Você está na página 1de 15

TRS

THREE

MALLARMS

T radues brasileiras
MALLARMS: BRAZILIAN TRANSLATIONS

lvaro Faleiros*
Universidade de So Paulo

RESUMO
A interpretao da obra de Mallarm passou por distintas etapas que, por sua vez, determinam o modo como ele foi traduzido. O objetivo deste artigo analisar esse movimento no que concerne s tradues de Mallarm no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE
Mallarm, traduo, recepo no Brasil

A importncia de Mallarm para a poesia moderna inegvel. Trata-se de um autor que acabou, de acordo com Henri Meschonnic, produzindo um verdadeiro efeito Mallarm.1 Esse efeito atravessou o sculo 20 e central na elaborao de vrias noes positivas e negativas caras modernidade potica. Isso vale tanto para crticos renomados (como Hauser, Adorno, Sartre, Deleuze e mais recentemente Peter Burguer, 1994), [para quem] Mallarm culpado pelo crime de depreciao da vida, e por fazer da autonomia artstica uma iluso, 2 quanto para aqueles que operam por meio da exaustiva autorreferencialidade do indizvel, tal como a questo pode ser tratada numa tradio crtica que se vale da referncia a Maurice Blanchot.3 A recepo de sua obra, contudo, nem sempre se confundiu com a modernidade potica. Com efeito, a matriz da potica mallarmeana anterior dcada simbolista (1885-1895), sendo elaborada ao longo da dcada de 1860-1870. Entretanto, o simbolismo o primeiro espao interpretativo, a primeira galeria de textos que o leitor se v forado a atravessar antes de chegar obra de Mallarm.4

* alvarofaleiros@gmail.com 1 MESCHONNIC. Modernit, modernit, p. 25 2 SISCAR. Poesia e crise, p. 89. 3 SISCAR. Poesia e crise, p. 94. 4 FONTES. Os anos de exlio do jovem Mallarm, p. 30.

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

17

Ao primeiro Mallarm simbolista e ao Mallarm moderno, soma-se um terceiro Mallarm.5 Marcos Siscar assinala que a comemorao do centenrio da morte do poeta, em 1998, foi acompanhada por uma valorizao sem precedentes de sua prosa crtica.6 A reformulao crtica em jogo coincide com o chamado esgotamento dos projetos de vanguarda e tem como protagonistas, entre outros, Henri Meschonnic 7 e Jacques Rancire. 8 Ao invs de pensar a obra de Mallarm como uma potica de ruptura, de rejeio da vida e da realidade ou ainda de exploso do verso, Siscar argumenta que o projeto de escrita mallarmeano uma forma de inscrio na histria por meio de uma sensibilizao pela linguagem e na linguagem misria da poca. Assim, a operao mallarmeana muito diferente da operao da vanguarda, que deseja ruptura tratase mais de uma perturbao da tradio. 9 A partir do acima exposto, acredito ser possvel compreender o lugar de Mallarm na literatura francesa a partir da diviso acima, isto , um Mallarm simbolista, um Mallarm moderno e um Mallarm atual, mais inscrito na histria. No Brasil, a recepo de sua obra parece acompanhar movimento anlogo; o que procuro mostrar ao longo deste estudo, essencialmente a partir da anlise de suas tradues.

P RIMEIRO M ALLARM
Assim como na Frana, a circulao da obra de Mallarm no Brasil se d em crculos bastante restritos por meio de poetas e revistas identificados com o Simbolismo. Araripe Jnior, em 1888, ao se referir ao verdadeiro grupo dos simbolistas, declara que Stphane Mallarm sua encarnao perfeita. 10 tambm numa revista simbolista, Vera Cruz , que, em 1898, Silva Marques publica o primeiro artigo mais extenso dedicado ao poeta francs, no qual aponta para a influncia benfica de seu ensinamento.11 Nesse contexto, surgem as primeiras tradues de Mallarm no Brasil. Jos Paulo Paes, em seu histrico da traduo literria no Brasil, assinala que quanto ao paulista Batista Cepelos, parece ter sido o primeiro a traduzir, no Brasil, a poesia de Mallarm,12 sem precisar que poema seria, nem o contexto de sua publicao. Guimares, em precioso estudo sobre o poeta francs, debrua-se sobre o assunto, descobrindo no livro de poemas Vaidades no qual se encontram poemas do prprio Cepelos alm de tradues a

A classificao aqui proposta no leva em conta uma srie de trabalhos especficos, como as leituras psicanalticas de Charles Mauron ou a interpretao sartreana. Trata-se de identificar os grandes momentos da recepo de Mallarm, dentro dos quais os estudos especficos se encontram, ainda que sejam desvios ou contrapontos em relao s tendncias dominantes. 6 SISCAR. Poesia e crise, p. 83. 7 MESCHONNIC. Oralit, clart de Mallarm. 8 RANCIRE. La politique de la sirne. 9 SISCAR. Poesia e crise, p. 109. 10 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 28. 11 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 29. 12 PAES. Traduo a ponte necessria, p. 24.

