Os deuses tinham necessidades, e sua necessidade principal era de que os vivos cumprissem com suas obrigagdes rituais ¢ cerimoniais, observando as leis que os ancestrais tinham criado in illo tempore. (...) Observando as suas obrigagSes e obedecendo & lei césmica, 0 homem catoniano seguia o padrao que melhor preservava a ordem do cosmos refletida ¢ sacralizada pelo seu pantedo."*” "Ai onde nossas sociedades procuram seguranca pela dominago e pela conquista, as sociedades tribais apostavam na confianga, esperando que sua lealdade fosse retribuida de forma justa."“* "O homem vernacular compreendia (...), que «fome, doengas, erosio, pobreza ¢ crise geral» eram apenas diferentes formas «pelas quais a Terra se vingava dos terriveis maltratos infligidos a ela pelo homem» (...) A tinica forma para combater estas enfermidades, portanto, era de tratar a terra com mais cuidado, retornando ao Caminho dos ancestrais que viviam na Era Dourada em que tais enfermidades eram desconhecidas. Os povos vernaculares invariavelmente interpretam as doengas desta forma. Assim, entre os Tucano da Colémbia, como nota Reichel-Dolmatoff, «a doenga € vista como a conseqtiéncia de uma pessoa infligindo um determinado aspecto do equilibrio ecolégico. Sobre-caga é uma causa comum, assim como 0 s&o atividades de coleta em que algum recurso relativamente escasso ¢ desperdigado. O delicado equilfbrio existente no meio ambiente natural, entre a natureza ¢ a sociedade ¢ dentro da propria sociedade est fadado a afetar 0 todo, (...) O xama como curador de doengas nfo interfere tanto no nivel individual, mas opera no nivel das estruturas supra-individuais que foram perturbadas pela pessoa. Para ser efetivo, ele deve aplicar 0 seu tratamento parte afetada do ecossistema. Podemos dizer que 0 xam& Tucano nao tem pacientes individuais: a sua fungio é a de *” Goldsmith, op. cit., edigdo arualizada de 1996, pp. 415-416 € 419, citando a Robert T. Parsons; Religion of an African Society; Leiden: E. J. Brill, 1964, p. 176. * Roszak, op. cit, p. 90. 160 curar uma disfungdo social»."*° Neste sentido, 0 xama (assim como o conselho de ancides ¢ em outras situagdes os lideres tribais) é um elemento fundamental no que Morin denominou a ‘organizagao da organizagao'. Como depositario do saber ancestral, ao direcionar as ages sociais xama, baseando- se em uma concepedo temporal ciclica e na busca de reproduzir uma ordem arquetipica passada, promove a conten¢éo da potencial plasticidade da autopoiesis humana no interior de determinados parémetros culturais. Agora, esta autopoiesis social centrada na regulag&o arquetipica, na ‘abolig&o do tempo’ pela concepgdo ciclica do tempo, no nos deve levar ao erro de concluir que a realidade autopoiética destas sociedades fosse (¢ ainda seja) estitica e imutavel. A imensa diversidade nas culturas tradicionais, como vimos, é por si sé um indicador de como todas as culturas, incluindo as que buscam a estabilidade absoluta e a eterna repeti¢ao do mesmo, passam por uma deriva estrutural de graduais - ¢ imeversiveis - transformagGes em suas concepgdes e priticas. Como vimos no segundo capitulo, todas autopoiesis e, particularmente a autopoiesis socio-cultural humana, esto em um continuo processo de (re)estruturagdo/criagao, a partir da dinamica interna entre os seus membros e destes com o seu meio Neste proceso, tanto 0 contetido, quanto o significado ¢ a importéncia atribuida a determinados elementos da sua cultura vao se alterando ao longo desta deriva. Assim, apesar de a forma poder permanecer invariante (neste caso a ‘regulago arquetipica’), o seu contetido muda. Particularmente em ‘uma tradigo oral, podemos esperar uma grande plasticidade na transmissdo da informagdo cultural de uma geragdo a outra e assim o aparecimento € a criagdo de novos elementos ou atributos arquetipicos ‘que véo pautar (na auto-reflexividade cultural sobre a organizacao social) as agdes soviais. A ‘Idade do Ouro! que serve, assim, de modelo para as ages no presente, ¢ ela mesma um modelo dinamico que vai se alterando ao longo da deriva cultural e histérica dos diferentes grupos. Inclusive na tradigio escrita, que permite fixar certos contetidos, esta flexibilidade permanece na medida em que a interpretagio ¢ a selegao dos conteiidos (privilegiando certas passagens em detrimento de outras, etc.) se dard a partir de uma realidade mutavel, de diferentes ‘mundos' implicados no ato de (re)conhecer 0 que jé foi criado uma vez que, como vimos, todos, no ato de conhecer, trazemos um mundo em nossas miios ¢ este mundo nunca é 0 mesmo. FE, desta forma, em sua deriva estrutural em um meio dinémico (com suas transformagdes proprias, 0 contato com outras culturas e com outros ecossistemas pelas migragdes, etc.) que continuamente vio aparecendo elementos novos a serem integrados pela autopoiesis socio-cultural em % Goldsmith, op. cit,, pp. 431-432, citando Gerardo Reichel-Dolmatoff; Casmology as ecological analysis: a view from the rainforest, in The Ecologist, vol. 7, n°1, 1977, pp. 4-11. Sobre este contexto mais amplo no qual se dé a cura individual nas culturas animistas, vide também Roszak, op. cit, cap. 3, pp. 74-96. % Vide, particularmente, Morin, 1977, pp. 129-136. 161 ‘seu conjunto, exigindo e levando a uma continua (re)criago da sua heranga cultural. E, particularmente frente a situagdes de desequilibrios internos (crises sociais, doencas, etc.) e/ou nos momentos em que existe uma perturbagdo do acoplamento estrutural de dada autopoiesis social ao seu meio, que podemos esperar uma maior presso por (re)adaptagdes dos preceitos culturais. E nestes momentos que a intervengio dos xamas, dos ordculos e seus intérpretes, é mais solicitada e, na medida em que as suas prescricdes stio dadas em fungiio de um estado de transe, de um acesso pessoal a uma outra dimensio inacessivel aos demais, podem ser acrescentadas matizes e variages & tradig&o cultural vigente. E a ‘intui¢do do momento’, a conexdo com uma qualidade temporal transcendente - através dos ordculos, da interpretago astrolégica, de um I Ching chinés ou dum transe xamAnico - que permite, nestas tradigdes a adaptagao da sua heranca cultural as exigncias ¢ as distintas qualidades do momento presente. Como vimos, em uma concepeao sistémica do tempo, distintos momentos apresentam distintas qualidades temporais ¢ impée distintas exigéncias. A funcdo xaménica e/ou oracular se legitima justamente por se vista como a forma em que o homem pode aceder a esta dimensto transcendente - vista como a base intemporal que rege a manifestago temporal dos fatos presentes - permitindo neste processo a (re)adaptagao da autopoiesis social (em seu fazer e conceber) & estas exigéncias das qualidades tinicas do momento presente. Nesta dialética entre a heranga cultural e sua interpretagdo/transformagao, a cultura passa por uma deriva estrutural irreversivel, trilhando em distintos momentos distintas vias bifurcativas em uma historia propria (e tinica) de cada grupo. Viver e (re)eriar sua histéria e cultura, néo é assim uma prerrogativa modema e nem sequer da espécie humana, como vimos, jd que todos os sistemas vivem suas derivas histéricas préprias. Como voltaremos a discutir mais adiante, a questo clave nesta discusséo, no entanto, é 0 ritmo em que se dao estas transformagGes e derivas. Contrariamente 4 sociedade moderna - que tem no principio da aceleragao das praticas sociais 0 seu modus operandi - nas sociedades tradicionais observamos uma deriva histérica e cultural gradual (excetuando-se, naturalmente, periodos de répida transformacdo, de descontinuidade que puderam ocorre em fungao de mudangas internas e/ou externas bruscas, em momentos de crises encontradas no ocaso das civilizagdes ou de tradigdes culturais, etc.). Estas transformagdes ao longo de uma deriva socio-cultural seguem a logica dos elementos internos 4 sua autopoiesis, de forma que novos elementos (uma nova realidade ambiental ou 0 contato com elementos culturais alheios) so interpretados incorporados em sua propria cultura em fung%o dos seus elementos proprios. Assim, mais do que classificadas entre ‘historicas' € ‘a-histéricas', podemos pensar nas diferentes sociedades e culturas segundo a sua capacidade de absorver e incorporar perturbagdes vindas do seu ‘dominio de interagdes’ (para retomar a 162 terminologia de Maturana e Varela) ou de se desestruturarem frente a um ‘dominio de interacdes destrutivas'.’* Desta forma, como coloca Sherow, "a habilidade de qualquer espécie, incluida a humana, de persistir € florescer depende da sua capacidade de se adaptar & Geodialética. Contrariamente & outros seres vivos, os seres humanos sao 'conscientes' de atuar na natureza. Em muitos casos s&o ‘conscientes’ de escolher entre ages possiveis aquelas mais aptas a assegurar a sua propria sobrevivéncia. (...) Estas escolhas fazem o que John Bennet denominou estratégias adaptativas ou «o padrdio formado por diversos ajustes separados que pessoas elaboram para obter ¢ utilizar os recursos ¢ enfrentar os problemas imediatos aos quais se véem confrontados». Seria, no entanto, sibio levar as idéias de Bennett um passo além: os ‘ajustes' que as pessoas realizam devem acompanhar a Geodialética."** Ou, como afirma Lovelock, "quando a atividade de um organismo favorece 0 meio ambiente e 0 proprio organismo, a sua multiplicago seré apoiada. Eventualmente, 0 organismo e a mudanga ambiental a ele associada se tomard global em sua extensio. O contrério também ¢ verdadeiro: qualquer espécie que afeta negativamente o seu meio esté condenada, porém a vida continua."* E esta retroalimentagdo entre o sistema e as partes que 0 compée se aplica tanto as espécies, quanto as sociedades humanas em seu meio. Desta forma, 20 longo da historia humana, diferentes estratégias de adaptagto, diferentes ‘acoplamentos estruturais a0 meio’ (retomando a nomenclatura de Maturana e Varela) foram criando-se, levando a uma grande diversidade de praticas autopoiéticas socio-culturais humanas. Tratando-se de diferentes estratégias em fungdo de diferentes realidades locais, no hé como ‘hierarquizar’ estas conforme um esquema geral e tinico. Como vimos em Maturana e Varela, do ponto de vista da deriva estrutural de um sistema o relevante é a sua adaptag%o ou no ao seu dominio de relagdes € no um esquema exclusivo do tipo darwiniano de sobrevivéncia do mais apto. E & a partir desta adaptagio ou nao, da capacidade de se manter um acoplamento dialético ao seu meio por parte de diferentes formas de organizagdo social, que néds podemos compreender melhor a tentativa de Roszak de estabelecer critérios ecoldégicos de 'sanidade mental coletiva’ na medida em que "a espécie que destrui o seu habitat perseguindo falsos valores, ignorando propositadamente 0 que faz, esta ‘loucal, se esta palavra tem 25 Para a distingao entre ‘perturbacdo' (que pode “gatilhar uma mudanga de estado") e “interacdo destrutiva’ (que faz com que uma unidade perda sua organizacao e, portanto, desapareca como unidade de uma certa classe”), vide Maturana e Varela, 0p. cit, pp. 82-84). PE mes E- Sherow; Working ofthe Geodalecte; High Plains Indians and Their Horses in the Region of the Aransas River Valley, 1800-1870; in Environmental History Review, vol, 16, n° 2, verio de 1992, p. 64, citando John Bennet; Northern Plainsmen: Adaptive Strategy and Agrarian Life; Chicago: Aldine, 1969, p. 14. Sherow define a palavra ‘geodialética’ como "o termo que combina a nogtio de Gaia de James Lovelock, de uma terra viva, com a idéia de uma relagdo dialética entre as forgas animadas ¢ inanimada. Este processo continuamente recria os ambientes terrestres.” Ibid, pp. 63-64. Se refere, portanto, a dialéticasistémica mais ampla que discutimos no primeiro capitulo. *5 Lovelock 1995, op. cit. p. 239. 163 algum significado."*** E é desta perspectiva da (in)sanidade coletiva que nés podemos, como veremos com Mumford nas conclusses, realizar uma reapreciacdo critica da propria histéria humena, j4 que lado a lado com uma progressiva racionalizago da vida social se expande 0 campo da irracionalidade individual e coletiva. Em contraste com a concepeo animista, a deriva estrutural da qual emerge a modemidade, se caracteriza por uma negagao dos tempos sagrados, da dimensdo mitica e inefével das coisas, substituida por uma concepedo profana e exteriorizada do tempo. Também podemos encontrar neste processo de dessacralizagao ¢ de objetificagdo progressiva das coisas (primeiro da natureza inanimada, depois da natureza animada ¢ finalmente do proprio corpo humano - disponivel para dissecagées e, hoje, cada vez mais para experimentages genéticas), uma das componentes centrais da ciéncia moderna, em sua busca de um conhecimento objetivo, dissociado das emogGes. Agora, se no nivel psicolégico, tal processo de separagdo entre o afeto € a cogni¢&o, como ja mostrava Freud, corresponde ao processo de ‘distanciamento’ pelo qual o ego procura se defender contra situagdes de outro modo intoleraveis, no campo das praticas sociais trata-se de um processo necessério tanto para a vitima, quanto para o agressor e, de fato, podemos encontramos este processo de ‘coisificagiio! tanto nos processos de guerras, de colonizagio, quanto na exploragao e manipulagao tecno-cientifica moderna da natureza, onde 0 outro € sempre um objeto e ndo um semelhante (e visto como tal em termos afetivos).*# J4 em uma concepgiio animista, de uma forga, de um tempo vital que permeia todes as coisas, a sociedade humana (¢ assim sua intervengdo/transformagao da realidade) vé-se restringida ¢ limitada na medida em que no se parte de uma posigdo de ascendéncia e sim de insergo e co-participaso em uma temporalidade mais ampla. Desta forma, por exemplo, "os membros de vérias tribos indigenas da América do Norte, como Mircea Eliade nos conta, viam o cosmos como um ‘ser vivo que nasce, cresce € morre no Ultimo dia do ano, para renascer com 0 ano novo.’ Assim, em vez de dizer 'passow um ano’, os Yoouts dizem 'o mundo passou.' Se as moradas sagradas dos Algonquins e dos Sioux estZo projetadas para dar uma representagao sagrada do cosmos, elas representam ao mesmo tempo 0 ano. Além disso, se © cosmos era representado como morrendo no final do ano, era o dever do homem assegurar que ele renas¢a anualmente. De fato, varias das ceriménias dos povos vemaculares eram representagées do ato de criago original (‘a cosmogenese'), com a fungdo de assegurar a continuidade do cosmos. O homem vernacular compreendia, assim, que 0 comportamento de geracées sucessivas de ‘oszak, op. cit, p. 68. * Vide, para esta diseusséo, Goldsmith, op. cit. p. 76. 164 homens e outros seres vivos era crucial para a continuidade césmica e a prevengao de uma reversao 20 aos original."*** © homem, nestas culturas, aparece como participe na organizagio e sustentagdo do cosmos, da ordem mais ampla da qual a sua propria existéncia é tributéria. Vemos, assim, como uma concepso ciclica do tempo, longe de exilar estas sociedades do devenir histérico, de fato as insere, articulando cada ato humano e 0 tempo social no seu conjunto ao tempo sistémico mais amplo do devir da physis: ‘Ao utilizarem os aumentos na produtividade no como fonte de acumulagao ou de maior produtividade para sustentar uma populago mais ampla, mas como base para dedicar mais tempo as atividades rituais € sociais, as atividades pertencentes a0 dominio do tempo sagrado, nestas sociedades limitava-se efetivamente o tempo do trabalho humano, da intervengao humana nos processos biosféricos. Agora, se, como vimos, estas sociedades nfo eram estéticas, passando por uma irreversivel transformagdo historica, também cumpre lembrar que a evidéncia antropolégica e histérica atual também no sustenta a visio romantica de um ‘bom selvagem', em perfeita harmonia com o seu meio em um estado de equilibrio que, na auséncia de intervengdes externas, seria eterno, Esta visdo, de fato, ndo é verdadeira nem para as sociedades primitivas e nem mesmo para as outras espécies vivas. Como vimos no capitulo anterior, 0 que caracteriza a autopoiesis de todos os seres vivos € seu carter dinimico e sistémico, pelo qual cada elemento é tanto 0 produto como 0 co-produtor do seu meio. Nesta dialética observamos, em geral, uma deriva estrutural caracterizada justamente por uma maior estabilidade do sistema mais amplo ¢ uma crescente variabilidade dos subsistemas constituintes. Milhares de geragGes de células sucedem-se ao longo da existéncia de um organismo, cada organismo ‘existe apenas por uma fragéo da historia da espécie e, cada espécie, por sua vez mantém-se por uma pequena fragao da existéncia do ecossistema de que faz parte ou da evolugao da biosfera como um todo, Neste processo, muitas vezes as proprias espécies, em sua intervengao no meio, transformam-no de tal maneira que inviabilizam n&o 0 processo de auto-organizagao deste sistema mais amplo (que passa a se dar em outro patamar), mas sim a continuidade de sua propria autopoiesis em seu interior. ‘Assim, por exemplo, como vimos, as primeiras bactérias fotossintetizadoras, ao criarem uma atmosfera rica em oxigénio, inviabilizaram a sua propria existéncia neste ambiente, reduzindo 0 seu espago de existéncia aos ambientes anaerébios, marginais da atual biosfera. Neste sentido o potencial de transformagdo do meio (tanto fisico, quanto cultural/simbélico) por parte da evolugao exosomitica humana representa também uma capacidade potencializada de inviabilizar se nao a sua existéncia biolégica em determinados meios criados, pelo menos a manutenglo de determinados processos de autopoiesis sécio-culturais. Outras sociedades ¢ culturas anteriores 4 época moderna, ja inviabilizaram 58 Thid,, 103, citando Mircea Eliade; The Sacred and the Profane; Nova lorque: Harcourt and Brace, 1959, pp. 73-74. 165 sua sobrevivéneia seguindo padrées de organizagio socio-culturais contraditérios com a organizacao ecossistémica do meio no qual estas existiam, como emerge dos intimeros estudos que estéo surgindo no campo da ‘historia ambiental’. Um dos exemplos paradigmaticos deste tipo de proceso aparece na descricéo que faz Ponting da historia da colonizagao humana da Ilha de Péscoa. Esta Ilha oferecia aos primeiros colonizadores "um mundo com poucos recursos. (...) A tinica agua pura disponivel estava nos lagos dos vuledes extintos. Devido a distancia, a ilha tinha sé algumas espécies de plantas e animais. (...) Os colonizadores da Ilha de Pascoa levaram galinhas ¢ ratazanas ¢ rapidamente descobriram que o clima era demasiado severo para plantas semitropicais (...). Os habitantes se viram, assim, limitados a uma dieta baseada principalmente em batatas-doces e galinhas. A tinica vantagem desta dieta monétona, apesar de adequada do ponto de vista nutricional, era que 0 cultivo de batata-doce nao era muito exigente ¢ deixava muito tempo livre para outras atividades, Nao se sabe quantos colonizadores chegaram no século V, mas eles provavelmente nao eram mais do que vinte ou trinta no maximo. A medida em que a populagio ia crescendo lentamente, as formas de organizagdo social tipicas do resto da Polinésia foram adotadas. A unidade social basica, a familia extensa, possuia ¢ cultivava coletivamente a terra, Familias intimamente ligadas criavam linhagens ¢ clas, possuindo cada um o seu centro para atividades rituais ¢ religiosas. (...) Foi esta forma de onganizagdo social e de competigao (¢ provavelmente conflito) entre os clas que produziu tanto os maiores logros da sociedade da ilha de Pascoa e, finalmente, o seu colapso."*57 A existincia de "abundante tempo livre que os chefes dos els foram capazes de dirigir para atividades cerimoniais" permitiu "a criago da mais complexa de todas as sociedades polinésias ¢ uma das mais complexas do mundo relativamente a sua limitada base de recursos.""°* "Os ilhéus se dedicaram a criagdo de elaborados rituais e a construgéo de monumentos. (...) Os principais centros de atividade cerimonial eram os aku. Mais de 300 destas plataformas foram construidas na ilha, principalmente perto da costa. O grau de sofisticagao cientifica de pelo menos uma parte dos ilhéus pode ser deduzido do fato de varios destes ahu apresentarem sofisticados alinhamentos astronémicos, em geral apontando para um dos solsticios ou equinécios. Em cada um destes locais eles levantaram entre uma e quinze destas enormes estétuas que sobreviveram hoje como tinica lembranga da sociedade da Ilha de Pascoa desaparecida. Sao estas estétuas que exigiram um enorme esforgo Iaboral da mao-de-obra camponesa. As estétuas eram talhadas usando-se apenas ferramentas de pedra obsoletas, na pedreira de Rano Raraku. Eram esculpidas para representar, de forma altamente estilizada, * Ponting, op. cit, pp.2€ 3-4. * Tbid., p. 4 um torso ¢ cabega masculinos. No alto da cabega se colocava um 'topete’ de pedra vermelha de uma ‘outra pedreira, pesando cerca de dez toneladas. (...) O maior desafio era transportar as estatuas, cada uma com cerca de 20 pés de comprimento e pesando v: jas toneladas, através de toda a ilha para colocé-las no alto dos ahu. (...) ‘Nao possuindo animais de carga, eles tinham que contar com a forga humana para empurrar as estétuas através da ilha, usando troncos de érvores como esteira rolante. A populagio da itha cresceu regularmente do grupo inicial do século V até aproximadamente 7000 em seu auge, em 1550. Com o tempo, o mimero de clas, assim como a rivalidade entre eles, também foi crescendo. Por volta do século XVI centenas de aius foram construidos e com eles mais de 600 das enormes estatuas. Entéo, quando a sociedade estava no seu auge, ela subitamente colapsou, deixando mais de metade das estatuas s6 parcialmente acabadas em toro da pedreira do Rano Raraku. A causa do colapso ¢ a clave para compreender os ‘mistérios’ da Ilha de Péscoa foi a destruigdo ambiental maciga provocada pelo desflorestamento de toda a ilha. Quando os primeiros europeus visitaram a ilha no século XVII ela estava completamente desflorestada, com excegdo de umas poucas Arvores no fundo da cratera do vulcdo extinto mais profundo de Rano Kao. (...) O desflorestamento da ilha ndo foi apenas o golpe de misericérdia para a sofisticada vida social e cerimonial: ele teve também efeitos drésticos sobre a vida quotidiana da populaco em geral. A partir de 1500 a escassez de arvores esteve forgando as pessoas a abandonarem a construgao de casas de madeira para ir morar em cavemas ¢ quando a madeira acabou de todo cerca de um século depois, todos tiveram que usar os tinicos materiais restantes. Eles apelaram a abrigos de pedra escavados nos morros ou precérias cabanas de junco feitas com a vegetagio que crescia na beira dos lagos das crateras. Canoas nao puderam mais ser construidas, apenas barcos de junco, incapazes de agiientar uma longa viagem. A pesca ficou mais dificil porque as redes eram feitas com a fibra da amoreira (que também podia ser usada para fazer roupa), no mais disponivel. A eliminagdo da capa de érvores também teve efeitos negativos sobre o solo da ilha (...). Como conseqtléncia, as colheitas diminuiram, 0 tinico recurso que nao se viu afetado por estes problemas foram as galinhas. (...) Ficou impossivel, no entanto, sustentar 7000 habitantes baseando-se nestes recursos descendentes e a populagdio caiu rapidamente. Depois de 1600 a sociedade da Ilha de Pascoa entrou em declinio ¢ regressou as condigdes cada vez mais primitivas. Sem Arvores, e assim sem canoas, os ilhéus estavam presos ao seu lar remoto, incapazes de escapar das conseqiiéncias do colapso ambiental que cles mesmos tinham criado. O impacto social e cultural do desflorestamento foi igualmente importante. A incapacidade de levantar 167 mais estatuas deve ter tido um efeito devastador sobre o sistema de crengas ¢ de organizacao social, € deve ter levado 20 questionamento dos fiandamentos sobre os quais esta complexa sociedade estava montada. Haviam crescentes conflitos em torno dos recursos minguantes, levando a um estado de guerra quase que permanente. A escravidéio tormou-se comum e quando a base de proteinas disponiveis diminuiu, a populagao passou ao canibalismo. Um dos objetivos principais da guerra era o de destruir 0 ahw do cla inimigo. Alguns sobreviveram como cemitérios, mas a maioria foi abandonada. As magnificas estétuas de pedra, macigas demais para serem destruidas. foram derrubadas."