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‘UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS — UNICAMP INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS — IFCH PROGRAMA DE DOUTORADO EM CIENCIAS SOCIAIS UNICAMP . BIBLIOTECA CENTRA Maria Cristina Pompa SECAQ CIRCULANT RELIGIAO COMO TRADUCAO Missionarios, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial Tese de Doutorado apresentada a0 Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientago do prof. Dr. John Manuel Monteiro Este exemplar corresponde a redagio final da tese defendida e aprovada pela Comissio Julgadora em A §2001 Campinas Maio de 2001 i Baie oRRIOTEGA CONTRA, 450 FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP PIT2r Pompa, Maria Cristina Religido como traducdo : missionarios, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial / Maria Cristina Pompa. - - Campinas, SP : [s. nj, 2001. Orientador: John Manuel Monteiro. ‘Tese {Gontorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas, 1 fading da América do Sul - Religiio. 2. indios da América do Sul - ftistéria. 3. Jesuitas ~ Missdes ~ Brasil. 4, Brasil — Nordeste ~ Historia. I. Monteiro, John Manuel. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas, 1. Titulo. ii RESUMO Este trabalho traz uma analise historico-antropologica do processo de encontro entre indigenas ¢ missionarios no Brasil colonial. A pesquisa visa reconstruir os percursos histéricos especificos através dos quais horizontes culturais diferemtes (a religido cristé ocidental, por um lado, e os sistemas mitico-rituais indigenas, por outro) constituiram-se como instrumentos conceituais para construir 0 sentido do “outro”, que a realidade colonial colocava como problema. Identificando as linhas essenciais da releitura e da rearticulacdo destes horizontes, a tese procura mostrar que ‘© encontro entre a religido ocidental e o mundo simbélico indigena foi, mais do que a simples imposigdo da primeira ¢ o cancelamento do segundo, um processo de tradugdo reciproca, em que os simbolos de um e de outro constituiram uma linguagem de mediagao. O que se propde ¢ uma anélise que compara dois momentos sucessivos deste encontro: o primeiro entre missionarios, viajantes ¢ indios tupinamba do litoral, no século XVI, e 0 segundo entre missiondrios ¢ indios “tapuia” do sertio do nordeste, nos séculos XVII e XVII. O primeiro momento tem como pano de fundo 0 contexto cultural do debate filosdfico ¢ religioso sobre a natureza dos selvagens ¢ a possibilidade de sua catequese. O segundo momento envolve uma andlise das fontes voltada para uma nova leitura da histéria do sertéo e de seus habitantes. A comparagdo mostra diversos processos desencadeados pelo encontro: em primeiro lugar, 0 processo de construg&o da “religido dos selvagens”, no século XVI, a partir da adaptagdio dos esquemas conceituais medievais ¢ renascentistas, proceso este que de alguma forma acabou influindo nas ciéncias sociais contemporineas; em segundo lugar, as transformagées intemas ao projeto missionario, a0 longo de dois séculos, em suas relagdes com os objetivos catequéticos, com a realidade politica colonial e com grupos indigenas diferentes; em terceiro lugar, as diferengas nas estratégias de sobrevivéncia cultural ¢ fisica dos diversos grupos indigenas, abrangendo a recusa, a aceitagdo e a transformagio da mensagem cristd a partir de seus proprios universos simbélicos. iii ABSTRACT This thesis presents an historical-anthropological analysis of the encounter involving Indians and European missionaries in colonial Brazil. The text seeks to reconstruct specific historical trajectories through which distinct cultural horizons (Christianity, on the one hand, and the mythical and ritual universe of indigenous peoples, on the other) developed conceptual tools used in constructing a meaningful “other”, In identifying key elements for rethinking these horizons, this thesis purports to show that the meeting between Western religion and the symbolic universe of the Indians was far more than the simple imposition of the former or the total subversion of the latter, actually, it involved an intricate process of reciprocal translation, in which symbols from both traditions provided an idiom of mediation. Adopting a comparative focus, this work analyzes two successive moments of this encounter: first, between missionaries, colonists, and Tupinambé Indians along the coast during the sixteenth century, and second between missionaries and “Tapuia” Indians in the northeastern sertdo (backlands) during the seventeenth and eighteenth centuries. The first situation is discussed against the backdrop provided by the cultural context of the sixteenth-century philosophical and theological debate over the nature of the savages and the prospects of their conversion to Christianity. The second situation requires a more elaborate analysis of documentary sources in order to reconstitute the little- known history of the sertdo and its inhabitants during this period. In each situation, the encounter unleashed various processes. First of all, the sixteenth-century experience involved the construction of a “religion of the savages”, based on the adaptation of medieval and renaissance conceptual schemes, which in fact have also influenced modem social science formulations. Second, missionary strategies and procedures underwent significant changes over the first two centuries, with respect to their goals regarding conversion, their relationship with broader colonial policies and agents, and their relations with different indigenous societies. Third, indigenous groups themselves adopted different strategies for physical and cultural survival, which involved either refusing, accepting, or transforming the Christian message based on resources derived from their own symbolic universe. Para Sigis, que no sabia de antropologia, mas gostava de historia, “Aquela cultura foi destruida. Respeitar nela o residuo de indecifrabilidade que resiste 4 qualquer andlise nfo significa ceder ao fascinio idiota do exdtico e do incompreensivel. Significa simplesmente aceitar uma mutilagdo historica da qual, num certo sentido, somos vitimas também”. (Carlo Ginzburg, // formaggio e i vermi, 1976.) vii AGRADECIMENTOS ‘A John Monteiro, peia orientagao, pela confianga, pela seguranca. A Emilia Pietrafesa, pela paciéncia, pelo cuidado, A Robin Wright, pelo didlogo. A Adone Agnolin, pela lembranga das raizes. A Nicola Gasbarro, pelo crescimento das raizes. A Laura de Mello ¢ Souza ¢ Ronaldo Vainfas, pela competéncia. ‘Aos padres De Cock, SJ, ¢ Isidoro Agudo, OFM, pelo-avessoraos tesouros.““""""~ A José Mindlin, pela sabedoria. A Isabelle Braz, Regina Celestino, Vittorio Consiglio, Antonieta Vieira, Renata Paotiello, pela amizade, A Almir Diniz, pela cumplicidade. ‘A Walmir, R6, Sofia e Luisa Biella, pela existéncia. A Maria Alice Brandio, pelo abrigo A Paola Franciosi, pela correspondéncia. A Fapesp, pelas sobrevivéncia. A todos 0s outros, pela tolerancia de minha distragdo. E, sobretudo, ‘A Sandra Vezzulli, a mamma, pela espera. A Mondino Pompa, Sigis, pela meméria, SuMARIO INTRODUCAO... PRIMEIRA PARTE - SECULO XVI: OS TUPINAMB: CAPITULO 1, O ENCONTRO E A TRADUGAO.. Os viajantes e seus selvagens sersaseeese A religido dos Tupinamba. CAPITULO 2. TERRA DE MISSA‘ A missio no Brasil.. Linguagens e tradugdes, CAPITULO 3. O “PROFETISMO TUPI-GUARANI”: UM OBJETO ANTROPOLOGICO... A construgao do profetismo. CAPITULO 4. TEXTOS E CONTEXTOS. As migragées tupinambi..... Leituras e tradugdes.... CAPITULO 5. MITO, RITO E HISTORIA. Os caraibas e suas ceriménias..... Cosmogonia e Catastrofe entre os Tupinambi, SEGUNDA PARTE - SECULO XVI: OS “TAPUIA” CaPITULO 6. © SERTAO: A OCUPACAO DO ESPACO.. O sertio do Nordeste no século XVI... Os holandeses ¢ seus aliados .... CAPITULO 7. OS “TAPUIA” .. Uma etnografia histérica.. A Guerra dos Barbaros CAPITULO 8. MISSAO NO SERTAO Os capuchinhos. Os jesuitas Outtras OFdens enennesneen CAPITULO 9. A RELIGIAO “7 PULA” Fragmentos de um universo simbélico Catequese nas aldeias. A guisa de conclusao. Fontes manuscritas....... Fontes impressas. Fontes secundarias .... Mapas, tabelas e ilustracées Sertées da Bahia ¢ de Permbuco (Antonil) . 202 Mapa etnografico do Nordeste do Brasil (Hemming). 220 Homem e mulher tapuia (Wagner — Marcgrave) . 250 303 eves 307 320 343 Tihas do Séo Francisco (Martinho de Nantes). Missdes do Sao Francisco (Edelweiss) Mapa jesuitico (Cartes) cence Lista das missdes na Bahia em 1758 (Caldas) Abreviaturas ABN Anais da Biblioteca Nacional AN Arquivo Nacional do Rio de Janeiro ARSI Arquivum Romanum Societatis lesu DH Documentos Historicos da Biblioteca Nacional RIHGB Revista do Instituto Historico Geografico Brasileiro RIAGB Revista do Instituto Arqueologico Geogrifico Pemambucano xii InTRODUCAO Quando se fala em indigenas ¢ missionarios no Brasil colonial, o que se evoca imediatamente sio as cartas de Anchieta e Nobrega, a narrativa de Cardim, os Tupinamba ¢ suas migragdes em busca da “Terra sem Mal”. Com efeito, a esmagadora maioria dos trabalhos sobre indios, religido ¢ catequese durante a época colonial focalizam exatamente estes assuntos por duas razées: uma pratica e uma tedrica. ‘A razio pratica diz respeito as fontes: 0 material sobre os Tupinamb parece inesgotavel. De Thevet a Léry, de Nobrega a Cardim, de Soares de Sousa a d’Abbeville, até Montaigne e Muratori, todos os autores do século XVI e XVII descreveram em mintcias este incrivel “outro”, canibal e profeta, que a descoberta da terra de Santa Cruz colocava como problema para 0 mundo ocidental. Ja a razio teérica tem a ver com o costume, difundido entre historiadores ¢ antropdlogos, de configurar 0 encontro entre os missionarios ¢ os indigenas na época colonial como uma choque entre dois blocos monoliticos, um impondo seus esquemas culturais ¢ religiosos ¢ 0 outro absorvendo-os, sendo destruido (ou aculturado) por eles ou, no maximo, “resistindo”. Neste sentido, a oposigdo Jesuitas-Tupinamba, uns demonizando, aldeando ¢ catequizando, os outros resistindo em volta de sua imutavel tradigdo, responde bem a este modelo Juan Carlos Estenssoro (1999) afirma que a antropologia ¢ a historiografia tendem a construir uma imagem errénea da sociedade colonial, onde indios € missionarios aparecem como esferas opostas ¢ irredutiveis: os primeiros procurando permanecer 0 mais perto possivel ao que eram antes da conquista, os segundos tentando a todo custo assimilar a populagiio local para melhor domind-la. O olhar do ocidente (historiador e antropélogo) tende a congelar os indios ¢ tird-los da historia, mas da mesma forma coloca a religio ocidental sob 0 dominio da historia de longa durago. No esquema interpretative que opde resisténcia e dominagio, 0 catolicismo oe é visto como um sistema imutavel, tanto quanto a suposta £6 pré-colombiana dos indios. Pelo contrario, a riqueza das fontes americanas mostra um mundo de rapidas mudangas, tanto na populacao indigena e suas cren¢as, quanto na redefinicado constante dos contetidos da evangelizagio. . A mesma idéia de “duplo movimento” informa esta pesquisa. As fontes sobre 0 ~ Brasil colonial mostram também a dialética do enéontro na qual ha um constante trabalho de transformacdo no plano das praticas e dos simbolos, onde’ as primeiras veiculam os segundos ¢ so, ao mesmo tempo, determinadas por eles. Este processo tem suas raizes nos primeiros contatos entre missionarios e Tupinambé do litoral, no século XVI, mas ndo se esgota com a virada do século, onde termina a maioria dos estudos, mesmo recentes. Nem termina com a extingfo ou a assimilagio dos Tupinamba. A dinamica do encontro simbdlico, e concreto, entre indigenas e missionarios continua, de outras formas, em outros lugares e com outros indios. Esta tese é uma proposta de estudo desse processo, sem esquecer obviamente das relagdes de poder, mediante a insergdo, no panorama das pesquisas sobre o mundo indigena colonial, de uma outra dimensio, a ser analisada comparativamente a dos Tupinamba do litoral do século XVI: a dos “Tapuia” do sertdo do nordeste no século XVII! Um aspecto negligenciado nos estudos sobre o Brasil colonial, depois das memordveis paginas de Capistrano de Abreu, ¢ a construgio da colénia no sertio. Muito recentemente, o trabalho de Pedro Puntoni sobre a chamada “Guerra dos Bérbaros” (1998) descortinou este universo, até entio conhecido apenas pela historiografia regional, mostrando o papel fundamental exercido pelos grupos indigenas na gestago do Brasil-colnia no nordeste semi-drido, quer como aliados dos portugueses, quer como “inimigos”, resistindo a penetragao do gado e do poder colonial nos sertdes. Os Jandui, os Payayé, os Paiaci, os Kariri e os outros “Tapuia” apresentados nas paginas de Puntoni, entretanto, parecem desaparecer com o fim da guerra: os que 1 Q uso das aspas para o termo “Tapuia” se justifica pelo fato de ser este, como veremos, uma categoria colonial ¢ no um etnénimo, -2- sobreviveram teriam sido engolidos pelas aldeias missiondrias e, depois, diluidos na populagdo cabocla. Eles se configuram como atores do processo de construgao da colnia sem que, porém, apareca um “ser Tapuia”, ao mesmo titulo do “ser Tupinambé”, ja trabalhado por muitos historiadores. © desafio desta pesquisa, portanto, ¢ justamente 0 de fazer emergir, a partir dos documentos coloniais, este “ser Tapuia”, ou melhor, o quanto do “ser Tapuia” mudou e foi mudado - ¢ nao apenas aniquilado - pelo “ser portugués” ¢ pelo “ser missionario”, no momento do contato e a0 Jongo da catequese. Como todas as pesquisas, esta também nasceu de uma curiosidade e de uma insatisfagdo, surgidas durante um trabalho anterior sobre os movimentos sécio- religiosos do sertéo contempordineo, os chamados “messianismos risticos” brasileiros (Pompa, 1995). Aquela pesquisa mostrou que as manifestagdes “messidnicas” do Nordeste sao incompreensiveis fora do sistema simbélico - 0 que poderia ser definido como a “Cultura do Fim do Mundo” - em que se traduz o catolicismo popular sertanejo. A curiosidade, portanto, foi a de entender a génese, histérica e cultural, deste catolicismo. A insatisfagio foi um desdobramento da curiosidade: todos os estudos sobre 0 sertio que envolvem a dimensio simbélica, ou religiosa, partem j4 do “dado” da religiosidade penitencial e sofredora, como se esta fosse inscrita ab imis na alma ena carne do sertanejo. Indicagdes sobre a “escatologia sertaneja”, vista como parte central do sistema cultural regional, aparecem constantemente - mas sempre de uma forma residual. O discurso sobre a religiao, ou melhor, o “misticismo”, corre paralelo a0 discurso sobre o “atraso” sertanejo - ¢, aliés, 0 define. Falar em sertao é falar em Pedra Bonita, Canudos, Caldeirao, nas procissdes de penitentes ¢ no fim de mundo. Mas esse universo religioso permanece em uma posigao de constatagdo fenomenoidgica, sem que nenhuma das categorias interpretativas privilegiadas pelos autores consiga dar conta dele. O religioso, o simbélico parecem nao ter 0 mesmo estatuto explicative do “politico”, do “social”, do “econdmico, do “psicossocial” assim por diante A primeira pista de investigagao foi dada por uma trabalho de Roger Bastide (1975), em que 0 socidlogo afirma que no sertio a religido é tio tragica e torturada <3. quanto a paisagem: religi&o de célera divina, de peniténcia e de apocalipse. Num solo em que a seca encena imagens do Juizo Final, o penitente, vergastado pelas disciplinas, lava com seu sangue os pecados do mundo e o profeta substitui o padre. Bastide foi o primeiro a fazer a coligacio histérica entre “fanatismo” nordestino, raizes mitolégicas indigenas e pregagdo missiondria, afirmando que o elemento cristao, cujo ponto alto eram 0 sofrimento ¢ a punig&io dos pecados, substituiu o elemento indigena ¢, quando ‘os immios pregadores partiram, profetas leigos os substituiram, anunciando o fim do mundo. Minha hipétese de trabalho, portanto, era a de que os conjuntos simbélicos de carater apocaliptico ¢ penitencial da religiosidade popular sertaneja fossem o resultado de uma dinémica historica complexa, que tinha no encontro entre as culturas indigenas (cosmologizantes e mitificadoras) e a cultura ocidental (historicizante ¢ providencialista) © em suas categorias pecutiares de leitura interpretagdio das “alteridades” humanas, seu ponto de partida, Estava também convencida de que as figuras matriciais dos pregadores errantes (os “conselheiros”) estivessem, por um lado, nos missiondrios que percorriam os sertées no século XVII €, por outro, nos xamas indigenas, que muitas fontes descreviam como “errantes” “andejos”. O “profetismo tupi-guarani” oferecia um ponto de partida significativo para pensar na apocaliptica indigena como raiz cultural, passada pelo filtro catélico, da apocaliptica camponesa. A partir desta hipotese, comecei a pesquisar as fontes sobre 0 movimento de evangelizagao no serto, a partir no século XVII. A area escolhida compreendeu a bacia do baixo-médio e baixo Sao Francisco com a regiao das ilhas e sertées adjacentes: principalmente o “sertio de fora”, constituido pela regitio das Jacobinas (entre os rios Vasa Barris e Paraguagu) ¢ algumas areas especfficas dos “sertdes de dentro”, como a serra de Ibiapaba, no Ceara, e a regio do Apodi e do Agu, no Rio Grande do Norte. A razo desta escolha foi a quantidade do material existente a Tespeito destas regiées, principalmente as cartas jesuiticas das aldeias missiondrias das Jacobinas ¢ do Sao Francisco ¢ as relagdes capuchinhas das missdes das ilhas do Sao Francisco. Mas, como freqiientemente acontece, no decorrer do trabalho a pesquisa tomou outro rumo, devido a duas ordens de fatores, reconduziveis 4 problematica da tradugao. Em primeiro lugar, a pesquisa de arquivo (principalmente no Arquivo Romano da Companhia de Jesus) revelou a existéncia de uma massa enorme de cortespondéncia sobre 0 sertio, em sua maioria inédita, ou publicada de forma resumida ou mutilada e, portanto, no satisfatéria. O estado de conservagao dos documentos, a peculiaridade das grafias, o freqitente uso de abreviacdes ¢ o fato de que todas as cartas eram em latim tomnou lenta e problematica a simples transcrigéo e, muito mais, a tradugio dos documentos. Foi portanto necessario fazer alguns cortes, principalmente cronolégicos, no projeto inicial, que previa a extensiio da pesquisa até o século XIX. ‘A documentagio jesuitica termina, obviamente, com a expulsdo dos inacianos, em 1759, enquanto as fontes capuchinhas, escassas sobre o século XVII (com excegio das relages de Martinho e Bernardo de Nantes), se tornam extremamente ticas no século XIX. Como as fontes privilegiadas foram as jesuiticas, por razdes que se tornarZo claras no trabalho, a pesquisa pode-se considerar concluida com o fim das aldeias missionarias, na metade do século XVII. Ficou para uma fase futura 0 exame da documentagio sobre o século XIX e as “santas missdes”, onde € possivel identificar mais claramente os temas apocalipticos ¢ milenaristas que permeiam hoje a religiosidade popular sertaneja e que ndo se encontram de uma forma tao evidente na documentagao jesuitica do século XVII, como eu tinha imaginado . A segunda ordem de consideragdes remete ao plano epistemolégico. A riqueza do material fez explodir um problema: o do encontro ¢ da tradugdo entre sistemas simbélicos, 0s ocidentais e os indigenas, com certeza desiguais do ponto de vista de seu poder de imposigdo, mas que de qualquer maneira, para além do choque, entraram em comunicacao. A tese acabou se tornando fundamentalmente, portanto, uma pesquisa sobre a construcdo do sentido do outro, ou seja, sobre os cédigos colocados em jogo, de um ¢ de outro lado do encontro colonial, para entender a alteridade humana que penetrava de uma forma to inusitada e violenta no mundo ¢ no fluir da histéria, criando para tanto novos universos simbélicos com os fragmentos 3. dos tradicionais. Este mundo e esta historia ja estavam “ditos” ¢ “escritos” com uma linguagem peculiar, a da Sagrada Escritura, da Escolistica ¢ dos documentos eclesidsticos, por um lado, ¢ a dos mitos e dos rituais, por outro. O encontro fez com que este mundo acabasse, ¢ esta histéria fosse recontada ¢ reescrita, com linguagens que, procurando manter a mesma gramitica, tiveram porém que incorporar termos préprios do “outro”. Assim sendo, o “profetismo tupi-guarani”, que originariamente tinha sido pensado como um plano comparativo de tipo morfolégico, acabou