18

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

traduo do poema O azul, cuja data no se pode precisar, pois o livro foi publicado em 1908, mas traz a indicao de que inclui poemas de 1899-1908.13 A primeira traduo publicada no Brasil no parece ser, pois, a de Cepelos, e sim a do poema Tristesse dt, feita por Escragnolle Dria e publicada com o ttulo Tristeza Estival na revista carioca Rua do Ouvidor, de 11 de maio de 1901,14 cerca de trs anos aps a morte de Mallarm. Uma terceira traduo completa as tradues do ciclo simbolista mencionadas por Guimares. Trata-se do poema Apparition, traduzido por Alphonsus de Guimaraens, includo na edio de 1938, do livro pstumo do autor, Pastoral aos crentes do amor e da morte . O fato de haver apenas trs tradues e poucas referncias a Mallarm no perodo indica claramente que parte do simbolismo brasileiro se desenvolveu independentemente do conhecimento da obra de Mallarm.15 Outro fato importante que se depreende a escolha dos textos: so poemas do jovem Mallarm, anteriores a seus textos mais hermticos. O poema Apparition data de 1863; os outros dois datam de 1864. Enfim, como aponta Antonio Candido ao se referir sua poca de juventude: o Mallarm apreciado era o menos hermtico. Pouca gente enfrentava o Coup de ds, que, alis, era de difcil acesso.16 Quanto aos projetos tradutrios, Jlio Castaon Guimares compara a traduo feita por Alphonsus de Guimaraens com a de Batista Cepelos:
Tal como a de Batista Cepelos, a de Alphonsus de Guimares tambm est includa, ainda que postumamente, em livros de poemas, Pastoral aos crentes do amor e da morte, que engloba tradues (este elemento, a adoo da traduo quase como texto prprio, bem como a ampla liberdade de interveno nos textos originais, um dado prprio do estatuto da traduo at esse perodo).17

No trecho acima, h uma sntese de certa prtica de traduzir que se caracteriza por: a) incluso de tradues em livros de poemas dos poetas-tradutores; b) adoo da traduo quase como texto prprio pelos tradutores-poetas; c) ampla liberdade de interveno nos textos originais. Essa prtica revelaria um dado prprio do estatuto da traduo at esse perodo. Segundo Castaon Guimares, essa seria uma forma predominante de se tratar a traduo de poemas poca. De fato, a incluso de tradues, muitas vezes livremente modificadas, nos livros dos prprios autores, era corrente, pois o que importava era a qualidade e o alcance da emulao. Esse parece ser o caso das tradues simbolistas em questo. Ao comentar a traduo de Batista Cepelos, por exemplo, Guimares assinala:

13 14

GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 17. GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 17. 15 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 15. 16 MELLO E SOUZA. As transfuses de Rimbaud, p. 118. 17 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 21.

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

19

A traduo faz-se com bastante liberdade, submetendo o texto original a grandes modificaes (de escolha vocabular, construo sinttica, etc.). No entanto, esse procedimento no visa uma recriao que revele um compromisso com a esttica do texto mallarmeano; ao contrrio, seguindo padres bem distanciados, introduz, por exemplo, uma grandiloquncia que no propriamente mallarmeana.18

A grandiloquncia de que fala o crtico justamente uma marca da potica de Cepelos, que, assim como Alphonsus de Guimares, transforma por completo o poema, integrando-o em sua prpria produo; o que leva o comentador a concluir que o tradutor: tomou como base o poema de Mallarm, apropriou-se dele para criar seu prprio poema.19 Esse primeiro momento da traduo de Mallarm no Brasil seguido de um hiato, fruto do desinteresse dos poetas brasileiros, na fase heroica do Modernismo, pelo mestre francs. Postura semelhante que ocorre na Frana, pois, se h um caso Mallarm na histria da poesia moderna, este no decorre apenas de seu estatuto de farol para o experimentalismo recente, mas tambm, e contraditoriamente, da rejeio por parte das vanguardas do incio do sculo. 20 A postura do perodo pode ser ilustrada pela declarao de Mrio de Andrade que, em A escrava que no era Isaura (1925), proclama: PRECISO EVITAR MALLARM.21

S EGUNDO M ALLARM
A eloquncia de Mrio de Andrade no impediu que, em meados dos anos 1930, surgissem os primeiros sinais de um longo processo que atinge seu pice nos anos 19701980 e que ecoa ainda nos dias de hoje. Trata-se da publicao, em 1936, da antologia Poetas de Frana , de Guilherme de Almeida, na qual se encontra, no que se refere a Mallarm, sua primeira incluso numa antologia, com os poemas Brise marine e Apparition, este j traduzido por Alphosus de Guimares. A traduo, contudo, j no se faz da mesma maneira nem se encontra no mesmo contexto; produz-se ali uma mudana da noo de traduo, pois no se trata nem de apropriao nem de traduo que desse ao texto outra orientao.22 De maneira perspicaz, Castaon Guimares identifica em Guilherme de Almeida um dos primeiros a operar uma mudana da noo de traduo. Essa mudana aparece, primeiramente, no lugar que a traduo ocupa. Ou seja, ela no se encontra fundida obra do poeta Guilherme de Almeida, mas na antologia Poetas de Frana, organizada pelo autor em 1936. A forma de apropriao no , pois, a mesma, uma vez que possvel

GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 21. Na referida pgina e nas seguintes Guimares desenvolve anlise dos poemas, reproduzindo-os inclusive na ntegra. Como o intuito deste artigo apresentar um panorama da tradues de Mallarm no Brasil, no sero analisados poemas especficos. 19 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p .22. 20 SISCAR. Poesia e crise, p. 83. 21 ANDRADE. Obra imatura, p. 240. 22 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 32.