**? "O almirante holandés Roggeveen, a bordo da Arena, foi o primeiro europeu a visitar a ilha no domingo de pascoa de 1722. Ele encontrou uma sociedade em um estado primitivo de cerca de 3000 pessoas (..). A populagao continuou diminuindo ¢ as condigdes na ilha pioraram: em 1877 os peruanos evacuaram todos os habitantes, com excegao de 110 velhos e criangas. Finalmente a ilha foi tomada pelos chilenos € transformada em uma imensa fazenda para 40.000 ovelhas, administrada por uma companhia briténica, com os poucos habitantes que sobravam confinados em uma pequena aldeia."° E, na atualidade, a pequena comunidade local est dividida entre aqueles que so favoriveis & construgio de um imenso Hotel de luxo, inserindo a Ilha plenamente no crescente circuito do turismo global, ¢ aqueles que temem os efeitos ambientais e sociais (exaustio das reservas de agua, deterioro dos ecosistemas ¢ a centralizagao, polarizagao e dependéncia social trazida pela destruig do pequeno turismo) Este exemplo nos mostra claramente como as distintas dimensées (sécio-cultural, econémica, biolégica, ecossistémica, etc.) esto interrelacionadas na deriva estrutural de um determinado grupo social humano. Mostra-nos também como no acoplamento estrutural de um grupo ao seu meio é fundamental que 0 comportamento individual e social, culturalmente transmitido e aprendido, reflita a realidade e os requerimentos do meio ecossistémico no qual sua deriva se dé. Mostra-nos ainda como, apesar de uma das caracteristicas fundamentais da deriva cultural auto-reflexiva humana ser a sua flexibilidade potencial e sua capacidade de adaptar-se a diferentes e novas realidades, ela apresenta, no entanto, uma inércia propria que faz com que mudangas e adaptagdes culturais, freqientemente, ocorram apenas quando ja, do ponto de vista de transformagao do meio, é demasiado tarde para garantir a sua propria sobrevivéncia. Assim, como coloca Ponting, "os ilhéus da ilha de Pascoa, conscientes de que estavam isolados do resto do mundo, devem certamente ter percebido que a sua existéneia dependia dos recursos escassos de uma pequena ilha. No fim das contas ela era suficientemente pequena para que se pudesse dar a volta na ilha toda em um dia ou algo assim e ver pessoalmente 0 que estava °° Ibid. pp. 46 © Ibid, p. 1 168 acontecendo com as florestas. No entanto eles foram incapazes de criar um sistema que criasse 0 equilibrio adequado com o seu meio. (...) Pelo contrério, no exato momento em que os limites da itha ficaram mais evidentes, a competigao entre os cls pela madeira que sobrava parece ter-se intensificado ao se esculpirem e transportarem através da ilha mais e mais estétuas, na tentativa de obter e manter prestigio social."**' Como voltaremos a discutir, a analogia que se pode fazer com 0 quadro atual, em que os diferentes estados-nagbes - ¢ os diferentes grupos no seu interior - competem pelos recursos naturais restantes procurando preservar o seu processo de crescimento econdmico e de prestigio e poder social infelizmente nao so apenas superficiais... Apesar de ja se tratar neste exemplo de uma sociedade sedentéria, centrada no cultivo agricola apresentando uma consideravel estratificacao social, este tipo de dialética sécio-ambiental também pode ser observado no caso de diversas sociedades nao-agricolas. No entanto, sendo a sua populacao reduzida, sua base técnica (exosomatica) limitada e inexistindo 0 mébil da acumulacdo, em geral esta interveng&o era relativamente limitada. Como nos mostra Ponting, "o impacto mais dramatico que os grupos cagadores e coletores tiveram no meio ambiente, no entanto, foi pela caga. E muito mais facil danificar esta parte de um ecossistema, jé que o numero é menor e as populagdes, particularmente dos camivoros no topo da cadeia alimentar, normalmente levam muito tempo para se recuperar de uma sobre-caga."** Este fato pode estar na base de que, como coloca Crosby "no Novo Mundo, como na Austrilia, parece ter ocorrido uma coincidéncia entre a chegada de humanos cacadores de grandes animais e a extingdo de varias espécies de grandes mamiferos: mamutes, mastodontes, tamandua gigante, biifalos e cavalos, por exemplo. Alguns exemplares destas espécies gigantes inegavelmente foram mortos por humanos (...) mas a maioria dos especialistas reluta em atribuir a extingao de espécies inteiras a estes cagadores humanos. (...) Como e porque qualquer coisa, com excegao do ser humano, mataria aquilo que representava justamente a comida mais farta? Homo sapiens encontrou um paraiso para os cagadores na Australia e nas Américas. Todos os trés continentes estavam repletos de apetitosos herbivoros, totalmente inexperientes em defender-se contra os agressores humanos, fornecendo aos recém-chegados reservas aparentemente inesgotiveis de proteina, gordura, couro ¢ ossos.""* 0 fato de que as extingdes em ecossistemas que evolucionaram sem a presenga de seres humanos foram muito mais generalizadas do que em ecossistemas onde a co-evolugdo do sistema ja incluia seres humanos mostra-nos um outro aspecto central & organizagdo sistémica, que € 0 efeito que pode ter a introdugdo de um novo elemento sobre 0 processo de auto-organizagao de um sistema. Isto nao se limita apenas a intervengfo humana, jé que a literatura ecolégica esté repleta de casos em que a 29 Ibid, 7 %© Thid, p33. 169 introdugao de uma nova espécie em um ecossistema pode chegar a alterar completamente 0 equilfbrio deste sistema, levando a extingdo de diversas espécies autéctones ¢ a uma radical mudanga no regime de funcionamento deste sistema.** O que observamos aqui é que nfo sé determinadas espécies que encontram em um ecossistema um nicho ecolégico inexplorado ou nao sofrem 0 controle por parte de outras espécies predadoras ou competidoras podem apresentar um crescimento espetacular neste novo ambiente, a ponto de desestruturar este sistema, como também determinadas culturas (autopoiesis de terceiro ou de quarto tipo) podem, ao ser levadas a outros espagos que o meio original em que se constituiram, levar a transformagGes radicais deste meio. Assim, no caso das migragées humanas a novos territérios, no s6 as espécies locais estavam despreparadas para 0 novo agressor, como também, provavelmente, a superestrutura cultural do invasor (ao no incluir estas espécies em seu universo simbélico) oferecia escassa protegdo em forma de limitagao da intervengdo e da exploragao humana. Na medida em que existe uma deriva estrutural na qual emergem tanto a particular autopoiesis sécio- cultural humana, como os distintos elementos e processos de auto-organizacao do meio, nos casos em que estas duas dimensdes emergem de derivas distintas, existe uma maior probabilidade de que, uma vez sobrepostas, a dialética resultante seja mais antagénica, até que um novo equilibrio dindmico seja atingido (seja pela adaptago/transformagao do ecossistema e seus elementos a presenga humana, seja pela transformago/adaptagao na cultura humana a0 novo meio, fomentando uma organizagio sécio- econémica adaptada as exigéncias do novo meio - particularmente ao incluir elementos sensiveis na estrutura de proteso simbélica ou 20 colocar, como vimos, restrigdes temporais & intervengdo humana). ‘Como vimos no caso da Ilha de Pascoa, este novo equilibrio pode se dar em um estado de menor complexidade ¢ diversidade tanto no nivel da organizagdo ecossistémica, quanto no nivel da organizagdo social humana. Neste sentido, podemos observar como 0 processo de colonizagao humana de ecossistemas insulares abunda de exemplos deste tipo de degradago. "O impacto que os humanos podem ter sobre o ntimero de animais est bem ilustrado pelos exemplos de Madagascar, Hawai e Nova Zelandia, ilhas anteriormente isoladas e cuja fauna tinica se viu sujeita a um repentino estresse. Como nenhum grande mamifero foi capaz de chegar a pontos to isolados antes, grandes passaros terrestres 58 Crosby 1996, pp. 16-17 ° Os casos mais flagrantes podem ser encontrados nos efeitos que tiveram a construso dos canais, como o canal do Panam, interligando ecossistemas marinhos antes separados ou ainda a transformacéo dos ecossistemas terrestres das ‘Américas e da Australia por aquilo que Crosby estudou em termos de conquista bioldgica por parte dos europeus ¢ 0 seu portmanteau biota’ dos novos mundos. De fato, como veremos com mais detalhes adiante, a colonizagao se deu nao s6 pelos ccuropeus, mas por uma série de outras espécies (desde virus até cavalos...) que, introduzidos nestes novos ecossistemas tiveram uma reprodugdo extraordinariatransformando radicalmente os ecossistemas locais. Vide Crosby 1996, op. cit, particularmente as pp. 269-308 e Alfred W. Crosby; Germs, Seeds & Animals; New York: M. E. Sharpe, 1994, particularmente pp. 28-44. 170 evolucionaram, na auséncia de predadores importantes, transformando-se nas espécies dominantes. Eles estavam indefesos contra a preda¢do humana. Em poucas centenas de anos de colonizacao de Madagascar varios dos grandes animais, incluindo um grande passaro terrestre ¢ um hipopétamo-ando, estavam extintos. No Hawai, ao longo de mil anos de colonizagdo humana, trinta e nove espécies de passaros terrestres se extinguiram. Na Nova Zelandia (...) dentro dos primeiros 600 anos da primeira colonizacao, vinte ¢ quatro espécies de Moas junto com vinte outros tipos de passaros estavam extintos."" Este impacto sobre as espécies por parte dos colonizadores humanos, como vimos, péde também ser observada a nivel continental. "A extingo de espécies na Eurdsia foi relativamente pequena. Em outras partes do mundo ela foi maciga. Na Australia, ao longo dos iiltimos 100 mil anos, 86% dos grandes animais se extinguiu, em uma area onde os impactos climéticos ¢ portanto os efeitos nos habitos animais da era glacial era minima. A explicago mais plausivel & a caga por grupos aborigenes nos lltimos 40 mil anos. Mesmo se os maiores animais nao foram diretamente cagados em grande escala, a desestruturagto dos ecossistemas pela intervengao humana - destruindo habitats ou cagando herbivoros menores dos quais os camivoros dependiam - podia facilmente levar 4 extingéo. Igualmente impressionante é a perda de 80% dos grandes animais na América do Sul os 73% de perda softida no norte do continente. (...) Na medida em que os primeiros colonizadores da America iam migrando para © sul do Alasca e das montanhas Rochosas, eles iam encontrando um meio ambiente rico e equilibrado, de modo que a sua populagio aumentaria rapidamente gracas aos recursos facilmente obtidos. Estes primeiros colonizadores americanos deixaram uma trilha de destruigéo através do continente. Dois tergos dos grandes animais existentes quando os humanos chegaram pela primeira vez. foram levados & extingdo. Alguns deles eram tipos arcaicos, como o camelo das planicies (encontrado sé no norte devido ao seu isolamento), outros eram espécies gigantes particularmente sensiveis tanto & sobre-caca, quanto as mudangas climaticas. No geral a extingdo incluiu trés géneros de elefantes, seis géneros de mamiferos desdentados (tatus, tamandués e preguigas), quinze ungulados ¢ um grande mimero de roedores e camnivoros."**° Apesar de mais evidente e visivel no caso dos animais, particularmente nas espécies de grande porte, a presenga humana também afeta de forma importante o ecossistema como um todo em que se desenvolvem. "Grupos cagadores e coletores alteram as condigdes em que ‘plantas selvagens’ crescem, intervindo para favorecer algumas plantas em detrimento de outras que nio necessitam. Uma das formas mais efetivas de fazé-lo é queimando, sendo que 0 uso do fogo com este objetivo era 6 Ponting, op. cit, p. 34. ° Ibid, p. 35. p in amplamente usado pelos grupos cagadores ¢ coletores. (...) A maioria dos grupos também favorecia plantas selvagens ao semear ¢ transplanté-las no seu habitat natural, retirando plantas competidoras Alguns inclusive utilizaram técnices como a irrigacdo em pequena escala para melhorer as condigdes para as suas plantas privilegiadas. De qualquer forma, estas priticas so muito diferentes da agricultura, que consiste em substituir 0 ecossistema natural por um artificial.">*” Neste sentido, contrariamente ao que ocorre na agricultura, este tipo de intervengao ndo representa uma redugdo na biodiversidade e na complexidade do ecossistema. Assim, por exemplo, "os grupos indigenas da provincia de Pastaza, no este da Amaz6nia, estiveram tradicionalmente implicados na administrago, conservagilo e ampliagdo da biodiversidade do seu ecossistema. Eles ndo sé a conservaram, como a construiram através de praticas como a plantacdo de diversas arvores frutiferas em plantagdes familiares abandonadas."** Com um sistema agricola que consistia na rotagdo de cultivos em area de mata, respeitando sempre dimens6es facilmente 'recolonizaveis' pela mata circundante, o sistema de rogam longe de destruir a biodiversidade local, a fomentava. Ao criar espagos em que os seres humanos, por um determinado periodo cultivavam as diversas variedades de culturas selecionadas ao longo do tempo - frutas, mandioca, ervas, etc. - e depois abandonando-as para ser novamente colonizado pela 'mata virgem', 0 que com o tempo surge ¢ uma mata hibrida em que existem tanto os elementos genéticos do ecossistema local, quanto as espécies introduzidas pelos seres humanos, com uma maior concentragio de arvores frutiferas - das quais se beneficia uma ampla rede de outras espécies animais - e de espécies cultivadas que passam a existir em estado 'selvagem'. Vemos aqui um bom exemplo de co-evolucao, em que 0 meio € tanto base, quanto o produto da autopoiesis coletiva dos seres ¢ elementos que constituem. Como uma parte desta rede, a separacdio homem/natureza se desfaz, j4 que ambos se integram em uma organizagao autopoiética mais ampla. Mais ainda, podemos ver nestas priticas humanas a eplicagdo de um principio bé ico da Permacultura, "que, em poucas palavras, é uma filosofia de wabalhar com ¢ nio contra a natureza. Prolongada e estudada observagao antes de prolongado e impensado trabalho."* Ao manterem e fomentarem a organizagao autopoiética do ecossistema local ¢ no tentarem dominar ¢ transformé-la segundo uma légica e organizago humana, estas culturas co(re)produziam o seu meio com pouca intervengao humana ¢, a0 mesmo tempo, orientavam-na segundo os seus interesses. Ao contrastarmos estas préticas proto-agricolas com a agricultura modema, de fato podemos ver uma diferenga crucial na forma em que o ser humano incide sobre a autopoiesis local, conforme esta intervengao esteja orientada por uma concepsio sistémica ou mecanica do tempo. como voltaremos a discutir no capitulo V. Ibid., p. 33. ** Josep Garis A Mythical tragedy; in Down t 19 de 1999, p. 56, 2 De qualquer forma, este tipo de priticas proto-agricolas, de forma genérica, refletem a importincia crescente da dialética sécio-cultural humana na estruturag4o e na dindmica do ecossistema do qual é parte, Assim, antes da chamada revolugio neolitica, "os seres humanos tornaram-se os tinicos animais a dominar e explorar todos os ecossistemas terrestres. De qualquer forma, o impacto geral dos grupos cagadores ¢ coletores sobre o meio ambiente era pequeno devido a baixa e dispersa populagio e sua limitada tecnologia. Mesmo assim, ela jé se notava na medida em que uma série de animais foram cagados até a extingao e o meio ambiente era transformado de formas sutis. Por cerca de dois milhdes de anos os seres humanos viveram da coleta, pastoreio e caca. Entdo, no espago de poucos milénios, uma forma radicalmente nova de vida surgiu, baseada em uma transformagio profunda do ecossistema natural com o intuito de produzir mais colheitas ¢ pasto para os animais. Esta forma mais intensiva de produgdo de alimento foi criada de modo independente em tres areas centrais do mundo - no sudoeste asidtico, China e América Central - e representou a mais importante transigao na historia humana.""” Como poderiamos esperar, a esta altura da nossa discussio, a transformagdo radical na forma em que a sociedade humana se organiza intemamente e se relaciona com © seu meio esteve baseada ¢, simultaneamente, engendrowreforgou uma forma radicalmente nova de se conceber 0 tempo no interior destas culturas, levando a0 que podemos denominar as 'sociedades e culturas solares’. °# Bill Mollison; Introduction 10 Permaculture; > Ponting, op. cit, p. 36 € 37. ‘yalgum Australia: Tagari Publications, 1991, p.1 1B Ic. Revolugao Neolitica e o tempo solar "Sem o Homem 0 Mundo estava incompleto, era apenas Naturez com suas garras e dentes vermelhos de sangue. Bra 0 céos, um estado de anarquia primitiva. (..) O Mundo necessitava alguém ara organizar a natureza, pé-la em ordem. (...) Necessitava de um soberano. Necessitava 0 Homem. (...) Para se transformar no Soberano do Mundo, o Homem tinha antes que conquisté-lo." "Nao existe nada fundamentalmente errado com as pessoas. Dada uma historia que os poe de acordo com 0 mundo, elas vao viver de acordo com 0 mundo. Porém, dada uma histéria que os pae em contradicdo com o mundo (...) elas viverdo em contradic&o com 0 mundo. Dada uma histéria para representar na qual elas sdo os Senhores do mundo, elas vo atuar como senhores do mundo. E, dada uma histéria na qual 0 mundo é uma presa a ser conquistada, elas vo conguisté-lo como uma presa e, um dia, inevitavelmente a presa estard deitada, sangrando, aos seus pés, como o mundo esté hoje." @aniel Quinn)! Um primeiro ponto a ser considerado, antes de discutir esta nova concepedo temporal, é que a denominada ‘revolugdo agricola’ "pode ser melhor compreendida se abandonamos qualquer distingao clara entre coleta e caca de um lado ¢ agricultura de outro, Estas atividades devem ser vistas como parte de um espectro de atividades humanas de diferentes degraus de intensidade desenvolvidas para explorar © ecossistema. Grupos cagadores e coletores ndo so passivos na sua aceitagao do meio ambiente: eles realizam uma série de atividades que consistem em interferir nos ecossistemas naturais para 0 beneficio rain.” Se de um lado isto implica que as distingdes tradicionais entre pré-historia e historia ou ainda de selvagens (vivendo em um pretenso ‘estado natural’) e civilizados (emancipados e separados do mundo natural) nao se sustentam, devemos, conforma nossa discuss4o no primeiro capitulo, levar esta critica mais além na medida em que a propria nogdo de ‘ecossistema natural’ (pretensamente intocado) nao se sustenta. Nao s6 a ampla distribuigao de humanos ao redor do globo resultou em que Daniel Quinn; /shmael - An adventure of the Mind and Spirit, New York: Bentham Books, 1995, pp. 71,72, 73 € 84 Ponting, op. cit, p. 38. 174 a deriva estrutural dos diferentes ecossistemas reflita e esteja marcada pela dinmica sécio-cultural humana, como também a idéia de uma natureza intocada e estitica ndo se sustenta frente a evidéncia de que esta representa, de fato, um continuo processo de auto(re)producao ¢ organizacao, continuamente produzindo e sendo produzida pelas partes que a compée. Neste sentido nao podemos mais manter uma linha divisoria clara entre a espécie humana e as demais espécies, ja que todas elas se caracterizam por estar, em maior ou menor grau, (re)produzindo e interferindo no meio em que existem. Castores alteram os cursos das éguas, formigas ‘cultivam! ¢ manipulam outras espécies (como pulgdes, fungos, etc.) para o seu préprio proveito e microorganismos (como o fitopléncton na atualidade) alteram radicalmente a composigao ¢ as dinémicas atmosféricas. © que € importante ressaltar é 0 marco cultural ¢ a auto-reflexividade em que se da a interveng&o humana e, assim, a flexibilidade e variabilidade potencial que a caracteriza. Como coloca Crosby, “outras criaturas tiveram que esperar por mudangas genéticas especificas para poderem migrar para Areas radicalmente distintas das dos seus antepassados (...), porém nao os humanos ou os hominideos. Eles passaram por uma mudanga genética genérica ¢ no especifica: eles desenvolveram maiores ¢ melhores cérebros, conectados para o uso da linguagem e dos utensilios. (...) Esta mudanga transformou o género dos Homo no maior especialista da natureza em adaptag&o. Foi como se 0 pescador do conto de fadas a quem Ihe outorgaram trés desejos pedisse antes de tudo que Ihe concedessem todos os desejos que pudesse ter." E esta plasticidade e auto-reflexividade cultural e a crescente produgo ¢ uso de instrumentos exosomaticos que da a especificidade da interferéncia © da co-participago da espécie humana na (re)produgo do seu meio, especificidade que, com as transformagées do neolitico, passam a se dar em um novo patamar, de forma radicalmente nova "A combinagdo da transigdo para a agricultura, 0 crescimento das sociedades sedentérias, a emergéncia das cidades, da especializagdo de oficios e o surgimento de poderosas elites religiosas ¢ politicas, é freqiientemente denominada a ‘revolucdo neolitica.""* Deixando de lado a discusstio dos +375 detalhes deste processo bem como da sua representagdo enquanto uma ‘revolugéo’,°”* 0 que nos > Op. cit, pp. 13-14, mesmo se devemos, conforme jé argumentamos, deixar de lado a visio mecénica e simplista detés desta visto da evolugio humana e o pressuposto implicito de linearidade (cérebro—»'ser humano)),j& que a auto- reflexividade humana emerge como uma propriedade nova da (re)organizagio sistémica de um dos ramos da deriva biologica dos seres vivo. > ponting, op cit, . 