sendo uma dimens&o comparativa mais rica, englobando também uma anilise processual. Com efeito, € impossivel pensar na evangeliza¢do no sertéo, sem ter com clareza a nogdo do que foi a evangelizacao no litoral: aquela é fruto desta, de seus erros e de seus acertos. Sobretudo, a evangelizagdo no sertio realizou-se a partir de um modelo que se criou no litoral do século XVI ¢ que foi submetido a verificagdo e ajustes nas aldeias sertanejas do século XVIL A proposta metodoldgica da comparagdo Tupi-Tapuia segue o método hist6rico-comparativo da escola italiana de Histéria das Religides, que considera os fenémenos religiosos como produtos histéricos, fundando-se sobre o fato objetivo do constante - lento ou rapido, gradual ou radical - mudar das culturas. Mediante a comparagio, este método quer compreender o porte de cada solugao cultural, através do confionto com a situagao anterior € com outras solugées escolhidas por outras sociedades em situagdes andlogas, nunca idénticas (Brelich, 1979). Por isso, a dimens&o comparativa dos Tupinamba ¢ ao mesmo tempo vertical, permitindo acompanhar 0 processo de transformaco da nogdo de misséio no Brasil, ¢ horizontal, levando a identificagdo de processos diferenciados de tradugdo entre universos simbélicos ¢ de respostas culturais, frente a situagdes especificas. Longe de radicalizar instituigdes culturais e teligiosas tradicionais, em que se encontraria a expresséo de seu auténtico “ser” (a “resisténcia”), Tupi ¢ “Tapuia” elaboraram diferentes estratégias de reconstrugdo, simbélica e pratica, do mundo Falando na Conquista, Gruzinski (1988) aponta para o confronto global entre “visées do mundo”, traduzidas em “praticas”: as sociedades postas em contato pela Conquista enfrentaram-se principalmente no dominio das respectivas abordagens do -6- real. Nesta linha, historiadores e antropdlogos estudaram o encontro de weltanschauungen, ocorrido no Brasil-Colénia: tanto no que concerne a conceptualizago da alteridade indigena pelos invasores, quanto do ponto de vista da leitura indigena da alteridade ocidental. A pesquisa historiografica nos textos missionarios pode dizer algo sobre as condigdes histérico-culturais da produgio destes textos, colada a producgio do discurso evangelizador. Um estudo deste tipo volta-se sobretudo para a reconstitui¢ao do lento processo de construgdo intelectual da humanidade “outra”, no seio da propria cultura ocidental. E este um dos interesses da pesquisa aqui proposta: a identificagdo da dialética histérico-cultural interior a cultura dos colonizadores, entre a cosmologia medieval, o humanismo renascentista e a realpolitik colonial. Por outro lado, porém, do ponto de vista antropolégico, ¢ limitante ¢ ingénuo pensar que os textos de missionarios ¢ viajantes no podem nos devolver nada além de informagdes sobre a cultura ocidental que os produziu. Eles podem também, se analisados com as devidas cautelas, contribuir a reconstituigaio da dinamica pela qual © evento histérico da “evangelizagdo”, portador da simbologia religiosa da Europa medieval ¢ renascentista, foi reelaborado pelas culturas nativas a partir de suas proprias representacdes, ou seja, a dinamica interna aos sistemas culturais indigenas, que tomaram ¢ transformaram “para si” 0 que se apresentava como “outro”. ‘As convergéncias de horizontes simbélicos, que as fontes mostram repetidas vezes, niio sio dados preexistentes ao impacto colonial, mas construgSes nascidas no interior das realizag6es histOricas deste ultimo; devemos pensar, portanto, que os elementos “alheios” foram absorvidos pela cultura indigena porque inseriam-se num preciso contexto significativo, isto é, faziam sentido. A criago de um sistema original de representagdes (uma “cultura hibrida”, diria Vainfas, ou uma “cultura mestiga”, diria Gruzinski) foi uma tentativa da cultura nativa de refundar o sentido. O objetivo da pesquisa apresentada aqui é a anilise historico-antropologica deste processo. Esta operagdo historiografica, porém, deve ser conduzida na consciéncia das dificuldades inscritas no campo semAntico (0 dos "textos" missionarios) apresentando uma dupla irredutibilidade, a temporal, expressa na oposigo antigo/modero, ¢ a expressiva, marcada pela oposicdo entre oralidade ¢ escrita. Em outros termos, poe-se a questo da possibilidade ¢ dos limites do uso das fontes escritas, produzidas pela cultura que se autopercebia como tinica legitima produtora de valores de civilizagdo, na reconstituigao da hist6ria das culturas orais, cuja voz foi silenciada justamente pelo discurso “civilizador”. O risco fundamental ¢, obviamente, o de utilizar as informagdes como dados objetivos, esquecendo os determinantes culturais"que-constituem os “filtros” através dos quais os europeus percebiam a diversidade antropolégica e as categorias pelas quais a pensavam e a escreviam. E estes “filtros” nfio s&éo os mesmos para todas as fontes: havia diferencas internas nestes olhares, pois havia percepc6es diferenciadas e estratégias especificas de apreensio ¢ transcrigfo do “outro”, ja que cada autor :provinha de microcosmos culturais aos quais eram destinados seus textos. Evitar completamente este risco seria, como dizia Emesto De Martino (1941), um absurdo tedrico e uma impossibilidade pratica, ja que as categorias de analise pelas quais, enquanto antropdlogos, interpretamos a alteridade, comegando justamente pelo conceito de “religio”, participam também do mesmo proceso historico interno ao ocidente. Por exemplo, os fatos miticos das culturas alheias, enquanto classificados como “miticos”, estiio reunidos arbitrariamente na base de uma historia que nada tem a ver com estas culturas: a histéria que, a partir da relagdo mythos-logos do mundo classico, chega até a época contempordnea. A unica saida razoavel para este paradoxo € refazer explicitamente o percurso da histéria ocidental inscrita nas categorias de observagio das culturas “outras”, num continuo esforgo de historicizagdo: o “etnocentrismo critico”, proposto por De Martino como superagdo deste absurdo tedrico, ¢ a utilizagao nfo dogmatica destas categorias, movida pela consciéncia de sua génese histérica ¢ pela exigéncia de replasmar seu significado a partir do confronto com outros mundos histérico-culturais (De Martino, 1977). Tomar consciéncia da origem histérica tanto das categorias de apreensio da alteridade apresentada nas fontes, quanto de nossas categorias de andlise, ndo significa que as fontes no nos podem transmitir nada além de um discurso ocidental, © nico que seriamos legitimados a identificar e reproduzir, porque todo “interno” nossa cultura ¢ 4 nossa historia. Tendo em vista seu contexto de producdo, definindo © lugar dos atores sociais, identificando os conflitos € 0s ajustes dos interesses de “8. individuos e grupos, os textos nos dizem algo no sobre uma “originalidade” irremediavelmente perdida e impossivel de reconstituir, mas sobre 0 processo de encontro. E por isso que, justamente a partir das nogées demartinianas de “problematizagao do encontro” e de “ciéncia do confronto”, tento, na primeira parte do trabalho, a historicizagio de algumas categorias usadas tanto na leitura dos indigenas pelos primeiros viajantes ¢ missiondrios (as de “profeta” e “santidade”), quanto nas ciéncias sociais contempordneas (0 “profetismo” tupi-guarani). Um segundo risco, mais sutil, é 0 de esquecer que os relatos refletem um processo de “tradug%io” em andamento, ou seja: 0 “outro” descrito pelas fontes ja esti, na maioria das vezes ha muito tempo, num processo de relacionamento com o “eu” ocidental, que é seu proprio “outro”. O que ele “é” e 0 que ele “faz” depende, também, da presenga do interlocutor, para quem a informaco é dirigida e que, possivelmente, a solicitou. Nao estou falando aqui das relagdes de intersubjetividade que se estabelecem entre observador ¢ observado no trabalho do antropdlogo de campo. Os missiondrios no eram antropélogos, apesar de serem considerados freqiientemente os inventores da etnografia e de serem, de fato, os primeiros tedricos de uma antropologia comparada: basta pensar na obra do jesuita José de Acosta, por exemplo (Pagden, 1989 [1982]; Bernand e Gruzinski, 1988). Tampouco quero me referir A questi, j4 amplamente debatida, dos contextos de represstio nos quais a “informag’o” ¢ colhida, como, por exemplo, os registros inquisitoriais (Ginzburg, 1966 ¢ 1976, Rosaldo, 1986, Vainfas, 1989 € 1995). Quero aqui chamar a ateng&o para o fato de que, freqientemente, 0 que os missiondrios, os cronistas, os agentes do governo colonial apresentam em suas fontes sua propria imagem deformada no espelho, em virtude do processo de tradugao apontado acima. Por exemplo, o tratado de paz entre os Jandui de Canindé e os portugueses, de 1692, traduz uma exigéncia dos indigenas desenvolvida a partir de um costume aprendido com os holandeses; ainda, no processo inquisitorial investigando a “Santidade de Jaguaripe”, a heresia tropical é a imagem especular do proprio ritual catélico; finalmente, toda a leitura da “religidio” dos selvagens pelos missionérios é feita nos termos de uma “contrafacdo diabdlica” em que o Diabo, simio de Deus, constréi 0 contraponto infernal da propria divindade -9- Por isso, principalmente no caso “tapuia”, mais do que recuperar uma suposta “originalidade” indigena ¢ reconstruir 0 quanto foi “perdido” ao longo do processo do contato, a pesquisa pode, mais realisticamente, tentar entender as linhas essenciais deste percurso de mediagées. Por isso, também, a contextualizagdo e a historicizagao do trabalho catequético nas aldeias “tapuia” so fardio sentido a partir da dimens&o comparativa constituida pelos Tupinambé: desta forma, a andlise poderd dar conta das continuidades e das rupturas com respeito a catequese dos Tupi no século XVI. Parece-me ser esta a unica maneira metodologicamente pertinente de tentar reconstituir um universo simbélico que, como aparecera claro, no se retraiu em busca de uma preservacio de identidade, mas se abriu absorc&o do outro € & sua propria transformacao. As opgGes tedricas e metodolégicas apontadas se refletem na escolha “técnica” da construgéo do meu préprio texto. Sem entrar na problematica da “escrita da histéria” (de Certeau, 1982; Burke, 1992), ou seja, das complexas relagdes que se estabelecem entre a textualidade da fonte ¢ a propria escrita historiogréfica, é evidente que, na etnografia histérica que se pretende fazer aqui, entram em jogo tanto a questo do uso dos textos como fontes, quanto a da interpretagao das culturas como textos. O desafio da pesquisa é 0 de conseguir dar conta da segunda, a partir do primeiro, sem cair na armadilha da construgdo de um discurso de autoridade que legitima as afirmagées do autor (historiador ou antropélogo que seja) do ultimo de uma longa série de textos. Se a cultura é um texto do qual se pretende desvendar a teia de significagdes subjacentes, onde o significado esta na apreensio da polissemia dos simbolos, produzidos no intercruzamento de diferentes campos seménticos, 0 texto escrito, produzido a partir da interpretacdo (uma, entre as possiveis) de um “objeto”, dentro de uma situagao historica e cultural especifica (uma, entre as infinitas), é talvez o lugar privilegiado para aprender © processo de mediagées culturais, de mudanga de tegistros, de revisdio de cédigos, de tradugdes de uma para outra linguagem, que levou a construgao do proprio texto. Por tudo isso, assumindo o risco de tornar 0 trabalho mais pesado para 0 leitor, a escolha metodolégica na construgao de meu texto é a de transcrever amplos trechos -10- amplos trechos das fontes que, em alguns momentos, poderdo parecer excessivamente compridas, dominando completamente a cena. Elas, de fato, constituem em certos pontos uma narrativa quase ininterrupta, onde a voz de um missiondrio jesuita se mistura a de outro, de outra aldeia, e os dois se colocam como contraponto a voz de um capuchinho, ou do governador, ou de um mestre-de-campo. Nao se trata da ~ pretenstio ingénua de “deixar as fontes falarem”, pois as fontes nao falam por si, mas da convicgio do que a dindmica do encontro, que interessa aqui, se traduz na polifonia da narrativa. E obvio que os textos foram produzidos de um sé lado do encontro (mas nem sempre, como aparece claro nas cartas dos Camarées ¢ de Pedro Poty), ¢ ¢ também dbvio que a nogdo € 0 proprio termo “encontro”, se usados sem as devidas cautelas, acabam por apresentar uma imagem falsa de “equilibrio” cultural, que esconde as reais relagdes de forca e as situagdes objetivas de opressio e até de genocidio. E porém simplista, ¢ nao ajuda o conhecimento da historia indigena, limitar-se a constatag&o histérica de um processo inelutével de apagamento das diferengas (Hemming, 1978) ou a teorizago antropoldgica de uma perda definitiva (Ribeiro, 1982 [1970]). Da mesma maneira, ¢ simplista pensar que o “filtro” através do qual o europeu apreende 0 outro e o escreve em seu texto seja sempre 0 mesmo (uma tio abrangente quanto vaga “cultura ocidental”), em todas as ocasides ¢ em todas as escritas. Ha diferengas de olhares e de escritas, conforme os autores e os lugares dos quais eles falam enquanto atores sociais de um processo mais amplo, que é a construgdo da Colénia no Brasil: o sentido da escrita, e da realidade que a escrita descreve, esta, também, nestes saltos qualitativos. ‘estas narrativas, o “outro” indigena nao € 0 objeto mudo da descrigao alheia, mas se apresenta como interlocutor, determinando as proprias condigdes do encontro. Por isso, acredito que os textos tém que ser transcritos de uma forma suficientemente ampla para devolver um contexte triplo: 0 contexto histérico em que se produziram determinados acontecimentos, relatados pelas fontes enquanto “fatos”, 0 contexto narrative em que se articulam as informagées; 0 contexto cultural a partir do qual os relatos foram escritos e para o qual eles eram destinados, “ie Por isso, na releitura-das fontes sobre o “profetismo tupi-guarani”, procuro recolocar as frases, tantas vezes citadas pelos antropélogos, no interior das narrativas das quais foram extraidas. O resultado, as vezes, é surpreendente. Por outro lado, na Teconstituigo da etnografia historica “tapuia”, bem como na parte relativa ao encontro catequético, varios textos so justapostos, nfio para acumular informacoes andlogas e tomd-las, portanto, “consistentes” (Fernandes, 1975), mas para estabelecer um didlogo entre os prdprios textos, para que cles possam fornecer um quadro suficientemente claro do contexto da comunicagao. Dois esclarecimentos, antes de passar a exposic&o dos t6picos da tese. O primeiro diz respeito a grafia dos etndnimos, As fontes antigas, em holandés, francés, portugués ¢ latim, apresentam enormes variagdes na grafia para indicar um mesmo grupo, cuja identificagéo, porém, nem sempre estd clara. A confusio é acentuada ainda mais pelas transcrigdes, que no so outra coisa que as “traducdes” das quais falei até aqui. Pensamos, por exemplo, na tradug&o francesa de Gerritsz, holandés, que transcreveu em holandés nomes de grupos “tapuia” relatados oralmente pelo potiguara Pedro Poty. Por isso, mesmo na consciéncia de tornar ainda menos Jegivel um texto j4 pesado, preferi no normalizar as grafias, justamente para explicitar os processos miltiplos desta traduciio. Quanto a grafia utilizada no meu texto, conformo-me a convengdo da ABA de 1953: uso do & em lugar de c e q, letra maiuscula para os nomes tribais (com a miniiscula no emprego adjetival), sem flexdo de numero e género: por isso, escrevo por exemplo “os Kariri”, ¢ néio “ os cariris”. Na espera de uma reforma e na falta de um acordo a respeito, fica a convengdo “antiga” e, mais ainda, a observac3o moderna de Eduardo Viveiros de Castro (1999), Para o autor, este tipo de grafia ¢ um modo, simbélico, de reconhecer um coletivo linguistico, étnico ¢ territorial: néo um somatorio de individuos, mas uma coletividade unica, distinta da comunidade nacional, j4 que os grupos indigenas nio tém, hoje, paises ou patrias que se possam escrever com a letra maiuscula. Uma tltima observaco: na etnografia histérica sobre os “Tapuia” é apresentada, embora fique nfo resolvida, a questo da possibilidade destes grupos pertencerem a familia jé. E este um aspecto extremamente interessante mas que foi -12- deixado de lado, seja por falta de competéncia minha para uma andlise deste porte, seja por uma falta de inclinag&o metodolégica para uma comparagdo voltada para 0 preenchimento de lacunas na documentagdo antiga com os dados das culturas contempordneas. Tenho a certeza de que outros saber aproveitar neste sentido as informagées historicas contidas neste trabalho, melhor do que eu poderia ter feito. A tese divide-se em duas partes, articuladas respectivamente em cinco e em quatro capitulos: a primeira, que utiliza fontes impressas ¢ ja muito conhecidas, se refere grosso modo & conceptualizagdo européia do “outro” indigena ¢ a elaboracao do projeto de catequese, a partir do encontro com os Tupinamba do litoral, no século XVI; a segunda, que se baseia fundamentalmente em fontes inéditas ou pouco conhecidas, tenta tragar 0 quadro do encontro entre “Tapuia” (principalmente Kariri) ¢ missionarios nas aldeias do sertio do nordeste, no século XVII ¢ na primeira parte de XVIIL © capitulo 1 desenha o pano de fundo do encontro entre europeus e indigenas na Terra de Santa Cruz, recuperando de um lado o imagindrio medieval e renascentista, ¢ de outro a cosmologia indigena, que presidiram a prépria realizagao deste encontro, bem como a elaborag&o de uma primeira linguagem de comunicagao simbélica. No capitulo 2, a agdo missiondria, principalmente jesuitica, no Brasil, ¢ recolocada do contexto mais amplo do projeto eclesiastico ps-tridentino e é discutida a questio da politica lingiistica missiondria € colonial. O terceiro capitulo ¢ constituido por uma releitura da literatura antropolgica sobre o chamado “profetismo tupi-guarani”, visando remeter as interpretagSes dos diferentes autores as opgdes te6ricas ¢ metodolégicas das varias escolas de pensamento. No quarto capitulo, ¢ realizado um trabalho de contextualizagio das fontes a partir das quais foram elaboradas as teorias sobre o “profetismo tupi-guarani”. Finalmente, no quinto capitulo, tenta-se uma andlise das respostas tupinamba ao impacto missionario e colonial, a partir da dialética entre mito, rito e historia, A segunda parte se abre com o sexto capitulo, que reconstitui a historia da ‘ocupagdo do sertio nordestino no século XVII, acompanhando as entradas de grandes e pequenos curraleiros, por um lado, ¢ 0 estabelecimento das relagées entre indigenas -13- © administragao holandesa, por outro. O Capitulo 7 retine as informagdes “etnograficas” sobre os primitivos habitantes destes sertdes, os “Tapuia”, ¢ seus conflitos com os portugueses, culminados na “Guerra dos Barbaros”. O oitavo capitulo concere as entradas de catequese e o estabelecimento das aldeias missionarias nos sertées, introduzindo novos atores sociais disputando seu papel ¢ seu ~ espago na construgfio da Colénia. O ultimo capitulo recupera, na medida do possivel, 0s fragmentos do universo simbélico “tapuia”, tentado coloca-los em relagdio com 0 discurso ¢, principalmente, com a pratica de catequese nas aldeias: desta maneira, pode-se recompor a dindmica pela qual, absorvendo seletivamente a alteridade e seus simbolos, os grupos indigenas do sert4o do nordeste tentaram reconstruir 0 sentido do mundo. -14- PRIMEIRA PARTE SECULO XVI: OS TUPINAMBA -16- CaPiTULO 1. O ENCONTRO E A TRADUCAO Os relatos de viagem como fruto do processo de “invengaio da América”, como diz O°Gorman, jé foram e continuam sendo muito estudados. Portanto, niio constitui nenhuma novidade, hoje, dizer que, a partir de Colombo, os viajantes encontraram ¢ descreveram apenas 0 que jé conheciam, do Reino do Prestes Jodo ao itinerdrio teolégico, pois a argumentago decisiva no era a prova empirica mas o discurso de autoridade dos eruditos ¢ dos santos. Logo, 0 indio descrito era a alteridade radical (monstruosa, canibal, ou apenas “birbara”) que a Europa jé conhecia bem de toda uma literatura classica ¢ medieval (de Herddoto 4 Navegatio Sancti Brandani, do Livro de Viagens de John Mandeville ao I! Milione de Marco Polo). Muito mais do que fruto de uma descoberta, a imagem do Novo Mundo, nos relatos de viagem, ¢ 0 resuliado de um longo processo de construgao, ou melhor, como apontado por Edmundo O'Gorman ja em 