18

20

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

identificar o desejo por parte de Guilherme de Almeida de publicar em volumes distintos sua obra de poeta e as obras traduzidas. Outra distino importante no trabalho de Guilherme de Almeida o fato de as tradues serem apresentadas em edies bilngues, o que permite ao leitor cotejar o texto de chegada com o texto de partida, modificando consideravelmente a relao do leitor com a traduo. Quanto afirmao de Guimares, de que Guilherme de Almeida no visou produo de uma traduo que desse ao texto outra orientao, possvel reconhecer o anseio de aproximar-se do texto de partida nos paratextos 23 de Guilherme de Almeida, em que reflete sobre o ato de traduzir. Um bom exemplo a seguinte passagem de seu prefcio, de 1936,24 na qual define o que traduzir:
Ora, traduzir, nesse caso, seria antes reproduzir. Reproduzir no sentido autntico, primitivo do termo: re-produzir, quer dizer, produzir de novo, ou seja, sentir, pensar e dizer como o autor e com o autor.25

Chama a ateno a ltima assertiva. Primeiro, trata-se de pensar e dizer, ou seja, produzir uma forma-ideia. E esta vista como um dilogo, mas um dilogo mediado, uma vez que se trata de pensar e dizer como o autor e tambm com o autor. H uma liberdade para a inveno; liberdade esta agora pautada pelo modo de significar do texto: sua forma, sua estrutura, seu ritmo. Esse outro modo de traduzir est ligado a outro modo de se ler Mallarm. Ainda que o intuito no seja retomar a fortuna crtica sobre Mallarm no Brasil,26 cabe lembrar que, em 1942, Manuel Bandeira profere, na Academia Brasileira de Letras, sua conferncia O centenrio de Stphane Mallarm,27 que seria o primeiro texto longo importante sobre Mallarm no Brasil. Bandeira destaca a poesia de circunstncia do poeta francs, bem a seu gosto, mas tambm evidencia a concepo orquestral da poesia mallarmeana com a percepo de uma musicalidade em termos estruturais, que ser central nas leituras modernas de Mallarm. H tambm a publicao, no ano seguinte, por Otto Maria Carpeaux de Situao de Mallarm,28 em que faz um primeiro esforo brasileiro de apresentao de Un coup de ds, alm de apontar para o fato de Mallarm tornar-se o poeta do sculo XX. Mais especificamente em relao traduo, Pricles Eugnio da Silva Ramos tambm cumpre um papel pioneiro poca transpondo para o portugus dois poemas de Mallarm. O primeiro, Laprs-midi dun faune, ainda que publicado apenas em 1992,29

23

24

A prpria presena de paratextos tambm uma mudana importante na noo de traduo. ALMEIDA. Poetas de Frana, p.17. 25 ALMEIDA. Poetas de Frana, p.20. 26 Jlio Guimares, em Presena de Mallarm no Brasil, faz um levantamento considervel dessa fortuna crtica. 27 BANDEIRA. O centenrio de Stphane Mallarm. 28 CARPEAUX. Situao de Mallarm. 29 FOLHA DE S. PAULO, 13 de maro de 1992.

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

21

teria sido traduzido em 1939. O segundo, Le tombeau dEdgard Poe, foi publicado em 19 de outubro de 1949 no Jornal de So Paulo . A situao de Mallarm no Brasil acima exposta mostra os anos 1930-1940 como um perodo de gestao do segundo momento da traduo de Mallarm no Brasil. Se certo que ainda no h divulgao sistemtica de sua obra (so apenas duas tradues publicadas em mais de 20 anos), tambm o que no se destaca mais o jovem Mallarm, e sim o poeta central para as poticas do sculo 20. De todo modo, desde Guilherme de Almeida at as preocupaes estruturais apontadas por Bandeira em relao a Mallarm, nota-se uma crescente ateno para os aspectos formais. Essa caracterstica anuncia o projeto de traduo dos poetas concretistas, no que concerne a Mallarm e traduo de poesia no Brasil. Com os poetas concretistas, as tradues comeam a se tornar um objeto de anlise rigorosa graas, em certa medida, ao advento da lingustica e da semitica do Crculo de Praga. Tanto que no difcil relacionar o conceito de traduo criativa de Jakobson com a transcriao de Haroldo de Campos. Pode-se dizer que a traduo entra, no Brasil, numa etapa formalista, na qual o poema pensado como estrutura. No por acaso que Haroldo de Campos, no primeiro pargrafo de seu ensaio seminal de 1962, intitulado Da traduo como criao e como crtica, retoma Albercht Fabri para quem a linguagem literria aquela que no tem outro contedo seno sua estrutura. 30 Isso leva Haroldo de Campos a deduzir que, numa traduo de textos literrios:
No se traduz apenas o significado, traduz-se o prprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagtica visual). (...) O significado, o parmetro semntico, ser apenas e to-somente a baliza demarcatria do lugar da empresa criadora.31

Em relao proposta de Guilherme de Almeida, para quem a traduo ideia e expresso ao mesmo tempo e a traduo movimento mental e verbal, Haroldo de Campo radicaliza o primado da forma, reduzindo o parmetro semntico teoricamente a mera baliza demarcatria. Nesse contexto surge toda uma srie de escritos concretistas envolvendo a obra de Mallarm, que passa a ser citado, comentado e traduzido regularmente. Antes de traduzir parte da obra potica de Mallarm, os concretistas, na elaborao de sua prpria potica, deram destaque ao poeta francs, conferindo-lhe uma centralidade que ainda no conhecia, como se pode notar pela sistemtica presena do poeta francs nos manifestos concretistas do final dos anos 1950 e incio dos 1960, sobretudo a partir de seu poema Un coup de ds.32 No momento, contudo, de traduzir Mallarm, os concretistas no se concentram apenas no Coup de ds. Augusto de Campos, em seu ensaio Mallarm: o poeta em greve, originalmente publicado em 1967, retoma a classificao proposta, em 1957, por

30 31

CAMPOS. Da traduo como criao e como crtica, p. 31. CAMPOS. Da traduo como criao e como crtica, p. 35. 32 CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS. Teoria da poesia concreta: textos crticos e manifestos 1950-1960.