37, Ou, nas palavras de Crosby 1996 "a revolugdo neolitica iniciou-se quando os seres humanos ccomegaram a pols mais do que lascar os seus instrumentos de pedra em sua forma final, e terminou quando eles aprendecam a fundir metal em quantidades e trabalhé-lo em ferramentas que permaneciam afiadas mais tempo e eram mais duriveis que ‘0s seus equivalentes em pedra. Neste meio tempo, assim vai a ladainha, 05 humanos inventaram a agricultura, domesticaram todos 0s animals dos nossos quintais e campos, aprenderam a escrever, construir cidades e civilizagbes. A historia completa seria bastante mais complicada, mas esta definigao serve para 0s nossos propésitos.” (E para os nossos também..). Op. cit p17 55g que "a eseala temporal em que estas mudancas se deram era grande, no minimo quatro ou cinco mil anos, € a contribuigdo de cada geragdo individual foi provavelmente bastante pequena. Além disso a idéia de revolugo implica em 175 interessa discutir aqui sio as transformagdes no nivel da representagiio temporal subjacentes ¢ engendradas por este processo, bem como as distintas vertentes (ou ‘vias bifurcativas’) em que desembocam as distintas derivas sécio-culturais. Se, separadamente, podemos tracar distintas ‘histérias’, cada uma com a sua dindmica propria ao longo de varios séculos ¢ mesmo milénios de graduais e, em seu momento, quase imperceptiveis transformages na organizagao social, criago de novos instrumentos exosomaiticos, transformagées nas representagdes culturais ¢ alteragdes do meio ¢ da relagdo da sociedade humana com o seu meio, coletivamente "as conseqiiéncias de todas estas mudangas foram claramente revoluciondrias - tanto em seu impacto sobre a forma de vida humana, quanto sobre o meio ambiente."*”° Trata-se, assim, de um ‘salto sistémico’, da novidade que emerge uma vez que distintos elementos da organizagao anterior alcangam um patamar de transformagao pelo qual a ordem de funcionamento/organizacao anterior & substituida, no seu conjunto, por uma nova. Neste sentido, da mesma forma em que o repertério basico da vida j4 emergiu na autopoiesis dos unicelulares, podemos ver que "cada um dos métodos que caracterizam a agricultura ja tinham sido adotados por um ou mais grupos em algum momento do passado, apesar de, geralmente, de forma isolada. © que era novo foi a combinagdo e intensificagdo das técnicas que comegaram a surgir em algumas Areas do mundo ha cerca de 10.000 anos atris. Foi aqui que os métodos adotados pelos humanos para conseguir a sua comida gradualmente se constituiram em algo mais que simples variagdes sobre o tema da caca e da coleta.""”” © elemento central desta mudanga se encontra na qualidade das relages da sociedade com o seu meio, jé que as formas anteriores de "intervengSes nos ecossistemas naturais séo muito diferentes da agricultura, que consiste em substifwir 0 sistema natural por um sistema artificial.""”* Este processo representa, assim, a transicdo de uma autopoiesis humana integrada e voltada a fomentar determinados aspectos da autopoiesis ecossistémica (como favorecer determinados processos e/ou determinadas espécies em um ecossistema, etc.) para converter-se naquilo que Quinn denomina ‘agricultura totalitaria', em que a autopoiesis humana se coloca em oposigo a autopoiesis mais ampla existente, buscando impor a sua racionalidade frente a ela. No nivel cultural esta transigdo representa (e, por sua vez esta baseada) em uma ruptura com a visdo anterior na qual o ser humano aparece como um elo a mais na dialética global para passar a ser concebido como separado e em oposigdo a natureza em relagdo & qual, como vimos ao ciscutir 0 mito da criagdo judaico-cristéo, o homem aparece em posi¢o de dominagao, Outros elementos e seres uma agdo feita com o objetivo de trazer mudangas € o que nés podemos ver retrospectivamente como um ‘processo', ‘ovavelmente ndo teria sido empreendido de forma tio deliberada e consciente.” Ponting, op. ci. p. 38 Ibid. p. 37 Ibid, p. 41 176 deixam de ser representados como ‘irmanados' e ‘animados pelo espirito' para serem, cada vez mais, considerados a partir de uma perspectiva antropocéntrica, segundo a qual "as vacas devem viver, porém 0s lobos devem morrer. (..) Os frangos podem viver, porém as raposas deve morrer. (..) O trigo pode viver, porém 0 percevejo do trigo deve morrer. Qualquer coisa que comamos pode vivir, porém qualquer coisa que coma o nosso alimento deve morrer."*” No nivel da concepgao temporal, certamente esta transigao fundamenta-se em uma concepgao mais externa, abstrata ¢ manipulavel do tempo e dos processos. Se, como vimos, em todas as culturas o Sol por sua importéncia central na manutengo e determinago dos processos biosféricos aparece como uma referéncia temporal fundamental, nas culturas animistas 0 seu poder estava limitado (ou complementado) pela dinamica intema dos distintos sistemas, das forgas ¢ espiritos inerentes aos distintos seres (plantas e animais), fenémenos naturais (chuvas, trovées, ventos, aguas, etc.) ou mesmo ecossistemas (como bosques, florestas ou tundra). Neste universo povoado de espiritos e forgas, as ages humanas tinham que estar em harmonia e em respeito com suas exigéncias e necessidades, uma vez que se tratavam, por definic’o cultural, de forgas superiores. Ja com a maior centralidade que assume Sol nas sociedades agricolas, 0 tempo € visto cada vez mais como um tempo tinico ¢ externo, Esta centralidade do tempo solar ndo s6 nega a autonomia e as necessidades dos demais sistemas como, gradativamente, transfere para a sociedade humana um poder crescente na medida em que a capacidade de perscrutar 0 espago, fixando ¢ determinando este tempo, faz desta sociedade depositiria do seu poder. Mais ainda, este poder legitima o poder social do rei ou imperador, representante na Terra deste poder césmico central. Desta perspectiva, a capacidade de medir o tempo e determinar os calendérios passa a ser um elemento central no s6 para a ordem social intema, como também para a forma em que esta se articula com 0 seu meio. "Por todas as partes 0 calendério representa uma disputa de poder.""*° Nao sé 0 calendario permite, como mostra Attali, canalizar ¢ restringir a violéncia social a determinados espagos © tempos especificos, como também direcionar e estruturar a energia e a atividade social em sua relaséo com o meio." Neste sentido, na medida em que esta transigdo est associada 4 uma maior estratificagdo social e & uma forma mais trabalho-intensiva de assegurar-se a subsisténcia, n6s devemos abandonar as explicagdes lineares e simplistas que tendem a representar estas transigdes histéricas como inevitéveis € evolutivas. "Grupos de caga e coleta tinham desenvolvido um extenso repertério de métodos para conseguir sua subsisténcia, na maioria dos casos, e, em todas elas, com excegdo das dreas marginais, ** id., p. 33. >” Daniel Quinn; La histéria de B; Barcelona: Emeeé, 1997, p. 116. 3 tal op. cit p. 39. 58 Tid, particularmente pp. 19-20 e 30-35. Tad sem ter que dedicar uma grande parcela de tempo e esforgo. Ao explorar um amplo lecue de recursos eles também foram capazes de reduzir os riscos associados ao fracasso na coleta de qualquer planta ou animal em separado. A agricultura, certamente, nao uma opgfio mais ficil do que a caga ¢ a coleta. Ela exige muito mais esforgo limpando a terra, semeando, cultivando ¢ colhendo culturas, assim como cuidando dos animais domesticados. Ela nfo fornece necessariamente uma comida mais nutritiva, nem oferece mais seguranga, j4 que seleciona e depende de um grupo muito menor de plantas e animais."*" Ela ndo representa, portanto, por si s6 um sistema mais vantajoso que seria adotado to logo o grau de conhecimento técnico ¢ 0 avango cultural permitiriam dar este salto Assim, para dar apenas um contra-exemplo, varios povos indigenas da América do Norte, a0 entrarem em contato ¢ re-domesticarem os cavalos trazidos pelos colonizadores europeus que se haviam adiantado aos humans na exploragao do novo territ6rio, abandonaram as praticas agricolas que haviam desenvolvido para dedicar-se outra vez exclusivamente a caga ¢ a coleta que, com 0 novo aliado, Ihes permitia extrair a sua subsisténcia com um menor esforgo ¢ assim dedicar uma maior parcela do tempo e da energia social as praticas rituais tradicionais, as vivéncias pertencentes a0 dominio do tempo sagrado.**? Um primeiro aspecto a destacar-se desta transi¢o neolitica relaciona-se aos efeitos sinergéticos que a caracterizam, isto ¢, a forma em que as distintas dindmicas se interrelacionam e se reforgam mutuamente, acelerando a transformagio do sistema como um todo no que, na fisica dos sistemas auto- organizados, denomina-se uma transigao de fase." Assim como na evolugdo humana, conforme vimos, 0s aspectos biolégicos ¢ culturais condicionaram-se ¢ reforgaram-se mutuamente, levando a emergéncia do homo sapiens, as distimtas dinamicas subjacentes a revolugdo neolitica sé podem ser compreendidas em seu contexto global no qual elas sio tanto a base como o produto das distintas transformasées ¢ dialéticas engendradas. Assim, por exemplo, como lembra Ponting, "a explicagdo que melhor se adapta 20 conhecimento moderno esta baseada na crescente press4o populacional. E possivel que uma populacdo humana de cerca de 4 milhées (0 nivel atingido ha 10.000 anos atrés) ou mesmo menos, correspondia ao maximo que podia ser facilmente mantido por uma forma de vida baseada na caca e na coleta. Se crescimento populacional continuava além deste ponto, especialmente em areas relativamente povoadas, grupos seriam forgados a penetrar em habitats menos favordveis onde teriam * Ponting, op. cit, p. 4l *° Obviamente esta é uma descrico bastante abreviada e simplificada de como a introdugo do cavalo alterou radicalmente ‘do 56 a autopoiesis social destas tribos, como também a dialética da sua relag8o com o meio ja que, como lembra Sherow, ' maioria dos estudiosos reconhece apenas como 0 cavalo indigena liberou as tribos ao utilizarem os recursos das ‘High Pains’, porém ndo como os cavalos afetaram suas agdes de uma forma especifica e levaram a uma degradacdo ambiental." Sherow, op. cit, p. 65. Vide, para a analise do conceito de transicdo de fase, Kaufman, op. cit, pp. 56-57. 178 que depender de plantas e animais de menor qualidade, ou onde os ecossistemas eram menos abundantes e portanto um maior esforgo seria exigido para conseguir comida suficiente. Ao longo de milhares de anos, a continuagdo deste processo de deslocamento ¢ a necessidade de formas mais intensivas e consumidoras de tempo para explorar o meio, eventualmente resultaram no que hoje se reconhece como agricultura plena. Uma vez que um destes grupos atingiu um ponto em que estavam preparados ou nao tinham outra alternativa que adotar técnicas agricolas, este passo seria irreversivel. A produgao de comida aumentaria e mais pessoas podiam ser alimentadas. Na auséncia de controles de natalidade, esta populag&o maior aumentaria a pressio por técnicas ainda mais intensivas de cultivo."**° Esta retroalimentagao positiva entre o crescimento populacional ¢ a transi ntensificagao da produgo agricola certamente envolveu 0 conjunto das dimensdes econdmicas, politicas, culturais e ambientais da autopoiesis destas sociedades em seu meio ¢, particularmente, as suas priticas € concepgies temporais. Como vimos, a principal vantagem do modo agricola ¢ a capacidade de, a0 custo de uma maior intensidade energética e de trabalho social, extrair uma maior subsisténcia humana em determinada rea, Isto implica numa maior importncia do tempo dedicado ao trabalho e a organizagio social (0 ‘tempo profano’ das atividades quotidianas) em detrimento do ‘tempo sagrado’ das origens ¢ das atividades rituais, Esta énfase maior no tempo social humano ¢ também a base para a ‘maior intervengdo humana sobre 0 ecossistema, a0 mesmo tempo em que reforga esta. Aumenta, assim, a capacidade humana de interferir e determinar (dentro dos limites dados pelos ciclos solares ¢ lunares, das estagdes) as temporalidades dos demais seres e elementos do seu meio (ao determinar plantio/geminagdo, o desenvolvimento/engorda pelo rego das plantas ¢ a alimentagao suplementar dos animais, a colheita ¢ 0 abate, etc.). Desta forma, cada vez mais a sociedade humana é representada nao como um elemento @ mais de uma dialética temporal mais ampla, com a sua identidade e subsisténcia Geterminadas pela capacidade de ‘escutar’ ¢ responder a dindmica e 4 temporalidade intrinseca dos demais elementos do seu meio (os movimentos da caga, os ciclos das plantas e do ecossistema, etc.), mas como senhora ¢ dominadora da natureza, enquanto que, cada vez mais, o homem se vé forgado a retirar da terra, pelo suor do seu trabalho, o seu pao de cada dia, como aparece no recito biblico. E esta a leitura que Quinn procura fazer do recito biblico da queda, apresentando-o como um mito sobre a revolugdo agricola e sua expansdo oriundo da perspectiva dos povos semitas nio-agricolas, liminados por esta expansio. Desta perspectiva, que acabou sendo incorporado pela mitologia dos povos que se sedentarizaram, 0 conhecimento do bem e do mal é representado como uma queda (e nio uma ascengdo & consciéncia, como se poderia esperar), j4 que usurpa-se um saber sagrado (de poder decidir sobre a vida e a morte dos seres). E este poder e conhecimento, base mesma do que Quinn > Ponting, op. cit, p. 42 179 denomina ‘agricultura totalitaria’, que permite ao homem selecionar e privilegiar as espécies que Ihe interessa (determinando o seu plantio/reproduco - vida - e colheita/abate - morte), ao mesmo tempo em que se inicia uma luta de exterminio contra as espécies que nao Ihe so tteis. Finalmente, a destruigao dos povos némades pela expansio/consolidagdo do modo agricola estaria simbolizada pelo fratricidio de Caim (simbolo dos emergentes povos agricolas) contra Abel (simbolizando os povos némades semitas). 5, assim, da perspectiva de uma cultura dominada por uma concepgio sistémica do tempo (de co-evolugao, na qual a sociedade humana é parte integrante e ndo dominante do processo, devendo respeitar uma série de limitagdes, assim como o ‘tempo de cada ser € coisa’), que 0 ato de Adio e Eva aparece como uma transgressio, um excesso (hubris), cujo castigo, mitologicamente, explicaria a propria adogao do modo agricola. "Era literalmente inconcebivel para os autores destas histérias que qualquer pessoa preferiria viver pelo suor da sua cara. Assim, a pergunta que eles se faziam nao era ‘por que estas pessoas adotaram esta forma trabalhosa de vida, mas era: ‘que terrivel transgresstio realizaram estas pessoas para merecer tal castigo? O que que eles fizeram para que os Deuses privassem eles do quinh&o que nos permite levar uma vida despreocupada?">%* Na medida em que 0 éxito (¢ podemos dizer os limites) desta capacidade de intervengio esta dada pelos ciclos das estagdes ¢ na medida em que o homem ja ndo observa passivamente a temporalidade dos demais seres mas tenta, ativamente, controlé-las, 2 observagdo ¢ construgéo de calendarios precisos passa a ter uma importéncia cada vez maior na autopoiesis social destes distintos grupos agricolas. Estes calendarios, mais que o fruto da observago dos ciclos e dos distintos processos no interior do ecossistema, cada vez mais se baseiam na observagdo e determinagéo de um ciclo extemo: os ciclos regulares ¢ aparentemente eternos dos astros que parecem reger o tempo da danca dos distintos processos terrestres. Conhecer 0 tempo dos astros abriria, assim, as portas para 0 controle do tempo dos processos terrestres. Encontramos talvez aqui também a razo pela qual, na maioria das linguas latinas, uma mesma palavra se refere tanto ao "tempo que passa ¢ flui - ime, Zeit ~ e 0 tempo que faz - weather, Wetter - oriundo do clima e daquilo que nossos antepassados denominavam os meteoros."3*7 Esta énfase na determinagao externa do tempo responde ¢ por sua vez reforca um duplo processo: de um lado objetifica a realidade e os demais processos que, mais do que ‘auto-organizados' e respondendo a uma determinagéo interna, sio representados como refletindo uma determinagao externa. Em segundo lugar, ela aumenta ¢ legitima o poder de intervengao do homem sobre o seu meio na medida em que, conhecedor do tempo, transforma e atua sobre o tempo dos demais. Finalmente, no ° Quinn 1995, op. cit, pp. 177-178. Para esta discussfo, vide tb. pp. 151-184. *” Serres 1992, op. cit, pp. SI € 52. 180 nivel da organizagdo interna do grupo, este tempo central e monolitico, associa-se ¢ legitima uma estrutura social mais centralizada, hierarquizada e estratificada, cujas elites, donas e senhoras do tempo social, tm 0 seu poder dado justamente pela sua capacidade ¢ o seu monopélio de ler ¢ fixar este ‘tempo dos deuses', conforme a designagdo de Attali.** Este tempo externo e central estd, assim, associado ndo s6 a uma ordem social que, representada como externa ao meio impée a este o seu ritmo, como também a uma ordem social internamente mais complexa e hierarquizada, na qual uma elite vive do excedente do trabalho social e assim da sua capacidade de controlar e ditar este tempo social. Ao mesmo tempo, a maior densidade populacional, a maior complexidade da produgdo e da organizacdo social, exigem uma maior e mais complexa coordenagdo social, um govemno. O Sol, como centro ‘temporal, vai associado, assim, ao estado como centro de controle da organizagao social. Os diferentes seres e processos (incluindo o ser humano, siidito de um soberano) deixam de ser criadores e fontes intrinsecas de temporalidades miltiplas e interconecatadas para serem representados como objetos dangando ao ritmo da miisica de outros: a miisica regular e ciclica dos astros, particularmente do Sol e da Lua, ¢ a miisica da sociedade agricola, conhecedora ¢ controladora deste tempo. A determinagdo ¢ leitura do tempo deixa de ser uma experiéncia imediata ¢ descentralizada, para ser uma atividade especializada e controlada a nivel central. E neste sentido que podemos compreender a importancia central que assume a elaboraco de calendarios precisos e a razio pela qual primeiro a astrologia e depois, com o proceso de racionalizago por parte da cultura grega, a astronomia, se transformam nas primeiras e principais das ciéncias, fontes essenciais de poder nfo s6 sobre o seu meio, como também de poder social das elites que, pelo conhecimento e determinagio do calendario determinam simultaneamente o ritmo das atividades ¢ da energia social. Esta mutagdo na concep¢do temporal rumo a uma concepgdo mais abstrata e externa do tempo constitui, assim, uma ruptura radical, base mesma da ruptura representada, em seu conjunto, pela revolugio neolitica. Se de um lado todos os seres em sua autopoiesis interna apresentam ritmos marcados pelo ritmo em consonancia com o ritmo externo dos astros (como por exemplo os ritmos circadianos pelos quais os distintos ciclos biolégicos estio pautados pelos ciclos solares, ou ainda diversos ciclos hidrolégicos como as marés, os ciclos menstruais ¢ reprodutivos, etc., pautados pelos ciclos lunares), por outro lado constitui uma diferenga capital ver estes ritmos internos determinados ou apenas ‘gatilhados' pelos ciclos extemos. Em um caso predomina a nogdo interna, de uma physis cujos elementos constituidos estio insuflados pelo espitito vital, no outro predomina a nogio externa, de uma physis comandada desde fora. Op. cit, cap. I, pp. 13-81. 181 Compreendemos, assim, porque nas sociedades cagadoras ¢ coletoras "a natureza é, entio, a fonte de tudo, tanto da concep¢ao do passar do tempo, quanto da sua duragdo e medida. Desta forma os fendmenos vivos fornecem os tnicos meios de avaliar a duragao e passagem."** "Os eventos seguem uma ordem logica, mas nao sio comandados por um sistema abstrato, j4 que néo existe nenhum ponto de referéncia auténomo ao qual estas atividades deveriam conformar-se com precisio."*" Neste contexto, como vimos, 0 animismo e as distintas restrigdes ¢ exigéncias rituais e culturais associadas as distintas atividades refletem esta necessidade de compreenso € respeito as distintas temporalidades e a necessidade de adequagéo do tempo humano a esta temporalidade polimorfa que est4 na base da evolugdo da physis em seu conjunto Em oposisio a esta visto, ¢ a partir da emergéncia de uma visio abstrata e exterior do tempo, particularmente de um tempo solar que rege ¢ determina todos os demais, que efetivamente se abrem as portas para as religides monoteistas em que um Deus tinico e onipotente rege, a partir de um centro, a criago ¢ a evolugao do universo. E este poder onipotente que pode transmitir ao ser humano em geral ¢ a certos grupos ou sociedades em particular parte do seu poder e assim uma ascendéncia sobre 0 seu meio. Mesmo assim, no entanto, trata-se ainda de um poder delegado e que repousa, em tltima anilise, na capacidade deste grupo de atuar de acordo com os designios deste poder soberano, E este cardter delegado que podemos encontrar na relagao que se estabelece entre os ferreiros, os alquimistas e a matéria, identificada por Eliade em sua anélise da temporalidade dos alquimistas onde o conceito de transmutagao alquimica é a fabulosa coroagao da fé na possibilidade de se transformar a natureza com © trabalho humano."**! "Ao assumir a responsabilidade de transformar a Natureza, 0 homem se algava como substituto do Tempo. O que levaria milénios ou Eones para «madurar» nas profundezas da terra, 0 metaliirgico e principalmente o alquimista, esperavam conseguir em poucas semanas." Esta substituigaio do tempo da physis pelo tempo do trabalho humano é, no entanto, apenas parcial na medida em que "os alquimistas, convencidos de trabalhar com 0 apoio de Deus, consideravam a sua obra como um aperfeigoamento da Natureza, consentido ou mesmo fomentado por Deus. Por mais distantes que estivessem dos antigos metaliirgicos e forjadores, prolongavam, no entanto, a sua atitude frente a Natureza: tanto para o mineiro arcaico, quanto para o alquimista ocidental, a Natureza constituia uma hierofania. Nao s6 esta «viva», como também é divina ou, pelo menos, tem uma dimensfo sagrada.""? E, como veremos no capitulo seguinte, apenas na época modema, com "a fé nas possibilidades ilimitadas do homo faber (...) que 0 homem se sente capaz de * Attali, op,,cit,, p. 17. *° Evans-Pritchard; Les Nuer; Paris: Gallimard, 1968, citado por Attali, op. cit., p. 17 ®' Mircea Eliade; Herreros y alguimistas; Madrid: Taurus Ediciones, 1974, p. 152. »* Ibid, pp. 149-151. 