1958, de construgao filoséfica. A “invengao da América” “__ representa o estagio que havia alcangado, em fins do século XV, © proceso multissecular dos esforgos que o homem do ocidente vinha empregando para entender a sua localizagiio e seu papel no cosmos. E assim que, a0 projetar 0 processo da inveng&io da América sobre o fundo de seu proprio horizonte cultural, n&io s6 se explicar o aparecimento desse ente, mas também que 0 acontecimento surgira como uma nova etapa ~ talvez a mais decisiva - daquele antiquissimo proceso” (O’Gorman, 1992.: 72). ‘As imagens ¢ narrativas que os viajantes do século XVI carregavam consigo forneciam uma imago mundi coerente, sustentada e protegida pelo horizonte teolégico. Mesmo quando os horizontes oniricos ¢ fantasticos se apagaram, a “observacao” da realidade continuou se dando através da mediac&o dos esquemas culturais familiares ao observador, mediagiio esta necesséria para organizar € até mesmo para perceber os “fatos”, pois a comparagiio analégica era 0 tnico instrumento epistemolgico de compreensio cultural (Agnolin, 1986, Gasbarro, 1996). Esta idéia da_construco intelectual informa ha varios anos os estudos sobre as imagens dos indios oferecidas pelos viajantes; todos estes estudos voltam-se para a “descoberta” vista como tentativa de solug’o do problema do “outro”. E apenas o caso de lembrar 0 trabalho de Todorov, que mostrou como 0 “outro”, pelo menos num primeiro momento, foi rejeitado por Colombo (nisio, muito mais homem da Idade Média do que da Renascenga), mais preocupado em confirmar o ja sabido pela autoridade dos textos sacros. “Colombo nao tem nada de um empirista modemo: 0 argumento decisivo € 0 argumento de autoridade, no 0 de experiéncia. Ele sabe de antemio 0 que vai encontrar; a experiéncia concreta esté ai para ilustrar uma verdade que se possui, no para ser investigada, de acordo com regras pré- estabelecidas, em vista de uma procura da verdade” (Todorov, 1983: 18). Antes mesmo de Todorov, Gilberto Mazzoleni (1975) chamava a atengiio sobre a descrigao dos “selvagens” em termos de relago entre 0 “diverso” e 0 “igual”, onde o indio de Colombo constituia 0 anti-modelo que ~ oposto ao ocidente — identificava suas peculiaridades e, sobretudo, sua dimensao de cultura “planetaria”, englobadora de diferengas. Este “anti-modelo” assumiu, desde Colombo e sua descrigdo dos déceis Taino e dos ferozes Caribe, um aspecto duplo, fundador a Ieitura dos “‘selvagens” feita pelo ocidente até o século XIX: “Seja no caso de Colombo considerar 0s taino um povo décil que vive antes ¢ fora da cultura (ressuscitando 0 mito de um “paraiso terrestre” perdido), em contraposigao aos ferozes caribe que se abandonaram a uma falsa e feroz cultura (renovando 0 esquema de uma humanidade pré- césmica), como no caso de ambos os poves representarem uma alteridade natural, embora com signo diverso, contraposta 2 cultura, nos encontramos diante de um modo de definir o que a cultura ocidental nao é (ou nao deve ser), Ou entio © que possui a mais em relagio ao estado de natureza” (Mazzoleni, 1992: 42) ‘Sem a pretens&o de oferecer um panorama exaustivo da enorme produgio neste sentido, limitar-me-ei a analisar aqui os enfoques de alguns autores que trabalharam especificamente sobre a imagem do indio do Brasil, construida nas fontes dos séculos XVI ¢ XVIL. -18- Os viajantes e seus selvagens Helene Clastres foi talvez a primeira a questionar as fontes antigas sobre a religiao tupinamba enquanto fornecedoras de dados etnogrificos, como até entio tinham sido consideradas. Nao escapou a antropéloga o fato de que a descrigao dos “selvagens” e de sua religidio (ou, melhor, da falta desta) é uma construgao, devida a impossibilidade de reconhecer nos Tupinamba 0 modelo de alteridade religiosa constituido pelo paganismo “Rebeldes 4 idéias corrente sobre 0 que deviam ser os pagaios — adoradores de divindades multiplas ¢ praticantes de cultos iddlatras, esse indios em nada acreditavam, néo adoravam astros, nem animais nem plantas, nem contando com padres ou lugares sacros....Em suma, estavam até mesmo aquém do paganismo e a dimensio religiosa parecia faltar completamente a sua cultura.” (H. Clastres, 1978:15). As observagdes dos cronistas, entiio, nfo surgem a partir da realidade indigena, mas, ajudadas pela peculiaridade das culturas nativas, contam algo sobre seu proprio sistema de crengas e valores: “As mais radicais tomam os indios perfeitos ateus. As outras, que consentem em creditar-thes algum conhecimento do sagrado, véem neles a imagem da inocéncia: é 0 bom selvagem, de juizo reto, ainda nao pervertido pelo monturo de superstiges obscuras: em suma, os missiondrios chegavam no momento exato para fecundar estas almas virgens.” (Jbid.: 17-18). Ao mesmo tempo, porém, para justificar a evangelizagao, a cultura tupi é apresentada como portadora, em baixo-relevo, da possibilidade de uma religidio monoteista. Neste sentido, H. Clastres desenvolve a andlise dos relatos de Thevet, Nobrega, d’ Abbeville, Staden, Léry. Jean de Léry ¢ certamente 0 mais estudado dos viajantes, a partir de Michel de Certeau. Em 4 escrita da historia (texto que saiu em Paris, no mesmo ano do de Héléne Clastres: 1975), dedicado a andlise da representagao historica transformada em mise en scéne literaria pela pritica da escrita historiogrdfica, 0 relato do calvinista Léry configura-se como uma viagem em busca do eu, cujo produto final ¢ a invengao do Selvagem. A Histoire d’un voyage fait en la Terre du Bresil: “dé uma forma circular ao movimento que ia de cima (ici. a Franca) para baixo (Id-bas, os Tupi). Transforma a viagem em um ciclo, traz de /é- bas, como objeto literario, o selvagem, que permite retornar ao ponto de -19- partida. O relato produz um retomo, de si para si, pela mediag&o do outro.” (Certeau, 1982:214-215), Nesta mesma diregdo movem-se as observagdes de Guillermo Giueci (1992), que analisa a nogo de “maravilhoso”, na literatura de viagem, como forma de narrar ¢ absorver imagens, movimientando-se entre realidade e mito. O maravilhoso, assim, revela mais sobre a ideologia que o engendra e consome do que sobre a realidade que declara reproduzir. Em um artigo sobre a visio inaugural do Brasil, 0 autor avalia o fenémeno da projecdo dos valores lusitanos sobre os natives da terra de Vera Cruz. Os Tupiniquim emergem, na cara de Pero Vaz de Caminha, como birbaros, desconfiados, servis © desprovidos de cultura. Missio dos portugueses ¢ a de incorporé-los ao desenho do expansionismo luso-cristio (Giueci, 1991: 45-64), Assim Caminha, depois de ter verificado que 0s povos encontrados no novo mundo no sdo infiéis, opta pela necessidade da propagagdo da “verdadeira f&” entre eles. Caminha € portanto o grande exemplo da continuidade da cultura religiosa, um tipico representante do humanismo cultural cristo do século XV, aberto a0 conhecimento do outro, dentro dos limites proprios da época. Entre continuidades ¢ aberturas, outro tema importante do horizonte onirico medieval foi carregado para o novo mundo pelos viajantes: 0 mito do Paraiso Terrestre, alimentado pelo “estado de natureza” dos selvagens: “O espago concedido ao homem, ao longo de toda a Idade Médi limita-se a um espago além do qual encontra-se 0 Anticristo; 0s povos que vivem ‘aos quatro cantos da terra’, Gog e Magog ¢ ferocisimae gentes, que alimentam-se de care humana ou de animais crus. Paradoxalmente, entretanto, neste mesmo espaco deposita-se (e este espaco alimenta) a esperanca de encontrar 0 acesso ao paraiso terreno” (Agnolin, 1996: 185). Sobre esta questo, e sobre a dialética edénico/diabélico escrevem outros autores. Um inteiro, extraordindrio livre foi dedicado por Sérgio Buarque de Holanda aos motives edénicos do descobrimento do Brasil, que encontram uma das suas melhores expressdes no “Tratado do Paraiso na América ¢ 0 ufanismo brasileiro”, os famosos ultimos sete pardgrafos da Crénica da Companhia de Jesus, de Simao de Vasconcelos, que “uma ordem superior’ mandou riscar. Como adverte Sérgio Buarque, no preficio de sua obra, 0 tema do Paraiso Terrestre no Brasil se mantém longamente na cultura luso-brasileira: “niio seria Vasconcelos o primeiro, como nao foi o iltimo, a tentar, com sua fantasia barroca, a dar lugar honroso, na América lusitana, 4 mistica ¢ inconstante topografia edénica: 0 ultimo, e ja bem entrado o século XVIIL, deve ter sido um Pedro de Rates Hanequim” (Holanda, 1994: XX1D. Sobre o heresiarca ¢ anéstata Heneauim. morto pela inauisic&éo em Lisboa. em 1744, ha agora a recente pesquisa de Plinio Freire Gomes (1997), que refaz a incrivel trajetéria deste ex colono das Minas Gerais, cuja cosmovisao se teceu entre Vieira, o messianismo judaico, ecos de mitologias indigenas, no polifénico universo cultural da colénia do século XVIII. Laura de Mello ¢ Sousa observa que, se é verdade que as fontes realgam a predomindncia dos motivos edénicos na descrig&o da natureza da nova terra, do lado da humanidade (ou, melhor, sub-humanidade) a alteridade radical representada pelos povos indigenas marca francamente a predominancia do diabélico. A mesma humanidade monstruosa que a Idade Classica ¢ a Idade Média tinham projetado na alteridade antropolégica da india, depois na da Etidpia e finalmeme na da Escandindvia, ia migrando para a América: “cruzam-se no imaginario europeu a migragao do Paraiso terrestre para o Atlantico — as ilhas Afortunadas ~ ¢ a migraciio das marginalidades geograficas — homens selvagens ¢ canibais para a mesma regido! Tudo parece indicar, portanto, que para o Brasil confluiram, desde o fim do século XVI, as formulagées do imaginario europeu acerca de terras desconhecidas € de humanidades monstruosas” (Mello e Souza, 1987.:55), Da mesma maneira, 0 deménio, que a evangelizagio expulsara (ou acreditava ter expulsado) da Europa, reaparecia na América, constituindo-se com a verdadeira “vedete” da heterologia americana (Mello e Souza, 1993: 28-29). Finalmente, a demonizagao do indio e a difusdo dos esterestipos do barbaro, do demoniaco, do canibale do bruxo so analisados por Roland Raminelli (1996), do ponto de vista da iconografia. Esta discrepa freqientemente dos textos dos viajantes € a representagio dos costumes indigenas ndo se pauta pela observagdo empirica, preferindo inspirar-se as alegorias. E 0 caso da cartografia portuguesa, que propoe motivos oriundos do imaginario medieval mais do que a reprodugo dos documentos de jesuitas e colonos. 6 0 caso, também, das “mulheres canibais” das gravuras de ‘Theodor de Bry: “ As mulheres canibais traduzem a alteridade do Novo Mundo, pois antes mesmo da descoberta da América j4 ocupavam um espaco no imaginério cristio” (Raminelli, 1996: 105). A editoria do século XVI reutiliza imagens tiradas de contextos diferentes. E © caso das ilustragdes da Warhaftige historia de Staden, apresentando figuras demoniacas que nada tém a ver com 0 relato. O editor, desta maneira: “no interesse de facilitar a comunicagao entre texto ¢ leitor, recorreu a imagens bem ao gosto da época, quando as bruxas e os deménios rondavam a imaginagao européia, A difusao dos esteredtipos do barbaro ¢ do demonjaco constitui uma forma de absorver a diversidade cultural encontrada no novo mundo. O indio seria integrado ao imagindrio ocidental, recebendo portanto uma classificagio ¢ um valor. Contudo, a maneira de visualizar o indio vincula-se igualmente ao mundo colonial e as disputas em torno da conquista, da catequese e do emprego dos incolas como miao-de- obra. O barbaro seria ento um escravo ou um cristio em potencial” (Jbid. 66). E este, entio, o pano de fundo da cultura de viagem quinhentista e seiscentista, entre Idade Média e Renascenga, entre fé e ciéncia, entre o que deve ver © 0 que vé e, finalmente, entre 0 “edénico” e 0 “diabélico”. Mas hé diferengas internas, Estas, menos trabalhadas pelos historiadores da cultura e pelos antropélogos, mais preocupados com o que de comum eles apresentam, poderiam talvez constituir, hoje, um exercicio estimulante para compreender as oscilagdes na representaco do indigena nas fontes, a maior ou menor ateng3o que elas prestam a fala dos nativos, a escola dos argumentos a serem tratados e dos episédios a serem narrados, e assim por diante. © relato de Staden, por exemplo, longe de encarnar o otimismo dos conquistadores expresso por Pero Vaz de Caminha, parece, ao contrario, configurar- se como o “cancelamento do discurso do maravilhoso” (Giucci, 1991: 220), livre do mito das fabulosas riquezas do Novo Mundo, bem como da preocupacdo teolégica e providencialista de reconhecer, no “outro” indigena o objeto de evangelizagiio e meio de redengio. Staden move-se no pano de fundo da luta entre franceses e portugueses pelo mercado colonial. Embiema disso é © episédio do comerciante francés, que entrega 0 alem&o aos Tupinamba, para que o devorem, como sendo portugués e, portanto, inimigo. No litoral brasileiro da metade de século XVI, as necessidades comerciais organizaram 0 processo de consolidago e oposi¢io de identidades, formando aliancas entre mercadores ¢ indigenas e resultando em dois grupos antag6nicos, nos quais se determinavam também as aliangas ¢ os conflitos entre grupos nativos. Assim: “as -oposighes definem-se, mas. ao mesmo tempo se ampliam; tipificam-se, embora se compliquem, consolidam-se, embora tendam a fagocitar-se: a demonizag&o do ‘outro’ infiltra-se no interior do proprio campo europeu e anuncia 0 cancelamento do mito de sua unidade™ (Giueci, 1992: 213). Este conflito parece refletir-se, de certa forma, até nas diferengas de estilo literario dos relatos de viagens. Neste sentido, Maria Alzira Seixo observa: “Os textos franceses tém um cariter menos narativo e mais reflexivo, comunicando a sistematizagdo de um olhar que ja tem muito de etnografico, embora ainda construido sobre a descrigao e 0 factual imediato; os textos portugueses, de preferéncia, usam a descrigfo para servir a narragdo, ¢ nisso esto muito mais proximos do ato de navegar e inventariar, comunicando a natureza mesma do olhar em trinsito” (Seixo, 1996:129). Também no ambito antropolégico-literario colocam-se as observagdes de Leyla Perrone-Moysés, que desvendam contextos culturais e atitudes pessoais diferenciadas no interior da propria literatura de viagem francesa do século XVI. A conhecida querelle entre Thevet e Léry, por exemplo, é contextualizada pela autora, que lembra que, se as acusagdes de plagio do primeiro ao segundo so verdadeiras, a obra de Léry tem um maior talento narrativo ¢ revela uma notavel abertura para a alteridade ¢ a diferenga. André Thevet, monge franciscano, gragas aos apoios com que contava na nobreza, tornou-se capeldo de Caterina de’ Medici e, posteriormente, cosmégrafo do rei Francisco Il. Les singularite: de la France Antarctique fe2 um enorme sucesso, 0 que levou mais tarde 0 autor a publicar a Cosmographie Universelle, no mesmo estilo heterdclito, caracteristico da literatura geogrifica senascentista. Essas cosmografias eram 0 correspondente, em livro, dos “gabinetes de curiosidades” (Perrone-Moysés, L.1996:86). O calvinista Léry, menos moralista de Thevet, € 0 mais fascinado por estes alegres trépicos. Em sua existéncia sofrida de protestante que vivenciou as guerras -B- Assim como faz Giucc,i na contraposigao entre franceses e portuguese, Raminelli coloca mais claramente esta distingdo entre catdlicos protestantes em seu contexto econdmico-politico das guerras coloniais e de religifio, por um lado, ¢ em seu contexto intelectual de critica & civilizagao ocidental por parte dos reformados, por outro, “O novo--conceito -de -homem selvagem, esbogado por-Léry-e aperfeigoado por Montaigne, demostra a fatiga de individuos e geracgdes perante os costumes ditos civilizados. (...) Para além da critica intracultural, Jean de Léry concebeu 0 indio e 0 mito do selvagem como parte de uma politica colonial ¢ antiespanhola. Em sua narrativa de viagem, a conversiio toma-se um problema capital, pois os huguenotes procuravam levar a palavra revelada onde os ibéricos praticavam atrocidades. O projeto colonial da Franca Antartica ndo se preocupava apenas com a posse do territério, mas também com a criagéo de uma comunidade pautada na obediéncia dos principios cristios” (Raminelli, 1996: 49-50), Thevet e Léry, emblema deste conflito, so analisados também por Fleischmann, Assunco e Ziebell-Wendt (1991), em um texto que se ocupa da relagao entre realidade ¢ ficgdo em quatro autores quinhentistas: Thevet, Léry, Soares de Sousa ¢ Staden. Parece-me que os estudiosos alemdes sejam os primeiros a fazer uma simples mas necessdria operagao: 0 esbogo do contexto histérico em que os relatos foram produzidos. Thevet, Léry e Staden escrevem na segunda fase da historia brasileira do séeulo XVI (1550-1579), quando a implantagéo da economia de plantation leva a fundamental mudanga das relagdes entre europeus ¢ tupi: do escambo para a escravidio, com os indios submissos a destribalizagdo. Neste periodo se agrava 0 conflito entre portugueses e franceses, bem como entre os grupos tupi seus aliados, Soares de Sousa escreve no terceiro periodo (1570-1600) quando guerras e epidemias ja tém dizimado os Tupi do litoral, cujos sobreviventes vivem entio nos aldeamentos jesuiticos. Interessante 0 fato de que, com excecio de Staden, os contatos com os europeus no existem nos relatos, que apresentam o indio no “estado natural”, de acordo com as expectativas do piblico europeu. No interior deste contexto geral, textos e autores sio colocados nos microcosmos culturais dos quais eles provém e aos quais so destinadas suas obras Portanto, 0 texto do mercendrio alem&o Staden parece Ppertencer a um projeto -24- de cunho sensacionalista, sobre um pais até entio identificado por rumores horripilantes (Fleischmann — Assun¢do ~ Ziebell-Wendt, 1991: 132). Thevet ¢ Léry, vinculados empresa de Villegagnon, tém uma formagio andloga, influenciada pela cultura letrada da Idade Média, que se volta porém para fins diferentes: o primeiro é 0 exato contrario de -Staden, ¢ 0 autor profissional, cujos escritos: orientam-se—por- normas de razio estatal; o segundo, apesar dos limites de sua formagio dogmitica, “é um representante da contra-cultura da Reforma, que concede lugar a observagdo em lugar dos preconceitos” (/bid. 134), Finalmente, Soares de Sousa ¢ a contrapartida portuguesa de Thevet: legitimado pela coroa, sua crdnica obedece razao estatal, tendo implicitas as particularidades ibéricas desse género. Soares de Sousa e Thevet sio os menos preocupados com o principio da “verdade”: sendo os representantes da cultura oficial, ttm um encargo, um género predeterminado e um destinatario ¢ nao precisam se legitimar com a autenticidade da experiéncia vivida. Léry e Staden, ao contrario, precisam desta legitimagao ¢ recorrem a formula do “relato de viagem” como experiéncia pessoal, principalmente © segundo, o menos legitimado de todos, que interrompe freqientemente o relato para dirigir-se diretamente ao leitor, chamando Deus como testemunha da autenticidade de suas palavras. Todos este autores mostram que, além do universo cultural que constitui “filtro” através do qual os europeus percebem a diversidade antropolégica ¢ as categorias através das quais a pensam e a escrevem, ha diferencas internas nestes olhares, ha percepgdes diferenciadas ¢ estratégias especificas com que cada cronista apreende e transcreve o “outro” para o papel. A estas diferencas é preciso prestar atengdo, pois, como diz Agnolin pensando em Foucault: “& sobretudo a sua transcrigio e narragio que cabe a responsabilidade de transformar o fato contingente em fenémeno cultural, € determinar as finalidades que assumem a ordem e 0 controle culturalmente estabelecidos” (Agnolin, 1996:195). De todos estes contextos, gerais e especificos, nacionais ¢ religiosos, culturais ¢ politicos, nascem os Tupinamba, “iguais” ou “diversos”, conforme as estratégias, as necessidades, os interesses ¢ as possibilidades de cada autor. Ora, se este trabalho de desvendar diferengas de olhares ¢ fundamental para compreender a ~28- construgao do “eu” ocidental através da conceptualizagao do “outro” indio, ele & vilido também, na mesma medida, para tentar compreender a diversidade de Ppercepgdes e de posturas do proprio “outro”, do indio, frente a realidade européia, ou melhor, as muitas formas com que a realidade européia se apresentava, . Os indigenas nao eram certamente-aquele bloco monolitico que-as.fontes representam através de seu termos conotativos