22

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

Mrio Faustino no texto Stphane Mallarm, 33 em que faz uma apresentao do poeta. Guimares interpreta o trabalho de Mrio Faustino como uma exposio abrangente da produo de Mallarm, que dividida em diferentes etapas, bem caracterizadas e exemplificadas. 34 A importncia do ensaio de Faustino enorme. Nele, a obra de Mallarm divida em quatro etapas: a) uma primeira, parnasiano-simbolista (com ecos de Baudelaire e Rimbaud); b) uma segunda, em que se reconcilia com o francs de Racine e antecipa Valry; c) um terceiro, em que surge o grande Mallarm de seus sonetos mais audazes; d) o derradeiro Mallarm de Igitur e de Un coup de ds. Complementando que o ltimo e o penltimo Mallarm que seriam os fundamentais para o leitor atual. Nem Augusto de Campos nem Jlio Castaon Guimares mencionam, contudo, o pargrafo que encerra a apresentao das etapas mallarmeanas, em que se l:
H, tambm, outros mallarms que teremos de deixar de lado: o dos poemas de infncia e de juventude (alguns surpreendentes); o dos versos de circunstncias (alguns bem melhores e mais importantes do que muita poesia sria); o Mallarm tradutor de Poe; o Mallarm grande prosador, influenciador, inclusive, de um Proust e renovador de um Flaubert; o Mallarm esteta; o Mallarm-ganhador-do-po-de-cada-dia: Les mots anglais, Thmes anglais, Les dieux antiques...35

O trabalho de traduo da obra potica de Mallarm, empreendido pelo grupo concretista, no levar em conta os outros mallarms; ele seguir de perto as indicaes de Faustino, concentrando-se nos poemas que o crtico destaca em sua apresentao. O trabalho empreendido pelo grupo encontra-se reunido no volume Mallarm , composto por textos crticos escritos sobre o poeta e por tradues de Haroldo de Campos (Um lance de dados), de Dcio Pignatari (A tarde um fauno) e de Augusto de Campos (vrios poemas curtos, na maioria sonetos). Nas dcadas seguintes, Augusto de Campos ainda traduziu alguns outros poemas de Mallarm em seus livros Linguaviagem (1987) e Poesia da recusa (2006). Outro membro do grupo concretista que se debruou sobre a obra de Mallarm foi Jos Lino Grnewald. Em 1990, ele publica Poemas, em que rene dcadas de trabalho em torno de alguns poucos textos-chave do cnon apontado por Faustino. Com efeito, cada um dos sete poemas que traduz vem acompanhado de notas em que apresenta leituras crticas dos textos e discute aspectos tradutrios, essencialmente em torno de questes formais de inspirao lingustico-semitica. Interessante que, apesar do ttulo, o livro inclui textos em prosa (quatro poemas em prosa, Igitur, alm de trechos de Um lance de dados, de O livro e de Para um tmulo de Anatole), que esto dentre os primeiros publicados em nossas terras.36

FAUSTINO. Poesia no brincadeira. GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 45. 35 FAUSTINO. Poesia no brincadeira, p.161. 36 H uma traduo da prosa O demnio da analogia, feita por Ins Oski-Dpr que foi publicada, em Salvador, na revista Cdigo de agosto de 1980.
34

33

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

23

O longo processo de incorporao de Mallarm dentro de um horizonte mais vanguardista e formalista ainda dominou a cena nos anos 1980 e 1990. Dante Milano, poeta da gerao de Murilo Mendes e de Drummond, inclui dois poemas de Mallarm Salut (traduzido por Saudao) e de Herodiade a Cena II em seu volume Poemas traduzidos de Baudelaire e Mallarm, publicado em 1988. A escolha dos poemas e o projeto tradutrio, pautado pela busca de uma correspondncia formal e pela apresentao de edio bilngue, permitem englobar suas tradues dentro do momento moderno de Mallarm no Brasil. Algumas antologias de poesia francesa publicadas posteriormente ao Mallarm concretista acabam por repercutir sua interpretao. A mais abrangente delas Antologia da poesia francesa, de Cludio Veiga. Ele escolhe cinco poemas j traduzidos por Augusto de Campos. Veiga, contudo, no segue risca a busca de uma equivalncia formal, mas tampouco se desprende dela, numa espcie de hesitao que no permite depreender um projeto tradutrio claro; postura que certamente o distingue poeticamente dos concretistas. A segunda grande antologia dedicada poesia francesa Poetas franceses do sculo XIX, em que Jos Lino Grnewald retoma suas tradues de Mallarm, fazendo dele o poeta mais representativo do sculo por ser o autor com o maior nmero de poemas na antologia. Mallarm passa assim a ocupar lugar de destaque em antologias do final do milnio. Em 1992, ano do sesquicentenrio de Mallarm, foram publicados, tanto na Folha de S.Paulo quanto no Estado de S. Paulo , textos e tradues das grandes referncias sobre o poeta no Brasil, Augusto de Campos, Pricles Eugnio da Silva Ramos, Jos Lino Grnewald e Jos Paulo Paes, entre outros .37 Outro evento relevante foi a organizao, por Flora Sssekind e por Jlio Castaon Guimares, de uma grande exposio na Fundao Casa de Rui Barbosa, em que foram expostos mais de 100 itens relativos presena de Mallarm no Brasil. Entre os itens encontrava-se traduo ento indita do poema Prose. Com efeito, Jlio Castaon Guimares publicou posteriormente, em 1995, o livro Brinde fnebre e prosa . 38 Ao comentar seu prprio trabalho tradutrio Guimares destaca:
Dentre as inumerveis observaes que se poderiam fazer sobre a traduo dos dois poemas, exponho aqui apenas algumas poucas que me parecem indispensveis. Vale ressaltar, no tocante a ambos os poemas, a importncia decisiva, para o trabalho deste tradutor, da releitura insistente das tradues mestras de poemas de Mallarm realizadas por Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Dcio Pignatari e Jos Lino Grnewald.39