132 rivalizar com a natureza, porém sem perder tempo. De agora em diante serd a ciéncia ¢ 0 trabalho que realizardo a obra do tempo. Com 0 que o homem reconhece em si de mais essencial, a sua inteligéncia aplicada e a sua capacidade de trabalho, ele assume hoje a fungdo da duraglo temporal. Em outras palavras, substitui o Tempo em sua fungao."" Esta substituigo do tempo da natureza pelo tempo social, como veremos, repousa ultimamente na transigo de um tempo inscrito nos astros (ou na natureza em geral) para um tempo inscrito em um artefato humano, o relégio mecénico. Com uma atividade que pretende acelerar ou aperfeigoar um processo jé inscrito nos ritmos naturais, tanto para a agricultura como para a metalurgia (e demais produgdes de artefatos humanos), podemos compreender a importancia simbdlica e pritica associada a necessidade e capacidade de ler e determinar corretamente este tempo. Intimamente associada e de fato indissocidvel 4 necessidade prética de manipulagio e transformago do meio, este tempo representa _um poder soberano ao qual paulatinamente a sociedade humana, de forma delegada, vai tendo um maior acesso ‘Vemos, assim, articuladas as distintas dimensdes que constituem a chamada revolugao neolitica 1 partir da mutagdo na concepgao e nas priticas temporais humanas. Esta transformagao engendra ¢ por sua vez é engendrada pela transigdo de organizagdes sécio-culturais descentralizadas para modelos mais centralizados que culminariam nas sociedades altamente estratificadas ¢ centralizadas dos grandes impérios solares. As sociedades agricolas repousam sobre uma relaco essencialmente distinta no s6 com o tempo, como com o espago, ja que o seu carater sedentirio e a exploragdo/transformagao deste ao longo do tempo (em um processo de longo prazo, ja que a pratica agricola caracteriza-se por uma dissociagdo temporal entre © trabalho € os resultados) exige também a sua transformacao em propriedade exclusiva de uma pessoa ou grupo, bem como a manutengao desta propriedade. Isto leva & necessidade de um maior controle/defesa do espago (ou sua conquista de grupos rivais), conflito este que jé vinha se acentuado pela maior densidade populacional que, como vimos, esti na base da transig&o neolitica. Desta dindmica surge a necessidade de uma classe guerreira, capaz de assegurar esta propriedade e que encontra neste controle do espago (e como vimos do tempo) a base do seu poder. Esta nova elite tem na classe sacerdotal (cujo poder reside na sua posigao de intermediéria com 0 Divino, do qual, como vimos, emana simbolicamente todo 0 poder social) a sua cara-metade no topo da nova hierarquia social, em uma rela¢o que flutua entre 0 antagonismo, a simbiose ¢ a sobreposi¢ao (nos casos em que o poder secular e 0 poder divino concentram-se em um mesmo grupo ou individuo, como no caso dos imperadores dos grandes impérios clissicos, ao mesmo tempo chefes militares © encarnagdes divinas sobre a terra). > pid, p. 151. pid, p. 153-154. 183 Assim, enquanto "os némades confiam sobretudo nos ritmos lunares, que marcam os meses lunares importantes para a sua atividade de pastoreio, os povos sedentérios, a0 contrério, necessitam prever 0 inicio das estagSes agricolas. Os movimentos do sol permitem anunciar isto melhor. (...) A lua, © Sol, as estrelas € 2 Agua sio, portanto, elementos essenciais destes primeiros calendarios. Através Geles, os ciclos naturais do tempo s&0 confirmados, homologados. A sociedade «distribui concientemente, soberanamente, a sua propria vida: os ritos periédicos configuram e estruturam os primeiros calendérios. Concreto, simples e incerto nas sociedades mais arcaicas, 0 calendario se elevou rapidamente, em alguns lugares privilegiados, a abstrag&o, complicag&o e preciséo de uma ciéncia ‘matemética» (...) Inieialmente os Deuses ¢ 0 seu Tempo sdo servidos pelos mais velhos, depois por sacerdotes especializados, astrénomos ¢ astrélogos. Estes determinam a legitimidade dos reis ¢ os reis ©s protegem. Mais tarde, quando os Impérios se organizam, 0 Tempo dos Deuses aumenta o seu alcance ¢ as formas da sua organizagao.""95 Esta transformagao na maneira de se conceber e de se medir 0 tempo acompanha, assim, a transigdo para uma forma radicalmente nova de organizago social para a obtencdo da sua subsisténcia Se como cagadora ¢ coletora a sociedade era tributaria de dindmicas e processos auténomos, exteriores a ela, cada vez mais, partindo das préticas proto-agricolas, passando pelo pastoreio némade até as Praticas agricolas generalizadas, a subsisténcia social depende dos resultados da manipulagao ¢ do controle destes processos por parte da sociedade. Se antes a principal necessidade consistia em prever 5 momentos propicios de manifestago de determinado processo (desde a disponibilidade e localizago de determinada caca ou frutos, até os momentos de reunio social ¢ ritual), cada vez mais se trata de conceber 0 processo como um todo no tempo, determinando a partir da ago humana o seu inicio (Plantio, etc.) a sua erganizagdo e controle (cultivo) eo seu final (colheita). Os processos aparecem, éssim, como processos no fempo € no mais processos temporais, produtores cada qual do sew préprio tempo. De técnicas miltiplas ¢ passivas de medigo do tempo passamos a uma medigao cada vez mais abstrata, unitéria, exterior ¢ especializada do tempo. "Medir o tempo se fazia, inicialmente e de sempre, Por uma observagdo detalhada da natureza. «Algumas nagdes rudimentares - escreveu em 1782 no Journal des Savants, um relojoeiro francés, Le Prince le Jeune - buscavam na natureza os meios de medir 0 tempo. Os habitantes da Irlanda se regem pelas marés, os Singaleses medem o tempo no versio por uma flor que se abre regularmente cada dia antes do anoitecer .. » (..). Os Moré da Amazonia, para se impregnar com 0 «cheiro do tempo», fecham os olhos ¢, apés um breve siléncio, determinam a data op. cit., p. 36, 37 e 22, respectivamente. 184 do ano."**° "Dos antigos Tupi do litoral (...) relata Sim&o de Vasconcellos (...) que notavam os ‘anos da vida pelos frutos das drvores que chamam acajis, ou pelo Sete-estrelo, que nasce em maio, a que chamam Ceixt.""°7 J4 com a medig&o baseada na observagdo astronémica, temos ndo sé uma maior abstragdo e exteriorizag’o da nogio do tempo, como também uma crescente especializago ¢ instrumentalizagéo de sua medida. As novas elites dominantes que emergem nestas sociedades tém o seu poder baseado nao sé no controle do espago associado 4 nova forma de relacionar-se com 0 seu ‘meio que emerge no modo agricola de produgao, como também - ¢ de fato de forma ainda mais central - no controle do tempo ¢ da sua medida. "Nomear o passado e relacionar as datas que delimitam uma memiria ao Tempo dos Deuses e dos herdis do povo, dé um sentido a sociedade. Os calendirios ¢ os instrumentos de medida do tempo associados constituem, assim, os elementos centrais de toda ordem social. (..) Eu denominarei data a determinagio de um momento por uma medida e datar o fato de situar assim um evento. Datar significa por em ordem, reduzir a ignorancia sobre 0 mundo."”* Datar significa no s6 determinar 0 ritmo das atividades sociais ¢ assim a sua ordem, como também determinar e distribuir temporalmente as relagdes do homem com o seu meio € portanto o acoplamento estrutural que se estabelece entre a autopoiesis social e o seu meio. Nao nos deve surpreender, assim, que a partir da transieao neolitica no s6 0 excedente econémico seja apropriado e distribuido de forma cada vez mais centralizada (através de mecanismos de redistribuigéo centralizadas ¢ controladas pelo estado a partir do seu controle e dominio do espaco), como também que cada vez mais a determinagao e a medigdo do tempo se dé de forma mais centvalizada, a partir da subordinago direta de um corpo especializado na medio e determinagao do tempo (os astrénomos/astrélogos) ao estado. A construgao dos calendarios passa, assim, a ser no s6 uma faculdade como também uma prerrogativa de um poder cada vez mais centralizado ¢ burocratizado ¢ que encontra neste monopélio tanto a base de sua legitimagao como 0 modo de exercer o seu poder e controlar as forgas ¢ a ordem social. Neste sentido, enquanto construgao cultural, todo calendario representa uma construgo arbitréria em relago ao seu meio na medida em que reflete a autonomia propria de cada autopoiesis socio-cultural em sua deriva historica particular € dos imperativos internos 4 sua ordem social. Na medida em que toda deriva histérica se dé em um meio mais amplo, no entanto, todo calendério deve estar em conformidade € refletir adequadamente a realidade temporal deste, sob o risco de inviabilizar o acoplamento estrutural do grupo ao seu meio, isto é a sua prépria sobrevivéncia. Reflete um imperativo politico, de ordem * Ibid, p. 50. ™ Herbert Baldus; O Conceito do Tempo entre os Indios do Brasil, in Revista do Arquivo Municipal, ano VI, vol LXXI, ‘$40 Paulo: Outubro de 1990, p. 87. ° reali, op. cit, p. 32. 185 interna, ¢ um imperativo fisico-econémico relativo a forma em que a sociedade se relaciona com o seu meio. Toda concepgao temporal é, assim, central ndo s6 a determinada ordem social, como também a determinado modo de produgao ou, em termos fisicos, 4 forma em que o sistema social (visto em seu conjunto como uma estrutura dissipativa) constréi a sua ordem interna a partir de um fluxo de energia e matéria (baixa entropia) que o atravessa. E neste sentido que podemos ver como o ‘tempo solar’ representa 0 eixo central das transformagées do neolitico. Extemamente articula-se a uma transformago ativa do seu meio e das demais temporalidades advindas com o modo agricola de produso (alterando crescentemente os ciclos das aguas, a selegao genética das espécies, a topografia e os ecossistemas locais) ¢ internamente articula-se a uma organizago social mais centralizada ¢ estratificada, com uma crescente especializagao social possivel (e simultaneamente requerida) tanto pela maior densidade populacional, quanto pela nova relagao de dominio e controle do espago ¢, em ultima anélise, pelos maiores excedentes alimentares obtidos de uma mesma rea. Um primeiro aspecto importante a considerar nesta transigdo, 6 0 maior peso que assumem os aspectos internos, relativos a cada ordem social especifica, na construgao cultural de determinada concep¢do temporal. Como vimos, no caso das sociedades nao agricolas, a forte dependéncia delas frente as dindmicas mais amplas do seu meio requer uma concepeao temporal capaz de dar conta desta realidade temporal miltipla ¢ complexa, ao mesmo tempo em que o seu caréter mais igualitario menos estratificado ndo convertia a construgdo social do tempo em um imperativo politico de primeira ordem, de disputa e controle entre grupos e classes. J4 nas sociedades agricolas, é o homem que busca impor uma temporalidade ao meio, a0 mesmo tempo em que cada vez mais esta concepco temporal passa a ser um elemento central de sua ordem politica interna. A sociedade e, em seu interior, as elites, passam a ser 'donas do tempo’, mesmo se, como vimos, de forma delegada a partir do seu conhecimento © controle de um tempo solar. E 0 conhecimento e as técnicas especializadas criadas pelo homem que passam a ser fonte ¢ referéncia temporal e nao mais os diferentes ciclos naturais e a propria temporalidade interna ao ser humano, apesar de, como coloca Landes, "a natureza ser a grande doadora de tempo (Zeitgeber) ¢ nds todos, sem excegéo, vivemos segundo o relogio natural. A noite segue ao dia, o dia A noite; ¢ cada ano tréz a sua sucessao de estacdes. Estes ciclos esto impressos em todos os seres vivos no que se denomina ciclos circadianos (‘de um dia') e ritmos biolégicos circoanuais. Eles esto carimbados na nossa came ¢ sangue. Eles continuam mesmo se somos separados de sinais temporais. Eles nos caracterizam como seres terrestres. (...) 186 ‘Nestes ciclos naturais, que todos os povos experimentaram como oriundos da providéncia divina, o rel6gio artificial penetrava como um intruso."" 'Podemos imaginar (...) que a introduce do relégio solar fosse sentida no apenas como um alivio, mas também como uma priso, que é 0 que todo ‘aumento na precisdo, de rigor na medida do tempo, traz consigo. Uma confirmagio desta hipétese nés encontramos em Plauto, que em uma das suas comédias menciona um relégio de sol instalado no Forum e faz com que um dos personagens se queixe com as seguintes palavras: «Oxalé levem os deuses quem trouxe aqui este relégio que a mim, pobre infeliz, encurtou o dia dividindo-o em pedagos. Quando eu era jovem, as minhas tripas serviam de relégio. Era o melhor mais exato. Em todas as partes me avisavam de que era a hora de comer, se é que havia comida. Porém agora, se nfo the agrada ao Sol, no se come nem sequer a comida que hi.’ pie Inicialmente centrado na observagdo astrondmica ¢ particularmente na gnoménica (‘arte de construir gnémons' - relégios solares), este conhecimento e a técnica associada vao-se especializando Ientamente, levando 4 construgio de outros instrumentos de 'medigéio do tempo’ como os rel6gios de areia e, particularmente, as clepsidras. Para os egipcios do Império Médio, como para a maioria das civilizagdes cléssicas, "dado que o Sol era divino, as medidas obtidas com os seus raios também o cram, Ja ha cinco mil anos atrés a obtencdo destas medidas estava ligada a um cerimonial muito detalhado. Desta forma, por exemplo, quando se construia um templo, a linha norte-sul era fixada em + conjunto pelo fara6 ¢ o deus Sol.*' Esta vinculag&o do tempo ¢ a sua medida ao sagrado segue a tradigo das culturas némades, com a diferenga basica de que aqui o sagrado concentra-se em um tinico objeto, no Sol e o seu tempo tinico. Assim, praticamente em todas as culturas, os observatérios astronémicos eram simultaneamente centros sagrados ¢ de culto, seja em Stonehege; nos Ziguratis babilénios ou nas piramides Maias, Astecas ou Egipcias. Em todas elas a construgo e organiza do espago obedecia tanto a medidas astrondmicas, permitindo determinar diferentes datas do ano e horas do dia, como também a critérios culturais, obedecendo a uma disposi¢éo sagrada de acordo com uma tradigao propria a cada deriva histérica particular. Em todas elas, como coloca Eliade, 0 espago ritual mimetiza um espago sagrado, 0 microcosmos reflete 0 macrocosmos, fonte do sagrado ¢ morada da sociedade. E, de fato, neste balango entre a observagdo (a busca de preciséo astronémica, determinando o movimento aparente dos astros) e a tradigao (respondendo a uma determinagao interna e propria a 5% David 5. Landes, Revolution in Time: Clocks and the making of the Modern World; Cambridge Ma.: Harvard University Press, 1983, p. 15 ° janger, op. cit, p. 41. Trata-se, de fato, da mesma citagdo que est4 na continuacdo da discussio de Landes, em uma ‘raducdo ligeiramemt diferente, da obra Boetia, atribuida a Plautus ¢ escrita na segunda metade do século Illa. C. Ressaffemos que, na linha da nossa diseuss80, 0 principal aspecto criticado pelo personagem de Plautus no é a maior precisdo do rel6gio solar, conforme coloca Jiinger, ¢ sim o carter externo ¢ imposto do tempo a ele associado, em oposi¢0 ‘20 tempo interno das tripas. ©" Ibid, p. 38. 187 cada cultura), que podemos encontrar nao sé 0 que caracteriza cada concepeao temporal particular, como também a organizacao interna de cada sociedade e a forma em que esta se relaciona com o seu meio. Com as clepsidras, de fato, como coloca Attali, nés temos a "primeira medida do tempo que nao seja um reflexo do mundo." Marca, assim, uma ruptura fundamental neste equilibrio entre a determinagao interna e extema a ordem social na construgao da concepgdo sécio-cultural do tempo. Reflete, assim, uma maior énfase na determinagao social do tempo, jé que passa a ser um instrumento construido pelo homem ¢ ndo mais o movimento de um astro ou a observacio de um processo que aparece como fonte temporal. A clepsidra (e depois outros artefatos similares, como os relégios de areia ou ainda os ‘reldgios de fogo' como velas, lamparinas ou mechas graduadas, etc.) representam, assim, uum passo fundamental rumo a um controle e uma determinago humana do tempo, marcando um passo fundamental em direg4o 4 concepgao modema do tempo mecénico no s6 enquanto concepeio, como também enquanto técnica, ponto que retomaremos mais adiante. "Os relégios de 4gua, de areia e de fogo nio so aparelhos césmicos de medir o tempo, como so os teldgios de sol. Séo instrumentos teliricos e realizam as suas medidas com estes elementos que so a gua, a terra ¢ 0 fogo, porém no com a luz césmica. (...) A forga telitrica ¢ forga da gravidade, e atua tanto quando se faz deslizar a areia, a gua, oscilar © péndulo ou se faz descer um peso. (...) Nenhum destes movimentos € circular, como o so as revolugdes o6smicas. S40 movimentos que vao fluindo, escorrendo, deslizando ¢ que, pelo seu sentido, so retos. Por isso que, para medi-los, necessitamos nfo da esfera, mas da escala graduada. A estas diferengas correspondem duas concepgdes do tempo: uma linear e a outra ciclica. Estas duas concepgdes ja aparecem na Lingua: quem diz que o tempo anda, flui, escorre, desliza se refere a um tempo diferente daquele que utiliza expresses em que o tempo aparece como uma roda e fala dos ciclos do tempo ¢ das suas voltas periédicas, Para o primeiro o tempo é um poder que avanga, progride. Para o segundo um poder que retorna. (...) O tempo que retorna ¢ um tempo que traz ¢ restitui as coisas. As horas dio obséquios. Também sto diferentes, j4 que existem horas quotidianas ¢ horas festivas. Existe a alva e 0 caso, marés altas ¢ baixas, constelagées € culminagdes. J4 0 tempo que avanga, que progride, pelo contrario, ndo se mede por ciclos ¢ voltas e sim por escalas graduadas. E um tempo uniforme. Nele os contetidos passam a um segundo plano, enquanto que © tempo mesmo assume um peso maior. No retorno o importante ¢ 0 comego, no progresso a meta."*"> “© Op. cit, p. 54. * Junger, op. cit., pp. 67-69. 188 Mesmo assim, devemos lembrar que a Clepsidra © os demais ‘relégios teliricos se Gesenvolveram no interior de sociedades inteiramente dominadas pelo tempo solar ¢ como tal encontravam-se subordinadas a este. Buscavam determinar as horas solares e astrais quando sua observagdo nao era possivel (particularmente em sua auséncia, em periodos nublados, etc.), ou como instrumento de apoio para a construgdo das cartas astrais que em seguida serviriam de guia temporal direto. Podemos ver esta funcdo complementaria e subordinada nos complexos mecanismos que foram ideados (aumentando ou reduzindo 0 fluxo por orificios adicionais, utilizando diversas escalas para os diferentes periodos, etc.) que buscavam justamente adequar 0 fluxo continuo ¢ relativamente homogéneo do fluxo da égua, da areia ou do fogo, s horas solares, variantes ao longo do ano. Desta forma, até a idade moderna, 0s dias ¢ as noites se dividiam em um nimero igual de horas, maiores ou menores conforme a estagdo. O potencial de sinalizar periodos perfeitamente homogéneos, pura quantidade independente do contexto, vé-se, assim, limitado pela hegemonia do tempo solar ao qual estes aparatos (e, em termos mais amplos, a sociedade em seu conjunto, centradas na produgao agricola) todavia estavam subordinados. "As horas (...) se regiam pelo Sol ¢ nao pelo reldgio."*™* Reflete, portanto, 0 novo poder e engenho das sociedades, porém um poder subordinado, delegado e dependente de um poder maior, extemo a sociedade. Prometeu levou 0 fogo, as artes ¢ a téenica 4 sociedade humana, porém é de Zeus que emana todo poder e também o castigo & hubris tanto de Prometeu, como da sociedade humana. Nos observatorios/templos o homem, através de seu engenho, procura determinar, medir e controlar 0 tempo, Esta atividade, no entanto, esta subordinada a uma série de regras e limitagdes sagradas, de caréter cultural, pelas quais o homem busca conseguir a graca ¢ 0s favores de um poder central que a tudo controla. De qualquer forma, a origem das clepsidras, como podemos ver na reflexdo que faz Jtinger, jé € uum testemunho por si s6 de um crescente poder social, "Relacionaram-se estes tipos de rel6gios aos inicios da astronomia e nfo ha divida de que este aparelho tenha sido 0 primeiro que permitiu medir 0 tempo sideral. (...) ‘Agora, este tipo de medigges pressupde nfo s6 a existéncia de uns instrumentos bastante avangados, como também que fosse bastante avangado 0 estigio em que se encontrava o Fstado € @ cultura. Sabemos que ambos se relacionam com 0 aperfeigoamento dos sistemas de irrigagao. (..) A agua € um recurso precioso naquelas terras. Se extrai e se deixa fluir por prazos bem medidos, se empresta ou se reparte por um tempo bem determinado. E isto se faz. no s6 de dia, como de noite g provavel que ao realizar estas dosagens da égua Ihes ocorrera aos homens a idéia da clepsidra. Assim 0 {Sr jpid,p. 53. Para uma discussdo mais detalhada destes mecanismos que visavam adaptar as clepsidras @ um tempo solar variavel, vide pp. 43-54. 189 indicam os descobrimentos de instrumentos simples deste tipo. Sao rel6gios pelos quais entra a agua, recipientes metélicos com pequenos furos. Estes recipientes eram colocados na agua, onde flutuavam e logo se afundavam uma vez que houvesse passado um determinado espago de tempo. Desta forma se podia sincronizar em pequenissimas unidades de medida a afluéncia de determinadas quantidades de gua aos campos ¢ jardins. (...) Estas formas ocas se encontram nos alicerces das culturas antigas. Elas foram encontradas na China, no Egito e nas ruinas da Babilénia."*S Nas clepsidras, de fato, nés podemos encontrar plasmada esta sutil dialética entre 0 poder social emergente € a sua dependéncia frente a um poder maior, externo ao seu controle. Sao os instrumentos em que se encontram tanto a medigdo ¢ leitura do tempo césmico, quanto a crescente transformago € poder da sociedade sobre o seu meio, da sociedade que comesa a criar 0 seu préprio tempo. Partindo Gos elementos mais rudimentéres de medigio baseada na dgua, gradualmente vao-se criando artefatos cada vez mais complexos e elaborados, desembocando em complexos autématas que nao s6 permitiam uma leitura das horas, como também, ao pér em movimento ponteiros, figuras, sons, etc. eram um ‘estemunho tanto do engenho do seu criador, quanto do poder social da cidade, do estado ou do império em que foram criadas. "Um relégio deste tipo, que indicava corretamente as distintas longitudes das horas em cada estagao do ano, jé tinha sido construido para o faraé Amenéfis 1" "A mais antiga conhecida ¢ aquela conservada no museu do Cairo, construida por Amenofis III ha trés mil e quinhentos anos atris."*” "Dizem que quem introduziu na Grécia a primeira clepsidra, por volta do ano 400 a.C., foi Plato. Tinha que ser um instrumento bastante avangado, ja que se conta que ele despertava com sons de flauta aos discipulos do fil6sofo. (...) Os engenhosos relogios de 4gua construidos por Ctesibio © pelo seu discipulo Heron, descritos por Vitnivio, foram sem divida obras mestras que causaram espanto. Ctesibio tinha uma oficina no século II antes de Cristo. Tomnou-se famoso, principalmente, 0 seu relégio anual, que tinha a forma de uma coluna e sinalizava nfio s6 os meses, semanas, dias ¢ horas, como também muitos outros dados astronémicos. Um cupido que se apoiava na coluna derramava lagrimas, como se estivesse chorando pelo tempo que se perdia ao amor. Estas ldgrimas nao se derramavam inutilmente, no entanto, ja que conduzidas por finos tubos iam levantando a outro mancebo que com uma varinha indicava as horas. .) Os romanos nobres tinham «escravos das horas», que de vez em quando iam para a praca do mercado para informar a hora que indicava af @ clepsidra. (..) César levava nas suas campanhas uma clepsidra de viagem. (..) Das épocas mais istintas nés conhecemos relégios de agua cujo verdadeiro sentido quase desaparece debaixo da multiplicago de elementos decorativos. Existem entre estes relégios obras de grande valor que os Ibid., pp. 51-52. “6 Janger, op. cit. p. 52. principes se davam entre si como presentes, como por exemplo a clepsidra que o Papa Paulo I deu ao rei dos francos, Pepino o Breve, ou que o Califa Harin al-Rasid deu ao imperador Carlos Magno. Este relogio dado a Carlos Magno lancava pedras contra um «sino-timbale» e o mimero de pedras langadas indicava as horas passadas. Ao mesmo tempo saiam por uma janela de latao doze cavalheiros que, com golpes de langa, fechavam outras tantas janelas."