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CAPITULO DOZE Os Papéis que as Pessoas Assumem Sean McCurdy poderia convencer qualquer um dequalquer coisa. Os irlandeses sempre foram os reis da conversa, e Sean era o melhor deles. Nasceu em Nova Jersey e mudou onome “John” para a sta forma escocesa aos vinle ¢ um anos. Du ranle toda a sua vida ele afiou e poli o precioso dom da conversa. Na sua juventude, aqueles encaracolados cabelos vermethos venderam mais revistas, doces e papelaria perso- nalizada do que qualquer um na escola, O conjunto conse- guiu uniformes, a biblioteca comprou livros, 0 time para debates vinjava em excursdes estadais — e boa parte disto era financiada pela sua conversa infalivel. No colegial, ele vendia espagos para antincio no jornal dio colegio e jornal que era uma folha dobrada passou a ter oito paginas requin- tadas, com folocdpias e insergdes que s6 0 dinheiro pode comprar. : Sentado no nosso escritério para aconselhamento voca- cional, com o sol do Texas brillundo pela janela e a sua carreira de vendedor a deriva, clese perguntavaoqueestava havendo, Fle acabara de completar vinte & sete anos, Seus eaheloscor decobre halansavam com a cabesa. “Ew do suporto mais essa frustiagao. Eu sow o melhor vendedor que vocé ja conheceui e, no entanto, nio consigo ficar num 162 emprego mais do que alguns meses. Seis meses no maximo. E depois...” ele sacudiu a mao "E depois vai tudo por agua abaixo. Eu nao consigo ver a minha culpa em nenhunm dos incidentes. Mas deve haver algo, porque eles continuam acontecendo.” “O que é que vocé vende?” “ Qualquer coisa que tiver no depésito. Menos computa- dores. Eu no sou informatizado e € preciso entender do assunto, senfo o fregués € que vai me informar a respeito do produto. De resto eu vendo tudo. Ja vendi sapatos, carros usados, processaclor dle alimentos ¢ até méveis para bebés, Eu gostava bastante deste empregocoma mobilia de bebés.” ““O que aconteceu para voce ir embora?” “Nao fui embora. Me despediram. Salario minimo mais comissio, A gente trabalhava com duas linhas nacionais de bersos, cadeirinhas e outras coisas e tinha também a prépria linha da loja, As marcas nacionais eram mais caras e daf que vinha o dinheiro grosso. Fra preciso trabalhar na venda do produto caro sem criticar a marca da loja. Jé viu que desafio? Eu vendi setenta por cento das mercadorias registradas e a venda bruta daquele departamento subiu cento e seis por cento nos quatros meses que eu estive 1A.” ‘Mas eles te despediram.” "Meu superior direto me despediu. Ele prometeu pagar uum bénus adicional a qualquer um que excedesse a cola mensal de comissdes. O primeiro més ainda foi devagar, Porque eu estava treinando. No segundo més, eu excedi a cota e ganhei um cheque insignificante, mas tudo hem, O tereeiro m@s foi excelente, Mas nada de cheque. Fu dei a cle trés semanas para acertar a situagio e depois eu. proenchi uma requisicao formal. E pronto! Pui pra raat” “Que motives ele dew?” “Disse que nao podia trabathar com pessoas que desa- fiam." “E quiais os molivos para ele seguraro cheque?” “Ble disse que esquocen, O que mais ele poderia dizer? ‘Voce vende mais e ett estou voltando atrés na minha pro- moesa’?” 163 "Bo emprego antes deste?” "Dois meses com uma agéncia de automéveis no centro, Euestava justamente comecando a ficar afiado.” “Por que voce foi embora?” “© gerente de vendas estava sempre em cima de mim. Nunea uum elogio. $6 comentarios do tipo ‘Por que aquele casal saiu sem comprar?’ ‘Aquele sujeito teria gostado do carro preto eno do carro amarelo. Os velhos preferem carros pretose brilhantes’.” "Despedido?” “Pui embora depois de uma briga feia. E claro que a intengo do vendedor é garhar dinheiro mas existe af um ‘grande segredo: O seu carinho ea sua atengdo com as pessoas tém queser verdadeiro. O seu fregués merece o melhor. Fazer com que ele consiga isto, é um privilégio seu. Aquele gerente no davaa menor atengao aos fregueses, nem aos seus subor- dinados. Eu no poderia trabalhar nestas condigées.” Eu ndo poderia trabalfuar nestas condigdes. O gerenteanterior nao podia trabalhar comalguém que «esafia, Enquanto Sean ‘McCurdy esmiugava o seu fragmentado curriculo — treze ‘empregos nos tiltimos trés anos — 0 quadio comecou a fica do. Era facil discernir 0 padrao externo, por ser repetitive e uniforme — Um vendedor eficiente e carismatico que nunca teve problemas em conseguir uma colocagio. Passadas algu- ‘mas semanas ou meses, o patrio seria terrivelmente injusto com ele. Depois de uma briga inevitavel, Sean seria despedi- do ow saitia sozinho, ricochetearslo pelos empregos. ‘Oquadro que havia portrds deste padrao dew aSean uma chave que abriu as portas. O pai abandonou ele e a mae, quando Sean tinha quatzo anos de idade. A sta mente due- lavanaescuridao com uma imensa eescondida raiva dirigida a0 pai e, por extensio, a qualquer imagem de autoridade masculina. Ele nunca tinha reconhecido nem administrado esta raiva. Toda vez que ele encontrava um patido, ele jogava as suas expectativas li para cima, Este patrio serd amavel e 164 perfeito, faré justica a imagem paterna. Vocés estao lembra- dos da intensa necessidade que o codependente tem de conserlar 0 pasado? Repetir o passado e dessa vez fazer certo? E claro quea figura de autoridade/ patrao/ pai, porser humana acabaria estragando tudo miais cedo ou mais tarde. Geralmente mais cedo. A miragem de perfeicio desaparecia e a raiva de Sean subia descontrolada. O passado nao foi remediado, 0 seu tanque de amor continuava no vazio, a necessidade do pai que fosse carinhoso e perfeitocontinuava. Ele no tinha a menor idéia de onde vinha aquela frustragao dolorosa, Nao existe malicia nesse relacionamento substituto. O Sean nao detestava aquelas pessoas. Ele era um ator que nio conhecia o set papel e nem sabia que estava atuando, Sean precisou entender — no s6 com a mente mas também com 0 coracdo — que ao entrar num ambiente de trabalho ele estava sempre a procura de mais do que isto. LA no fundo, ele estava recriando a poderosa dindmica familiar, a relacio paie filho. Podem ficar certos que Sean nio esta sozinho. Quase todos nés somos assim, até um certo ponto, mas como sem- pre, o codependente leva isso, inconscientemente, ao extre- mo. Gladys Jordan, que encontramos no inicio do livro, recriou a relacao pai e filha no seu casamento. O John fez a mesma coisa ¢ esses fantasmas azedaram a uniao. O Sean foi mais além, ele estava sempre reencenando o relacionamento pai e filho que habitava os seus sonhos, mas nunca se reali- zou. Além de estragar as suas relagdes de trabalho, estas encenacdes tinham um objetivo inconsciente que era impos- sivel de ser aleangado: remediar 0 passado. A COMPLEXIDADE DOS RELA INTERPESSOAIS JONAMENTOS, Nossas vidas interiores sao feitas de uma complexa teia de relacionamentos interpessoais. A codependéncia pode distorcer esta trama de forma dramética. Ela pode inventar papéis que nao deveriam estar no cendrio da nossa vida. Ela pode deturpar papéis que nos sdo essenciais, Ocodependente — quase como um autor ou roteirista — constréi uma complexa trama de relacionamentos que vai muito além do ébvio, transformando sutilmente emprega- dores (no caso de Sean), cOnjuges (no caso dos Jordan) € oultras