A atitude de Guimares aponta, em certa medida, para uma mudana da postura tradutria. No se est mais diante do tradutor transcriador que desbrava e se apropria. Castaon retoma o trabalho que o antecede sugerindo ser sua prtica uma espcie de retraduo. O tom deferente que adota releitura insistente das tradues mestras

Os poemas traduzidos na ocasio (Prose, Laprs-midi dun faune...) encontram-se no cnone mallarmeanode Mrio Faustino. 38 Em 2007, Guimares publica verso ampliada do livro com o ttulo Brinde fnebre e outros poemas. 39 GUIMARES. Brinde fnebre e outros poemas, p. 37.

37

24

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

acaba comprometendo o carter dinamizador da releitura devido ao alinhamento com uma postura tradutria consolidada. O desejo de continuidade por parte de Castaon Guimares explica tambm o tom que adota ao se referir s tradues, como, por exemplo, ao afirmar que Haroldo de Campos, em suas notas, analisa minuciosamente o vocabulrio do poema com vista a suas opes de traduo, sem apontar para possveis idiossincrasias e imprecises ali presentes.40 Em outro trecho, compara o momento concretista com o momento anterior (simbolista):
Pela lista acima dos poemas traduzidos [pelos concretistas] pode-se ver que se est longe daquelas primeiras tradues que se apegavam ao Mallarm inicial. Tem-se agora uma apresentao ampla da produo mallarmeana. Os estudos que acompanham esse trabalho de traduo, procuram ser uma exposio abrangente da obra e, ao mesmo tempo, tratar das questes de traduo, entram muitas vezes por anlises detalhadas, amparadas por uma bibliografia especializada e atualizada.41

Se o tom elogioso certamente se justifica pela importncia das tradues e o lugar que passam a ocupar, assim como por todo o trabalho crtico realizado pelos concretistas, ele perde fora ao no historicizar o trabalho dos concretistas. Outro aspecto que merece destaque a afirmao de que as publicaes dos concretistas so uma apresentao ampla da produo mallarmeana. Se compararmos com o momento anterior, a afirmao se sustenta. Entretanto, o prprio Guimares assinala, em relao prosa de Mallarm, que a maior parte dela est na verdade espera de traduo. 42 O pouco interesse pela prosa e pelos ensaios crticos, que nem chegam a ser mencionados por Guimares deve - se importncia da experincia potica mallarmeana para os concretistas. Mallarm leva a um ponto mximo, at hoje no mais atingido, uma linguagem (a potica) e uma lngua (a francesa). 43 Experincia esta que se aproxima da leitura vanguardista e formalista de Mallarm pautada em parte pela compreenso da poesia moderna como processo de desrealizao defendida, por exemplo, por Hugo Friedrich. Paralelamente a esse processo, surge uma leitura simbolista-parnasiana da poesia de Mallarm em trs antologias mais recentes. Em 1998, Jos Jeronymo Rivera traduz os poemas de juventude Apparition e Soupir, em sua Poesia francesa: pequena antologia bilngue. Paulo Hecker Filho insere, em sua antologia pessoal intitulada S poema bom , de 2000, uma traduo formalmente precisa do poema Brisa marinha. Um terceiro poema de Mallarm foi encontrado na Pequena antologia de poemas franceses, de Renata Cordeiro. Nessa coletnea de 2002, monolngue, assim como a de Paulo Hecker Filho, a tradutora incluiu mais uma nova traduo do poema Apparition. O Mallarm das

40

o que procuro fazer em artigo anterior. Cf. FALEIROS. Lance de dados: contrapontos sinfonia haroldiana. 41 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 46-47. 42 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 49. 43 FAUSTINO. Poesia no brincadeira, p. 167.

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

25

antologias da virada do milnio no se distingue, no que concerne escolha dos poemas, do primeiro Mallarm. A grande distino que os projetos tradutrios so pautados pela busca de correspondncias formais, tendncia que domina o sculo 20 no Brasil, exceo do hesitante Cludio Veiga. A relativa hesitao de Cludio Veiga no , porm, fenmeno isolado. Ele, primeiramente, indica uma ligeira mudana de percepo na busca das correspondncias formais. 44 No que concerne traduo de poesia, a primeira reflexo mais consistente provavelmente a de Ana Cristina Csar, e envolve justamente Mallarm, servindo, pois, como sinal de mudana no modo de se perceber e de se traduzir Mallarm no Brasil.