“°* De fato, em uma constante na histéria humana desde entio, encontraremos os aparatos de medigao do tempo mais sofisticados ¢ complexos nos centros de poder politico ¢ social, tanto signos quanto o fundamento destas civilizagdes ¢ impérios. Partindo das primeiras civilizagdes entre o Tigris e o Euftatis, passando pelo Egito, Grécia, Roma, China, a civilizago arabe, até os dias atuais, podemos ver como a supremacia politica e militar encontra-se associada a uma supremacia na construgdo destes artefactos construidos para medir ¢ capturar 0 tempo. Sendo todas as culturas pés-neoliticas herdeiras do tempo solar, como vimos, uma primeira diferenga notavel e central para a compreensio da deriva cultural que desembocou na visdo do tempo mecdnico moderno podemos encontrar na comparagao que se faz entre a visdo grega classica ¢ a visto hebraica arcaica dos astros. "Enquanto que a nogdo ocidental do tempo é quantitativa, na nocdo hebraica predomina o elemento qualitativo, Assim como os Gregos, os Israclenses determinavam 0 tempo por meio do sol ¢ da lua. Porém, enquanto os Israelenses consideravam a sua radiagao (cles falavam de lumindrias: Gén. 1, 143s; Ps. 136,7), 08 Gregos punham énfase no movimento regular (por isso eles falavam de corpos celestes). Isto prova que para os primeiros o tempo era um objeto da experiéncia, enquanto que para os tltimos um objeto matematico. Este cardter concreto, experimental do tempo, nao se expressa apenas na identificagfio da luz com o dia, das trevas com a noite (Gén. 1,5), mas também de precisar 0 tempo como «quando 0 sol ou o dia se esquenta» (Gén. 18, 1; 1Sam. 11, 9.11; 2Sam. 4, 5; Néh. 7,3), «na brisa do dia» (Gén. 3,8), «ao por do sol» (Gén. 15, 12.17). Da mesma forma outros fendmenos naturais caracterizam € determinam o tempo (...). A auséncia da nogdo quantitativa do tempo est confirmada pelo fato que sé tardiamente os judeus dividiram o dia em horas. Em fungdo da forma especifica da estrutura da nogdo hebraica do tempo, tal ato ou evento determinado ndo convém ou no pode ser possivel a qualquer momento. Pelo contrario, cada um tem o seu proprio tempo (...)."% Neste sentido "os gregos, apesar de recorrerem a instrumentos criados por outros, os integram em um sistema inteiramente novo. Na Grécia arcaica os fonios tomam alguns conhecimentos dos povos * antali, op. cit, p. 54. * Tbid., p. 43, 46-47, 44, 44 € 46. “© Verbete "Temps" do Dictionnaire Encyclopédigue de la Bible; Tumhout-paris: Brepols, 1960, pp. 1809-1811. Citado em ‘Andrade, op. cit, p. 170. 11 vizinhos, em especial dos Babilénios. Mas a astronomia grega marca rapidamente uma ruptura com a astronomia das religides astrais. Os fisicos de Ionia, como por exemplo Anaximandro, propdem de fato, dentro de uma concepgdo geral do mundo, considerar-se que 0 espago nfo é mais mitico e sim geométrico, definido basicamente por relages de distincia e posigdo. Esta nova concep¢io astronémica, resultante de uma busca de inteligibilidade, esta em relagao direta com o surgimento da M0 polis gtega e com o processo de dessacralizacao e racionalizagao da vida social e do calendario. esta mudanga no contexto, que desemboca nao sé numa concepgao nova do tempo, como também numa forma nova de organizagdo social e de relacdo da sociedade com o seu meio. No mundo grego antigo uma série de clepsidras e aut6matos apontam para o emergente poder, controle e engenho social. Esta evolugdo, no entanto, apesar de jd apontar para uma concepgdo abstrata e quantitativa do tempo e para uma crescente importancia do homem como medida de todas as coisas (e assim da producdo social do tempo), representa todavia um mundo inteiramente diferente do mundo modemo que se construiré, como veremos, em tomo do relégio mecdnico. Apesar de nestes artefatos ¢ autématos antigos os elementos bisicos da técnica moderna jé podem ser identificados (desde 0 uso de fontes energéticas inanimades como 0 vapor ou a transmissGo desta forga motriz "pela palanca e em especial pela roda ou «palanca continua»), estes, como o coloca Jiinger, "pertencem ao mundo das marionetes e brinquedos, ao mundo das colegées de curiosidades. Portanto também os seus aparelhos movidos pela presso de ar e do vapor no podem ser considerados precursores da nossa atual maquina de vapor, como as vezes se lé, Nao si0 um primeiro esbogo, sao floreios finais. As nossas maquinas de vapor tém como pressuposto um sentido fundamentalmente diferente da dindmica. Apesar de conhecerem a presstio do vapor e do gas, os antigos foram incapazes de chegar a partir deste conhecimento até a méquina a vapor € 0 motor atual, assim como os chineses, apesar de estarem familiarizados com a polvora, foram incapazes de chegar, a partir dela, até as nossas armas de fogo de largo alcance. (...) Cometemos um erro légico ao crermos que o espirito inventivo de entio esteve a ponto de tocar forgas como a do vapor, a eletricidade e a pélvora e que palpou com suas mios fechaduras de portas fechadas. O que havia ai no eram portas e sim paredes, muros e um tabu impenetravel. Por outro lado, ai onde havia portas ¢ acesso a mundos que se tornaram estranhos para nds, o tinico que vemos sto vinhetas, “tal op. cit, pp. 52-53. A citagdo final é de Jean-Pierre Vernant; Mythe et pensée ches les Grees; Maspero, 1965. “" Sunger, op. cit, p. 104. Como coleca este autor, "o que corresponde & esséncia da maquina é mais precisamente 0 smecanismo, a roda motriz, a engrenagem. Vitruvio jé definia maquina como «um instrumento composto por varias pesas..que funcionam por um mecanismo fundado no movimento circular das rodas.(..) a combinag&o de varias rodas para formar uma engrenagem € muito antiga." Ibid, pp. 103-104 192 Para a cultura néo so menos importantes as limitagdes que os inventos (...).Um estilo € definido tanto pelo rechaco de certos sons, cores e formas, como 0 uso € a escolha de outras."*? Tratam-se, como veremos com mais detalhe no capitulo seguinte, de dois mundos separados por duas concepedes da dinamica temporal e duas formas radicalmente distintas de medir este tempo. No outro centro de transformagées neoliticas da antigtiidade, podemos observar que "na China a medigao do tempo s6 utiliza tardiamente o saber grego. Ao lado dos quadrantes astronémicos, que organizam os calendarios, para medir 0 passar do tempo se utilizam, até 0 século V, principalmente velas."3 "Depois, 0 Império Chinés recupera o conjunto das inovagdes gregas e mugulmanas. Maestros do calendario e da terra, os imperadores nutriam 0 seu prestigio pela sofisticagao dos seus instrumentos de medir o tempo, dos quais o espeticulo permanecia secreto. As estétuas articuladas e os relégios hidréulicos passaram ai por um desenvolvimento fantastico. (...) No século VI relégios astronémicos de gua remaredveis sfio construidos pelos astrénomos Thao Hung Ching e Keng Hstin. Eles davam conta do movimento da abébada celeste. Em 721 o imperador Hstian Tsung, descontente com a imprecisio na previsio das eclipses, pede a um monge budista, Yi-Xong, que crie um novo calendério astrondmico. Depois de quatro anos com o engenheiro de armas Liang Long tsan, este apresenta um mecanismo que permite 2 determinagdo exata das fases da lua. (..) Este relégio hidromecanico parece ter tido o primeiro mecanismo de escapo nao inteiramente hidraulico. Ao longo dos séculos seguintes os Chineses, sob a pressio dos seus imperadores avidos por dominar o calendério, continuam aperfeigoando os rel6gios astrondmicos (...)- O saber chinés avanca ainda até o século XI ¢ 0 seu apogeu situa-se, sem diivida, no momento em que se constr6i o relégio denominado de Su Sung, em 1090. Ele funcionaré por trés séculos no secreto da Manso do Calendario dos imperadores. Tendo a forma de uma torre de uma dezena de metros de altura, coberto por uma esfera de bronze acionada mecanicamente, ele indica as horas do dia ¢ outros «momentos especiais» do dia e da noite. No interior da torre, um globo mével mostra as estrelas (...). © conjunto do sistema funcionaré gragas a uma roda cujo movimento, provocado pela gua, estava controlado por um escapo mecdnico: a roda movia um dente a cada quarto de hora Utilizando © primeiro escapo mecanico conhecido, este relégio representa, sem duivida, 0 ponto culminante dos calendérios astronémicos hidréulicos."""* *° Ibid, pp. 106-107, © anal, op. cit, p59. + Thid, pp. 60-62, citando como fontes Joseph Needham: La Science Chinoise et 'Occident; Paris: Seuil, 1973 J. Gimpel; La Révolution Industrielle du Moyen Age; Paris: Seuil, 1975. Para uma reprodugio deste reldgio e do mecanismo de escape tmpregado vide as fig, 3 € 6 de Landes, op. cit, entre as pp. 236 ¢ 237 e para uma discussio mais detalhada sobre a criag0 © as caracteristicas deste relégio, vide nesta obra as pp. 17-19 e 31 e John H. Combridge; The Astronomical Clockwtowers of Chang Seu-Hsun and his Successors, A.D. 976 to 1126; in Antiquarian Horology 9 Junho 1975), pp. 288-301 193, Esta reapreciagéo do conhecimento chinés, em grande parte devida aos estudos de Needham,*" mostra-nos claramente como diferentes dialéticas sociais desembocam em diferentes realidades ¢ dindmicas historicas ou, para seguir na nossa terminologia do capitulo anterior, como de diferentes derivas histricas, da interagao entre as distintas dimensGes ¢ dindmicas, emergem quadros histéricos tanto particulares, tinicos e irrepetiveis, quanto irreversiveis. A partir de uma concep¢ao linear ¢ determinista da historia, fica de fato dificil compreender como os chineses (¢ também a civilizagao {slamica) seriam, poucos séculos depois, superados ¢ dominados pela sociedade ocidental européia. "A Europa medieval era tudo menos o lider cientifico e industrial que um dia viria a ser. Particularmente na relojoaria ela estava muito por trés da China e do IslAo. (...) Por que a ciéneia surgiu na Europa e nao na China, que parecia muito mais preparada para isso? A questéo € particularmente pertinente se pensarmos que a relojoaria era apenas uma dentre diversas éreas nas quais a tecnologia da China medieval estava mais adiantada que a da Europa. Foi a China, depois de tudo, que nos deu o papel, a Pélvora, 0s tipos moveis, a porcelana e outros produtos importantes e engenhosos.""6 “Joseph Needham; Science and Civilisation in China; Cambridge: Cambridge University Press, 1965 e Jospeh Needham, Wang Ling e Derek J. De Solla Price; Heavenly Clockwork: The Great Astronomical Clocks of Medieval China; Cambridge: Cambridge University Press, 1960. Para uma apreciagao desta contribuigdo, vide Landes, op. cit., pp. 20-23 andes, op. cit, pp. 12 € 23. 194 Cap. U1: Tempo Mecanico e a Sociedade Moderna "O relégio, nao a méquina a vapor, € a maquina clave da era industrial moderna. Em cada fase do seu desenvolvimento, 0 relégio é tanto o fator mais marcante quanto o simbolo da méquina, Mesmo hoje em dia, nenkuma méquina é tao onipresente. (..) Na sua relagao com quantidades determinéveis de energia, a normalizacdo, a acdo automética e, finalmente, com 0 seu produto especial, 0 tempo preciso, o relégio foi a méquina mais avangada da técnica moderna. E, em cada periodo, ele permaneceu na lideranga: ele marca uma perfeigéo & qual as outras méquinas aspiram. (..) Além disso, 0 relégio é uma méquina cujo ‘produto! so segundos ¢ minutos: pela sua prépria esséncia, ele dissociou 0 tempo dos eventos humanos, ajudando a criar a crenga em um mundo independente de seqtiéncias matemédticas: 0 mundo especifico da ciéncia.” ‘Lewis Mumford*”” “” Lewis Mumford; The Monastery and the Clock; in Donald L. Miller (Ore): The Lewis Mumford Reader; Athens, Georgia: The University of Georgia Press, 1995, p. 326 195 Illa. Tempo abstrato: a produgdo mecdnica dos 'novos tempos’ "O que segue é uma tentativa de considerar-se tudo isso sob um outro dnguio, de selecionar algumas preocupagées atuais = sobre o tempo e a historia e a cultura, sobre o presente como mudanga, ea historia como cultura - ¢ submeté-las a uma outra perspectiva: a perspectiva que é melhor resumida pela frase a politica do tempo histérico. (.. O estudo histérico das formas culturais deve ser repensado no interior do quadro de filosofias e politicas do tempo concorrentes.” (Peter Osborne)*® Com a civilizagfo chinesa e suas clepsidras e observatérios astrondmicos no centro da cidade proibida - no coragao do poder imperial - de certa forma encontramos uma das formas mais acabadas de uma autopoiesis social organizada em torno do tempo solar e do tempo césmico. Deixando de lado as peculiaridades dos seus distintos momentos histéricos e as suas particularidades regionais,“!? encontramos na civilizagdo chinesa os elementos basicos que caracterizaram estas civilizagées solares: uma nogdo de tempo extemo, linear, central e tinico, que se articula a uma forma particular nio sé de organizagio social (hierarquizada e centralizada), como também desta com o seu meio biofisico, 0 modo agricola de produgao e transformagao do meio. © homem, através da sua capacidade de medicdo © previsdo temporal, ergue-se como depositério de um poder que, no entanto, segue exterior & sociedade, um poder que the é delegado a partir de um centro do qual tudo provém: o tempo solar € a sua contrapartida terrenal, o poder do imperador. Neste sentido, nestas sociedades a fungo dos astrénomos/astrélogos era "de estudar e predizer ‘os movimentos dos corpos celestes e de compilar efemérides (descrigdes tabuladas destes movimentos) "© Peter Osbome; The Politics of Time: modernity & avant-garde; London: Verso, 1995, pp. VIII e IX. De fato é esta ‘tentativa de considerar a modernidade a partir desta perspectiva, no que Barbara Adams denominou ‘a guinada temporal’ (the temporal turn), que esté no centro da nossa discuss8o aqui e da discussdo dos autores que nos servem de base para esta apreciagdo. Vide Barbara Adam, op. cit, cap. 7, pp. 149-175. “54 China, no final das contas, ndo era uma sociedade estitica e imutavel. No longo espago de tempo de alguns milénios, ela viveu alternancias entre uma rigida centralizagao e fragmentagao politica, expansao territorial ¢ invasdes desde fora, governantes nativos e conquistadores estrangeiros, paz ecuménica e guerras cvs. Além disso, em nenhuma sociedade, as keis e as priticas so congruentes, Dados locais, por exemplo, nos falam do desenvolvimento, sob a dinastia Tang, de balrvos extra-murais (faubourgs) que escapavam de alguns destes controles rigidos. Também falam da instituigao de um mercado notumo no século VIII na capital. Sob as dinastias Sung (960-1279) e Mong6l (1280-1338), floresceram grandes 196 que pudessem servir de guias para a ago. Havia um tempo para semear e um tempo para colher, um ‘tempo para brigar ¢ um tempo para parar de brigar, um tempo para ter relagdes sexuais com a imperatriz e um tempo para se acasalar com uma concubina. E estes tempos estavam escritos nas conjungdes das estrelas, dos planetas e no movimento do sol e da lua. Nas palavras de Su Sung, «aqueles que realizam observagdes astronémicas com instrumentos no esto apenas organizando um calendério correto para que os bons movimentos possam ser levados a cabo, mas também esto predizendo boa e md sorte ¢ estudando os bons e maus resultados decorrentes da agdo.»"*”° Ou seja, o destino das diferentes dialéticas historicas, mesmo se cada vez mais visto como obra da sociedade em sua crescente transformagao do meio, é representado como uma dadiva divina, como o resultado no mais do respeito 4s miltiplas temporalidades ¢ dinémicas de uma physis animada por miltiplas energias e espiritos (como vimos nas culturas nao agricolas), mas sim da conformidade aos designios de um tempo central, de uma forga que a tudo comanda: o poder solar divino. E deste cardter dependente que podemos compreender a importincia de se construir reldgios e calendarios precisos. "Que diferenga faz se a determinagdo do solsticio esté errada em uma hora, varias horas ou mesmo um dia? Em principio, muita, De fato, a propria legitimidade do imperador repousava na harmonia das suas decisdes ¢ agdes com os padres do cosmos. Na prética, no entanto, havia campo para erros, enquanto estes no fossem manifestos. wl .) O critério, em outras palavras, era mais politico do que cientifico. De fato, para a coordenagao e organizagdo da atividade agricola, a preciso temporal que se necessita pode flutuar dentro de uma margem relativamente ampla e, além disso, tradicionalmente, o planejamento temporal se baseava em uma série de outros indicios temporais (como as fases da lua, ciclos de chuvas e o clima, o préprio processo de desenvolvimento dos cultivos e dos animais, etc.), fazendo com que a aparéncia de exatiddo fosse muito mais importante que a exatidéo em si, o que explica também 0 monopélio imperial e o secretismo que rodeava as medigdes astrondmicas. Como coloca Landes, "na China o calendario era uma prerrogativa de soberania, da mesma forma que o direito de cunhar moedas. O conhecimento do tempo e das estagdes corretas era poder, ja que era este conhecimento que regia tanto os atos cotidianos, quanto as decisbes de Estado. Cada imperador inaugurava 0 seu reino com a promulgagdo do seu calendario, muitas vezes diferente do calendario do seu predecessor. Os astrénomos da corte eram as tnicas pessoas, em principio, habilitadas a empregar instrumentos astronémicos e instrumentos de medigdo do tempo, assim como de cidades comerciais, centros de negécios mais que meros centros administrativos, mais ricos e dindmicos que qualquer coisa conhecida pela Europa de entdo." Landes, op. cit, p. 27 © id, p. 29. Citando Su Sung in Needham et.al, op. cit, p. 26 ©" Landes, op. cit, p. 32 197 se engajar em estudos astronémicos."™ E também esta importdncia politica da medida do tempo que vai dar nfo s6 os enormes logros obtidos na construgo de clepsidras, simbolos de status e prestigio, como também os seus limites, jé que no se constroem verdadeiros canais de transmissio do conhecimento de uma gerago e de um reinado ao outro, uma vez que o monopélio do conhecimento e da determinag&o da sua legitimidade € mais importante que o proprio conhecimento.** Com 0 contato da civilizagao chinesa com a civilizago arabe, uma série de conhecimentos e téonicas chinesas, incluindo algumas relativas 4 construgio de clepsidras, foram transmitidas a esta liktima. E ¢ prineipalmente por intermédio dos arabes que estes conhecimentos chegaram a Europa, seja diretamente (basta lembrar que algumas das mais importantes clepsidras mugulmanas se construiriam na peninsula ibérica), seja pelo contato entre estas duas culturas. De fato, "os mugulmanos estavam nnteressados em conhecer 0 tempo, mesmo que fosse s6 por razdes religiosas, ¢ eles adoravam construir claborados relégios de agua que contavam as horas com sons ¢ espetéculo - relégios muito além de qualquer coisa que a Europa medieval pudesse construir. Quando Harun al-Rashid, o legendario Califa de Bagdé, quis impressionar a Carlos Magno, ele enviou um destes relégios maravilhosos. Era a atragao da corte franca, e s6. Ninguém tinha a coragem ou a habilidade para copia-lo."*** Apesar deste atraso tecnol6gico relativo da Europa, tanto em relagao civilizagao chinesa quanto 4 civilizagdo islamica, foi desta primeira que surgiu uma revolugdo na forma de se conceber e medir 0 tempo, a revolugo mecanica, compardvel, quanto 4 sua importincia e conseqiiéncias sobre a autopoiesis social humana, & primeira transigio que descrevemos do tempo milltiplo e sistémico a0 tempo solar. Para compreender esta transig&o, um primeiro elemento importante a considerar € que, apesar do relogio mecdnico servir-se e apresentar uma série de elementos encontrados nas clepsidras, nio se trata de forma alguma de uma evolugdo ou aperfeigoamento destas. Assim, apesar das clepsidras apresentarem uma crescente sofisticago técnica e uma série de elementos mecanicos, simbolos de um crescente poder social, estes sd ai apenas elementos acessérios, secundérios, enquanto que no relégio mecénico constituem a sua propria esséncia. As rodas, palancas ¢ engrenagens nas clepsidras servem para indicar um tempo dado por um fluxo natural. © homem com suas criagdes apenas transforma e ‘decora’ esta medida dando mostras do seu engenho. Em contraste, "a modificagao causada por nossos relégios nao poderia ser tao significativa se fossem apenas maquinas que medem tempo. Mais determinante é o fato de que sejam maquinas que criam tempo, que produzem tempo."*75 ** Junger, op. cit. p. 148. 198 O rel6gio mecnico "foi um dos grandes inventos realizados pelo homem, um invento mais revolucionario que o invento da pélvora, a impressora e a maquina a vapor. Foi um invento mais rico em conseqtiéncias do que o descobrimento da América. O invento do relégio de rodas € um signo externo de decisbes que espiritos solitérios tiveram que tomar em suas celas em tomo do ano mil e que, ainda hoje, mantém a sua vigéncia. Um signo externo de uma poderosa abertura de caminhos novos. Aqui foram vistas novas terras. Em comparagdo com aqueles espiritos, inclusive descobridores como Colombo e Copémico sao simples executores."*?° "0 relégio mecénico encontra-se mais precisamente naquele lugar em que se poem as primeiras pegas de um quebra-cabega. Isto é que & assombroso nele. A tabela em que se iriam registrar os nossos inventos e descobrimentos ainda carecia de figuras ¢ nomes no momento em que comegaram a dar voltas as rodas do relégio mecdnico. © toque regular do relégio de péndulo deu entrada & monotonia mecénica, que ¢ inerente, como uma das suas emanagdes, & nossa técnica, e que, sem diivida, penetra na habitagdo do leitor que est lendo esta passagem, por mais tardia e solitdria que seja a hora em que 0 faga, © Ocidente também no conheceu uma técnica prépria até que lograsse o seu primeiro estilo autdnomo, o gético. Até entdo néo possuia meios préprios que se diferenciassem dos meios da técnica antiga ¢, particularmente, da romana - inclusive sem diivida nenhuma estava em um estado de decadéncia comparativamente aos séculos I e II do império romano, cheio de sélidas ¢ poderosas - criagdes.” Para compreendermos a radicalidade nova deste tempo mecénico, devemos olhar para o seu coragao, a esséncia mesma do funcionamento de um relégio mecanico, que ¢ 0 seu mecanismo de escapo. Este mecanismo, como vimos, ja parece ter estado presente na clepsidra construida por Yi- Qong no século VIII e reaparece em clepsidras subseqientes como na famosa clepsidra de Su Sung no século X1.