de uma alteridade negativa ¢ genérica: os selvagens, os barbaros. E sua diversidade depende tanto de especificidades culturais quanto de estratégias politicas historicamente determinadas, como no caso das aliangas ¢ dos conflitos entre grupos indigenas no interior do e paralelamente ao conflito entre franceses ¢ portugueses no Maranhao. Tentarei desvendar aqui, na medida do possivel e levando em conta a questio dos limites do uso da fontes escritas, esbogada na introdugdo, estas peculiaridades estas estratégias, no interior de um quadro que esta se apresentando cada vez menos bipolar (indios/europeus) ¢ cada vez mais polifénico, harmonizando ou justapondo de forma contrastiva as vozes dos Tupinambé, dos Potiguara, dos aliados, dos inimigos, dos franceses, dos portugueses, dos catdlicos, dos protestantes. A religiao dos Tupinamba No caso especifico do dominio do “religioso”, as descrigdes dos viajantes e, sobretudo, dos missionarios, so iluminadoras da atitude do ocidente evangelizador frente aos habitantes da Terra dos papagaios. Com efeito, os cronistas ndio véem a ver fatos de ordem religiosa onde a Escolastica néio manda encontré-los; por isto, os selvagens Tupinambé so tio “barbaros” que ndo ém religiio. Mas, por outro lado, com eles precisa se realizar o desenho divino da pregag&o do evangelho aos quatro cantos da terra, Por isto, eles so “gentios”, na acepgao de S. Paulo, ou seja, nao iluminados pela verdadeira fé, mas passiveis de recebé-la. Entre “barbaros” e “gentios”, entre selvagens e inocentes, entre a auséncia de regras morais e a presenga de um fundo de humanidade que pode tomar 0 indio um bom cristo, se joga a partida da construgfio do indigena na terra de Santa Cruz. Entre os Tupinamba, os missiondrios nao encontraram nenhum sinal da “jdolatria” ou do “paganismo” que eles esperavam e que caracterizava outras regides do Novo Mundo, como o Peru incaico ou 0 México azteca: crengas, sacrificios, idolos. Nos relatos, nao apenas de missionarios de diversas ordens religiosas, ou até de diversas confissdes, mas também de viajantes leigos, esta auséncia de crenga, seja mesmo iddlatra, junto com a auséncia de outros principios da civilizagao — também proprios dos pagiios - é patente. J& Pero Vaz de Caminha, poucos dias depois do “achamento”(1500), declarava que “...eles, segundo parece, nfio tem nem entendem em nenhuma crenga” Também pouco tempo depois de sua chegada, o padre Manuel da Nobrega afirmava categoricamente: “é gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem idolos” (10/4/1549) e, em sua Informacao das terras do Brasil (agosto de 1549), reforgava a afirmagio, dizendo que “esta gentilidad a ninguna cosa adora”. Pero Magalhaes de Gandavo, em 1570, ¢ Gabriel Soares de Sousa, em 1587, escreviam que os indios ndo tém “nem fé, nem lei, nem rei”. Também para o jesuita Cardim: “este gentio no tem conhecimento algum de seu Creador, nem de cousa do Céo... e portant ndo tem adoragdo nenhuma, nem ceremonias, ou culto divino” (Cardim, 1978 [1625]:87). André Thevet, de volta da experiéncia entre os selvagens da “Franca Antartica”, assim os descrevia: “...esta regidio era ¢ ainda é habitada por estranhissimos povos selvagens sem fé, lei, religidio e nem civilizagdo alguma, vivendo antes como animais irracionais...” (Thevet, 1978 [1557]: 98). Jean de Léry mostrou em varias ocasides sua aberta simpatia para com os “selvagens”, cujas “barbaries” cram bem menores do que aquelas cometidas na Europa dilacerada pelas guerras de religiao. Contudo, ele teve que reconhecer que é dificil aplicar aos selvagens Tupinamba a famosa sentenga de Cicero, de que no ha nagdo tao barbara e selvagem que nio tenha sentimento de uma divindade “Ver-se-d nesta narrativa que com referéncia a Religiao, tal como a entendem os outros povos, ¢ possivel afirmar abertamente que estes pobres selvagens néo tém nenhuma e vivem sem Deus Pois, além de nao ter conhecimento do verdadeiro Deus, néo adoram quaisquer divindades terrestres ou celestes, como os antigos pagios, nem como os idélatras de hoje, tais os indios do Peru (...) N&éo tém nenhum ritual, nem lugar -21- determinado de reunifio para a pritica de servigos religiosos, nem oram em piblico ou em particular”. (Léry, 1980 [1578]: 46 ¢ 185). As palavras de Léry voltam, praticamente idénticas, quase quarenta anos depois da publicagaio de sua obra, no relato do capuchinho Claude d’ Abbeville, que traduz de forma mais articulada o espanto do ocidental (eclesiastico) frente a “falta de religio” entre os Tupinambé: “Nao ha, penso eu, nenhuma nagdo no mundo que nao tenha uma religiéo. Todas adoram a um deus, salvo a dos Tupinambas que nao adora nenhum, nem celeste nem terrestre, que nao idolatra nem o ouro nem a prata nem as madeiras, nem as pedras preciosas nem qualquer outra coisa. Nao tinha, até nossa chegada, religiéo; portanto ndo tinha sacrificios, nem sacerdotes, nem ministros, nem altar, nem templos ou igrejas. Nunca souberam os indios Tupinamba 0 que fosse nem prece nem oficio divino nem oragao piiblica ou particular. ... Nao tém culto algum, nem interior nem exterior”. (d’Abbeville, 1975 [1714]: 251). A extraordinaria coincidéncia destas observagées, é bom lembrar, depende menos de uma coincidéncia de fatos observados do que da circulagio dos relatos entre os escritores. E patente 0 caso dos jesuitas, cujas cartas circulavam — de acordo com as indicagdes do proprio Inacio - em varias tradugdes, entre a casa geral e as diferentes provincias. Também vale lembrar a longa polémica entre Thevet e Léry, que conheciam muito bem um a obra do outro, e que por sua vez influenciaram os autores sucessivos, de Montaigne ao proprio d’ Abbeville. Todos eles parecem ter atingido a uma primeira fonte: a carta de Amerigo Vespucci a Lorenzo de Medici, datada de 1502: “Nao tém lei nem #8 nenhum, vivem segundo natureza (...) nfio tem Rei, nem obedecem a ninguém” {Lettera di Amerigo Vespucci a Lorenzo di Piero de’ Medici..., in Gasbarro, 1992:124), como também 0 Mundus Novus: “Nao tém templo nenhum e nao tém lei nenhuma, nem séo id6latras.”? (Amerigo Vespucci, Mundus Novus , in Firpo, 1965: 88). Vespucci, de fato, foi o primeiro tedrico do “estado de natureza” dos selvagens, teoria esta tiltima que também influenciou, como veremos, nossos autores. 2 Os textos de Vespucci so traducdes minhas do italiano (carta) e do latim (Mundus Novus). Neste trabalho, todos os textos (antigos e modemos) que nio se encontram em traduedo portuguesa esto traduzidos por mim. Para os manuscritos, 0 texto original esta transcrito em nota de rodapé -28- ‘A coincidéncia dos relatos dos viajantes revela também o grande debate que estava se travando na Europa, a respeito da natureza dos selvagens ou, melhor, do “estado de natureza” deles. Tratava-se, de fato, do processo de releitura da identidade ocidental frente as novas humanidades que a descoberta apresentava, através da construco de sua alteridade, onde o cédigo religioso era, obviamente, privilegiado. Mas aqui a construgdo dos outros esbarrava em uma dificuldade; os selvagens da terra de Santa Cruz nfo apresentavam aqueles elementos que encontramos na longa lista de d’ Abbeville ¢ que definem 0 que é “a religia”: idolos, templos, sacerdotes. A recuperagio da antigiidade classica pela cultura humanista fazia com que a comparagdo nés-outros se desse em termos de “paganismo”: o politeismo pagio era a dimensao em relagao 4 qual o monoteismo cristiio pensava a si proprio: por isto, a do paganismo (transformado em “idolatria”) constituia a necessaria linguagem de reconhecimento das humanidades outras3 Isto tinha funcionado na india e funcionava no México e no Peru; mas, 0 que fazer da humanidade tupinambé, junto qual nao se encontravam os sinais diacriticos da existéncia de uma “religiao”? A hermenéutica dos viajantes caracterizava, entio, pela auséncia 0 que se apresentava como impossibilidade de identificar uma presenga esperada: se ndo ha idolos, sacerdotes e templos, ndo ha religio, Mas este mesmo saber, imbuido de classicidade ¢ Escoléstica, entre projeto teolégico medieval ¢ cultura humanista, tinha levado 4 conclusio, codificada pela Bula Sublimis Deus de 1537, de que os americanos eram homens (“veri homines”), homens “naturai de acordo com a primeira nogdo de Vespucci e com a monumental obra de sistematizacdo tedrica de Joesé de Acosta, a Historia Natural y Moral de las Indias (1590), ao falar em homines sylvesires. Também os homens de natureza, alias, principalmente estes precisavam da palavra divina, para que se cumprisse a profecia da pregacao do Evangelho aos quatro cantos da terra. Ora, si esta falta de religiao facilitava a catequese, eliminando o trabalho de extirpagdo da idolatria ¢ permitindo trabalhar num terreno “virgem”, por outro lado a -29- maxima de Cicero (¢ também a filosofia de Aristételes, de Tomas de Aquino e da Escolastica) estava ai, lembrando que no existe povo tio barbaro que ndo tenha uma minima nogo de divindade. Se a bula papal tinha reconhecido que o indio era homem, a Escolastica mandava identificar neste homem um minimo sinal da presenga de Deus em seu intelecto. Eis, portanto, que quase nas mesmas paginas em que declaram a auséncia de religido entre os Tupinamba, os nossos autores apontam para a presenga desta nogdo “natural”, minima, de Deus, entre os selvagens americanos. E uma contradigdo, no apenas interna aos missiondrios mas a propria cultura ocidental do século XVI, problema histérico ¢ cultural posto pelo conflito entre o saber garantido pelas certezas da fé e a nova razdo “natural”, entre os paradigmas medievais e 0 novo sistema (poder-se-ia dizer “global”) que est se construindo a partir da absorgao das novas humanidades. Examinemos, neste sentido, alguns trechos dos missiondrios franceses: André Thevet: “E. por isto que no existe nagdo tio barbara que nfo possua, por instinto natural, uma crenga religiosa qualquer e alguma idéia da existéncia de Deus. (...] No que se refere a este assunto, os selvagens deste lugar mencionam ut grande ser, cujo nome em sua lingua é Tupa, acreditando que viva has alauras 2 que faga chover e trovejar” (Thevet, 1978 [1557]: 99). Jean de L: “..devemos ter em vista que néio Ihes pode negar, em que pese sua qualidade de homens naturais, uma inclinag&o comum para compreensiio de alguma coisa superior a todos, da qual dependem o bem ¢ o mal” (Léry, 1980 [1578]: 46) Claude d’ Abbeville: “Existe entretanto entre éles algum conhecimento de um deus verdadeiro, como se percebe do discurso de Japi-agu, referido no cap. XI, onde, se o leitor quiser, podera encontrar alguns pormenores sobre as crengas desses indios. Em sua lingua chamam a Deus Tupa; quando se verificam trovoadas afirmam que Deus as envia, donde a denominacio do trovao tupa-remimonhd, ‘Deus fez isso“ (d’ Abbeville, 1975 {1714}: 251). 3 Pera esta aspecto of. Bernand, C. - Gruzinski, §., 1988, Uma exposigao mais aprofundada do uso da categoria do “paganismo” da “idolatria” como linguagem universal de objetivagao da alteridade encontra-se em Sabbatucci, 1991, 65 ss. e, sobretudo, em Gasbarto, 1996. -30- Vamos ver agora o discurso jesuitico. Nas mesmas Informacdes das terras do Brasil, em que tinba falado que esta gentilidade no adora nada, padre Manuel da Nobrega acrescenta: 6 a0 trovéio chamam Tupana, que é como quem diz coisa divina. Assim, ndo temos outro vocébulo mais conveniente para trazé-los ao conhecimento de Deus do que chamé-lo Pai Tupana.” (Nébrega, Informagies, in Leite, 1954-57, I: 150). Cardim se expressa mais ou menos nos mesmos termos: “__.nfio tem adoragdo nenhuma, nem ceremonias, ou culto divino, mas sabem que tm alma e que esta ndo morte (...] e tém grande medo do deménio, a0 qual chamam de Curupira, Taguaigba, Macachera, Anhanga. (...) Nao tém nome proprio com que expliquem a Deus, mas dizem que Tupa € 0 que faz os trovies e relmpagos, ¢ que este é o que thes deu as enxadas € mantimentos, e por nao terem outro nome mais proprio ¢ natural, chamao a Deus Tupa”. (Cardim, 1978 [1625]:102) Nobrega ¢ Cardim desvelam aqui a pedagogia jesuitica, que construiu 0 “deus Tupa” para, a partir dele, elaborar a projeto catequético. A analogia ocasionada pelo cardter urdinico de Tupa ¢ a mais patente, mas ha outras, como no caso da passagem do apéstolo Tomé ou 0 conhecimento que os selvagens tinham do dikivio. ‘Trata-se, aqui, do que Vainfas chamaria de “hibridismo cultural”, derivante da “tradugao do catolicismo para o tupi ¢ a tradugdio tupi do catolicismo”. Voltarei a esta questio. Os Tupinambé, portanto, no tinham religio, mas apenas ~ como era ébvio em um povo “natural” - uma vaga nogdo de divindade. O homem natural trazia consigo, em baixo relevo, a possibilidade de uma religido, ¢ de uma religidio monoteista, conforme a teoria da “degeneragdo”, devido ao isolamento das tribos do Brasil, depois da primeira Revelagao. ‘A bula do papa Paulo IH, além de reconhecer-lhes a dignidade de homens, mandava trazer os “naturais” para a f& cristd através da pregagdo do Verbo de Deus € do exemplo. A imposigio da religitio dos conquistadores encontrava assim sua plena legitimagao, realizando a grandiosa profecia da Conquista: a construcdo do Reino de Deus na Terra, com um povo virgem. Aqui esta um dos nés conceptuais da pregagio missionaria, né que, alids, tinha dirigido teologicamente até a propria “descoberta”: 0 milenarismo cristao. Mazzoleni aponta para a necessidade de ler as antigas crdnicas sobre as pregagées dos lideres indigenas principalmente em termos de reelaboragao cristae ocidental de longinquas realidades “outras”, no apenas por uma obra de “tradugo”, e sim por uma vocagio priméria - a escatolégica ¢ providencialista - dos “intérpretes” europeus “Sem ditvida a colonizagio das Américas (e-em—particular a evangelizacao dos ‘naturais’) foi longamente inspirada por impetuosas sugestdes salvifico-apocalipticas. O proprio Colombo, _fortemente influenciado pela vocagao providencialista do meio franciscano ibérico, via em seu préprio nome a qualidade de ‘portador de saivago" aos nfo crentes ¢ considerava seu pessoal desenho como um instrumento apto a acelerar a manifestagao final do Reino de Deus.” (Mazzoleni, 1993: 103) Sérgio Buarque de Holanda lembra também que 0 descobridor julgava proximo o fim do mundo: “Este pensamento justificaria as descrigdes de Colombo quando sua imaginaglio destumbrada the apresentava as terras descobertas sob aspectos paradisiacos e, ainda mais, quando pretendia que em elas ou por elas seria dado ao género humano regenerar-se a espera do Dia do Juizo.” (Holanda,1994: 195), Com efeito, no Livro das Profecias, 0 Almirante apresentava-se como o mensageiro do novo céu ¢ da nova terra da qual falaram Jo&o no Apocalipse e Isaias. Isaias compartilha com Daniel as maiores profecias vetero-testamentarias sobre o fim dos tempos e, mais do que isso, a idéia de que, no fim, se reunirdo todas as nagdes e gentes (Is. 36, 13-20). E exatamente Isaias torou-se, para Colombo, o profeta do Novo Mundo. Na carta aos reis catdlicos de 1501, na qual apresentava seus calculos segundo os quais néio faltavam mais do que 155 anos para o cumprimento dos tempos 0 fim do mundo, ele declarava também: “para a execugdo da empresa das indias no me aproveitou razio nem matemética nem mapa-mundi; plenamente cumpriu-se 0 que disse Isaias” (apud Chaui, 1998: 459) © mesmo meio espiritual ibérico, imbuido de tradica0 profética vetero- testamentaria e de milenarismo joaquimita produziu a primeira leva de missionarios para as Américas; varios autores (Bataillon, 1954; Phelan, 1970; Prosperi, 1976, entre outros) apontam para o carater de “fim dos tempos” da pregagdo no Nove Mundo dos franciscanos, intérpretes das aspiragdes profético-apocalipticas de una parte da -32- cristandade frente & reforma. Milenarista era Martin de Valencia, superior dos primeiros doze “apéstolos” franciscanos enviados em México; também imbuidos de esperancas escatolégicas eram frei Toribio Motolinia (um dos doze), ¢ Jerénimo de Mendieta, 0 tedrico dos indios como genus angelicum com que teconstruir a igreja no Novo Mundo, antes do fim dos tempos. A pobreza dos indios americanos era um dos elementos essenciais para a realizaco da Idade do Espirito j que, conforme Gioacchino da Fiore, a passagem aos tempos escatolégicos devia cumprir-se através da conversio 4 pobreza (Delumeau, 1997: 203-210). Nao podemos esquecer que os séculos XV e XVI foram na Europa inteira teatro de um proliferagdo nunca alcangada antes das idéias milenaristas, seja na vertente “apocaliptica” (conforme a interpretagdio agostiniana do Apocalipse), seja na corrente que interpretava o Milénio como advento de uma era de felicidade. J4 que os sinais deste momento supremo da histéria humana tinham uma conotagao fortemente “catastrofica”, fica as vezes dificil distinguir nitidamente as duas vertentes (Delumeau, 1997: 91). A procura, as vezes violenta, desta era de felicidade levou ao surgimento (e a persecugdio) de muitas seitas heréticas: hussitas, taboritas, lolardos e, depois da Reforma luterana, Thomas Mintzer e os anabatistas (Cohn, 1957) Na peninsula ibérica, o milenarismo adquirin caracteristicas proprias, ja que as descobertas alimentavam a idéia de que a difusio do cristianismo entre as gentes marcava a tltima etapa da historia. A passagem do messianismo para o Novo Mundo est ligada, também, ao clima escatolégico de marca judaica que se difundiu na peninsula ibérica por volta de 1500. Como diz Jacqueline Hermann (1998), a crenga na proxima chegada do Juizo Final teve em Portugal contomos bem mais especificamente judaicos, ja que o messianismo tradicional era reforgado num momento histérico em que a minoria judaica deixava de se identificar com suas raizes religiosas e transformava-se em “cristos-novos” pelo conversdo forgada de 1492. ‘As trovas de Bandarra nasceram nesse clima messidnico judaizante, que atingia também a uma abundante literatura profética produzida na Espanha no comego do século XVI, que difundia a lenda do Encoberto (Delumeau, 1997: 183; Hermann, 1998: 57ss), por sua vez versdo ibérica do mito do Imperador dos ltimos dias (Cohn, 1957, cap. 5 e passim) e a uma narrativa popular sobre os triunfos do Portugués e as conquistas ultramarinas. Neste clima nasceu, no final do século XVI, 0 sebastianismo, versio nacionalista lusitana do milenarismo cristéo, que tera em Ant6nio Vieira 0 seu mais inspirado representante, De acordo com Eduardo Hoornaert (1992: 24ss) a empresa maritima Portuguesa foi expressa em linguagem religiosa, ou mais, profética: Portugal entrou de maneira decisiva nos planos salvificos de Deus, que the confiou a missio de estabelecer seu Reino neste mundo. A obra de Vieira é a tradugdo deste "Messianismo guerreiro” portugués: o grande pregador jesuita é o representante mais significativo da nova ordem proposta pelo projeto escatolégico da Conquista Missionaria das Indias Ocidentais. Como diz Bataillon: “E uma historia grandiosa a das Missdes no Novo Mundo... E o Principal aspecto da Renascenga, pois nele se reabrem os tempos evangélicos. E € também um prolongamento insuspeitado de profetismo medieval, de perspectivas apocalipticas.” (Bataillon 1954: 346). Maxime Haubert mostra como Franciscanos por um lado e Jesuitas por outro transferiram para continente sul-americano 0 pensamento milenarista joaquimita: “Povos inteiros fizeram irrupgio na Histéria, povos que, por serem pagios, pareciam ndo ter recebido a Boa Nova... Sem diivida, estava na hora de reler as mensagens do Apocalipse, que tinham dominado a Idade Média, e sobretudo 0 célebre abade Gioacchino da Fiore... Depois de dezenas de anos estas profecias alimentavam ainda os Franciscanos, ¢ sobretudo os ditos “espirituais". Com 0 inicio da Conquista e da evangelizagao, seu zelo enflamou-se.” (Haubert 1969: 120). A obra missionaria, entio, seria a reatizagio concreta do Reino do Espirito Santo, do qual fala Gioacchino da Fiore, com 0 genus angelicum dos indios. A necessidade de inserir as novas humanidades apresentadas pela descoberta no curso de uma hist6ria providencial, que vai da Criagfio ao Juizo, permitiria uma espécie de “reabertura do tempo”, onde tomava-se possivel refundar 0 mundo cristo com um povo virgem. No Brasil, percebe-se também um clima milenarista, basta pensar na primeira pagina da Hisioire de la Mission, de d’Abbeville, onde 0 capuchinho transcreve a profecia de Mateus: “Er predicabitur hoc evangelium regni in untverso orbe, in festimonium omnibus