T ERCEIRO M ALLARM
No final dos anos 1980, so publicados postumamente os ensaios de Ana Cristina Csar sobre traduo, dentre os quais Traduzindo o poema curto,45 no qual argumenta que a concentrao uma das marcas do poema curto. No inflacionar o poema, tentando absorver o esforo original de dar condensao ao poema, procurando encontrar mais equivalncias para esse esforo especfico 46 o que caracterizaria, para a autora, uma boa traduo. O poema que a autora escolhe para ilustrar seu argumento Salut, segundo ela, intrinsecamente um brinde modernidade. 47 Diferentemente das leituras formalistas em voga, a anlise de Ana Cristina Csar concentra-se nos trs nveis metafricos do poema o brinde como banquete, como viagem ao mar e como a prpria poesia e identifica nas palavras cume e toile (que, segundo ela, pode significar tanto pano, como tela, ecoando ainda a palavra voile) pontos de interseco desses trs nveis. Em sua interpretao, Ana Cristina Csar destaca a condensao polissmica dos termos como o cerne do poema e como caracterstica marcante da modernidade potica. Para ilustrar sua reflexo, remete uma nica vez traduo brasileira do poema feita por Augusto de Campos, citando o verso final Le blanc souci de notre toile e sua traduo por Um branco af de nossa vela. No trecho, a autora comenta que Augusto de Campos poderia ter usado tela, mantendo o mesmo ritmo e mtrica.48 Chama sua ateno no o rigor na construo metro-rmica do poeta concretista, e sim sua impreciso metafrica com o consequente achatamento imagtico que provocou.

H, desde os anos 1990, uma crescente tendncia de se traduzir o poema no Brasil com um afrouxamento do rigor formal, mas, em geral, sem projetos tradutrios capazes de se sustentar como texto. Cf. FALEIROS. Sobre uma no-traduo e algumas tradues de Linvitation au voyage de Charles Baudelaire. 45 CSAR. Escritos da Inglaterra. curioso o fato de Jlio Castaon Guimares no fazer referncia a to importante ensaio. 46 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 156. 47 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 157. 48 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 159.

44

26

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

Como nesse mesmo ensaio a autora insinua que a poesia moderna poderia estar em busca de outra maneira de traduzir, 49 ao que tudo indica, sua crtica dirige-se aos projetos tradutrios formalistas em voga e o faz a partir de Mallarm. Em vez de reger-se pelo primado da forma, ela parece mobilizada pelo que chama de inerncia semntica e parece esperar do tradutor um resultado que, no caso do poema curto moderno, reverbere sua tenso. De certo modo, a mudana de perspectiva de Ana Cristina Csar no que concerne poesia de Mallarm, anuncia uma mudana de perspectiva em relao ao modo de perceber o conjunto de sua obra; o que, de fato, se verifica pelo modo mais diversificado como Mallarm passa desde ento a ser traduzido no Brasil. Uma mudana, j percebida por Guimares,50 diz respeito traduo de sua prosa. Ele assinala que Amlio Pinheiro publica as tradues dos ensaios O livro, instrumento espiritual e O mistrio nas letras, em 1991, na recolha Fundadores da modernidade , organizada por Irlemar Chiampi; em 1994, saem os Contos indianos, por Yolanda Steil de Toledo; e no ano seguinte, saem Prosas (que rene Autobiografia, Poemas em prosa e Contos indianos), por Dorothe de Bruchard. a fico em prosa de Mallarm que comea a ser traduzida. O final do sculo 20 indica assim um momento de mudana na recepo da obra de Mallarm no Brasil, em que a hegemonia concretista cedeu lugar a uma apropriao multifacetada, processo que prossegue e se desdobra no incio do sculo 21. Em 2007, a revista de poesia Inimigo Rumor, no nmero comemorativo de seus 10 anos de existncia, publica Crise de vers, traduzido por Ana Alencar por Crise do verso. O texto acompanhado por uma nota do tradutor, na qual Ana Alencar comenta que, no texto mallarmeano, apesar (ou justamente por causa) de suas acrobacias na sintaxe, h, curiosamente, toda uma entonao do registro falado nesse texto to trabalhado.51 O Mallarm que se escuta , bem ao gosto de Meschonnic, um Mallarm mais falado. Essa mudana de enfoque na percepo de Mallarm no Brasil teve ainda outro desdobramento envolvendo a traduo de Crise de vers. Marcos Siscar, num dos captulos de seu livro Poesia e crise, discute precisamente poesia e crise a partir da traduo de Crise de vers, como segue:
Em portugus, o texto normalmente mencionado ou traduzido por Crise do verso. A traduo rotineira, do meu ponto de vista, incorre em um problema no apenas lingustico, mas tambm hermenutico, uma vez que o ttulo envolve uma reflexo sobre a crise de vers, e no a crise du vers. (...) Ou seja, a crise de verso no designa uma interrupo ou colapso histrico do verso; antes, uma irritao do verso, dentro do verso, e a propsito dele.52

A posio adotada por Marcos Siscar tem endereo certo. Como ele mesmo aponta numa das notas de seu ensaio: Augusto de Campos apresenta leitura oposta a essa em um dos manifestos da poesia concreta.53 O deslocamento proposto por Siscar a respeito

CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 161. GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 49. 51 MALLARM. Crise do verso, p. 163. (nota do Tradutor) 52 SISCAR. Poesia e crise, p. 107. 53 SISCAR. Poesia e crise, p. 110.
50