* Porém aqui este mecanismo - como os demais mecanismos mecdnicos e os autématos que aparecem associados as clepsidras - era meramente acessério, uma mancira de permitir uma leitura discreta do tempo dado, no entanto, pelo fluxo da agua. Sem entrar nos detalhes técnicos dos diferentes mecanismos de escapo criados pelo homem, cumpre apenas ressaltar que 0 escapo consiste, basicamente, em um mecanismo capaz de reter um movimento por um determinado periodo, liberando-o para novamente reté-lo, Permite transformar um movimento continuo em um movimento fragmentado e, simultaneamente, permite controlar este 8 Tbid., pp. 76-77. © Bid, pp. 122-123. Attali, op. cit., pp. 60-62 e, para uma descrigo mais detalhada deste escapo e de outros utilizados nos relogios ‘meclinicos, vide Landes, op. cit, Figs. 3-26 entre as pp. 236-237. 199 movimento. De fato, em todos os relégios que no s4o um ‘simples espelho de um movimento extemo! (como 0 relégio solar) a busca de uma medida uniforme do tempo passa pela necessidade de controlar a forga que 0 anima, uniformizando-a. No caso dos relégios teliricos (como a clepsidra, 0 relégio de areia € os primeiros relégios mecdnicos, com pesos) o problema estava em regular 0 movimento irregular e acelerado que rege a queda dos corpos. Porém, enquanto nos dois primeiros "a caida livre da matéria € regulada por meio de passagens estreitas, de tubulagGes (...), mediante a invengio do escapo a mencionada solugdo conduziu a uma ofensiva nova - e tinica no seu género - do espirito humano contra o tempo A agdo do escapo consiste em sujeitar, com sua oscilagao alternada, os dentes da roda do relégio ¢ impedir, assim, que esta roda, seguindo a forga do peso motriz, gire livremente. Um artificio unico em seu género consegue que o movimento fique suspenso, mas s6 por um instante (..) e cada intervengao que a detém delimita uma unidade de tempo...) Em todos os demais relégios, 0 movimento que mede o tempo é um movimento que vai fluindo € deslizando de forma continua, sem parar; a sombra caminha, a agua goteia, a areia ‘escorrega’, a vela derrete-se, a chama queima e avanea pelo pavio. (...) Sdo relégios que se regem pelos movimentos césmico ¢ elementares. Jé no relégio de rodas 0 movimento uniforme ¢ o movimento uniformemente periddico entrelagam-se para produzir uns ritmos novos que a natureza desconhece. (...) Com este tempo diferente, no entanto, comegam os «tempos novos», comega a idade modema no sentido em que nés a representamos."*?? Enquanto que o escapo utilizado pelos chineses servia para representar quantitativamente, em unidades discretas, um tempo essencialmente fluido e irreversivel, com 0 escapo que encontramos no coragao do relégio mecénico o engenho humano produz (e nfo mede apenas) um tempo abstrato, fragmentado e atomizado. "A esséncia do relogio de rodas consiste justamente no fato de que nele a forga da gravidade fica suspensa, abolida por certo tempo. Com o relégio de rodas se ousa langar forga da gravidade um daqueles primeiros ataques, novo em seu género, que constituem se no motivo central da nossa cultura, 0 seu tema. E ¢ este tema que separa e diferencia a nossa cultura de todas as demais. O reldgio de rodas ndo € nem um relégio telurico nem um relégio césmico. E uma terceira coisa, algo criado pelo espirito, que nfo da nem o tempo das estrelas e nem o tempo da Terra. O que o *° Janger, op. cit, pp. 111-114, mesmo se, como mostra JUnger em alguns exemplos nas pp. 116-118 e Landes nas figs. citadas na nota anterior, este escapo poder ser feito com distintos mecanismos, além do cléssico movimento altenado do triguete ou do péndulo 200 relogio de rodas dé é tempo abstrato, tempo espiritual.” Nao é um tempo que seja obsequiado como a 0 luz solar ¢ os elementos naturais, mas sim um que o ser humano dé a si mesmo e toma sobre si Podemos ver que nao se trata de um relégio telirico pelo fato de que o abandono subseqiiente do peso como forca motriz (substituindo posteriormente pela mola, a eletricidade, etc.) nao altera em nada a sua esséncia e, de fato, sio inovagdes que de certa forma ja estavam inscritas nesta nova concepgao temporal. Tratam-se apenas de inovagdes que, tecnicamente, permitem uma maior miniaturizagdo, mobilidade e regularidade na medio deste tempo. Neste sentido, a revolugo eletrénica que se iniciou no final do século XIX e que nos introduziu no tempo eletrénico atual, longe de negar a concepeo mecdnica do tempo, marca sua culminagao. Ela marca, de fato, um tempo abstrato e exteriorizado que nao é mais um reflexo do mundo para ser 0 produto de um artefacto humano, produtor de um mundo novo. Ela nos mostra, quase mil anos depois da inveng&o do primeiro relégio mecénico, as profundas transformagées que albergava esta transformaco fundamental na concepedo ¢ nas praticas temporais humanas. **! De fato, com o tempo eletrénico nés podemos ver uma série de retroalimentagdes entre a concepgo ¢ as priticas temporais que, no seu conjunto, pautam a autopoiesis social moderna. Uma vez criado no interior dos laboratérios de comunicagao, a retroalimentagdo entre 0 mundo das comunicagdes ¢ 0 aperfeigoamento do tempo eletrénico foi cada vez mais estreita. Utilizado em uma série de instrumentos de telecomunicagdes, com os avangos da aviagdo na Segunda Guerra Mundial, 0 controle da navegagdo aérea a partir de torres de navegagdo exige uma preciso temporal extrema das comunicagoes e, assim, a utilizago de osciladores de quartzo de forma cada vez mais complexa estandartizada. Com a explorago espacial, esta interdependéncia toma-se ainda mais profunda, caminhando lado a lado os avangos na medigfo eletrdnica do tempo com os avangos na transmissio eletronica desta informagao. A partir desta dialética, "criam-se enormes redes de difusio de um tempo universal, a partir de guardides do tempo cada vez mais precisos. Uma transmissio instantnea do tempo unifica o espago ¢ © Janger, op. cit, p. 82. “Lembremos que espiritual aqui se refere ao fato de que é produto do espirito humano, ja que a palavra alema Geist, espirito, tem, como neste caso a que se refere JOnger, @ conotagdo de Razdo € ndo de algo transcendente ¢ mistico, como no caso da palavra Spiritualitat. Para a criagao do tempo eletrénico, como nos mostra Attali,jé em 1880 Pierre e Paul-lacques Curie provaram que "um pedago de quartzo(..) colocado em um circuito elétrico a vcuo e sob temperatura constante vibra 32758 vezes por segundo, como uum péndulo muito rapido.” Porém foi sé "em 1925 que (...) pesquisadores do laboratdrio Bell nos EUA criaram o primeiro oscilador de quartz. (..)Sinal dos tempos, foram engenheiros de comunicagdes e ndo relojoeinos ou ‘engenheiros mecéinicos que o eriaram. (..) Para ter um relogio de quartzo completo, era necessério ligar este oscilador a um sistema capaz de alimentar estas vibragbes, conté-las e afixé-las em um mostrador. (..) Podemos considerar a Conferéncia Intemacional de Cronometria de Paris, em setembro de 1969, como a data do nascimento da industria de relégios @ quartzo. ‘ela se apresenta o primeiro relégio de série utiizando um quartzo de alta freqhncia, a 2,4 Mhz, com a forma de ums lente de 0,7mm de espessura e 11 mm de dimetro,(... Toda a industria de relégios foi sacudida em poucos anos. Assim como o 201 organiza uma sincronizagao planetéria que desarticula a organizago da maioria dos calendérios. A partir dos anos 50, as freqiiéncia de radio geram redes de medigéio do tempo sincronizaco a menos de um milésimo de segundo nos aeroportos e depois para os satélites. Tanto para um quanto para outro, um erro de um milésimo de segundo representa varios metros e, portanto, erros inaceitaveis. Posteriormente, @ interconexdo internacional de diversas redes de troca de informagio exige uma precistio crescente de data em dois lugares distantes milhares de quilémetros um do outro’ inicialmente a comunicagdo por rede de televisdo e, particularmente, a criagao do sistema de Eurovisao em 1953, exigem uma simultaneidade de decisdes ao milésimo de segundo sobre areas continentais. A interconexdo dos grandes computadores das grandes empresas sobre o territério americano em 1960 ea partir de 1970 através do Atléntico, supe uma preciso ainda maior. (...) As primeiras experiéncias de sincronizagao de relégios por satélite foram feitas em 1960 por Telstar. ..) Em 1965 a preciso passa a ser de um décimo de milésimo gragas ao satélite RELAY II, podendo-se observar 0 microsegundo em um relégio em movimento. A defini¢do oficial do tempo a partir do movimento médio do sol nao é mais suficientemente precisa. A do quartzo também no. Em outubro de 1967, na 13* Conferéncia Geral dos Pesos e Medidas, o sistema intemacional de medidas define o segundo como «a duragao de 9.192.631.770 periodos da radiagao correspondente A transigo entre dois niveis hiperfinos do estado fundamental do césio 133%"? Desta forma, herdeiro da revolugo mecanica da concepsdo do tempo, hoje em dia, "em um sombrio laboratério de Bonn, encontra-se um cilindro de metal em forma de submarino. Ele tem cerca de trés metros e repousa confortavelmente em uma moldura de metal, rodeado de fios, tubos ¢ mostradores. A primeira vista, o conjunto parece o interior de um gigantesco motor de automével. De fato € um relégio - ou melhor, o reldgio. © aparelho de Bonn e uma rede de instrumentos similares a0 redor do mundo, em seu conjunto formam ‘o relégio padrdo'. Os instrumentos individuais, dos quais o modelo alemdo ¢ atualmente o mais preciso, so reldgios atémicos de césio. Eles so continuamente controlados, comparados, ajustados e melhorados através de sinais de rédio por satélite ¢ estagdes de televisdo, para atrair ¢ conduzi-los a uma sincronizag&o quase perfeita. No Centro Internacional de Pesos ¢ Medidas em Sévres, cerca de Paris, os dados so coletados, analisados e difundidos para um mundo obsessionado pelo tempo. E assim que se produzem os famosos sinais de radio pelos quais ajustamos os nossos relégios."**° ‘ronémetro de Harisson soou a hora da Inglaterra e o cronémetro de Ingersoll a hora da América, 0 de Seiko anunciou o dvento do Pacifico como ‘coragdo' da economia-mundo.” Attali, op. cit, pp. 273, 274, 279 e 280. © Tid. PP. 285-286. ©" Ibid. p. 21 202 cariter abstrato e dissociado da realidade fisica deste tempo fica patente se pensamos que 0 proprio tempo eésmico - base das civilizagdes solares - visto por Newton como etemo ¢ imutivel e © qual se pensava estar reproduzindo com o funcionamento das engrenagens do relégio mecénico, segue, de fato, um caminho de evolugdo irreversivel e de transformacao qualitativa. Assim, s6 para dar alguns exemplos, a0 longo dos milénios 0 ano solar ¢ 0 més lunar observado na Terra vao-se alterando, “Edmund Halley, padrinho do famoso cometa e astrénomo real da Inglaterra no principio do século XVIII observou uma discrepancia sistemética entre as posigdes de antigas eclipses descritas ¢ as arcas de visibilidade prevista baseando-se na velocidade de rotaglo da Terra de entdo, Ele calculou que esta disparidade poderia ser solucionada assumindo uma rotagdo mais acelerada no passado. (..) Immanuel Kant, um camarada realmente versétil, ofereceu a resposta adequada mais adiante no século XVIII. Kant implicou a lua e argumentou que a fricgdo das marés freiou a Terra, (...) Robert Jastrow e M. H. Thompson eserevem: «uma enorme quantidade de energia € dissipada nesta fricedo a cada dia, Se esta energia pudesse ser recuperada para outras fungGes tteis, ela seria suficiente para suprir varias vezes as necessidades de energia elétrica do mundo inteiro, Esta energia, de fato, se dissipa nas turbuléneias das éguas costeiras, além de um pequeno aquecimento das rochas na crosta terrestre.» Mas a fricgGo das marés tem outro efeito, virtualmente invisivel na escala das nossas vidas, porém um fator importante na histéria da Terra. Ela atua como um freio da rotagio da Terra, reduzindo a sua velocidade de rotagao na tranguila fragdo de dois milésimos de segundo por século ou 1/50.000 segundos por ano.(...) Em segundo lugar, enquanto a Terra perde momento angular 2o diminuir a sua rotagao, a Lua, obediente & lei da conservagdo do momento angular do sistema Terra-Lua, deve ganhar o que ¢ Terra perde, A Lua faz isso orbitando em tomo da Terra a distancias cada vez maiores. Em outras palavras, a Lua sempre esteve se afastando regularmente da Terra. (..) Sea Lua esteve muito mais préxima da Terra antes, a sua érbita deveria ter sido muito mais curta que atualmente. uae O sistema solar, de fato, como vimos nas idéias de Poincaré retomadas por Prigogine, representa fem seu conjunto um sistema caracterizado por seu cardter evolutivo, irreversivel € parcialmente imprevisivel. O tempo eésmico resultante para os observadores terrestres, assim, no pode ser considerado como uma unidade homogénea, abstrata ¢ reversivel. Além da tendéncia de longo prazo de uma redugdo no niimero de dias do ano solar (¢ 0 correspondente aumento na duragdo dos segundos, minutos horas) pela redueo da velocidade de rotagdo terrestre, bem como a maior duragéo dos meses 203 lunares pelo maior afastamento do nosso satélite, encontramos uma série de outros fatores (que véo desde a distribuigaio das placas continentais sobre o globo terrestre, passando pelos invemnos no hemisfério norte - em que a neve e a queda da capa de folhas nas drvores reduz a friegdo ¢ assim aumenta a velocidade de rotagio - até os efeitos que tém outros campos gravitacionais do nosso sistema solar sobre a 6rbita terrestre) afetando, em maior ou menor grau, a orbita e a rotagdlo terrestre e assim o ‘tempo c6smico’ medido sobre a Terra. Em oposicao a estes fatos, a defini¢do do tempo newtoniano Pressupde um tempo invaridvel e universal, e no um tempo historicamente varidvel. “Newton inventou, portanto, um tempo rigorosamente neutro, reduzindo o pasado ¢ o futuro, através da sua mecdnica, a0 Unico instante presente. (..) Segundo ele, o tempo escore uniformemente (ele é Incldstico). Além disso, ele € universal, absoluto e invariével, isto quer dizer independente do referencial (0 espago ¢ inert: ele observa 0 tempo passar, como uma vaca observa os trens). O tempo newtoniano €, portanto, um conceito idealizado e alguns puderam glosar sobre as ressonancias as platonianas na sua definigao. Outro elemento de irregularidade temporal é a questo que esta por detras dos anos bissextos, "A causa dos anos bissextos se deve & durago do ano tripico (0 intervalo de tempo que separa dois equindcios de primavera sucessivos), que contém um mimero nfo inteiro de dias solares médios, Este limero, determinado com uma grande preciso pelos astronomos, é de 365,2422, bastante préximo aos 365 dias e um quarto. Esta diferenga explica que desde a antighidade (Jilio César, 45 a.C.) tenha-se adotado como durasao ser aetore: Lar tiple comcidence de Ian 2000; in Le Monde, 2 de ansta de 1999; p |, Ov asticia Papel, sndicnva das relagbes de poder que se escondem por detrés da determinarao do calendério,sparees data determinada tare oajuste a0 “ordenar que o dia psteror 20 dia 4 de outubro fosse ods ‘de outubro. Se escolheu outubro porque era rare rcnos dias santos e outos dias eclesidstics especais.” In G. J. Whitrow: Tiempo en 1a Histéria - evolucion de 2 Ci co ido del tempo y de la perspectiva temporal; Barcelona: Critica, 1990, p. 155. UNICAMP 205 BIBLIOTECA CENTRAL SECAO CIRCULANTE Yo importantes tique-taques com a preciso exigida por navegadores, astrOnomos e pilotos de aviao."7 Se demos aqui este grande salto, relacionando os tempos atuais a esta mutagio fundamental ‘spresentada pela cria¢do do relégio mecénico na passagem do primeiro milénio da era crist&, foi “Penas porque foram ai que as portas da nossa época moderna parecem ter sido abertas, Apesar de esta nova temporalidade, desde entdo, ter passado por um longo processo de maturagdo ¢ cristalizagdo que ‘ardaria diversos séculos em se realizar, o que podemos observar é que 0 que separa esta sociedade feudal, fragmentada, com sua base técnica bastante rudimentéria ¢ os seus primeiros ¢ imprecisos "el6gios mecdnicos sinalizando um novo tempo, da sociedade atual, 6 um longo caminho, porém jé nfo mais um abismo. E desta revolugo na forma de se conceber © medir o tempo que nasce a deriva bistorica moderna ¢ um mundo cada vez mais povoado, entrecértado e entrelagado por uma seenosfera, Fruto da produso exosomética humana, em cujo interior bate este tempo regular da maquina. Sobre ¢ através das vias de transporte € comunicagdo que cruzam ¢ interconectam o nosso globo, circula uma ‘masse crescente de seres, objetos e informagdes, todos pulsando e sincronizados em um ritmo comum. ‘oma rede de satélites cobre hoje todo 0 espago temestre, controlando a distincia os movimento sobre a ‘Sra ¢ @ navegacdo de aviges, misseis balisticos, navios, automéveis ¢ topas. Tanto em tempos de Stsmas, Como em tempos de paz, desacordos temporais de fragBes de segundo poderiam desembocar na ‘ragédia de um avigo comercial que erra seu pouso ou um miss que erra o seu alvo militar F hoje, ndo s6 desde o exterior - de uma retroagio da tecnostfera sobre si e sobre a sociedade humana e o meio - mas do interior da autopoiesis modema bate este tempo mecdnico. Nao 86 satélites ¢ sinais de ridio, mas também microrelégios eletronicos informéticos controlam a seqiiéncia e o funcionamento dos mais diversos instrumentos e aparelhos: motores, méquinas, computadores aparelhos de televisto, videos, eletrodomésticos, elevadores, portas © fechaduras automaticas, Tareapassos ¢ todo tipo de autématos que povoam o meio mo qual se dé a autopoiesis social Contemporanea. Os préprios corpos organicos, pela manipulaglo genética e pela introdugao de biochips Sto levados, cada vez mais, a se conformarem ao ritmo do relégio mecénico. Pequenos desajustes, como o fato de economizar-se os dois primeiros nimeros na programac&o do ano destes calendérios eletrénicos, poderia desembocar em desequilibrios ¢ desajustes imprevisiveis come 0 denominado ‘efeito 2000' na passagem do milénio. Neste sentido, apesar de o ‘temivel efeito! n8o ter se manifestado, néo se trata apenas de uma ironia de que seja em relagdo as novas tecnologias e “ teenosfera em geral que tenha emergido © milenarismo com todo tipo de medos e catastrofismos. Se * Paul Davies; About Time: Einstein's unfinished revolution, New York: Touchstone Book, 1996, pp. 22, 23 e 22 “ovamente, Outro Segundo Bissexo, como agora ocore perodicament, fi adicionado na pessagem do tro, oe 1996.95, 206 antes do final do ano de 1999 especulava-se sobre todo tipo de catéstrofes (indo de acidentes em centrais nucleares € no sistemas de defesa - ou ataque, conforme se queira chamar... = nucleares, até problemas na distribuigdo elétrica, de dgua ¢ demais servigos basicos, sistemas de controle e navegagao dos aeroportos, avi6es, sistemas ferroviarios, elevadores, computadores ¢ bases de dados, cartdes de crédito e um grande ete., a posteriori observou-se nenhum problema, tanto em paises que em SS conjunto investiram mais de US$ 250 milhOes (mais de US$ 100 milhGes sé nos EUA), criando comissées de alto nivel que coordenaram a revisao dos sistemas informaticos bem como plantoes de seguranga nos diferentes setores estratégicos para o caso de alguma ‘emergéncia (j4 que a incerteza € 0 medo perdurou até o iltimo instante), quanto em paises subdesenvolvidos, que por falta de recurso € condigSes téenicas nfo realizaram nenhuma medida importante de prevengio- Por toda parte, desde as grandes empresas que estiveram anos tentando erradicar os possiveis problemas, até as pequenas que deixaram a questio 20 destino, 0s medos pareceram ser to infundados quanto of diferentes movimentos messidnicos que muitas décadas depois do ano mil ainda pregavam © final dos tempos associado & mudanga de milénios. A diferenga bisica, no entanto, é que se n& primeira mmudanga de milénio as forgas do apocalipse eram vistas como sobrenaturais, estando 0 homem a sua mereé, na nossa época 0 responsavel seriam as proprias eriagdes do homem, a sua tecnosfera em cujo coragdo € poros palpita este tempo mecinico que o homem criou ¢ tomou sobre si. Hoje, o homem ja assumiu plenamente o ‘fazer do tempo’, representando-se a si mesmo como dono e artifice do seu destino histérico, éa centralidade que assume o tempo mecéinico para a nossa atual tecnosfera ~ Parte integrante dos programas informéticos que comandam os automatismos do seu fancionamento - que faz com que nfo nos deva surpreender que, em caso de que nao coincida © tempo medido pelos relogios atomicos com o tempo terrestre, prevalega o primeiro como referencial para & autopoiesis social humana jé que, am wm claro caso de retroalimentagdo sistémica, somos cada vez mais dependentes dos sistemas séenigos eriados com 2 intengfio de lograr a nossa liberdade das vicissitudes do nosso meio natural.. TFamdo una cera confusio quanto hora exata em que se deve abrir champanha 207 IIb. Ora et labora: 0 tempo dos mosteiros Nao se sabe quem ideou e criou o primeiro relbgio mecénico. Uma das razses & que "havia Somente uma palavra para relégio na Europa ocidental na idade média: Morologium. Esta palavra Senérica se referia a qualquer tipo de instrumento de medigao temporal, do relégio solar a clepsidra, do relogio de fogo ao relégio meciinico. Assim, quando no final do século XIN aparece um caudal inédito de referéncias a rel6gios, no podemos estar certos prima facie de que tipo de instrumento as nossas fontes estio falando. Serd s6 no século XIV que temos as primeiras descrigdes inquestionaveis de ‘elogios mecanicos - mais precisamente o rel6gio construido por Roger Stoke para a torre da catedral de Norwich (1321-1325); 0 mecanismo astronémico altamente complicado que Richard Wallington "Ene todos estes reldgios' se destacava 0 asirarium de Giovanni Dondi, de Padua, inventado nite 1348-1364. Este complexo instrumento, com os seus dentes finamente elaborados e sua intrincada Sngrenagem, fabricado em bronze, era menor que os primeiros ¢ toscos Telégios ingleses feitos de ferro forjado. O fato de que medisse o tempo era uma questio acidental. Basicamente era uma representacao mecénica do universo, uma espécie de planet -) O instrumento desenhado por Giovanni Dondi insovPorou um calendério perpétuo para todas as festas religiosas,fixas e variaveis, ¢ também indicava ° movimento celeste do sol, da lua e dos planetas, incluindo os movimentos dos n6dulos da érbita da lua, que levava dezoito anos para completar uma Tevolugao completa em torno da eliptica."