gentibus, et tune veniet consummatio” (Mt. 24, 14), Também os outros autores, de Thevet, a Léry a d’Evreux, no deixam de mencionar 0 =34- fim dos tempos e 0 juizo final, que coincidiria com a pregagdo da palavra de Deus aos selvagens. Nos jesuitas, este pendor profético ¢ menos evidente, porque a iminéncia do Apocalipse nado condiz com seu projeto catequético de Iongo prazo. Contudo, se pensarmos na visio edénica de Vasconcelos, que coloca o paraiso terrestre no Brasil, ow no grandioso projeto das redugées jesuiticas do-Paraguai como ‘realizagao do Reino de Deus na terra, ou, finalmente, no grande intérprete do milenarismo barroco: Anténio Vieira, aparece claro que os inacianos também foram sensiveis as instancias proféticas que animaram a conquista espiritual do Novo Mundo. Voltarei a esta questiio no préximo capitulo. A necessidade, filosdfica ¢ teoldgica, de atribuir aos indios umas “crencas”, mesmo se vagas ou errneas, obedecia a uma exigéncia cultural de “ler” 0 outro traduzi-lo em seus proprios termos, ¢, por outro lado, traduzir “eu” para 0 outro. Para isto era necessario construir uma linguagem de mediacdio. O cédigo prioritario de leitura ¢ interpretagao da realidade, inclusive das alteridades antropoldgicas, ainda era, no inicio da Idade Moderna, 0 religioso; este ultimo englobava todos 0s outros: 0 moral, 0 politico, o filoséfico (lembre-se a justaposigaio de fé, lei ¢ rei). Ou seja, qualquer manifestacZio social da alteridade que a descoberta apresentava era lido sub specie religionis, e traduzido na linguagem religiosa Bernand e Gruzinski (1988: cap. III passim), a partir da “rede” concebida por Las Casas, falam em “grau zero” de idolatria a propésito dos indios do Brasil, ¢ mais em geral, dos indigenas americanos entre os quais ndo se encontravam idolos, templos ¢ sacerdotes. Gasbarro (1996: 207ss) esclarece este ponto, falado em “jdolatria como linguagem”. Mais do que “adorago de idolos”, a idolatria constitui um cédigo de interpretagao sub specie religionis, do outro, tornando-se um esquema universal, aplicdvel a todas as culturas, a partir da propria idéia de religio, esta sim, comum ao género humano. Isto explicaria, por exemplo, a observagao de Thevet: “De fato, os americanos so, sem tirar nem por, to idélatras quando os antigos gentios” -38- Contudo, como observa Vainfas, a nogao de idolatria ¢ pouco usada pelos missionarios a respeito da “religiéo” dos tupi.4 Prefiro deixar de lado, Portanto, a nogdo de idolatria, apesar de seu valor heuristico e conceptual, ja que no caso examinado estamos frente a leitura que dos Tupinambé fizeram os primeiros cronistas, através de seus modelos interpretativos. O que interessa; aqui, ¢-notar-que.a. oposi¢do irredutivel presenga/auséncia de religido, que impossibilita qualquer tipo de mediagao, retrocedendo na esfera da néo-humanidade os selvagens americanos, transforma-se no binémio opositive verdadeirafalsa religido. A partir dai é possivel a comunicagao e, portanto, a obra de catequese dos selvagens. A conceptualizagao do outro via cédigo religioso se encaminha assim em trilhas mais conhecidas e percorriveis: a religido do mundo classico é o referente Privilegiado no encontro com as “teligides” amerindias; © como a primeira sistematizagao teolégica crista tinha elaborado a nogao de “paganismo” a partir da oposigdo verdade-falsidade, a mesma teologia € projetada nas leituras da religiio nativa, que existe, in nuce, mas que ¢ falsa, fruto da manipulagdo diabélica. E de fato, © Diabo, 0 rei da mentira, que falsifica e corrompes as puras imagens da f& para conquistar as almas dos indios. Eis, entéo, ao grande antagonista do projeto missionario em terra americana, incontestado senhor das almas dos pobres indios: 0 Deménio. Muito jé foi escrito sobre a preeminéncia da chave de leitura demonolégica na interpretago dos indigenas do Brasil, fartamente utilizada na literatura quinhentista, principalmente missionaria (Mello ¢ Souza, 1987 € 1992: Vainfas, 1995; Raminelli, 1996: 109-136). Nao deter-me-ei mais, aqui, sobre esta questo, Basta lembrar que de Thevet a Léry, de Frei Vicente de Salvador a Nobrega, de d’ Abbeville a Vieira, todos os homens de f€ dos séculos XVI ¢ XVII apontam para o senhorio do Diabo sobre os indios. Este dominio do Deménio sobre os indigenas se manifesta de uma forma bem precisa: através dos grandes xamiis, os pajés ou caraibas, que as fontes chamam, 4 0 proprio Vainfas utiliza esta nogdo, mas num sentido diferente: mais do que olhar europeu sobre a religiosidade amerindia, o termo “idolatria” indica a utilizag4o auténoma, mais ou menos consciente, or parte indigena, das estruturas simbdlicas cristas “impostas”, para afirmar sua identidade cultural, frequentemente em sentido anti-colonial, como no caso da Santidade de Jaguaripe -36- obviamente, de feiticeiros e, menos obviamente, de “santos”, “santidades”, ou, finalmente “profetas”. Na falta de outros sinais de idolatria, so estes extraordinarios personagens, dos quais as fontes nfo ignoram nem minimizam o poder, os intermediérios entre 9 Diabo ¢ as almas selvagens. Desde 0 principio, os missiondrios identificam nos caraibas os inimigos - mortais da catequese e; portanto, seus “maiores contririos”, para usar as palavras de Nobrega, Sao eles que, com suas “ceriménias diabélicas” impedém aos indios de se aproximar da verdadeira f8. Sao eles que tomam os natives to “inconstantes” levando os catequizados de volta aos antigos costumes. Sio eles que convencem os indios que o batismo praticado pelos padres provoca doenga e morte (0 que, em época de grandes epidemias, e de batismo in articulo mortis nfo era dificil), Sao eles que organizam levantes ¢ fugas dos indigenas das aldeias. Sao eles que conduzem as grandes migrages em busca de novas terras, talvez de “terras da imortalidade”, como diz Gandavo. Enfim: sfo eles que se opdem com toda sua forga e poder diabdlico ao grande desenho catequético de marca escatoldgica, ou seja, a realizagio do grandioso projeto do Reino de Deus na Terra. Os inacianos so clarissimos em imputar ao Deménio a ago dos feiticeiros, gue porém nao se incomodam em chamar de “santidades”, embora tenham quase sempre o cuidado de apontar para sua falsidade. “de tempo em tempo se levantam entre eles alguns que se dizem santos ¢ persuadem aos outros que neles entram espiritos que os tornam conhecedorem do que esté por vir, ¢ profetizam muitas mentiras.” (Pero Correia, in Leite, 1954-57, I: 225) intre elles se alevantaro algumas vezes alguns feiticeiros, a que chamio caraiba, Santo ou Santidade, e é de ordinario algum {ndio de ruim vida: este faz algumas feitigarias e cousas estranhas 4 natureza, como mostrar que ressuscita a algum vivo que se faz morto, e com esta e outras cousas semelhantes traz apés si todo o sertdo” (Cardi, 1978 [1625]:102) “De certos em certo anos vém alguns feiticeiros de terras longinquas, fingindo trazer santidade e no tempo de sua vinda mandam limpar os caminhos e vao recebé-los com dancas e festas segundo seu costume (...) estes séo os maiores contrarios que aqui temos e fazem crer algumas vezes aos doentes que nds metemos em seus corpos facas, tesouras e coisas semelhantes, e com isto os matamos.” (Nébrega, /nformagdes, in Leite, 1954-57, I: 150). 37 estande 1é, vimos uma casinha no meio da aldeia, a qual nos disseram que era de seus santos, que so um homens que enganam e esses miseraveis. E comegando a perguntar, descobrimos que estéio enganados traidos com grandissimas falsidades” (Carta de Maximiano aos Inm@os de Portugal, in Leite, 1954-57, I: 248). Passando as outras testemunhas missionarias, que no inicio da colénia so quase que exclusivamente franc6fonas, notamos que o termo que traduz para o francés pigé ou caratba é 0 de prophéte, profeta André Thevet declara que “estas criaturas dedicam grande reveréncia aos seus profetas, aos quais chamam de pajés ou caraibas, palavras que eqilivale a “semideuses” e intitula o cap. XXXVI “Dos falsos profetas e magos desta terra, os quais se comunicam com os espiritos malignos” (117). Na Comographie Universelle, depois de ter transcrito 0 mito do heréi civilizador,S Thevet ¢ ainda mais claro: “Bis a doutra destes Caraibas (...) 0s quais antigamente eram grandes nigromantes e sio ainda evocadores do Diabo” (Thevet, 1953 [1575]: 60) ‘Veremos mais adiante a descri¢ao dos rituais dos caraibas, feita por Jean de Léry, € sua assimilagdo ao sabé. Vale lembrar apenas aqui que, em Léry também, 0 termo usado é 0 de “profeta”: “Os selvagens admitem certos falsos profetas chamados Caraibas que andam de aldeia em aldeia como 0s tiradores de ladainhas e fazem cret ndo somente que se comunicam com os espiritos ¢ assim dao fora a quem Jhes apraz, para vencer e suplantar os inimigos na guerra, mas ainda persuadem de terem a virtude de fazer com que crescam e engrossem as raizes e frutos da terra do Brasil” (Léry, 1980 [1578]: 189). Mais adiante, a comparagao biblica esclarece melhor as caracteristicas dos profetas tropicai: “ Esses trapaceiros, em suma, nos aborreciam tanto quanto os falsos profetas de Jesabel que odiavam ao profeta Elias, denunciador de seus abusos” (ibid. 195). D'Abbeville (1975 [1714]: 256), ao descrever estes personagens, de que 0 Diabo se utiliza para manter os indios em suas superstigdes, os chama simplesmente 5 Trata-se do mito do grande caraiba (em outras fontes seu nome é Sumé, ou Zumé, @ mesmo que os gran jesuitas identificaram com Sao Tomé), do qual ainda se conservam as pegadas numa pedra. A remogo desta pedra, como veremos, est ligada a catastrofe que destruira o mundo. -38- de pagé. Apenas, falando nas asticias do Deménio para destruir os indios, relata que um dia ele convenceu sessenta mil indigenas a segui-lo, prometendo que os levaria todos para “o paraiso terrestre dos caraibas e dos profetas”.6 Seu companheiro, Yves @ Evreux, intitula um capitulo inteiro, o XI, de sua obra “Como fala 0 diabo aos feiticeiros do Brasil, suas falsas profecias, idols: sacrificios”. Nesta-parte, 0 capuchinho no nega “verdade” as obras dos grandes feiticeiros, mas, através de muitas citagdes das Escrituras e dos Padres da Igreja, mostra como trata-se de obras do DemGnio. Santos, santidades, profetas. Nem sempre os religiosos, principalmente os jesuitas, lembram de esclarecer o carter de falsidade desta qualidade. Por que, entdo, 0s missionérios aplicam aos feiticeiros os termos que, em sua cultura, pertencem a esfera do sagrado? Ronaldo Vainfas enfrenta este problema, relativamente ao termo “santidade”, a partir das observagdes de Laura de Mello ¢ Souza sobre a fluidez das fronteiras entre Deus e 0 Diabo no imaginério (principalmente popular) no inicio da época modema, onde freqiientemente a santidade é apenas a falsa aparéncia da natureza demoniaca. Assim, os missionarios trazem para a América os dilemas religiosos de uma época em que a necessidade de separar 0 santo do diabdlico é a verdadeira obsessio de inquisidores ¢ tedlogos. Este contexto foi rapidamente projetado nos discursos sobre os indios ¢ neste contexto tem que ser enquadrado 0 uso do termo “santidade” para indicar as “ceriménias diabdlicas” dos caraibas. (Vainfas, 1995: 62-63) ‘Na mesma dirego de Vainfas, podemos acrescentar alguns elementos, uteis, talvez, para esclarecer esta “fronteira incerta” entre o divino € 0 demoniaco na cultura ocidental que se debruga sobre 0 outro americano. Em primeiro lugar, vimos que os missionarios encontram-se frente 2 necessidade epistemologica de atribuir aos “outros” uma religiio, ¢ a exigéncia pratica de estabelecer com esta um didlogo, na base da oposicao verdadeiro/falso. © A partir deste relato, Métraux deduziu que esta fosse uma migragao “em busca do Paraiso Terrestre” (Métraux, 1927: 15). -39- Estas exigéncias levam a elaborago de uma linguagem que possa dar conta, a0 mesmo tempo, da realidade falsa (construida pelo Deménio) ¢ da verdadeira, revelada por Deus ¢ veiculada pelos padres. Vale lembrar, neste sentido, que a Patristica condena a feitigaria porque fa/sa, nfo enquanto ineficaz, mas enquanto eficaz a partir da distorgao diabélica do mundo natural (De Martino, 1976: 10-11). Este aspecto bem expresso, como vimos, por d’Evreux. Eis, portant, que os feiticeiros sdo os “santos” dos outros e seus embustes so “como dizer coisa divina”. E no conflito radical entre a realidade falsa dos feiticeiros e a verdadeira dos padres que podemos acompanhar esta confustio de horizontes devida & utilizagzio de uma linguagem comum. Francisco Pires, em carta de 1552, relata um sermao de Nébrega numa aldeia indigena: zendo padre que aquele era a verdadeira santidade e dizendo aos principais que se preparassem para as coisas de nosso Senhor, da parte do bispo, que era o verdadeiro ‘Pajé-guagu’, que quer dizer “Grande pai”. (Francisco Pires, in Leite,1954-57, I: 386) HA também outras testemunhas desta “batalha pelo monopitio da santidade”, segundo a feliz expresstio de Vainfas. Assim, por exemplo, 0 padre Azpilcueta Navarro inflamava os indios em suas pregagdes nas aldeias do sertio “Comegava a despejar a torrente da sua eloquéncia, levantando a voz ¢ pregando-Ihes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé, espalmando as méos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos costumados entre seus pregadores, pera mais os agradar e persuadir”. (Vasconcelos, 1977 [1663], 1: 221). Da mesma forma, Pero Correia, ainda irmao, relata as indicagdes precisas recebidas pelo padre Leonardo Nunes em suas pregagdes nas aldeias: “Por todos os Iugares e povoagdes que passavamos me mandava preguar-lhe nas madrugadas duas horas ou mais ; ¢ era na madrugada Porque emtio era custume de Ihe preguarem os seus Pricipaes e Pagés a que elles muyto creem” (Pero Correia, in Leite, 1954-57, I: 220) No se trata, portanto, de iniciativas auténomas, mas da pedagogia jesuitica chissica: a utilizagio de elementos da cultura nativa como “linguagem” para veicular contetidos da fé catélica, na mesma linha da utilizagéo do nome Tupi para indicar Deus, Jeropari ou Anha para o Deménio e assim por diante, Sem divida, nesta -40- apropriagao de certas caracteristicas dos caraibas, jogou um papel fundamental a questo do poder. Ou seja, a “batalha pelo monopélio da santidade” foi uma luta mortal pelo poder espiritual, onde os rivais tentaram se apoderar dos instrumentos, dos simbolos, da fala dos outros. Neste sentido ¢ esclarecedor 0 exemplo do padre Francisco Pinto (ver mais adiante) que ficou conhecido entre, os Potiguara do Rio Grande do Norte, que ele evangelizou no final do século XVI, como Amanaiara, “senhor da chuva” como eram os caraibas, e como os dos caraibas, seus ossos s& tornaram objeto de culto entre os indios. Ha, ent&o, uma sobreposigao entre caruiba e missionario, procurada, como vimos, pelos proprios padres, por um lado, e pelos indios, por outro. Basta pensar que 0 nome caraiba foi dado aos brancos (e este nome ainda hoje os designa em muitas regides do Brasil), enquanto categoria de alteridade, talvez indicando os herdis culturais, cujo retorno tinha sido prometido pelos mitos. Mas nio é tudo. As “santidades” indigenas apropriaram-se ndo apenas dos signos exteriores, bem como da fala dos padres catdlicos, certos de poder exercer 0 ministério sacerdotal. O echo seguinte, tirado da Relagdo do jesuita Ferndo Guerreiro (1600 a 1609), é um exemplo extraordinario de tolerancia reciproca, frente a uma situagao “hibrida”, onde a fronteira entre “licito” e “ilicito” se torna sutil e confusa: “Chegando as portas da cerca, correu logo pela aldeia uma voz que dizia: ai vem o pai grande, sai (sic) todos a recebe-lo, dizendo isto pelo mesmo principal. Sairam-no todos a recebelo com diligencia e ai comegou a entoar uma a ravia, de que nada Ihe entendemos e cuido que eles mesmos the entende, ¢ isto falando ele ¢ respondendo-lhe os outros 4 maneira de clérigos que rezam coro. Eu também sai de casa trés ou quatro passos. Ele estava como quem ensina a doutrina, misturando mil desbarates, como era dizer Santa Maria, tupama, remireco, que quer dizer Santa Maria, mulher de deus, e outros despropésitos semelhantes. Estava posto de joelhos, com os olhos no céu ¢ as mos levantadas e abertas como sacerdote que diz missa; dei-the a boa vinda. Ele me abragou dizendo que nao me espantasse de se recolher ao mato, porque n&o queria ser visto de todos....Ao dia seguinte me pediu audiencia, saimos ao terreiro, mandei falar um indio nosso principal Mas respondeu com contar de sua santidade, mas foi to prolixo que The disse eu que ndo vinha a ser ensinado nem dos seus, sendo para the ensinar 0 caminho do céu e que para isso os queria levar para a igreja. -41- Andam estes pobres téo cegos com aquela que chamam a sua santidade, que totalmente teem para si que n&o ha outra e que eles sé sao os que acertam , todos os outros ¢ nés imos errados; pelas noticias que 1a tem das coisas da igreja por algum indios que fugiram dos portugueses, se foram pelo sertio adentro, batizaram os seus, posto que néo na forma da igreja ¢ a todos do homens pdem o nome de Jesus e as mulherés Matia. Usam da cruz, mas com pouca reveréncia, e teem outras cerimonias ao modo da igreja . ‘Tem modo de sacerdotes , aos quais obrigam a guardar castidade, na qual si faltam os depdem logo do officio...” (Guerreiro, 1929 [1609]: 381) Ha, portanto, uma leitura da alteridade religiosa nos termos que o horizonte simbélico de cada cultura oferece: neste sentido, a “santidade” para designar os feiticeiros é 0 oposto especular do termo caraiba para indicar os brancos, Da mesma maneira, naquela que Alfredo Bosi chama a “mitologia paralela” da situagao colonial, 0 caraiba Sumé dos Tupinamba é Sao Tomé dos missionarios. Se 0 grande caraiba mitolégico € 0 grande santo da tradig&o catélica, no ha de estranhar que os carafbas contemporaneos sejam “santos”. Quanto ao profeta, poder-se-ia dizer, de antemiio, que o termo parece em muitos casos utilizado mais no sentido grego (prophetes) de “adivinhar futuro”, através de oraculos, do que propriamente no sentido biblico de instrumento de Revelaggo ao povo de Deus. As fontes concordam em frisar 0 fato de que 0 caraiba “diz 0 futuro” a respeito da satide e da guerra, com a ajuda dos maracds.7 Esclarecedora é a passagem de Thevet que define os curafbas como adeptos da Nigromancia, mostrando claramente, ¢ mais uma vez, a negativizagio da pritica aga, neste caso, a oracular, operada pelo cristianismo: quem prediz 0 futuro, fora do modelo biblico e cristio da “profecia” ¢ da “visio mistica” é nigromante, evocador do diabo. Repropée-se, aqui, a dicotomia vetdade/falsidade jé apomtada para o termo “santidade”, dicotomia que ganha profundidade a partir de toda a tradigio biblica cristé dos “falsos profetas”, anunciando a vinda do Anticristo, na véspera do fim dos tempos. Trata-se exatamente daquela vertente milenarista do cristianismo, imbuida da tradigdo profética vetero-testamentaria ¢ da apocaliptica joanina, até Gioacchino da 7 Os maracds foram 0s iinicos objetos assimilados pelos missionérios aos idolos, constituindo portanto 08 Uinicos sinais da “idoletria” indigena -42- Fiore, que foi mantida por uma parte dos intelectuais cristdos ¢ teve um momento de grande auge exatamente no século XVI. Como vimos, esta tradigio profética foi trazida para o Novo Mundo ¢ se apresenta freqiientemente nos autores que estamos examinando, Ja vimos, por exemplo, os versiculos de Mateus sobre o fim do mundo no texto de d’ Abbeville. Podemos acrescentar aqui que no texto de d’Evreux esta claramente dito que “tmdo isto” (a viagem dos capuchinhos ¢ a conversio do gentio da Ilha do Maranhio) foi profetizado por santos inspirados pelo Espirito Santo (e aqui esté a marca joaquimita) ¢ por Isaias e Sophonia (d’Evreux, 1929 [1874]: 365ss). Esta mesma “profecia” ¢ atribuida por Thevet aos préprios caratbas. Depois .de ter relatado a comunicagao entre caraibas ¢ /'esprit, ou seja, o Deménio, comenta: “pdio insistirei mais sobre a questo se 0 Diabo sabe ¢ conhece as coisas futuras... Mas isso vos direi: que muito tempo antes que viéssemos para ca, o espirito predissera nossa chegada” (Thevet, 1953 [1575]: 82). Por sua parte, Léry pée na boca de um velho indio as seguintes palavras: -hé muito tempo, j4 ndo sei mais quantas Juas, um mair como vés, € como vés vestido e barbado, veio a este pais e com as mesmas palavras procurou persuadir-nos a obedecer a vosso Deus; porém, conforme ouvimos de nossos antepassados, nele no acreditaram. Depois