pessoas em figuras paternas; transformando médicos e padres em pais posticos, trocando os papéis das pessoas na coxia de suas mentes. Nido é preciso se esfoxcar para ver a elaborada gama de papéis interpessoais que cada um de nés cumpre: geni- tor(a)/filho(a) (uma pessoa pode fazer os dois papéis, de- pendendo do parente), marido/ mulher, irm/irmao, chefe/empregado, professor/estudante, treinador/atleta, médico/ paciente, padre/leigo, irma/irma, irmao/irméo, s6 para citar alguns — endo estamos vendo a questdo da idade: mais velho, mais moco, irmao mais velho/irmao mais moo, ma mais moca; terfamos que ver isto em irma mais velha cada relagao, ‘A pessoa que cresceu numa familia disfuncional, a pes- soa cujo tanque de amor esta baixo troca, inconscientemente, 08 papéis daqueles que esto 4 sua volta, buscando recriar com as pessoas disponiveis a mesma dindmica familiar ori- ginal, a dor da familia original, a situagao da familia original. Dessa vez.o problema vai ser remediaclo, a dor vai ser alivia- da ea situagio vai ser corrigida. ‘A propésito, o peso desta troca de papéis muitas vezes atinge as figuras de autoridade religiosa (mulheres no papel de conselheiras também podem ser vulneraveis). Por seem considerados homens de Deus, eles sao, as vezes, confundi- dos com o prdprio Deus e se transformam em um alvo para erem para eles 0 papel de ‘pessoas codependentes que tra tum pai bom out cle um pai mau lalvez um hersi, um vilio ou ambos. Nossa clinica atende muitos pastores ¢ as histérias que eles trazem do campo de batalha surpreendem sempze. O pactor pode encontrar no seu oficio uma muther on nm 166 homem querendo fazer dele um substituto para ocdnjuge (as vezes até no contexto sexual) ou para um genitor do qual aquela pessoa precisa lemais. A sofreguidao das necessidades desse paroquiano exige do pastor toda e qualquer energia que ele tenha, deixando-o drenado, sufocado — e tem todos os motivos para se sentir assim — a no ser que ele ‘enha a sua drea bem delimitada, com o seu circulo muito bem desenhado, ‘Uma hora depois ele pode ter um outro paroquiano que tomou assento e comecou a despejar toneladas de raiva. O pastor fica ouvindo atentamente tudo o que a pessoa estd fazendo de errado, de que forma ela nao é perfeita, porque ele no ver & missa ou nao da contribuig6es a igreja. Essa pessoa esta descarregando em cima do pastor raivas e frus- tuagdes pessoais que elando vé. Como sendo bastasse, muitas dlessas pessoas acham que esto fazendo um favor ao pastor Digamos que dentre cem almas que freqiientam igreja, oltenta sojam cristios saudéveis e os outros vinle lenham sérios problemas emoc’ Por isso o pastor deve para poder lidar com o vasto espectro de p mites ser uma pessoa com a nogio exata pessoais, Iblemas dbvios eescondidos; ele deve entender a mecdnica da codependén- cia. Infelizmente muito poucas autoridades religiosas tm. .des de reconhocer e lidar com problemas de codepen: déncia, As pessoas costumam generalizar a esse talvez exista, mesmo nas profissdes de ajuda, uma certa respeilo, mas tendéncia para atrair possoas que tém os seus préprios pro. nindo que 0 chamado blemas de codependéncia para resolver. Ass stor tenha entrado p. 20 cleroatendendo au dle Deus, ele mesmo as star sujeito a elinamica n poderia emocional da sua propria codependéncia — anecessidadede ossidade de ajudar,a necessidade de remediaras coisas, ane ser tudo para todos, Se o radar codependente deste pastor entrar em fe um/a fre: giientador/a da igroja. a confineko estard formada — espe. ‘nia com o radar codependien 167

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