49

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

27

do verso envolve o entendimento da obra da Mallarm em seu conjunto e de sua traduo no Brasil. Trata-se para Siscar de reposicionar Mallarm no campo literrio, no mais como um poeta de vanguarda ou formalista:
Em suma, Mallarm no limita o campo do potico semitica do verbal pelo contrrio, expande-o, sugerindo que onde h dico h verso. A noo de verso generalizada, designando a possibilidade de articulao, de reagrupamento e, com isso, tambm de regenerao dos talhos ou dos cortes vitais (coupes vitales) da lngua.54

Para essa mesma direo aponta o prefcio que Siscar escreveu para a primeira publicao no Brasil, tambm ocorrida em 2010, de Divagaes , obra que rene grande parte dos ensaios de Mallarm. 55 Assim, num perodo de poucos anos, Crise de vers passa a circular em duas tradues que se encontram no centro de um processo de ressignificao e ampliao da recepo da obra de Mallarm no Brasil, cuja prosa e crtica hoje circulam amplamente e fazem parte de debates no mais mediados exclusivamente por princpios formalistas ou discursos de vanguardas. Alm das redescobertas parnaso - simbolistas, algumas dimenses ainda desconhecidas da poesia de Mallarm passaram a ser exploradas em duas ltimas publicaes elencadas neste artigo. Em 2007, foi publicado Os anos de exlio do jovem Mallarm, do professor Joaquim Brasil Fontes, outra importante mudana no modo de se traduzir e de se ler a poesia de Mallarm no Brasil. Pedro Meira Monteiro, no prefcio obra, diz tratar-se de um ponto de inflexo sobre Mallarm em lngua portuguesa. 56 O prefaciador tem razo, pois Fontes seleciona textos de vrias fases da vida de Mallarm, incluindo poemas de juventude e os apresenta, ao longo do livro, em contexto, isto , acompanhado de informaes biogrficas, trechos de cartas. Pedro Meira Monteiro sintetiza:
De certa forma, pode-se dizer que Joaquim Brasil Fontes mantm uma delicada e firme tenso com a leitura para ns (ns, leitores brasileiros) fundadora que a do concretismo. No chega a explicitar-se, mas podemos inferir que o carter eminentemente construtivo, ou mais propriamente construdo que os concretos emprestam a Mallarm e nele enxergam, o que levar o autor deste livro [Joaquim Brasil Fontes] a sugerir, no plano biogrfico como no plano potico, um Mallarm menos adstrito forma final do poema, talvez at, eu arriscaria dizer, menos cerebrino na consecuo potica.57

O projeto tradutrio adotado por Joaquim Brasil Fontes condiz com a leitura que prope. Em vez de procurar correspondncias formais, faz leitura praticamente semntica, desprendida de rima e mtrica. A escolha vocabular, contudo, de grande preciso e leva a uma abertura de redes associativas e etimolgicas caras a Mallarm. Ao longo do livro, h captulos em que a leitura intercala tradues/interpretaes de poemas, de

SISCAR. Poesia e crise, p. 111. Siscar republica na ntegra o prefcio, intitulado O tnel, o poeta e seu palcio de vidro em Poesia e crise. , alis, nesse texto, que faz o balano das mudanas atuais na recepo de Mallarm na Frana. A traduo de Fernando Sheibe inclui todos os ensaios da edio original de Mallarm 56 FONTES. Os anos de exlio do jovem Mallarm, p. 22. 57 FONTES. Os anos de exlio do Jovem Mallarm, p. 22.
55

54

28

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

cartas, de poemas em prosa e de breves ensaios. A forma aberta e fragmentada, coerente com um Mallarm menos adstrito forma final do poema. H, por fim, a coletnea Poesias de Mallarm, publicada em 2011 por Andr Dick, que , de certa maneira, tributria do trabalho de Joaquim Brasil Fontes, tanto pela seleo de textos, que recupera poemas de distintas fases de Mallarm, quanto por um desejo de personalizar o autor francs. Por exemplo, em seu prefcio, Andr Dick comenta que na poesia de Mallarm se destaca (...) a imagem sensvel, perceptvel do cotidiano. 58 Ele ainda critica algumas leituras estruturalistas e ps-estruturalistas, como as de Hugo Friedrich e as de Blanchot, e tambm conceitos como o de despersonalizao. Diferentemente de Joaquim Brasil Fontes, contudo, seus argumentos no se articulam com clareza, o que transparece em seu projeto de traduo. O tradutor hesita entre usar ou no rima e mtrica (o uso de rimas toantes, por exemplo, no implica, em muitos casos, uma maior proximidade semntica). O mais lacunar, contudo, a falta de relao entre o ensaio introdutrio no qual defende a existncia de uma imagem perceptvel do cotidiano e tradues, em que o cotidiano no comparece. O livro de Andr Dick explicita riscos das mudanas em curso hoje no Brasil no modo de se pensar a traduo potica. 59 O distanciamento de um projeto formalizador com o consequente afrouxamento das balizas semiticos-textuais, sem a criao de um projeto tradutrio que aponte de modo claro para os parmetros em jogo, corre o risco um risco provavelmente necessrio no atual contexto brasileiro de produzir textos que dificilmente se sustentam como obra.