désse veio outro e em sinal de maldigao doou-nos 0 tacape com o qual nos matamos uns aos outros” (Léry, 1980 [1578]: 196). Léry poe em relagao estas palavras com as tradig&o cristi da pregagdo do evangelho as extremidades do mundo antes do Juizo Final; também o huguenote lembra um trecho do Apocalipse para explicar a presenca dos dois “profetas”: o verdadeiro, no qual os homens nao acreditaram, ¢ 0 falso, que levou-os A perdigao. Quase as mesmas palavras sfo usadas por d’ Abbeville, ao relatar o discurso do chefe Japi-agu. Apenas, ele substitui o termo mair8, usado por Thevet, com o de profeta. Esta claro aqui o jogo de espelhos que se estabelece entre padres e caraibas, entre verdadeiros e falsos profetas, entre profecias cristis sobre pregagéo do 8 Mair é 0 termo com que os tupinamba designavam os franceses. O termo parece ter vivido a mesma “aventura semdntica” de caraiba: Maira € um herdi cultural da mitologia tupi, cujas agdes sio, em outras versdes, atribuidas a Sumé, justamente, um grande Caraiba. -43- evangelho aos gentios e profecias nativas sobre a chegada dos brancos. Mais do que a uma coincidéncia de mitologias, estamos frente ao problema teologico (ou seja, epistemolégico) da compreensio e, portanto, da tradugio das alteridades antropoidgicas no interior do quadro de uma historia preestabelecida, de um e de outro lado do espelho. Isto leva a uma curiosa coincidentia oppositorum, que se expressa através de uma linguagem comum, A das santidades e a dos profetas indigenas é, Portanto, uma construgdo negociada. A linguagém religiosa parece tornar-se, assim, © terreno de mediagio onde cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar seu sentido e, portanto, sua “tradugdo” em termos culturalmente compreensiveis. Apenas no interior deste campo semantico me parece possivel colocar corretamente e, portanto, tentar interpretar, 0 problema histérico ¢ cultural posto pelos profetas tupinamba. CAPITULO 2. TERRA DE MISSAO A misso no Brasil Nas paginas anteriores vimos os primeiros frutos simbélicos do encontro entre missionarios ¢ Tupi no Brasil colonial. Torna-se necessat , agora, indicar as linhas essenciais do projeto missionario no Brasil ¢ suas transformagdes, entre a metade do século XVI, quando a chegada dos primeiros jesuitas deu inicio a catequese propriamente dita, e a metade do século XVII, quando comegou a missionagao no serto, que ser analisada na segunda parte do trabalho. Acredito que as diretrizes da missio no Brasil, do ponto de vista teologico & institucional, foram determinadas quase totalmente pelo pensamento jesuitico. Com efeito, nio ha davida de que foram os homens da Companhia os teéricos ¢ os realizadores desta grande empresa catélica na terra de Santa Cruz, Sobretudo, tendo os inacianos a obrigagao institucional de escrever, a documentagdo jesuitica ¢ de Jonge a mais completa o que possibilita acompanhar a evolugao do que poderiamos chamar de “teologia missionaria”, entre a filosofia neotomista, 0 plano eclesidstico tridentino, 0 sonho utépico ¢ heréico da Conquista Espiritual e a realidade do cotidiano colonial. Nao que as outras ordens no tivessem precisas indicagdes sobre as linhas a seguir na missdo, € principalmente na misso entre os indios. Mas, se excluirmos a pregacdo na “Franga Equinocial” dos capuchinhos franceses no comego do século XVII, as missdes capuchinhas entre os indios iniciaram em 1642, interromperam-se entre 1702 ¢ 1720, ¢ continuaram, no meio de varias crises, até 1760 (ver capitulo 8). Ou seja, ndo se pode falar para os capuchinhos de uma continuidade da missio durante os séculos XVI e XVII, como no caso da Companhia. Além disso, nfo temos documentagdo relativa a uma verdadeira teologia missionaria capuchinha para este periodo; muito menos temos informagdes neste sentido provindo das outras ordens, como a dos franciscanos € a dos oratorianos. Além da falta de documentos, freqientemente alegada pelos estudiosos, todos -45- internos as ordens, nao parece haver nelas um suporte teol6gico a missio do porte do dos inacianos, ou até de dominicanos ou franciscanos na Nova Espanha ou no Peru. Falar em projeto missionario no Brasil, portanto, ¢ falar essencialmente nos jesuitas, até porque, como veremos, a ordem jesuitica j4 nasce como realizadora do projeto missionario e catequético, obediente, por um lado a-regra-expressa nos Exercicios Espirituais e intérprete, por outro, da idéia de cristianismo proposta pela Contra- reforma. No primeiro capitulo foram discutidos os anseios proféticos ¢ milenaristas que animaram a idade das Descobertas, do proprio Colombo aos franciscanos na Nova Espanha, anseios que influiram na leitura da alteridade antropol6gica indigena como » genus angelicum com © qual refundar uma igreja livre de pecados e construit 0 Reino de Deus na terra, na véspera do fim dos tempos. E freqitente, entre os estudiosos, a idéia de que, passado o primeiro momento em que Os missiondrios estavam certos da iminéncia do fim do mundo, ou pelo menos do advento do Milénio, os mil anos do Reino de Cristo na terra, 0 sonho milendrio foi se apagando, cedendo o lugar, frente 4 oposigdio dos colonizadores e A resisténcia dos indigenas 4 converséo, a evangelizagao enquanto projeto de civilizagdio Bataillon, 1954; Prosperi, 1976: 38ss; Haubert, 1990: 43; Mazzoleni, 1999: 116ss;). Sem duvida, 0 momento escatolégico foi determinante nos primeiros anos da conquista, enquanto o ordenado projeto de catequese caracterizou 0 periodo sucessivo (grosso modo a partir da década de oitenta do século XVD); nisso influiram, por um lado, a realidade da colénia em construgao e, por outro, o ditames eclesidsticos tridentinos. Entretanto, estes dois aspectos coexistiram ao longo do processo de cristianizagao dos indios, nfio como momentos sucessivos e antagénicos, mas como esferas complementares da “Conquista Espiritual”: a dimensio utépica (e em alguns casos francamente escatolégica, como em Vieira) da evangelizag&o no se perdeu, mas ganhou vigor ¢ legitimidade, justamente pela obra dos jesuitas, considerados em geral os menos “misticos” entre as ordens religiosas. Tentamos aqui seguir as linhas gerais deste processo. Alguns autores do século XVI, principalmente os franciscanos, viram na descoberta de outros povos (para muitos, os descendentes das tribos perdidas de 46 - Israel) os sinais da plenitude dos tempos, da chegada da “undécima hora” (Mt. 20,1) Na Historia Eclesidstica Indiana, por exemplo, Jeronimo de Mendieta escrevia que a Igreja se regeneraria com os indios das Antilhas, vivendo sem pecado num paraiso terrestre (apud Delumeau, 1997: 209), ¢ Toribio Motolinia pregava a urgéncia da converstio dos gentios, na iminéncia do fim (ibid.: 206). Por isso, talvez, houve no México situagdes sem precedentes, com milhares de batizados em poucos dias (Bernand ¢ Gruzinski, 1997: 419) Ora, antes mesmo da publicagio da Historia de Mendieta (1597), foi publicado em Roma 0 De temporibus novissimis, de José de Acosta (1590), onde o jesuita reformulava a relagio entre América e Apocalipse. Por um lado, as descobertas mostravam de forma inequivoca razio pela qual o Apocalipse ainda nfo tinha acontecido: a palavra de Deus nao tinha chegado, até entfio, aos “quatro cantos da terra”. Por outro lado, o fim do mundo nfo podia ser considerado iminente e era impossivel ¢ perigoso tentar calcular sua data®, por trés motivos: ainda eram numerosas as terras “in guibus non est fides christiana proposita”, e a pregacio do Evangelho entre todos os povos da terra nio significava uma verdadeira “Conquista espiritual” e, finalmente, ainda restavam muitas outras terras onde pregar a palavra de Deus (Acosta, De remporibus novissimis, p. 31 apud Gasbarto, 1998:202) . A razio desta revisio das escrituras a luz da realidade americana, que coloca em xeque as esperangas escatolégicas mais radicais, tem uma origem bem precisa: 0 processo inquisitorial do “milenario” dominicano Francisco de la Cruz, levado a fogueira em 1578, que Acosta tinha acompanhado como consultor da Inquisigao. Francisco de la Cruz, imbuido de idéias joaquimitas (a divisio do tempo em trés eras), mas também de outros temas milenaristas da época, profetizara a destruigéo da igreja do ocidente pelos seus pecados e sua transferéncia para Lima, nova Jerusalém, onde ele reinaria como papa e como rei (a idéia do “imperador dos diltimos dias”, caracteristica também do sebastianismo, e a do pastor angelicus que animaria Savonarola) (Delumeau, 1997: 212-3). ° Lembramos dos 155 anos calculados por Colombo com tanta precisao, -47- N&o estamos aqui na presenca apenas de mais uma expresso do eterno antagonismo entre jesuitas “pragmaticos” e franciscanos “misticos”. Além do fato de que muitos dos “milendrios” pertenciam a outras ordens, ou eram até jesuitas!0, a critica de Acosta tem que ser inserida no contexto do debate teolégico que se travava no interior da igreja contra-reformista, debate. este suscitado. justamente, depois de quase um século das descobertas, pela realidade da evangelizagao em terra americana. Do ponto de vista do quadro politico de referéncia, é claro que o combate Contra os idéias milenaristas foi uma reafirmagio da solidez da igreja, que nao precisava ser deslocada para 0 Novo Mundo, nem queria ver seu projeto a longo prazo abalado por alguma vocagio milenarista. Por isso, as profecias milenérias comegaram a ser objeto do interesse da Inquisi¢ao, ¢ continuaram no século seguinte. E apenas 0 caso de lembrar os longos anos de pristio de Campanella (para quem 0 sinal principal do fim das eras era justamente o: “item evangelium predicatum est in novo orbe”’) e, obviamente, o proceso a Antonio Vieira. Acosta fundamental para entender a reformulagao ¢ a afirmaco do projeto missionario da igreja no Novo Mundo. Neste sentido, 0 De femporibus novissimis tem que ser lido no conjunto geral da obra do jesuita, que até nos titulos leva todas as Preocupagdes da Companhia, da igreja e da época: 0 De promulgando Evangelio apud barbaros, sive de procuranda indorum salute (1589), a Historia Natural y Moral de las Indias (1590). Para Nicola Gasbarro, trata-se de uma releitura global do papel da religido, depois de cem anos de evangelizagao: é uma tradugo em termos antropoldgicos da experiéncia missionaria, onde a evangelizagdo se torna um projeto cultural global de reconquista religiosa ¢ civil da humanidade (Gasbarro, 1996: 203). A reflexio (principalmente jesuitica, no caso) sobre a evangelizagio sobre seus resultados em terra americana, levou a repensar a pritica missiondria, dentro de 10 Em 1585, o jesuita Lope Delgado enviou a0 padre geral Aquaviva um tratado acerca do Apocalipse de cunho milenarista, Sob conselho de Acosta, este escrito foi queimado e dele no resta sendo um breve resumo contido numa carta de Delgado (“.de duratione Fcclesiae, de statu Feclesiae, de Juierana heresi, de miseriis nostrorum temporum...de predicationis evangelit consumatione...et alia nonmilla”) @ a censura de Acosta (“..€ siento que podria resultar mucho perjuicio de semejantes escritos ¢ opiniones”), suficientes para nos dar uma idéia do debate teolégico que agiteva a iereja, ¢ a propria Companhia, na época. A desiruigao dos escritos de Delgado mostra com clareza qual foi a escolha teologica e politica dos jesuitas (Prosperi, 1976: 58) ~48- um horizonte mais amplo da nova filosofia da historia da igreja contra-reformista. O tempo nao podia acabar, porque o desenho de Deus nao estava completo; 0 Concilio de Trento, respondendo com a sistematizagao da ortodoxia aos medos apocalipticos suscitados por Lutero enquanto Anticristo, elaborou com mintcias 0 projeto de catequese, interna ¢ externa, cujo eixo principal nfo era mais o batismo, mas a confissio, conforme veremos adiante. Por isso, de nada adiantavam os batismos em massa praticados pelos franciscanos no México, como diz Acosta, “antes de que saibam mediamente a doutrina crista, e sem que conste que esto arrependidos de sua vida criminal e supersticiosa” (Acosta, De procuranda indorum salute, apud Prosperi, 1976: 55) estas palavras podemos reconhecer as preocupagées jesuiticas do mundo inteiro, do Japio ao Brasil. A experiéncia das missdes, junto com a postura eclesidstica pés-conciliar, mais rigida para com qualquer tipo de interpretagao nfio ortodoxa das Escrituras, levou 4 reformulacio, ou melhor 4 evolugo, ao crescimento do projeto missionario. No Brasil, a “inconstincia da alma selvagem” dos indios tupinamba, de que tanto se queixavam os padres da Companhia, mostrava a inutilidade dos batismos em massa e a necessidade de um trabalho intensive € sistematico com os nativos: -ndo nos parece bem bautizar muitos em multidfo, porque a esperientia ensina que poucos vem a lume, e he maior condenagdo sua e pouca reverentia do sacramento do bautismo.” (Carta de Manuel da Nobrega ao Rei Joao Il, julho de 1552, in Leite, 1954-57, I: 346). Para 0 assunto que nos interessa especificamente aqui, nfo ha divida de que 0 debate teoldgico acerca da catequese teve sua origem na reformulagio do projeto missionario com os indios, e também o acompanhou, levando a uma nova antropologia religiosa. Nela, os temas proféticos nao se apagaram, mas convergiram na construg&o e na consolidagaio da teologia (e teleologia) da histéria de cunho providencialista, numa “historia do futuro”, para usar a poderosa expressio de Anténio Vieira. Isto no era incompativel com os ditames do Concilio de Trento mas, 0 contrério, 0s realizava plenamente, combatendo a heresia e implantando a -49- catequese de uma forma sistematica. A experiéncia das aldeias missionarias foi a mais alta expresso desta esperanca. O que se apagava, portanto - mas niio completamente, porque 0 pensamento messianico ¢ milenarista continuou subsistindo, tendo no sebastianismo portugués uma de suas representagdes mais intensas - era uma das acepgdes do “Milénio”, aquela mais “catastrofica”, com a idéia do iminente fim do mundo e do advento de mil anos de felicidade antes do Juizo final. Nao se apagava, mas ganhava profundidade a utopia da constru¢do do Reino de Deus na Terra, no interior de uma visio providencialista do mundo, da cultura e da historia, agora finalmente unificados, no interior de um desenho cristo, De fato, a de Vieira é a expressdio mais completa deste desenho e desta acepeao teleolégica da historia, que insere 0 Brasil e 0 Quinto Império numa historia divina. Costuma-se dizer que Padre Vieira foi o grande intérprete do milenarismo barroco; sua visio escatolégica, porém, é normalmente vista apenas em sua dimensio politica, ou, a0 contrario, como expresso idiossineratica de seu misticismo visiondrio. Alids, é frequente uma fragmentagio analitica do pensamento do grande jesuita: 0 Vieira politico, 0 Vieira orador, 0 Vieira Profético. Trabalhos recentes, Porém, tentam mostrar a unidade, dentro de uma multiplicidade aparentemente contraditéria, da obra de Vieira E obvio que uma anillise dos conteiidos messianicos ¢ milenaristas desta obra grandiosa exula das minhas intengdes ¢, sobretudo, das minhas competéncias. Apenas gostaria aqui de fixar algumas observagdes, a partir de estudos recentes, para colocar © aspecto das idéias de padre Vieira que mais interessa aqui, sua defesa das misses, inclusive - como veremos - as do sertdo, num quadro mais amplo de referencia Alcir Pécora (1994:41) afirma que nao ¢ possivel caracterizar corretamente a Propriedade retérico-politica de Vieira isentando-a de seu peso teoldgico e, com ele, seu vetor teleolégico. Esta observagio se liga, e parcialmente corrige, as de Cantel (1960), que encontra o principio unificador profundo da imensa e aparentemente contraditéria obra de Vieira em seu profetismo. Pécora observa, a meu ver com toda azo, que interpretar a obra de Vieira a partir de um principio unificador significa apenas privilegiar um dos pontos ordenadores de seu pensamento, justamente 0 -50- profetismo, sem pensé-lo em conjunto com 0s outros. Se Vieira foi visionario, nunca © foi fora de uma referéncia basica as concepgdes de uma teologia ortodoxa, a jesuitica, de marca neotomista (Pécora, 1994: 41). © autor explica melhor, a0 longo do livro dedicado aos sermées, qual ¢ 0 sentido desta teleologia, e isto pode ser.uitil_para entender melhor seu.“profetismo”, ou “milenarismo” ¢ a profunda diferenga entre este ¢, por exemplo, o dos franciscanos na Nova Espanha nos primeiros anos da conquista. A experiéncia do contato com o divine n&o € direta, como nos misticos, mas mediada pela igreja constituida, pelas praticas litirgicas, pelas hierarquias religiosas, justamente a organizagfio encarregada das relagdes entre a ordem humana e a transcendéncia: uma posicdo estritamente ligada ao contra-reformismo militante (Ibid: 91) A interagio entre igreja e mundo, que traduz a participagao do homem ao Ser, implica uma sobrenaturalizagdo do Estado: é neste sentido que deve ser entendido 0 sebastianismo de Vieira, sua adesdo entusiastica as profecias de Bandarra ¢ sua conviccao profunda que Joio IV era 0 “Encoberto”. A interpretacao da historia identifica-se com a exegese biblica: os fatos naturais sdo mensagem providencial: a historia de Portugal ¢ um texto (0 mais atualizado porque mais recente e mais préximo do cumprimento da profecia) das historias narradas pelas Escrituras (Pécora, 1994: 167) Nesta diego movem-se também as observagées de Jofo Adolfo Hansen, quando diz que, na concepsao teleolégica, vieiriana, 0 acontecido e 0 que acontecera esto inscritos ab aeterno em um unico curso da histéria, afirmado pelas escrituras, que neste sentido, so proféticas. O tempo nfo ha de chegar porque ele, simplesmente, existe. A identidade de passado e de futuro no presente (conforme S. Agostinho) vem da unidade do conceito de Deus: todos os momentos do tempo sio idénticos porque Deus € idéntico a si mesmo. Os fatos remetem a ordem da transcendéncia. Por isso a histéria € a realizado da profecia ¢ a profecia € ja historia! 11 Aqui, estou me baseando no contetido de uma palestra proferida por J. Adolfo Hansen no Instituto de Estudos da Linguagem em agosto de 2000. 51+ Nao resta divvida de que Vieira cra animado por uma certeza escatolégica da realizagdo do Quinto Império, que definiria o fim dos tempos, mas podemos dizer que © aspecto mais significativo de sua escatologia é justamente esta concepcao teleolégica do tempo como tempo divino tendente a salvacao, esta idéia da histéria Providencial, da inser¢ao da historia dos homens (¢ também dos reis) na historia j4 tragada por Deus, onde a profecia no € uma divinagéio, nem uma antecipacao da historia, mas o relato da propria historia (justamente a “Historia do Futuro”) ou, como diria Manuela Carneiro da Cunha (1996:86) uma “forma de meméria prospectiva”. Mas nesta meméria prospectiva, os acontecimentos nio sio simples “imagens” da perfeicdio de Deus, cles so seu Jugar. Como observa Pécora: “Para Vieira, a questéo relevante da Historia nao ¢ da sinalizar simplesmente 0 ser absoluto de Deus, mas sinalizé-lo enquanto Providéncia divina dirigida ao proprio homem. (...) Vale dizer que os melhores leitores desses sinais no poderiam ser se no aqueles mais comprometidos com a Conversio dos homens, entre os quais naturalmente esta o pregador” (Pécora, 1994: 171) E isso, a meu ver, que afasta Vieira da escatologia milendria de marca Joaquimita, caracteristica do franciscanismo do comeco do século XVI na colénia, ¢ faz dele um homem da Contra-reforma e um jesuita, pois entrega a primazia a agdo historica, humana e concreta da conversdo, a inica que pode garantir a plenitude dos tempos ¢ a comunhao do humano com o divino. Neste sentido, esclarece ainda Pécora: “isso que Padre Vieira chama de ‘unio de homens’ ndo pode ser considerado em termos teoldgicos € morais sem que o seja igualmente em termos historicos. (...) a unio humana assinala uma forte identificagdo entre a Providéncia, que ordena o mundo criado para seu fim, e a ago voluntaria do homem disposto a fazer, ainda neste mundo (e apenas aqui o poderia fazer), as reformagdes que o preparam para a Salvacio. Ou seja, ai, falar em unido de homens significa, uma vez mais, falar em ago apostolica providencial: missao no mundo” (Pécora, 1994: 200). E este objetivo final (humano) de uma macroconversio, voltada para realizaggo do desenho da plenitude do Ser (divino) que liga Vieira a Contra-reforma e ao projeto Jesuitico global expresso nos Exercicios Espirituais de Indcio, que fazem com que a Companhia, apesar de ser criada antes do Concilio, jé nasca imbuida do espirito reformador. 