*? Podemos “er, assim, nestes primeiros relégios mecanicos como eles se articulam as Preocupagées tipicas do “tempo solar’, de determinaso da ordem césmica, e simultaneamente apresentam e personificam uma ‘Nova cosmovisdo, uma nova representagao - mecénica - da realidade, De qualquer forma, "a obscuridade do que Needham denomina ‘um dos mais importantes pontos 4 inflexdo na historia da cigneia ¢ da tecnologia’ foi uma fonte abundante de lendas e especulagao. Por alguns séculos era comum atribuir o invento do relégio mec: ico ao oficial candnico Gerbert, que se 40 Converteu posteriormente no Papa Silvestre II (999-1003), o Papa do mil Neste sentido, se por um lado é verdade que "se o controlador de oscilagdes © 0 escapo mecénico jé eram conhecidos em uma época to precoce como 0 ano 1000, por que tivemos que esperar a aigsoprchn GL Landes, op. cit, p. 53, “? Whitrow, op. cit, pp. 141-142. 208 outros trezentos anos para ver os relogios mecanicos aparecerem nos campandrios e nas torres das prefeituras e igrejas?” Agora, mesmo se a veracidade historica da paternidade de Gerbert é questionavel, como Jembra Jiinger, "ndo ¢ to importante que conhegamos aqui o lugar em que se produziu este invento e o nome do seu inventor, ja que, como ocorre com todos os grandes acontecimentos, € no mito que se foi criando e construindo ao seu redor que devemos ler as coisas que merecem ser sabidas. A pura crénica nos fornece apenas simulacros da realidade."“" "A lenda, como muitas vezes ocorre, é precisa em suas implicagdes, se no nos fatos."“” Neste sentido, a mitologia que se criou em tomo de Gerbert ¢ rica em ensinamentos sobre este novo tempo: "Gerbert foi de fato um sébio de sua geragao. Ele aprendeu matematica astronomia na Espanha, talvez. aos pés de cientistas judeus ¢ arabes, ¢ dai ele adquiriu um fundo de conhecimento e de técnicas que s6 reapareceria no século XIV com as obras de Richard de Wallingford e Giovanni de’ Dondi."“* "Do mito de Gerbert faz parte que se atribua a ele a introdugdo do zero no nosso mundo matematico. (...) Diz-se que, com o objetivo de ganhar poder terrenal, fez um pacto com o diabo. Também se conta que possuia uma cabega e metal fundido, que Ihe profetizava o futuro. Se creia que ele arrebatou o seu dbaco aos sarracenos. O seu conhecimento do mundo antigo se atribuia ao fato de que «sabia encontrar a pista dos tesouros enterrados pelo pagaos»."** Gerbert de Aurillac foi, assim, um destes espiritos entre dois mundos, 0 ago € 0 novo, o metafisico ¢ 0 cientifico, em que saber e poder se confundem e misturam. "A impress causada sobre 0s seus contemporéneos por este espirito to por acima deles deve ter sido extraordindria. Gerbert no s6 dominou o legado da antigiidade de uma maneira, que somente muito depois o dominariam os grandes humanistas, como também com ele se anuncia um pensar e um querer novo. Poderiamos situd-lo entre Boecio ¢ Fausto. E um destes fendmenos que se apresentam entre duas luzes; por isso que 08 juizos sobre ele so to distintos. Uma das caracteristicas novas que aparecem em Gerbert € a importancia que ele atribui a experimentago. Foi um espirito experimental. Realizou experimentos de fisica ¢ utilizou aparelhos astronémicos, musicais e matemiticos construidos por ele mesmo. O seu ébaco - uma méquina de caleular em que se moviam um milhar de figuras talhadas em chifre - simplificou 0 proceso de multiplicar e dividir de tal maneira que foi admirado como um prodigio. (...) Em Gerbert 0 experimento vai mais além do seu simples papel de prova ou confirmago. J4 ndo aparece, como nos antigos, no final do processo de pensar, mas é projetado diante dele. Com ele comega o risco, 0 avango além das fronteiras do mundo antigo. (...) © Landes, op. cit, pp. 53-54. 4" Junger, op. cit, p. 119. “© Mumford 1995, op. cit, p. 325, referindo-se as lendas em tomo de Gerbert * Landes, op. cit, p. 54 209 Pela primeira vez nos encontramos com aquela caracteristica audaz e livre que logo, no curso do milénio seguinte, transforma o mundo neste espetaculo do qual nés hoje participamos com um misto de admirago e espanto. (...) Em Gerbert vemos aparecer 0 primeiro dos nossos grandes magos, ao que seguiriam depois personagens como Fausto, Paracelso, Leonardo ¢ Michelangelo, que se distinguem tanto dos magos do oriente, quanto dos magos da antigitidade."*** Outro aspecto que aparece na atribuigdo a Gerbert deste invento é a sua associag%o ao mundo eclesidstico. "O mosteiro era o bergo de uma vida regulada (...). Se 0 relgio mecénico no apareceu até que as cidades do século XIII exigiram uma rotina ordenada, o habito da ordem em si e 0 sério controle das seqiiéncias temporais ja se haviam convertido quase em uma segunda natureza nos mosteiros. {George Gordon] Coulton concorda com [Werner] Sombart ao considerar os Beneditinos, a grande cordem do trabalho, como os provaveis fundadores do capitalismo originario: a sua regra certamente tirou a maldigdo do trabalho e a sua vigorosa obra de engenharia pode ter roubado 4 guerra parte do seu glamour. Assim nao estamos forgando 0 argumento se sugerimos que os mosteiros - em um momento existiram 40,000 sob a regra beneditina - ajudaram a dar aos empreendimentos humanos a cadéncia e o ritmo regular coletivo das maquinas, j4 que o relégio nao é apenas um meio de medir as horas, mas de sincronizar as agdes humanas."*“6 Atualmente, de fato, existe um relativo consenso de que 0 invento do relégio mecénico esteve intimamente associado as ordens monésticas, em cujo interior se deve ter dado, mesmo se "é provavel (... de que esta idéia brotasse na mente de uma pessoa singular, jd que trata-se de um passo que sO podemos imaginar como originério, no como parte de um process evolutivo - treta-se de uma auténtica mutagao."““” E, portanto, nas caracteristicas destas ordens monisticas, em que 0 seu uso se difundiu, ¢ na particular deriva da concepgao religiosa do catolicismo ocidental, que devemos procurar os aspectos determinantes que vo configurar esta nova maneira de se conceber e de se organizar temporalmente as praticas sociais Além das caracteristicas tipicas de uma visdo monoteista, das transformagdes por que passou este tronco judaico-cristdo ao ser re-elaborado no interior da concepso espago-temporal mais abstrata e “ Janger, op. eit, pp. 127 € 130. “ Thid., pp. 127 € 128. Mesmo se devemos lembrar que a experimentagao como fonte de conhecimento ja aparece na antighidade, pensemos, por exemplo, em Arquimedes na Grécia antiga, o que certamente diferencia este novo espirito é a idéia de um conhecimento livre de barreiras morais e cujo avango se procura como um avango per se e que se traduz em um, saber instrumental, capaz de servir de base para a manipulacdo e transformagao da realidade. Grandes inventos, como o proprio escapo, a pélvora, a impressora, etc. na China e os conhecimentos adquiridos por um Arquimedes, se traduziram sempre em transformases, mais ou menos importantes, porém sempre limitadas e contidas pelo contexto cultural mais amplo em que se deram. Nao se tratava, ai, de um objetivo per se e de criagdes que, ao serem representadas como positivas por si s6, seriam implementadas, subordinando ¢ transformando a cultura por sua vez, como ocorre no mundo moderno. *® Mumford, op. cit., p. 325. “7 Janger, op. cit, p. 120. 210 geométrica da tradigao grega pés-socritica e, finalmente, das diferentes dicotomias inerentes a concepgao religiosa ocidental que vimos no capitulo anterior (homem X natureza, espirito X matéria ea suposta ascendéncia dos primeiros sobre os segundos), é nestes mosteiros que veremos os primeiros passos da transformagio do conceito de trabalho rumo a concepg&o moderna que apontou Eliade: a emergéncia de um trabalho despojado do seu manto ritual e sagrado, de um trabalho puro em que 0 homem, s6, carrega sobre as suas costas o fardo do tempo. Mais do que simples centros de pritica espiritual, como lembra Attali, os mosteiros da baixa idade média apés a desarticulagao do império romano ocidental eram os centros de atividade econémica, poder politico e organizagdo social mais avangados, "ilhas de ordem em um oceano de desordem."*# "O controle do tempo pela Igreja parte do movimento monéstico. Este aparece no oriente a partir da segunda metade do século Ill (...). No ocidente nos principios do século V se desenvolvem os primeiros conventos. (...) No século VI 0 movimento se organiza. Monges errantes e monges eremitas se agrupam em fortalezas econdmicas auténomas, cada vez maiores e mais poderosas, capazes de resistir aos Vandalos e aos servos revoltados. Uma vida quase militar se instaura ao mesmo tempo em que a ordem crista se institui, Um monge, que sera Benedito, edita as regras de funcionamento geral validas, segundo ele, em todas as partes nos mosteiros. Ilha de paz, utopia de um movimento perpétuo com suas atividades ordenadas por um instrumento de medig&o do tempo, o mosteiro, mostrando a sua vida ao exterior, transforma-se, ele mesmo, em um imenso reldgio para ser usado pelo mundo. O seu sucesso ¢ enorme: em dois séculos ele faz a Europa inteira bater a seu ritmo ¢ impde uma nova forma Ge contar as horas ¢ os dias, assim como novas datas pelas quais circunscrever a violéncia. «A regra de Benedito exclui a surpresa, a diivida, o capricho. A inseguranga do mundo ele opde a disciplina e a previsibilidade.»"*? "Pouco a pouco cada igreja, cada mosteiro, cada abadia adota o habito de, gragas ao seu sino, anunciar ao mundo circundante as horas canénicas. O sino edita o novo Tempo de Deus. (..) A influéncia dos sinos sobre o ritmo urbano e rural é enorme. (...) Apoiada pelo poder real, a Igreja busca impor os seus ritmos longos contra os calendérios existentes. Para controlar poder, controlar o tempo é mais do que nunca uma questio vital. © mosteiro impée, assim, pouco a pouco o seu préprio calendario ao campo e as cidades. A Igreja policia e controla os pesos ¢ as medidas. Ela administra os dias e as horas. Em 802 Carlos Magno proibe trabalhar também nos domingos ¢ nos dias de festa determinados pela Igreja. (...) Como os dias tai, op. cit, p. 64 * Ibid, pp. 64-65, Citando Lewis Mumford; Technique et Civilisation; Seuil, 1950. ail reservados a Deus so outras tantas ocasides de oferendas substitutivas dos sacrificios, a Igreja, como outros donos do Tempo de Deus, 08 multiplica ao infinito. (...) No século IX, na Franga, além dos 52 domingos, a Igreja decreta 34 dias feriados."**° Outro aspecto ressaltado para explicar a busca por um tempo homogéneo, abstrato e ‘preciso’, foi a tendéncia de se exigir um ritmo regular, homogéneo ¢ abstrato nas atividades rituais de reza ¢ culto na tradigdo catélica. De qualquer forma, como lembra Jtinger, no devemos sobrestimar esta fungi. "Sem diivida nos podemos formar uma idéia aproximada, que seria mais ou menos a seguinte © primeiro reldgio mecénico nao teria tido um significado pritico, como um significado econémico ou astrondmico, por exemplo. Ele estaria mais ao servigo de uma necessidade sentida no culto: a de observar corretamente as horas de reza. As velhas regras dos mosteiros nos mostram a grande importéncia que se dava ao respeito a hora das rezas e as dificuldades encontradas para logré-lo. Esta uma explicagao para que surgissem os relégios de rodas, mas nfio a fundamentagao da sua existéncia. Desde que existem templos ¢ cultos nos templos, houve dificuldades com as horas. A necessidade que se sentia de resolver este problema péde produzir em lugares distintos e independentes entre si relégios solares, hidraulicos e igneos."**! Além disso, os primeiros relégios mecanicos ndo asseguravam, de forma alguma, uma maior preciso ¢ pontualidade para o culto, jd que longos séculos teriam que passar até que as melhoras téenicas permitissem aos relégios mecdnicos ter a regularidade ¢ a preciso encontrada nas préprias clepsidras do mundo antigo. Galileu, para os seus estudos que marcariam 0 comeso de uma importante via bifurcativa no pensamento ocidental ao abrir as portas para a consideracao puramente matemitica do tempo, utilizou relogios de areia para os seus estudos sobre o movimento pendular e, de fato, a partir destes introduziria um dos grandes aperfeigoamentos do relégio mecanico: o rel6gio de péndulo, com sua maior preciso. Assim também Tycho Brahe, ‘o rei dos astrénomos' ¢ maestro de Kepler, para a claboragao das suas monumentais € influentes cartas astronémicas, se baseava em reldgios de areia, j4 que “na época de Tycho Brahe ainda néo se tinha reduzido a limites tolerdveis a imperfeigdio dos reldgios de rodas."*? De certa forma, esta falta de ‘pontualidade' dos primeiros relégios mecdnicos nio representava um problema em si para os seus objetivos iniciais de regular os ritmos mondsticos. A pontualidade conseguida na vida monéstica estava dada pelo bater dos sinos, que coordenavam e ritmavam as atividades, e estes poderiam igualmente estar baseado em outros indicadores temporais, como observamos em outras culturas. E com a emergéncia de uma cosmovisdo mecanicista e a crescente Ibid., pp. 73-74. *' Junger, op. cit, 120. 212 preocupagio de estudar - e decifrar - a natureza a partir de uma linguagem matematica, que a questo de uma medida homogénea, quantificavel do tempo tomna-se cada vez mais premente. Neste sentido, como lembra Whitrow, "certamente néo ¢ uma coincidéncia que o maior representante da filosofia mecanica no seu periodo de formacdo, o cientista dinamarqués Christian Huygens (1629-1695) - que, no primeiro capitulo do seu Traité de la Lumiére declara que na verdadeira filosofia todos os fendmenos naturais se explicam ‘por razSes mecénicas' - fosse também o responsivel de converter 0 relégio mecnico em um instrumento de precisio. Este avango baseia-se no descobrimento de um processo periédico que podia ser adequadamente adaptado aos propésitos da medida exata do tempo. Como um resultado da reflexio matemética baseada na observagio experimental de péndulos oscilantes, Galileo (1564-1642) chegou & conclusao de que todo péndulo simples tem o seu préprio periodo de vibragio, que depende do seu comprimento (os historiadores da ciéneia concedem agora a prioridade neste importante descobrimento ao cientista francés Marin Maresme (1588-1648). J4 em uma idade avancada, Galileo considerou a aplicagao do péndulo ao mecanismo de um relégio que pudesse registrar mecanicamente o niimero de oscilagdes. primeiro relégio de péndulo baseou-se nas investigagGes tedricas de Christiaan Huygens que, devido as suas observagdes astrondmicas, sentiu a necessidade de uma medig&o do tempo mais exata do que a que se podia dispor antes. (...) O relégio de Huygens incorporava 0 eixo do tipo mével, porém antes de 1670 se inventou um tipo muito melhor, de Ancora, que impedia menos o movimento livre do péndulo."*? De qualquer forma, ao relatar aqui os avangos técnicos na construgao dos primeiros rel6gios mecénicos e os aperfeigoamentos aportados pela introdugio do péndulo, nao devemos perder de vista que, como em todas as transigdes, é a totalidade da dinémica do sistema autopoiético em sua deriva que deve ser considerado. Como nas outras transiges que observamos, desde os primérdios do nosso universo, passando pela emergéncia da vida, da espécie humana auto-reflexiva e a propria transigao ao tempo solar com a revolugio neolitica, no devemos procurar uma explica¢o ou fator Unico para esta transig&o, j4 que o que a caracteriza € a conjungdo de uma série de fatores, a sua interpenetragdo © as suas transformagdes reciprocas, emergindo deste conjunto um quadro novo. As necessidades do culto, ‘pid, p. 202. Para esta discussao, vide tb. pp. 201-210. 45 Whitrow, op. cit, p. 161-162. Como mostra 0 autor no gréfico que ilustra a precisdo crescente dos relogios, na p. 4, 0 primeiro relogio de Huygens levou a preciso difriaa cerca de 10 segundo/dia (contra os mais de 700 segundos/dia dos {eldeios anteriores), precisio melhorada pelos escapos aperfeigoados introduzidos posteriormente, Para esta discussto, vide tb. Landes, op. eit, pp. 116-120, onde este autor precisa que "0 reldgio de péndulo foi concebido por Galileo em 1637 03 antes e realizado com éxito por Huygens no final de 1656. ...) A melhora na performance foi espetacular, baixando de uma vvariagdo de no minimo quinze minutos por dia (..) para dez a quinze segundos/dia. E o mecanismo era to facil de se aplicar {que ndo s6 todos os relgios verticais construidos em todas as partes depois foram construidos desta forma, como também os feldgios existentes foram convertidos em massa E dificil encontrar um rel6gio vertical do periodo anterior que nao tena sido modificado neste sentido.” Landes, op. cit, p. 116, 213 nestes sentido, so um fator a mais que se soma a uma série de outros, como a heranga de uma concepcao geometrizada do espago ¢ do tempo da Grécia classica e 0 proprio momento histérico europeu com a desarticulagio do império romano em que, para os niicleos desarticulados que surgiram, @ propria construgéo de clepsidras segundo os esquemas antigos se apresentava como uma impossibilidade técnica e econémica. E, finalmente e no menos importante, existem as pequenas flutuagdes (microatos histéricos, um dado invento, uma certa aco, etc.) que podem, ao ocorrerem no meio adequado (ser adotados ou apoiados por certos poderes e interesses, etc.) se amplificar e invadir 0 sistema como um todo, alterando completamente a sua ordem e funcionamento, que passa a se dar em um novo patamar... © reldgio mecanico parece ter sido uma destas microflutuagbes, ‘um invento solitério', que encontrou na ordem dos mosteiros um espaco propicio para a sua amplificagao inicial e no campo histérico ¢ cultural da Europa medieval a macro autopoiesis sécio-cultural cujo funcionamento, por sua vez, revolucionaria, dando emergéncia 2os tempos modernos. Os mosteiros ocidentais nao estavam subordinados ou integrados em uma ordem sécio- econémica ¢ militar mais ampla (como os antigos impérios solares), aparecendo ai como um dos pilares, predominante ou nao, de dada ordem social. Eram, pelo contrario, ordens relativamente auténomas ¢ completas em si mesmas. "Os mosteiros eram colmeias de atividade variada, as maiores unidades produtivas da Europa medieval. Irmios, irmaos laicos ¢ servos estavam ocupados em toda arte - na capela, na biblioteca, na sala de escrever (scriptorium), nos campos, no moinho, nas minas, nas oficinas, na lavanderia, na cozinha. Eles viviam e trabalhavam seguindo os sinos. Os sinos grandes soavam as horas candnicas e as grandes mudancas, e o seu repicar se ouvia tdo Jonge quanto o vento pudesse levé-lo. E os pequenos sinos retiniam insistentemente pelas salas ¢ comidas, chamando a atengo dos participantes e sinalizando 0 inicio de uma nova oragfo, ceriménia ou atividade. Tudo isto fazia parte de um proceso mais amplo de despersonalizagao e desindividualizagdo: «sé havia um tempo, o do grupo, o da comunidade». O tempo, em outras palavras, era a esséncia, j4 que pertencia 4 comunidade ¢ a Deus, e os sinos cuidavam de que este recurso precioso, inextensivel, no fosse desperdigado, Os sinos, em poucas palavras, eram os guias/esporas para um trabalho efetivo e eficiente. E este papel mais amplo, indo muito além das vigilias, que pode explicar o maior nivel de pontualidade imposto pelas novas ordens monisticas do século XI e XII. Os Cistercienses em particular eram tanto uma empresa econdmica quanto espiritual (eles no veriam ai uma diferenca), A sua agricultura era a mais avangada da Europa, as suas manufaturas ¢ minas as mais eficientes. Eles usavam extensivamente trabalho contratado € sua preocupagéo com os custos os levava a utilizar sempre que pudessem 214 mecanismos para economizar mao-de-obra, (...) Para um empreendimento como este, relégios e sinos cram um instrumento indispensavel de organizagao e controle."** "«A. preguiga», escreveu Benedito, «é inimiga da alma». A determinac&o de um programa didrio de rezas era apenas uma parte da organizagio de toda a atividade mondstica, tanto terena quanto religiosa. De fato, para os monges niio havia distingdo entre o terrenal ¢ 0 religioso: laborare est orare - trabalhar era rezar. Assim havia regras determinando tempos para o trabalho, estudo, comer e dormir; regras determinando castigos € peniténcias para os atrasados; regras determinando explicitamente a forma de manutengdo dos reldgios ¢ o seu ajuste noturno."**5 E importante notar, contudo, que apesar de tanto o trabalho quanto as atividades religiosas fazerem parte das obrigagées e do ser comunitario do monge, do seu tempo que pertence & comunidade, , portanto, nao se distinguem uma da outra no quotidiano da atividade monéstica, as dicotomias centrais @ concepedo cristd jé abriam as portas para uma gradual desritualizagao e laicizagao do trabalho. Na medida em que 0 ‘Reino de Deus no é desta terra’ e na medida em que a came, a matéria, representa a queda frente ascensao ¢ a vida eterna do espirito, as atividades relacionadas a atividade econdmica, de manutengao material da vida passam a ser, de certa forma, atividades de segunda ordem. Nas religides solares e particularmente na tradi¢o monoteista, como vimos, ao se conceber uma Divindade superior e externa sociedade humana e a physis como um todo, este Deus, apesar de manifestar-se em todas as coisas, nao é imanente a elas. Em contraste, nas culturas animistas, como vimos, 0 sagrado esta em todas as coisas, é 0 sopro divino que permeia e da vida as miltiplas manifestagdes da physis. Nestas culturas 0 trabalho esté revestido do seu carter ritual, como parte integrante e constituinte do significado ¢ da realidade cultural dos distintos grupos sociais, elos participes desta rede sagrada. J4 na tradigio oristd que vemos emergir nos mosteiros, pelo menos enquanto concepedo, 0 que se busca é a salvago deste mundo € o trabalho passa a ser uma necessidade heterodeterminada, tanto pela condi¢do humana ('é com o suor da tua face que ganhards 0 teu pao de cada dia’), como pela condig&o monéstica, subordinada ao todo coletivo. Em toda parte, nas representagdes medievais, como por exemplo nas capelas construidas com caveiras e esqueletos dos franciscanos, aparece o tema da brevidade da vida humana, do "homem que veio do pé e a0 p6 retomard’, frente a vida eterna, que pode apresentar-se seja como softimento eterno no inferno, seja “© andes, op. cit, p. 69. A citagio é de Albert dHaenens; La quotidienneté au moyen dge: pour un modele d'analyse et dinterprétation; in Osterreichische Akademie der Wissenschaften, Philosophisch-Historische Klasse. Siteungsberichte, vol 4367: Klosterliche Sachkultur des Spatmittelalters: Conferencia Internacional Krems an der Donau, 18-21 de setembro d 1978; Veroffentlichungen des Instituts fur Mittelalterliche Realienkunde Osterreichs, no, 3; Wien: Verlag des Osterreichischen Akademie der Wissenschaften, 1980, p. 39. © Ibid. p. 67, A citagdo é de Cardinal Gasquet (trad); The Rules of Saint Benedict; London: Medieval Library, 1925, cap. 48 as como uma possibilidade de redengio através do purgatério ou ainda como salvagdo no paraiso celeste Sacrificar a sua temporalidade auténoma aos preceitos da ordem religiosa e monéstica é, assim, o prego a pagar pela paz etema. E é neste quadro que emerge o trabalho como fardo, como trabalho alienado e heterodeterminado por um tempo central tinico. 