EM

CONCLUSO

Mallarm enuncia que h verso to logo se acentua a dico.60 Ouso dizer que h traduo to logo se acentua a dico. No primeiro Mallarm, h traduo, uma dico/ emulao que olha para o Malalrm parnaso-simbolista e dele se apropria. No segundo Mallarm, h traduo como dico/formalizao que via vanguarda ou no atua em relao a etapas precisas de sua obra (os derradeiros Mallarms em verso). O terceiro Mallarm o que se inventa agora e que desponta como um Mallarm plurivocal, em verso e prosa. Este, por um lado, desloca, divaga, fragmenta e, por outro, adere ao mundo. E posturas como as de Marcos Siscar ou de Joaquim Brasil Fontes, nos nossos tempos, traduzem esse Mallarm em dico mais historicizadora. 61

A A

58

DICK. Poesias de Mallarm, p. 23. Aponto para os mesmos riscos em relao a Baudelaire em FALEIROS. Sobre uma no-traduo e algumas tradues de Linvitation au voyage, de Charles Baudelaire. 60 MALLARM. Crise do verso, p.151. 61 A retraduo que proponho de Um lance de dados, a sair pela Ateli Editorial se quer tambm uma potica elaborada a partir dessa dico historicizadora. Cf. FALEIROS. Lance de dados: contrapontos sinfonia haroldiana; SISCAR. Poesia e crise; e FALEIROS.Traduzir Mallarm o lance de dados.
59

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

29

RSUM
Linterprtation de luvre de Mallarm est passe par des diffrentes tapes qui dterminent, leur tour, la faon dont il a t traduit. Lobjectif de cet article est danalyser ce mouvement en ce qui concerne les traductions de Mallarm au Brsil.

MOTS-CLS
Mallarm, traduction, rception au Brsil

REFERNCIAS
ANDRADE, Mrio. Obra imatura. So Paulo: Martins; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. ALMEIDA, Guilherme. Poetas de Frana . 4. ed. So Paulo: Cia Editora Nacional, 1965. ALMEIDA, Guilherme. As flores das Flores do mal de Baudelaire. So Paulo: Editora 34, 2010. BANDEIRA, Manuel. O centenrio de Stphane Mallarm. In: ____. Poesia e prosa . Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. Tomo 2. p. 1216-1232. CARPEAUX, Otto Maria Carpeaux. Situao de Mallarm. In: ____. Origens e fins . Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1943. p. 64-74. CAMPOS, Haroldo. Da traduo como criao e como crtica. In: ____. Metalinguagem. So Paulo: Cultrix, 1976. p. 21-38. CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Dcio; CAMPOS, Haroldo. Teoria da poesia concreta: textos crticos e manifestos 1950-1960. So Paulo: Edies Inveno, 1965. CSAR, Ana Cristina. Escritos da Inglaterra. So Paulo: Brasiliense, 1988. DICK, Andr. Poesias de Mallarm. So Paulo: Lume Editor, 2011. FALEIROS, lvaro. Lance de dados: contrapontos sinfonia haroldiana. Revista de Letras da UNESP, v. 47, n. 1, p. 11-30, 2007. FALEIROS, lvaro. Sobre uma no-traduo e algumas tradues de L invitation au voyage de Charles Baudelaire. Alea, v. 9, n. 2, p. 250-262, 2007. FAUSTINO, Mrio. Poesia no brincadeira. In: ____. Artesanatos de poesia . So Paulo: Cia das Letras, 2004, p. 159-183. FONTES, Joaquim Brasil. Os anos de exlio do jovem Mallarm. So Paulo: Ateli, 2007. GUIMARES, Jlio Castaon. Brinde fnebre e outros poemas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. GUIMARES, Jlio Castaon. Presena de Mallarm no Brasil. In: ____. Reescritas e esboos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2010, p. 9-53. MALLARM, Stphane. Mallarm. Organizao traduo e notas de Augusto de Campos, Dcio Pignatari, Dcio e Haroldo de Campos. So Paulo: Perspectiva, 1991. MALLARM, Stphane. Crise do verso. Trad. Ana Alencar. Inimigo Rumor 20, 2007. MESCHONNIC, Henri. Oralit, clart de Mallarm. Europe (Stphane Mallarm ), n. 825-826, 1998.

30

A L E T R I A - v. 22 - n. 1 - jan.-abr. -

2 0 12

MESCHONNIC, Henri. Modernit, modernit. Paris: Gallimard, 1993. MELLO E SOUZA, Antonio Candido. As transfuses de Rimbaud. In: LIMA, Cardoso (Org.). Rimbaud no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1993. p. 110-123. MILANO, Dante. Poemas traduzidos de Baudelaire e Mallarm. Rio de Janeiro: Boca da Noite, 1988. PAES, Jos Paulo. Traduo a ponte necessria. So Paulo: tica, 1990. RANCIRE, Jacques. La politique de la sirne. Paris: Hachette, 1996. SISCAR, Marcos. Poesia e crise. Campinas: Editora Unicamp, 2010. VEIGA, Cludio Veiga. A traduo da poesia francesa no Brasil. In: ____. Antologia da poesia francesa. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 435-462.

2 0 12

- jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A L E T R I A

31

Você também pode gostar

  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.64
    Carta 1 - Vol.64
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.64
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.64
    Carta 1 - Vol.64
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.64
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • DN
    DN
    Documento2 páginas
    DN
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • 2016 Gabarito PDF
    2016 Gabarito PDF
    Documento1 página
    2016 Gabarito PDF
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.40
    Carta 1 - Vol.40
    Documento1 página
    Carta 1 - Vol.40
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.48
    Carta 1 - Vol.48
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.48
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.39
    Carta 1 - Vol.39
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.39
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.41
    Carta 1 - Vol.41
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.41
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.37
    Carta 1 - Vol.37
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.37
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.36
    Carta 1 - Vol.36
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.36
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações
  • Carta 1 - Vol.38
    Carta 1 - Vol.38
    Documento2 páginas
    Carta 1 - Vol.38
    Sara Russell
    Ainda não há avaliações