52. Este breve excursus sobre Vieira tinha como finalidade a tentativa de articular a opinido de alguns estudiosos sobre a “passagem” entre visio escatolégica € visio pragmitica da catequese, entre franciscanos e jesuitas, para simplificar (¢ Adriano Prosperi ndo ¢ certamente simplista em seus estudos sobre a Contra-reforma), ¢ a tese daqueles que consideram a dimensio profético-escatolégica como algo permanente; imével no tempo (e Delumeau parece cair nesta procura tipolégica, apesar de fazer uma “historia” das idéias milenaristas), Na verdade, houve uma evolugao das idéias escatolégicas, e Vieira mostra este processo: ele ¢ homem da segunda metade do século XVII, da restauragdo portuguesa, da igreja reformada e, fundamentalmente, um jesuita. O seu espirito missionario, como vimos, é fundamental em sua utopia, e a luz desta pode ser entendido o profundo apego as miss6es, do qual teremos um exemplo nas cartas sobre as miss6es do sertio ¢ outro exemplo no conflito com Andreoni A figura de Vieira é emblemética de um periodo histérico em que aos anseios escatolégicos, que cem anos de conquista espiritual ndo apagaram completamente, se articulou o projeto catequético assim como ele foi construido no Concilio de Trento como foi projetado, revisto, repensado ¢ rearticulado pelo pensamento jesuitico. Em uma palavra: uma utopia crist, mesmo se, a rigor, no é esta a palavra certa para 0 projeto jesuitico, ja que o lugar onde realizar o rein de Deus existe: é 0 espao das Reduges. Tentemos tragar aqui as linhas gerais da evolugdo deste projeto O contetido modemo do conceito de “misao” nasceu da crise do modelo de conversio baseado no sacramento do batismo administrado por predicadores fervorosos (como os franciscanos da primeira metade do século XVI). Este excessivo entusiasmo, @ as decepgdes que seguiram, levaram A redagdo de documentos pontificios que, junto com a Bula de 1537, regulavam também, de uma forma menos simplista, a administragio do batismo. A descoberta, na Nova Espanha, da “simulagio” dos indios, que continuavam praticando seus rituais “idolitricos” apesar da aparente converséo, fez com que fosse elaborado um novo modelo de missio, de tipo “apostélico”, com um corpus de agentes especializados, métodos especificos lugares apropriados. Este modelo foi encarnado pelos Jesuitas ~53- A propria Ordem jesuitica jé nasceu, em 1540, vinte ¢ cinco anos antes da conclusao do Concilio de Trento, com esta vocagdio apostdlica ¢ missiondria. Afinal, © dos Jesuitas foi um dos principais movimentos da Igreja catélica que, frente & devastadora ameaca da heresia luterana, escolheu realizar a reforma religiosa sob a bandeira papista, tendo..um impacto. profundo na resposta. tridentina - ao protestantismo. Como observa José Eistnberg (2000: 32), do ponto de vista moral, os jesuitas buscavam a santificagdo pessoal, através do método descrito nos Exercicios Expirituais, ¢ do ponto de vista institucional, procuravam se engajar em atividades apostolicas de converséo, as quais eram levados pelo principio soteriolégico tomista de que 0 trabalho de caridade contribui para a salvagdio da alma. Neste sentido, de acordo com Adriano Prosperi (1996: 567-9), a oferta jesuitica se encontrava com a demanda papal para a retomada de uma ago de tipo universalista. Esta iniciativa papal de interferir diretamente no envio dos pregadores se reconfirmou em Trento: a igreja contra-reformista teve como caracteristica principal a acentuagdo de seu universalismo e, por isso mesmo, assumiu a diregdo da Conquista Espiritual. E assim que surgiu 0 moderno conceito de missao, tao conatural 4 Companhia que constituiu sua marca distintiva. Com efeito, a nocZo de “missao”, assim como foi definida na sétima parte das Constituigdes de 1556-57, incluia a ago pastoral entre “infigis”, “hereges” ¢ “catdlicos”. A espiritualidade jesuitica era uma abertura para 0 mudo externo (tanto que a Ordem, ao contrério de todas as outras, eliminou a dimensio mondstica e conventual), ¢ a miss&o era sua traducdo mais completa Charlotte Castelnau-lEstoile (1999: 85ss) e José Eisenberg (2000: 36ss) observam que nas Constitwigdes 0 ideal missionério ¢ caracterizado pela mobilidade, Pela itinerdncia, onde a experiéncia missiondria se configura como uma viagem, uma Tomaria. Isto esté implicito também no famoso “quarto voto” da Férmula jesuitica, a total obediéncia ao papa ¢ a aceitaco pelo missionério de ser enviado a qualquer lugar onde sua Santidade quisesse: “..além daquele vinculo comum dos trés votos, com este fim nos liguemos por um voto especial, pelo qual os Ppontifices ao tempo existentes mandarem, para proveito das almas ¢ propagagio da fé. E assim fiquemos obrigados, quando estiver nas nossas mios, a ir sem demora para qualquer ~S4- regifio nos quiserem mandar, sem qualquer subterfigio ou escusa, quer nos enviem para entre os turcos ou outros infiéis que habitam mesmo que seja as regides que chamam indias, quer para entre hereges ou cismaticos, quer ainda para junto de quaisquer figis” (Loyola, Constituigdes da Companhia de Jesus normas complementares, apud Eisenberg, 2000: 36) Encontramos nesta formula, a concepgao tomista do paganismo, adotada também na bula Sublimis Deus, de 1537, em que ha dois tipos de pecadores: hereges pagios. Enquanto os primeiros tém que pagar pelo seu pecado (¢ os jesuitas foram, na Europa como no Novo Mundo, entre os principais consultores da Inquisi¢ao), os segundos tem que ser tirados com a conversdo da ténebra da ignorancia A formula € significativa também porque nos remete ao quadro politico ¢ cultural em que a Companhia comecou a agir: a alteridade religiosa contra a qual 0 catolicismo reformado tinha que lutar (¢ para a qual a Companhia tinha que se volver na pritica pastoral) era multipla: dos hereges aos infi¢is. Isso confirma a vocagao universalista da igreja tridentina e dos jesuitas. O impulso a catequese dado pelo Concilio de Trento constituia uma reagdo doutrindria A Reforma e pressupunha uma compactagio eclesidstica, realizada mediante um conformismo doutrinal, ou seja, a uniformizagao de um conjunto de normas (fegras a respeitar e coisas a acreditar). Instrumentos fundamentais para esta “conversio”, entendida como aquisico da consciéncia de deveres e regras, foram os catecismos (a uniformizacao das regras) e a confisséo (como controle da consciéncia) (Agnolin, 2001: 16-26)!2 No que diz respeito ao primeiro instrumento de catequese, 0 catecismo, vale jembrar que a base de elaboragiio de todos os catecismos escritos no Brasil, inclusive os em lingua kariri (ver capitulo 9) foi 0 Catecismo Romano (ou Tridentino), resultado da operagao de sistematizaco doutrinal de Trento. Este ultrapassava os compéndios doutrinarios anteriores!? que comegaram a ser chamados “catecismos” 12 Relatério de circulagao restrita, utitizado com o consentimento do autor. 13 As Doutrinas Cristés compostas para “nudes” (conforme a definigdo agostiniana) ¢ criangas ja se destacaram enquanto instrumento doutrinal durante a Idade Média. Vale a pena evidenciar, entre elas. a Disputatio Puerorum que, desde 0 século XI, se apresentava como catecismo em forma de didlogo (Agnolin, 2001: 15), sistema este amplamente utilizado nos catecismos em linguas indigenas nas Américas. -35- 80 a partir do século XIV, constituindo-se numa summa definitiva dos principios basicos da doutrina (oragdes, significados dos sacramentos, elementos do Evangelho, ete.), a partir do qual seria possivel organizar a missio, nfo apenas entre povos infiéis das longinquas Américas, ou da Asia e da Africa, mas até entre as massas camponesas iletradas da Europa, vitimas designadas das “supersticdes diabélicas” © catecismo, entendido como corpus de nogdes, priticas © deveres do novo cristo, preparava a confissdo, entendida como consolagdo do cristio mas também corretivo de desvios € instrumento de controle social. Nos catecismos elaborados nesta base para as missdes americanas, ha uma prevaléncia clara do sacramento da confissiio em detrimento do batismo, sendo este ultimo ineficaz, como ficou claro na Primeira catequese, ¢ sendo a primeira a verdadeira via de construgdo da consciéncia do cristao. Passando ao segundo instrumento de catequese aprimorado no Concilio, a idéia de confissdio como controle de consciéncia ¢ de Adriano Prosperi (1996 265ss), que Justapée a ela a nogao de confisso como consolagao do cristo, Estes dois aspectos foram longamente discutidos no Concilio. Trata-se do reflexo do grande debate da primeira metade do século XVI no interior da Igreja catélica, debate tornado mais candente pela heresia luterana, que varria os elementos de controle social, para deixar apenas a dimensio consolatéria. O Concilio de Trento regulou definitivamente a matéria, confirmou a importéncia sacramental da confissio, em sua forma de confisséo auricular privada, e rejeitou a pratica, difundida na tarda idade média, das confissées em massa. Mais uma vez, encontramos os jesuitas A frente do trabalho de elaboragio desta nogdo, antes mesmo co erserramento do Concilio. Com efeito, a confissio é Justamente um dos cixos dos Exerctcios Espirituais de Loyola, onde o exame de consciéneia diario f ‘oria do pecado ¢ 0 exercicio da peniténcia. Com efeito, os inacianos foresa grandes confessores e, entre a Confissio © a Inquisigao como pritica de incivicuasa> Jo pecado, escolheram a primeira, Nas instrugdes Jesuiticas para os confessores, encontramos nao 0 modelo do juiz (0 inquisidor), mas © do médico, que procura ¢ cura as feridas da alma (Prosperi, 1996: 495). Esta dimensio médica volta também, simbolicamente © praticamente, na catequese -56- indigena, quando 0s jesuitas, substituindo-se aos xamis, se propéem como “médicos” dos indios. Adriano Prosperi mostrou muito bem que a renovacdo da miss&o, o surgimento da missio no sentido modermo, nao se deu apenas com relagZo ao Novo Mundo mas, em primeiro lugar, a partir da situag%o do combate a heresia e as formas heterodoxas de crengas € priticas catélicas no interior da Europa, e principalmente da Itdlia (as “Nossas Indias”, de acordo com a definigio do jesuita Silvestro Landini) das primeiras décadas do século XVI (Prosperi, 1996: cap. XXVIID). Charlotte Castelnau-’Estoile (1999: 82-83) parece compartilhar da mesma opinido, quando diz que a visita de Gouveia ao Brasil, entre 1583 e 1585 (da qual, como veremos, surgiu uma reformulagao do projeto missionario), nao é especifica da col6nia, mas sintomatica da nova fase de consolidagao da Ordem, caracteristica do governo do padre geral Aquaviva, em que se chega até 4 versio definitiva das Regras, das Constituicgdes ¢ da Ratio Studiorum. Por outro lado, nfo se pode pensar numa simples projegéio, na evangelizagaio das Américas, de principios ¢ idéias elaboradas em outros contextos, justamente em virtde do universalismo mencionado. Pelo contrario, a missio no Brasil constitui uma extraordindria adaptaco ao meio fisico ¢ cultural no qual a Companhia se encontrou. Por exemplo, poder-se-ia pensar numa contradi¢o entre o espirito missionario “mével” que se evidencia nas Constituigdes e a experiéncia das aldeias, tio caracteristica da evangelizagao jesuitica no Brasil, frisada pela propria Castelnau- YEstoile. Mas ai entra em jogo o principio jesuitico da prudéncia, conceito este que teve origem também nos Exercicios Espirituais, que poder-se-ia resumir na idéia de adaptagdo das normas e tolerancia das violagdes, desde que estas nfo fossem extremamente ofensivas para Deus (Eisemberg, 2000: 45) Esta idéia, originariamente voltada para o exame de consciéneia didrio do exercitante e sucessivamente para as aulas de “casos de consciéncia”, acabaram conferindo uma marca especifica e tinica ao procedimento (roster modus procedendi) nas missdes, pelo menos em dois sentidos. Em primeiro lugar, com respeito 4 “adaptagao das normas”, a implantagdo das aldeias missionarias no Brasil constitui uma primeira evolucdo, frente aos problemas especificos do territério, da norma da catequese “itinerante” contida nas Constituigdes. As aldeias, como diz Charlotte Castelenau-L’Estoile (1999: 108) foram uma iniciativa dos padres no Brasil, aliados ao poder colonial: uma adaptacaio as condigdes locais de possibilidade de conversio. Desde 0 comeso, portanto, 0 aldeamento jesuitico foi uma prética, mesmo se teologicamente orientada, que softeu continuos reajustes e mudancas, frente aos resultados da catequese. Em segundo lugar, com respeito a “tolerdncia das violagées”, veremos que aqui se encontra um dos principios fundamentais da pritica catequética dos jesuitas, que teve enorme importancia e grandes consequéncias na formago de uma “cultura hibrida” nas aldeias. Nelas, criaram-se os rituais catélicos “interpretados” pelos indigenas, ou a tradugio no apenas na lingua mas nos cédigos tupi dos prineipios cristios, conforme as formas de catequese defendidas por Anchieta; por outro lado, a partir do mesmo principio, produziram-se perigosos “desvios” das quais a Santidade de Jaguaripe ¢ um exemplo. E, finalmente, a persisténcia de alguns rituais indigenas, traduzidos pelos jesuitas com o termo “jogos” (/udi), e por isso tolerados, nas aldeias “tapuia” do século XVII (ver capitulo 9), mostra a elasticidade de um Ppensamento catequético que sacrifica o respeito das formas 4 obtengiio dos resultados. ‘A mudanga ripida das estratégias de conversdo dos indios tupi da costa pelos jesuitas ¢ sublinhada por José Eisemberg, que aponta para o fato de que jd com a chegada da terceira leva de missionarios (1553), ficou clara a ineficdcia da simples Pregagao da palavra. A cura dos indios doentes tomou-se uma poderosa arma de conversdo. Vimos no primeiro capitulo, e veremos no Ultimo, que no se tratou de uma simples aplicagio de principio de medicina hipocritica ao tratamento das doengas (em sua maioria trazidas pelos brancos ¢, portanto, conhecidas pelos Jesuitas), mas de uma verdadeira sobreposigiio, ou “tradugdo”, de paptis, entre missionario e xama. De um ponto de vista institucional, uma primeira reformulagdio do projeto de catequese se deu menos de dez anos depois da chegada. Justificado teologicamente ¢ praticamente no Didlogo sobre a conversdio do gentio (1556) ¢ no chamado Plano civilizador, ou seja, a carta de Nobrega ao padre Miguel de Torres (1558), o plano de reforma das misses propunha a criagdo das aldeias, uma especificidade brasileira, -58- onde os indios (mesmo os de diferentes grupos étnicos) seriam reunidos ¢ mantidos sob a administragdo espiritual e temporal jesuitica, separados da populacio européia. Para José Eisenberg (2001: cap 3 e passim), esta justificagao teologica constitui a taiz do pensamento politico - desenvolvido mais tarde pelo tedlogo Juan de Mariana- que justifica 0 dominio pelo medo e consentimento dos govenados, também apresenta 0 modelo de redug&o que sera aplicado seja no Paraguai seja em outras missées (como aquelas de Juli, no Peru, dirigidas por Acosta). O que é importante notar é que a teologia que sustenta a proposta das aldeias expressa-se em termos perfeitamente ortodoxos: se os indios sao “bestiais”, e por isso sua conversio € dificil, nao € posta em discussao sua humanidade, reconhecida pela Bula de 1537. A teoria monogenista, da qual Nobrega era adepto, faz dos indios os descendentes de Cam, o filho amaldigoado de Noé; sua condi¢&o “bestial” ¢ fruto da maldigao de sua origem e de sua degeneraciio, devida A falta de educacdo. Eles possuem Inteligéncia, Memoria e Vontade: € apenas sua “inconstancia”!4 que prejudica o uso destas faculdades humanas. A instituig&o das aldeias, portanto, é a solug&o para poder exercer a necessaria educacio, para depois passar a conversio. E introduzido aqui o conceito de “policia” (do latim politia). Para Eisenberg este conceito corresponderia ao de “civilizagio” e, mais especificamente, “‘civilizagao crista”, pessoalmente, prefiro pensar na raiz grega (pilis) do termo, e na nogao de “policia” como “bom governo”, de acordo com a idéia platonica de “repiblica”. De fato, poder-se-ia pensar, com Norbert Elias (1997[1939]) na “policia” jesuitica com no “aprimoramento civil dos costumes”, nogio esta elaborada, a partir do conceito grego, na época renascentista. Trata, portanto, da idéia de tomar os indios “homens” (= civis) para fazé-los, depois, cristiios, idéia esta que, expressa magistralmente por Acosta, acompanhara todo 0 processo de evangelizag&o no Brasil, e que sera apropriada também por outras ordens (os capuchinhos Martinho ¢ Bemardo de Nantes, por exemplo, expéem este conceito nos prélogos de suas respectivas Relations), E este trabalho s6 pode ser 14 Veremos no préximo capitulo esta nogdo de “inconstancia da alma selvagem” e sua andlise por Eduardo Viveiros de Castro. -59- realizado em lugares especificos, as aldeias, cidadelas de Deus, onde exercer 0 “bom governo”, a educagao dos corpos ¢ das almas, em uma palavra, a reduedo, no duplo sentido latim de reducere: “conduzir” (para a humanidade civil) e “retirar”, “afastar” (do convivio com outros homens, os colonos). E este, a meu ver, 0 sentido profundo da utopia-jesuitica, que nao renuncia ao sonho escatolégico-de construir.a“cidade-de Deus”. As dificuldades da evangelizago expressas por Nébrega no Diélogo concernem tanto a incapacidade dos indios em aceitar a catequese, assim como ela tinha sido levada até o momento, quanto a dificuldade dos missionarios em conservar seu ardor apostélico: os dois obstaculos tomavam a do Brasil uma “vinha estéril”, expresséio esta usada pelo padre geral Aquaviva. Ora, jé que nos Exercicios e nas Constituigdes a salvagao do “préximo” se acompanha a santificagdo pessoal, este no ra um problema de pouca importancia. As aldeias, ento, se construiam como a unica possibilidade, ou unico /ugar de realizagao do ideal jesuitico no Brasil, O aldeamento, portanto, nao foi fruto de uma insténcia da autoridade central de Roma, mas uma solugo local, um esforgo de adaptagdo a situagio econémica, Politica ¢ religiosa especifica da colénia. A viagem, entre 1583 ¢ 1585, do Visitador Cristovéo de Gouveia, encarregado pelo Padre Geral Aquaviva de fomecer um detalhado relatério sobre as aldeias e estabelecer um regulamento para clas, representa 0 esforgo do govemo central jesuitico de conciliar 0 ideal das Constituigdes com a pratica da Terra de Santa Cruz. Mas a situagdo histérica dos anos 80 do século XVI nao era mais a mesma do inicio da experiéncia. Este periodo é caracterizado por uma “ofensiva dos colonos” ¢ um aumento da tenso entre estes e 08 jesuitas, por causa da apropriagéio da m&o-de- obra indigena ¢ do controle sobre os grupos recém-contatados (Monteiro, 1994: 41- 56). Foi neste contexto que Gabriel Soares de Sousa escreveu os famosos Capitulos contra 0s jesuitas, aos quais estes responderam com 0 Discurso das aldeias, um balango critico da atividade nos aldeamentos, que mostra como 0 governo foi incapaz -60- de defender 0s indios, que morreram aos milhares.! Foi também neste contexto € nestes anos (1580-1585) que floreceu a “Santidade de Jaguaripe”(Vainfas, 1995), da qual nio falam nem Gouveia em sua relago nem Cardim, que o acompanhava na “visita” © que foi também assistente do Inquisidor Heitor Furtado de Mendonga, quando do relativo proceso, em 1591. O Regulamento'6 de Gouveia, portanto, tendo em vista -como apontado — a conciliagdo do ideal jesuitico expresso nas Constituigdes ¢ a realidade das aldeias visitadas, constitui 0 marco de uma nova mudanga na organizagao da catequese jesuitica no Brasil. A aldeia é agora concebida como um espago perigoso e hostil, onde 0 missionario pode perder a si proprio, Por isso, o Regulamento apronta toda uma série de medidas voltadas para exorcizar este perigo, reforcando a ligagfo entre a aldeia e 0 colégio da qual ela depende: a visita anual do superior a aldeia e a renovagao dos votos do missionério, uma vez: por ano, so exemplos simétricos desta preocupacio. Quanto ao controle sobre os indios, de acordo com o Regulamento, este se exerce em todos 0s espagos ¢ em todas as dimenses da vida social: da visita semanal as casas dos indios a autorizago do padre para qualquer saida da aldeia dos indigenas. Finalmente, 0 Regulamento desenvolve a pedagogia religiosa dirigida aos indios, baseada no principio da repetigao: a doutrina ser ensinada conforme o principio do didlogo, um conjunto de perguntas ¢ respostas!7. Ao lado disso, 0 apostolado se bascia nas