216 Ic. Tempos burgueses: tempo alienado, tempos do trabalho "Um convite para que todos os malienses trabalhem duro por que é 56 através do trabalho duro e néo pela preguiga que o homem alcanga a dignidade e a liberdade. Demasiada conversa, que ndo constr6i a patria; demasiado vaguear, que nio constrai a patria; Jogar Wali, que ndo constréi a patria, Cuidado! Deitar de lado com tua cabeca apoiada nas mds, que ndo constréi a patria." (Ali Farka Toure)** A concluséo deste processo de transformagao da concepedo temporal e da pritica social do trabalho se daria nas mos de uma nova forga social emergente na Europa medieval e que se converteria, ao longo das décadas ¢ séculos da alta idade média nos novos donos do tempo: os habitantes dos burgos, os novos espagos auténomos e centros da crescente atividade mercantil da Europa medieval. “Inicialmente de mosteiro em mosteiro, depois de vila em vila, renasce 0 comércio através da Europa. O ouro e a prata voltam € retoma-se 0 grande comércio com o oriente médio, centro econdmico do planeta. O poder se transfere do campo a cidade, do proprietirio da terra ao comerciante de trigo (..) A partir do ano mil a cidade européia comega a administrar 0 seu proprio tempo, a viver segundo 0 seu proprio ritmo. Pouco a pouco ela controla o campo que a alimenta. Inicialmente posta de lado pelos conventos ¢ pelo clero, ela inverte a hierarquia e impée o seu ritmo Igreja."**” “Junto com a Coroa, € de fato em aliangas com ela, a cidade foi a grande beneficidria da expanséo agricola e comercial da alta idade média (séculos XI-XIV). Aldeias sonolentas estavam transformando-se em ativos mercados comerciais, centros administrativos e pontos de transborde toca estavam crescendo para transformar-se em nés de comércio atacadista e varejista, e de indistria artesanal. Os residentes de maior éxito nestas novas cidades rapidamente constituiram uma nova elite, um patriciado urbano dono de uma grande fortuna e sentido de poder e autoconfianga que rivalizava o poder da antiga elite rural. Eles foram capazes, além disso, pela astuta cooperagiio com a Coroa e a criagdo de uma base militar urbana, de ganhar uma substancial autonomia para as suas municipalidades, “5 Da misica Yer Mali Gakoyo, composta nos anos 1960/70. 217 corganizadas por acordo miituo entre os residentes € por acordo contratual ou concessio por parte de uma autoridade superior em comunas auto-administradas. Estas cidades tinham os seus proprio recursos fiscais, de forma que, quando os relégios mecdnicos entraram em cena, as cidades da Europa Ocidental e Mediterranea puderam se permitir a sua construgo como complemento ou sucessores as catedrais - um simbolo de um novo poder e dignidade secular e contribuigio para o bem estar geral. (..) Assim como os mosteiros, as cidades necessitavam conhecer 0 tempo mesmo antes de que o rel6gio mecénico estivesse disponivel. Aqui também, a necessidade ¢ a mae da criatividade. Nés j notamos antes o contraste entre o dia ‘natural’ do camponés, marcado e pontuado pelas tarefas agricolas, e 0 dia produzido pelo habitante das cidades. O primeiro € definido pelo sol, o iltimo contido por uma série de sinais temporais artificiais (...) dedicando-se & mesma tarefa ou a uma série de tarefas em uma seqiiéncia nao definida previamente. (...) Com o desenvolvimento do comérci ea expanstio da industria, a complexidade da vida e do trabalho exigia um leque cada vez maior de sinais temporais. Estes eram dados, como nos mosteiros, por sinos (...). Sinos soavam para sinalizar o comeso do trabalho, as pausas para comer, o fim do trabalho, o fechamento das portas da cidade, 0 inicio do mercado, o fechamento do mercado, as assembléias, as emergéncias, as reunides dos conselhos, o fim do hordrio em que se servia bebida nas tabernas, a hora para a limpeza das ruas, 0 toque de siléncio, etc., em uma extraordinaria variedade de toques especiais nas distintas vilas e cidades."** Assim, como coloca Ortiz, frente a maior complexidade da vida social, "racionalidade urbana e temporal caminham jumtas,? Desta forma, como coloca Attali, aparece ao lado da torre da Igreja o relégio da atalaia, da torre de vigia.* Ao longo dos séculos seguintes 0 relégio mecénico, medindo ¢ indicando um tempo definitivamente secularizado, espalha-se sobre novos espagos, como as fachadas das prefeituras e de outros edificios piiblicos. Com os avangos técnicos subsegiientes (particularmente reduzindo os seus custos ¢ tamanho) este relégio mecanico penetra nas salas da elite burguesa e da nobreza (particularmente no final do século XV, como sinal de prestigio e poder) e - com o aperfeigoamento de outra inovagio revolucionéria, a mola do relégio de corda e a criagdo a partir de principios do século ‘VI dos primeiro relégio portéteis - 0 tique-taque do relégio portétil, levado como simbolo de “ali, op. cit, p. 75. A ordem dos pardgrafos foi invertida por conveniéncia da exposigdo, sem, no entanto,alterar 0 seu sentido. ** Landes, op. cit, pp. 71-72. Observemos aqui também a origem etimolégica da palavra'snaliza’ de sino -assumindo 0 sentido de 'marear, indica” * Renato Ont; Cultura e Modernidade; Sto Paulo: Brasliense, 1991, p. 233. “© "Um relégio novo aparece sobre um monumento novo: 2 atalaia. Eno norte da Europa que aparece, depois do muro da Cidade, este segundo monumento urbano. Ela, inicialmente, de madeira e mével, como aquelas usadas para os cercos (..) ‘Uma das primeiras, a atalaia de Abbeville levava trés sinos: «a chamada de eskevius», que convocava a inspeglo dos 218 prestigio junto ao corpo, passa a ser 0 companheiro inseparavel do pulsar do corpo humano.**! Durante todo este perfodo, no entanto, as demais formas de medir 0 tempo, como o reldgio solar, de areia, a clepsidra, etc., nfo desaparecem e, pelo contrario, devido pouca preciso dos relégios mecénicos, serviam de base para o seu continuo ajuste. Lembremos que, pelo seu préprio cardter - dissociado dos processos naturais © predominantemente voltada a uma atividade social e socialmente determinada - neste estigio a preciso temporal ndo ¢ o aspecto essencial do relégio. Fundamental é a capacidade de organizar e sincronizar as atividades sociais (e particularmente o trabalho) seguindo uma temporalidade abstrata, externa, a qual 0s individuos, coletivamente, se submetem. O importante para a ordem e a organizago urbana nio é a adequagio dos relégios e calendarios a determinado processo ou ciclos naturais (como nas sociedades némades ¢ agricolas, cuja organizagao se dava em tomo da temporalidade definida pelas diferentes tarefas a serem executadas, com suas temporalidades proprias) mas sim do acordo social (isto é a hegemonia) em tomo de certa convengdo temporal e a adequagéo ¢ sincronizagao dos diferentes relogios entre si. Na medida em que os diferentes processos dominantes ¢ 0 trabalho so processos sociais (tendo a sua Iogica dada pela organizagdo e pela ago humana) a sua coordenagao exige apenas que 0s diferentes agentes acordem quanto 4 conveng4o temporal (¢ assim a sincronizagio das atividades © pontualidade dos encontros, sem ‘perder tempo’). "A pressdo por sinais temporais era especialmente forte nas cidades voltadas as manufaturas téxteis, a primeira ¢ mais importante indiistria medieval. Nelas a definigo do tempo de trabalho era crucial para a rentabilidade do empreendimento e a prosperidade da comuna. A indistria téxtil foi a primeira a se dedicar & produgdo de grande escala para a exportagdo ¢, assim, a primeira a inundar a oficina tradicional e empregar uma forga de trabalho dispersa. Alguns destes trabalhadores eram ‘almotacés, «a horrenda» que anuncia as execugdes e uma terceira que tocava as horas de trabalho dos trabalhadores." Op. cit, p. 77. Para mais detalhes, vide item IV do cap. Ie também item I do cap. Il, pp. 75-81 e 85-117, respectivamente, “6° ’Relégios de mola apareceram por volta do inicio do século XV (..) a mola colocava um problema nao encontrado antes (0): a forga da mola diminui na medida em que ela se desenrola.(..) A resposta foi a roda em fuso, uma engrenagem intermediaria entre a fonte principal e a engrenagem central, de formato cOnico (..). A introdugdo da engrenagem c6 ‘onte principal permitiu a criagdo dos reldgios domésticos verdadeiramente portateis e, eventualmente, com uma ‘miniaturizagdo adicional, o relégio porttil (watch). O mito quer que o relégio portal foi inventado em tomo do inicio do século XVI por um certo Peter Henlein (aliés Hele) em Nuremberg, um velho centro de metalurgia e instrumentos - ¢ relojoaria, além de comércio e finangas. ...) Historiadores Italianos questionam a pretensio de primazia alema, afirmando - convincentemente, na minha opiniao - de que o relogio de bolsojé estava implicito no pequeno rel6gio de mesa. (..) Neste sentido, provavelmente, nfo houve nenhuma invengdo e sim uma transig2o silenciosa que ocorreu em diversos centros mais, ‘ou menos na mesma época, provavelmente no tiltimo quarto do século XV. (..) Umia vez que a moda de usar relOgios se ‘consolidou, produtores buscaram a miniaturizaeao, Rapidamente os rel6gios eram tio pequenos que podiam ser colocados no punho de uma punhal (Francisco I da Franca pagou uma pequena fortuna por dois destes em 1518) ou em um anel de ddedo (Elizabeth da Inglaterra usou um que nfo s6 marcava 0 tempo, como também servia de alarme: uma pequena forquilha saia¢ delicadamente cogava o seu dedo). Aloumas destas primeira miniaturas eram to pequenas quanto qualquer outra coisa feita desde entio, Nao é necessério dizer que estes primeiros tours de force visavam principalmente impressionar & impor, ndo mostrar a hora." Landes, op. cit. p. 87. Para mais detathes sobre esta evolugdo vide por exemplo Attali, Op. cit. pp. 94-117 e 148-158 e Landes, op. cit, pp. 85-88 sobre o processo de miniaturizacdo. 219 verdadeiros proletérios, possuindo nenhum dos instrumentos de produgao e vendendo apenas a sua forga de trabalho. (...) Onde havia manufaturas téxteis, havia sinos de trabalho. Artestios de outras artes poderiam trabalhar segundo a forma tradicional, do nascer ao por do sol, mas Bruxelas tinha a sua joufvrouwenclocke ao amanhecer, outro sino de trabalho (...) um pouco depois, um drabclocke de tarde para os tecedores e fiandeiros, entre outros, ¢ um lesteclocke para os teceldes, remendeiros ¢ funileiros. As vezes estes relégios eram piblicos, instalados pela muni ipalidade em uma torre de igreja, outras vezes alugados ou ainda situados em um campanario construido para este propésito. Este era o caso de Amiens em 1335, onde o rei deferiu o pedido do prefeito ¢ conselheiro «de que seja permitido editar uma ordenanga referente a hora em que os trabalhadores da dita cidade e seus suburbios devam ir cada manh& a0 trabalho; quando devem comer e quando voltar da comida; também, de tarde, quando eles devem deixar o trabalho do dia; e que, pela dita ordenanga, possam tocar um sino, que difere dos demais e que foi instalado no campanério da citada cidade.» Outras vezes os sinos eram privados, propriedade do empregador. Em Ghent, em 1324, 0 abade de Sao Pedro autorizou os curtidores «a instalar um sino na oficina recentemente inaugurada perto da Hoipoorte.»"* Emergem, assim, no espago autonomizado (frente as relagdes feudais externas) dos burgos emergentes - onde, como dizia o dito alemao medieval, Stadtluft macht frei (‘0 ar da cidade liberta’) - duas liberagées intimamente vinculadas ¢ articuladas: a ‘liberagao' do tempo do espago e dos processo - @ concepedo temporal que se converte em pura quantidade, pura abstragdo ¢ pura alienagao - e, em segundo lugar, a liberagao do trabalho compulsério (servil ou escravo), aparecendo o 'trabalhador livre’ € a correspondente nogao alienada e abstrata do trabalho. O trabalho ¢ despido do seu manto ritual € cultural, ¢ se apresenta como ‘pura forga de trabalho’ que o ser humano pode - ¢ deve, a0 ndo possuir outra forma de assegurar sua subsisténcia - alienar a outrem por um determinado periodo de tempo E neste processo que emerge a fonte de contradigdes sociais cldssica no trabalho, que se refere a0 fato de que "os que sto contratados experimentam uma diferenga entre 0 tempo dos seus patrdes e 0 seu «préprio» tempo. Eo patrio deve usar o tempo da sua mio-de-obra e ver que este nao se desperdice: nao sao os afazeres que dominam, mas sim 0 valor do tempo ao ser reduzido a dinheiro. O tempo se converte em moeda: no passa, se gasta."* Esta é, de fato, a esséncia temporal do ‘conflito de “* Landes, op. cit, pp. 72-73, As duas citagBes sto de Jaques Le Goff; Labour Time in the 'Crisis' of the Fourteenth Century; In Jaques Le Goff: Time, Work, and Culture in the Middle Ages; Chicago: Chicago University Press, 1980, pp. 45- 46 "Ou, como aparece na classica formulagao de Marx, "para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa encontrar, portanto, © trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre no duplo sentido de que ele dispde, como Pessoa live, de sua forga de trabalho como sua mercadoria,e de que ele, por outro lado, nfo tem outras mercadorias para Ender, soto e soltio, livre de todas as coisas necessérias &realizacdo de sua forga de trabalho.” Marx I, op. cit, p. 136. “Edward P. Thompson; Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industria, in E. P. Thompson: Tradicidn, Revuelia y ‘onscigncia de clase - Estudios sobre la crisis da la sociedad preindustrial; Barcelona: Editorial Critica, 1984, p. 247, Este 20 classes’ estudado pelo marxismo tradicional na medida em que, como coloca Marx, "o capitalista afirma seu direito como comprador, quando procura prolongar o mais possivel a jomada de trabalho transformar onde for possivel uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza especifica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, ¢ o trabalhador afirma o seu direito como vendedor, quando quer limitar a jomada de trabalho a determinada grandeza normal Ocorre aqui |, portanto, uma antinomia, direito contra direito, ambos apoiados na lei do interedmbio de mercadorias. Entre direitos iguais decide a forga. E assim a regulamentagao da jomada de trabalho apresenta-se na historia da produgao capitalista como uma luta ao redor dos limites da jornada de trabalho." Nesta conversdo da atividade produtiva humana em trabalho capitalista, em trabalho alienado que se apresenta como ‘puro fardo’, surge, além disso, o que Eliade denominou "a trigica grandeza do homem modemno, vinculada ao fato de que ele teve a audécia de assumir, frente a Natureza, a fungo do tempo. (...) Além disso os homens da sociedade modema acabaram por assumir 0 papel do tempo, no somente em suas relagdes com a Natureza, mas também com relagao a si mesmos. No terreno filos6fico se reconheceu, essencialmente ¢ talvez unicamente como um ser temporal constituido pela temporalidade e orientado a historicidade."*** De fato, como ser histérico, produtor do seu préprio tempo, com a modernidade se realiza o sonho dos alquimistas, de substituir a Natureza e seu tempo pelo tempo humano. Isto significa, nos termos da nossa discusséo, substituir 0 tempo da organizagao e do devir sistémico pelo tempo do trabalho humano, que, na sociedade modema, como veremos, se organiza subordinado & hegemonia do ‘tempo mecanico. Como coloca Eliade, "é em sua fé na ciéneia experimental e em seus grandiosos progressos industriais que devemos procurar a continuago dos sonhos alquimistas. A alquimia chegou ao mundo moderno como muito mais do que uma quimica rudimentéria: ela Ihe transmitiu a sua fé na transmutagdo da Natureza e sua ambigio de dominar o tempo. E verdade que esta heranga foi compreendida e realizada pelo homem modemo em um campo totalmente diferente daquele que sustentava a alquimia, O alquimista prolongava 0 comportamento do homem arcaico, para o qual a Natureza é uma fonte de hierofanias e 0 trabalho um rito. No entanto a ciéncia moderna 6 pode constituir-se dessacralizando a natureza: os fendmenos cientificos validos nao revelam-se apenas ao tempo do trabalho esta em oposigdo ao que este antor denomina a orientagdo aos afazeres’,“talvez a orientagto mais efetiva has sociedades camponesas, sendo também importante nas indistras locas e doméstieas." Aparece também nos estudos ‘itados por Thompson sobre o tempo de outras sociedades tradicionais, como os pastores Nuer estudados por Evans- Pitchard, os pastores ‘nani e outros.” Ibid, p. 245. + Mare op. cit, p- 181. © Bliade 1974, op. cit, p. 155. 24 custo da desaparigdo das hierofanias. As sociedades industriais no tém nada que fazer com um trabalho litirgico, solidario aos ritos dos oficios."*” Para este trabalho desprovido do seu manto ritual e simbélico (cuja motivacao principal, portanto, deve ser buscada na remunerago pecuniéria) ), a questo que se coloca, pelo menos até a produgao em massa e generalizada de relégios precisos e regulares (ou seja, bem entrado o século XIX), referia-se ndo sé a determinagao formal da duragao da jomada de trabalho, como também a quem possufa ¢ controlava os meios técnicos (isto é, os relégios) que dispensavam este tempo oficial. Isto mais ainda, se consideramos que os primeiros sinos de trabalho e os reldgios a eles acoplados nio apresentavam um mostrador extemo, publicamente visivel. "Como sabiam, de fato como podia o trabalhador saber se o tempo dos sinos de trabalho era tempo honesto? Como ele podia confiar mesmo nos sinos municipais se o conselho da cidade estava dominado por representantes dos empregadores? Sob estas circunsténcias os trabalhadores de alguns lugares tentaram silenciar 0 werckclocke."(‘sino de trabalho')*** Neste contexto, o que podemos ver ¢ que a introdugao do tempo mecdnico se recebe de maneira ambigua pelas partes envolvidas. Se de um lado implica a imposig&o de uma nova disciplina ¢ ordem temporal - com suas possiveis manipulagées - por outro lado protegia os trabalhadores dos abusos arbitrariedades dos antigos ‘donos do tempo’, na medida em que a sua regularidade ¢ definicao mecénica Ihe conferia um cardter ‘objetivo’. "Uma vez que o dia de trabalho se definia em termos temporais antes do que em termos naturais, tanto trabalhadores quanto empregadores tinham interesse em definir e de alguma maneira sinalizar estes limites. (...) N4o se desconfiava e se ressentia do sino de abalho, mas sim das pessoas que 0 controlavam; e € aqui que o repicante relégio da torre deu a sua maior contribuicdo. Ele dava sinais regulares - inicialmente a cada hora, depois cada meia ou cada quartos de hora - e necessariamente limitava as oportunidades de abuso. Finalmente, com o surgimento do mostrador (...) foi possivel para todas as partes interessadas verificarem o tempo de forma continua."*® No entanto, "Isto nfo foi o fim da questéo. Com a construgio de novos relégios, indicagées ‘temporais discrepantes deram origem a novas discordancias."*” "Era justamente nas induistrias - as fabricas téxteis e as oficinas mecénicas -, nas quais a nova disciplina temporal se impunha com mais rigor, que 0s conflitos sobre as horas tornaram-se mais intensos. No inicio, alguns dos piores patrdes tentaram expropriar os trabalhadores do conhecimento do tempo. «Eu trabalhei na fébrica do Sr. Ibid., pp. 154. “ Landes, op. cit, p. 74 “ Ibid. pp. 74-75. Ibid. p. 75; Braid», declarou uma testemunha: «ali trabalhdvamos enquanto se podia ver no verdo ¢ nao sei dizer a que hora parévamos, Ninguém, a no ser o patrdo ¢ o seu filho, tinha relogio, ¢ ndo sabjamos a hora.» Uma testemunha de Dundee oferece praticamente a mesma evidéncia: «na verdade nfo havia horas regulares: patrées e administradores faziam conosco 0 que queriam. Freqiientemente se adiantavam os relogios das fabricas de manba e se atrasavam pela tarde, Em lugar de ser instrumentos para medir 0 tempo, utilizavam-se como capa para o engano e a opressdio. Mesmo se isto se sabia, todos tinham medo de falar e os trabalhadores tinham medo de levar rel6gio, jé que nfo era raro que despedissem quem presumia saber demasiado sobre a ciéncia da horologia.»"*”" ‘Mesmo nos tempos de Marx, esta questo estava longe de ser resolvida, conforme aparece nos documentos oficiais da época citados por este autor: "«o fabricante fraudulento comega 0 trabalho “4 de hora antes das 6 da manbé, as vezes antes, as vezes mais tarde, e encerra % de hora depois das 6 da tarde, as vezes antes, as vezes mais tarde. Ele corta 5 minutos tanto no comego como ao final da % hora nominalmente destinada ao café da manha, retira 10 minutos tanto no comego como ao final da hora reservada para 0 almogo. Aos sdbados, ele trabalha % de hora depois das 2 horas da tarde, as vezes mais, as vezes menos. Dessa forma, o seu ganho perfaz (...) 5 horas e 40 minutos semanais, 0 que, multiplicado por 50 semanas, depois de subtrair duas semanas para os dias festivos ou subtragdes ocasionais, d4 27 dias de trabalho.» (...) «Uma hora adicional diariamente, ganha com o furto de um pedacinho de tempo aqui, logo ali outro pedacinho, faz dos 12 meses do ano 13.» (...) «Onde 0 tempo adicional é obtido mediante a multiplicagdo de pequenos furtos (...) no curso do dia, os inspetores enfrentam dificuldades quase insuperdveis para conseguirem provas.»> 'A esses ‘pequenos furtos’ pelo capital do tempo das refeigdes ¢ do tempo de descanso dos trabalhadores chamam os inspetores também de ‘petty pilferings of minutes’, pequenas furtadelas de minutos, ‘snatching a few minutes’ escamotear minutos, ou como os trabalhadores os denominam tecnicamente, ‘nibbling and cribbling at meal times’, roer peneirar 0 tempo das refeicées. 2 ‘Agora, a cristalizagao do conflito de trabalho em tomo das horas ¢ minutos € 0 seu equivalente na sociedade moderna, 0 dinheiro/salério (como veremos no préximo ponto), jé indica um estagio do desenvolvimento histérico dominado pela hegemonia da concepgéo e da prética temporal mecdnica. Trata-se de uma contradigiio que se dé nos termos da propria modemidade, em que ambas as partes ‘Thompson, op. cit, pp. 278-279. As citagdes se encontram em P, Mantoux; The Industrial Revolution in the Engtheenth- Century; London: 1948, p. 427 e em Anénimo; Chapters in he Life of a Dundee Factory Bay; Dundee, 1887, p. 10. Se tratam, aqui, de referéncias relativas ao século XIX. Podemos imaginar que nas fases iniiais, dada a imprecisio dos relgios, o seu custo e pouca difusdo, este tipo de abuso era muito mais exagerado e generalizado, © Mane 1 op. cit, pp. 184-186, eitando Factories Regulation Act. Ordered by the House of Commons to be printed 9 Aus. 1839, p. 45, Reports of the Inspection of Factories for the Half Year Ending 30" April 1838, p.9 Report ofthe Inspection of Factories for the Half Year Ending 31" Oct. 1856, pp. 35 € 48. 223

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