ceriménias de culto. Vemos aqui que poucas décadas de evangelizago, antes e depois dos aldeamentos, ja mudaram profundamente a maneira 15 a Informagdo do Brasil e do De(sjcurso das aldeas e mao tratamento que os indios receberam sempre dos Portugueses ¢ ordem del Rei sobre isso esta publicada nas Cartas de Anchieta (1933) Charlotte Castelnau-L”Estoile (1999:109ss), que analisa em detalhe este documento, diz que este ficou andnimo, até sua atribuicdo recente ao padre Luiz da Fonseca, 16 Confirmagito que de Roma se enviou & Provincia do Brasil de algumas cousas que oP. Cristovao de Gouveia Visitador ordenow nela 0 ano de 1586. ARSI, Bras, 2, ff 140-149v, apud Castelnau- L’Estoile, 1999: 124-147), 17 Nesta época, com certeza ja circulavam nas aldeias pelo menos 0 Didlogo da Fé, € possivelmente também a Doutrina Crista e 0 Confessiondrio de Anchieta, que nao foram publicados na época e constituiram a base do Catecismo de Araijo, publicado em 1618. -61- de perceber o que é “indigena” ¢ o que no 0 ¢. As ceriménias de culto catolico so consideradas no Regulamento como “bons costumes” indigenas “E que eles guardem os bons [costumes], como dizer 0 Salve, aos sibados, as disciplinas ¢ as procissées da Quaresma, como cantar a missa, se houver cantores, pelo menos para as quatro principais festas para a consolagéo dos indios ¢ 0 progresso da Cristandade, como rezar toda segunda uma missa para os defuntos, saindo do cemitério com a Cruz e a agua benta, como a de fazer cantar a doutrina pelas criangas depois da Ave Maria, ¢ coisas semelhantes” (Regulamento. § 19 apud Castelnau-LEstoile, 1999: 143). Gouveia aqui reconhece uma “indigenizagiio” das festas cristis. Como veremos, so justamente estas ceriménias de culto o terreno privilegiado da “tradugao jesuitica” dos principios da 8 cristi para os indios. E este um outro aspecto, simétrico & especular, do processo de apropriae&o dos simbolos ¢ da fala dos outros que vimos no caso dos jesuitas se substituirem aos carafbas. Veremos no proximo item © quanto foram profundas esta absorgao e esta traducio. No proximo item veremos também a questo da lingua, colocada em termos claros pelo Regulamento de Gouveia que, neste caso também, mostra a evolugio do pensamento da hierarquia romana a este respeito, em fungio da realidade colonial Com efeito, 0 aprendizado obrigatério das lingua indigenas se tornou regra da Companhia exatamente nestes anos e, possivelmente, a partir da experiéncia brasileira. Aqui basta dizer que este problema de adaptago das exigéncias espirituais traduzidas em regras em Roma e priticas locais, transformadas em versdes heterod6xas das regras, foi um problema que acompanhou a ordem jesuitica até a sua expulstio, em meados de 1700, ¢ informou tanto o didlogo entre a provincia e Roma, quanto o debate interno 4 propria Companhia no Brasil, Este debate chegou muitas vezes a momentos de conflito patente e a tomadas de posigao claras de Roma, notadamente no que diz respeito a administragao das aldeias Charlotte Castelnau-L’Estoile (1999, cap. 4) mostra que Roma foi sempre contréria 4 administracéo temporal das aldeias, e também, consequentemente, ao envolvimento dos jesuitas nos conflitos coloniais. Ha uma proibicéo clara de Aquaviva neste sentido, que mostra que Roma conhecia bem as dentincias contra a atuagao jesuitica nas aldeias. Nesta diregdo, de uma vontade romana de reorganizar as aldeias, tem que ser entendida a ordem de 1598 que fixa em quatro o nimero dos -62- missiondrios por aldeia, onde o superior parece ter mais a fungdo de controle dos outros do que propriamente de evangelizacao. Por outro lado, os jesultas da colnia insistiam na administrago temporal das aldeias como tnica maneira delas (¢ dos indios nelas reunidos) sobreviverem e, com elas, a propria misstio no Brasil A Terceira Visita do padre Manuel de Lima (1607-1609) constitui, conforme 0 proprio autor, um complemento do Regulamento de Gouveia. Foi escrita num momento delicado para a ordem, quando o padre geral Aquaviva emanou uma série de ordens e decretos voltados para a reforma espiritual, principalmente no que diz respeito as misses, cujo documento principal tem o significativo titulo de De Renovatione Spiritus. A partir dai, as regras de Lima so todas na diregdo de fechar 0 espaco das aldeias para o mundo externo (por exemplo, proibe a permanéncia de colonos ou mamelucos nas aldeias, nem que seja para assistir 4 missa ou participar das festas religiosas), bem como isola os proprios missiondrios da populagdo indigena (principalmente feminina)!8. Estas regras no chegam a negar a aldeia, mas sem divida radicalizam a idéia de “perigo” que elas, enquanto mundo extemno, representam para os jesuitas ¢ sua disciplina espiritual. A carta do companheiro do Visitador, Jacome Monteiro, é um claro convite a abandonar as aldeias, lugares onde se multiplicam as ocasides de pecados e abusos, verdadeira ameaga para a integridade da Companhia no Brasil (Casteinau-L’Estoile, 1999: 331ss). A “resposta” dos missionarios do Brasil a esta atitude do centro é um documento extraordindrio: Algumas adverténcias para a provincia do Brasil, possivelmente um documento preparatério para a assembléia de 1609, convocada pelo proprio Visitador!®. Este documento, longe do tom burocritico da correspondéncia administrativa entre Brasil e Roma, revela as estratégias de 18 Yerceira visita do padre Manuel de Lima, visitador geral desta provincia do Brasil. Biblioteca Vittorio Emanuele, Fondo Gesuitico, 1255 (14), apud Castelnau VEstoile, 1999: 3195s, A autora observa que Serafim Leite dedica trés linhas @ analise deste documento. Estamos aqui frente a um bom ‘exemplo da censura & qual o historiador jesuita submete a documentagao. Veremos nos préximos capitilos outros exempios desta censura, Pode-se dizer, de antemdo, que esta envolve todos 05 documentos que de alguma maneira ofuscam a imagem da missdo e das aldeias no Brasil -6- evangelizagao nas aldeias e a fratura no apenas entre a sede central e o Brasil, mas aquela (que veremos mais adiante na carta de Rolando) entre os jesuitas de misséo, conhecedores dos indios e das dificuldades da catequese, ¢ os de colégio e residéncia. Logo de saida, o documento resume magistralmente as implicagdes politicas ¢ econémicas das aldeias, revelando 0 quanto, apesar da proibig&o de Roma, os jesuitas ~ esto envolvidos no sistema colonial, mantendo um dificil equilibrio entre as forgas sociais que nele interagem: . “A conservagdo do Brasil se pode dizer que depende da conservagio das aldeias; donde se entenderd quiio necessitio so as misses para se tefazerem?®, porque elas assombram aos inimigos estrangeiros, fazem rosto aos aimorés, refocdo (sic) aos negros de Guiné que se no levantem, e aos salteadores de caminhos ¢ fugitives tomam e prendem e os entregam a0s seus senhores” (d/gumas adverténcias...apud Castelnau-L’Estoile, 1999: 345) O dado mais interessante desse texto ¢, para nds, a posicado do andénimo autor para com a cultura indigena. Inversamente & posigdo de Nobrega no Didlogo, que via nos costumes dos indios um dos obsticulos da conversiio, o autor deste texto mostra no apenas tolerdncia para com os usos no contrarios lei de Deus (que era a posigdo de Inacio ¢ de Anchieta), mas uma estratégia de catequese que passa pelo Tespeito aos costumes nativos. Cinquenta anos depois do Didlogo, 0 conhecimento das sociedades indigenas que descende da pritica de missionagéo (que experimentou 0s fracassos das tentativas de erradicar todos os costumes do gentio ¢ de impor os modos europeus) indica novos caminhos de evangelizagio, onde a aldeia pode até se tornar semi-némade. “Os indios conforme a seu costume mudam as aldeias muitas vezes Porque assim se conservao mais. Donde he bem que no fagdo 0s nossos edificios to grandes que seja depois dificultoso mudar a aldeia; (...) Como os indios para morrerem basta tomarem melanconia ec. Parece que ndo he bem tirar-Ihes os nossos seus costumes que se nao encontrdo com a lei de Deus, como chorar, cantar e beberem com moderagdo. E se alguns se desmandarem, dar-lhes a sua peniténcia. Endo quebrar-Ihes os nastos de 1° Algumas adverténcias para a provincia do Brasil. Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele, Fondo Gesuitico, 1255 (38) (qpud Castelnau-Estoile, 199: 345ss) 20 As missdes, ou seja, as entradas que a lei de 1596 entregara aos jesuitas eram o tinico meio para “refazer” as aldeias, cujo nimero de habitantes diminuia constantemente por causa das fuses e das epidemias. -64- vinho, nem impidir-lhes n&o vao estar na praia ec (acrescentado & margem: quando he por pouquo tempo)” (A/gumas adverténcias... ibid: 348) Podemos identificar neste documento um precedente histérico notavel da atitude que caracterizara a vida das aldeias no serto, na segunda metade do século XVIL.Com efeito, por um lado a.mudanga das.aldeias tornou-se uma pratica comum no serto, cujas razes, como veremos no capitulo 8, eram miltiplas, da falta de agua e comida a periculosidade da vizinhanca dos curraleiros; por outro lado, a tolerancia para com alguns costumes “tapuia”, que ndo fossem aberta ofensa a Deus, tornou-se uma estratégia corriqueira (pelo menos em alguns casos, como veremos), para manter 0s indios nas aldeias ¢ proceder a pratica da catequese No século XVII continuaram as discussdes entre os defensores ¢ os detratores das aldeias. Também as decisdes de Roma a respeito ficaram oscilando. Por isso, a época da catequese no sertio esta caracterizada nao apenas por conflitos externos (da Companhia contra os curraleiros, por exemplo), como também por conflitos internos. Por exemplo, no 5° ponto das Instrucdes da “Visita” de Jacinto de Magistris (1662) recomendava-se que no Brasil se retomasse 0 espirito das Missdes e da catequese com indios ¢ negros (Leite, 1930-50, V: 280). Tratava-se de um incentivo as missdes, e, de fato, nos anos 60 do século XVII foram criadas as missdes no sert&o. Poder-se- ia pensar, por um lado, numa crise da vocagdo dos missiondrios, que Roma tentou consertar2! numa vontade de acompanhar com a missfo as varias fases do conflito contra os “Tapuia” (a “Guerra dos Barbaros”, cf. capitulo 8), no que diz respeito a0 controle reli ioso dos “barbaros” vencidos ¢ aliados. Por outro lado, porém, € desta época 0 conflito aberto no interior da Companhia no Brasil, a respeito das mesmas missdes do sertao. As continuas tensdes com a Casa da Torre faziam com que boa parte dos Padres do Colégio da Bahia fossem contrarios 4s missdes no sert&o, inclusive o reitor do 21 Charlotte Castelaau-L’Estoile (1999) mostrou brilhantemente que este problema da crise das vocagies missionarias (que tomam “estéril” a vinha do senhor) acompanha permanentemente os jesuitas no Brasil, constituindo um sério problema para Roma (como vimos no caso da reforma de ‘Aquaviva), j que nas Constituigdes a salvagio do proximo ¢ a condig&o da salvagio da alma do proprio jesuita, -65- Colégio, 0 padre Forti, que acabou aceitando a composigéio com Garcia d’Avila depois da destrui¢ao das aldeias das Jacobinas, em 1669, Um caso particular é representado pela atitude do padre Jacobo Rolando: com efeito, o padre flamengo experimentou algo totalmente novo na histéria da catequese no Brasil, e, além da dbvia censura da provineia (nfo sabemos a reagdo de Roma), obt: até a aprovagaio de Vasconcelos. O padre se pronunciou radicalmente contra os descimentos (que, como vimos, eram necessarios para “refazer” as aldeias que fugas e epidemias esvaziavam) ¢ experimentou a fixacdo (dele proprio) nas aldeias dos “Tapuia”. Trata-se, me parece, de uma versao radical das Adverténcias de 1609 citadas acima. A experiéncia da missfio fazia com que cada vez mais a pratica de evangelizagao se afastasse do ideal inaciano ¢ procurasse estratégias locais de realizagao, Mesmo sem querer confiar muito nas entusiisticas declaragdes de padre Rolando, por Vasconcelos ¢ Jofio de Barros (ver capitulo 8) sabemos que 0 experimento foi bem sucedido. A longa carta de Jacobo Rolando € estruturada em varios pontos, que constituem uma argumentac&o retérica de sua posi¢do que, de fato, é uma defesa frente as fortes criticas movidas pelos outros padres, com relagio ao seu istanciamento do modelo jesuitico costumeiro. Vale a pena transcrevé-la quase por completo porque, além de ilustrar os tons duros deste debate interno 4 Companhia e devolver um interessante retrato do padre Rolando, uma das figuras de missionario mais controversas, ela constitui um exemplo interessantissimo da relagdo entre os missionarios “de aldeia” e os “de colégio”, e também porque nos mostra a situagso no sertao da segunda metade do século XVII, que iremos analisar em detalhe nos capitulos 8 ¢ 9. Como vimos, 0 préprio cotidiano da catequese acabou imprimindo sempre, ou quase sempre, as diretrizes gerais da atuagzo da Companhia no Brasil, num esforgo continuo de adaptacdo das regras a pratica, pois estas mesmas regras j4 surgiram, como uma organizaciio de prdticas. O caso apresentado aqui é emblemético de uma dindmica hist6rica ¢ religiosa que levou a uma continua reelaboracao de modalidades de catequese. Neste sentido, é de extremo interesse a comparacao entre a primeira -66- época, herdica, da Companhia, e 0 presente da segunda metade do século XVII; a vida na miss&o e a convivéncia com os “Tapuia” levam o padre a mostrar que as situagdes so incomparaveis: “S, Francisco Xavier de Jacobina, 9 de janeiro de 1667 Questdo: se os Tapuia tém que ser tirados do sertio ¢ levados para mais préximos do litoral ou no. Do pe. Jacobo Rolando ao pe. Comissario, Vejo que terei que travar um grande combate, mesmo que nfo queira estabelecer um conflito com quase todos nossos irmaos do Brasil, sobre 0 ser contrario ao habito até aqui costumeiro das Misses do Brasil. (...) Mas antes de responder as teses propostas por Vossa reverendissima, nao seja importuno V. R. ler com benignidade e examinar com cuidado estas notas que achei por bem premitir. 1.0s Padres desta nossa Provincia, pelo menos muitos, no que diz respeito as coisas do sert&o s&o cegos, pois nunca penetraram nele, a ndo ser por volta de 30 ou 40 anos atris, por acaso, nem sequer tém idéia do que ai se trata; erram, quando pensam ser apenas esta a aparéncia das coisas (.,.) 2. Parece aos Padres Lusitanos desta Provincia, que os Padres — pelo nimero deles ~deixaram nas sagradas paginas a primeira caridade, no por outra razHo, creio, que pelo fato de nao ter feito missdes, nem informado direito VR. sobre a necessidade de fazé-las 3. Para mim esta mais claro do que a luz do dia que as missdes foram interrompidas e¢ milhares de almas perdidas porque os padres néo mantiveram a diregdo certa na instituigéo das misses, querendo levar os indios para o litoral, de onde as missdes deverfo ser trazidas, nao seja por outra razio de que R.V os convenga, se para a maior gloria de deus a R.V. deseje instituir ¢ promover a salvagao de centenas de milhares de almas. Finalmente, se ¢ licito dizer 0 que eu sinto, eu acredito que s6 por esta raz&o, da interrupgo das missdes, Deus permitiu que a nossa Provincia caisse em tantas monstruosidades; com efeito, porqué, estando la no céu aquele divino amante das almas, teriam side langadas no Tartaro, pela nossa negligéncia, tantas almas, entregues as penas eiernas, se nado como, castigo langado sobre nés? (...) Aqueles que tomam a parte afirmativa ¢ pensam em me atacar com um argumento inatacavel, dizem que, até 0 presente, sempre foi costume 0 dos padres levarem os indios conquistados das selvas e do sertio, ¢ to mais recomendavel, de acordo com 0 exemplo profético, mas nio com a praxe, dos Herdicos Padres apostélicos. (...) Consideram necesséria a coagdo (= 0 descimento), pois acham que, quanto mais apreendidos os preceitos cristaos, tanto mais os iniciados continuardo com consténcia e nao voltario as antigas selvas (...) -67- Digo que nao ha nenhuma razo de tirar os indios de seus sertdes para inicid-los aos prinefpios cristios, mas que eles tem que ser batizados em suas proprias terras e nestes mesmos sertdes. (...) Eles ndo suportam de ser tirados a forca, nem iludidos, nem levados pela fome e pela miséria. Com efeito, quantos de muitas milhares de indios sobreviveram sem a ajuda dos padres ou de outros, quando levados a forca de suas terras? Talvez um sobre mil esteja vivo? Para eles o clima maritimo sempre foi perigoso, por eles no se acostumarem: lembro a mesma coisa ter acontecido em minha provincia, das cidades maritimas de Dunkerk e Berg, nas quais, se alguém é enviado para la pelo provincial, a maioria adoece gravemente, pelo que os padres no acostumados aquele ar so enviados para la sO por motivos muito graves; € por que estes indios, mais fracos por natureza, nio deveriam morrer perto do mar? E mesmo que os mais robustos entre eles possam resistir 4 incleméncia do ar, os mataria a fome, como nos ensina a experiéncia, Com efeito, quem poderia sustentar esta enorme multidao de homens? Talvez nosso colégio? E onde? Talvez nosso poderosissimo Rei? Mas nem com todo e Tesouro da rainha. Nao cuidava por acaso o Rei daqueles que estavam em Cachoeira ha dois ou trés anos? Cuidava, E mesmo assim foram destruidos por mil desgragas. No tempo em que era provincial, aquele étimo zelador de almas que era Vasconcelos (que venero € tomo como exemplo pela doutrina e pelo zelo das almas) instituiu a famosa misstio dos Gecarurus [so os Gegaruru?], recolhendo a grande multidio deles em Niterdi e criou-os durante muitos dias com afeto paterno. E ndo morreram aos poucos, de fome miséria, tanto que se pode dizer que nfo ficou ninguém? SO cité este entre muitos exemplos para poupar tempo. Dird alguém que, reduzindo os indios, ensinar- se-a cultivar a terra, a plantar o que precisarem, a fazer roga para se sustentar. Justo. Mas ai pergunto, porque nao foi feito nos casos anteriores? E se foi feito, por que os indios sao extintos? Finalmente, enquanto a terra produz seus frutos para que eles possam se alimentar, como poderiam viver neste meio tempo? Jejuando? Aqui, os prudentes indios Sapoid queriam saber, certos de nossa chegada, se os levariamos conosco perto do mar Diziam: se os padres tentarem, nés nunca o faremos, mas se eles ficarem aqui, adotaremos de bom grado os costumes cristios. Veja entdo V. R. como esta certo 0 que eu disse no comego: que é impossivel que as missdes feitas desta maneira fiquem sem fruto (...) Mas para que fique tudo mais claro com relagdo as objecdes: 1. De modo algum penso em criticar ou negar os fatos dos nossos herdicos e santissimos padres, ja que os adoro e venero, por serem inspirados pelo Espirito Santo. Mas observo que naqueles tempos e circunstincias estes fatos eram necessarios: hoje os tempos ¢ as circunstincias so diferentes, para no dizer contririos. E util e necessario explicar? Nada mais desnecessario. Com efeito, os costumes antigos séio uma autoridade no leve, mas 6 verdade também que eles serdo validos até o momento em que -68- prevalecerio a razio ou a lei escrita. (...) Portanto, a razo seja de quem atribui tanta autoridade aos costumes ¢ habitos antigos, desde que mudadas as circunstancias das causas, faga 0 mesmo com os efeitos. Disso concluo que, se quisermos seguir a razfio, temos que introduzir um outro procedimento nas missdes, pois as causas ¢ as circunstancias dos padres tirar 08 indios do interior so eliminadas e invariadas (sic). Com efeito os padres antigamente reduziam os indios para nao viver junto a eles, contra qualquer costume, expostos a mil perigos (...imagino que tirassem os indios do sertéo pelo niimero dos padre ser tio pequeno no comego, que seria insuficiente para as missies do litoral e do sertio). Certamente aqueles dos nossos que hoje cultivam este serto e assistem os indios, tanto ndo moram contra 0 costume, que justamente se pode desconfiar que eles, da mesma maneira que no litoral, estejam ausentes, mais do que servir os oficios da sociedade bem como a educacdo dos indios; ao ponto que ele {o sertéio], abandonado, & ‘ocupado por europeus e angolanos, que todo 0 possuem e cultivam, ¢ vivem misturados nas aldeias dos indios. Eliminada portanto a causa do costume do descimento dos indios para o mar, deixa de existir 0 proprio costume. Mas seja-me permitido conservar um costume da sociedade. Nao de uma provincia particular, mas da Sociedade. Por quantas sejam [as provincias] néo me lembro ter ouvido alguma vez (a Sociedade) levar os indio a defender suas terras. Com efeito, o mesmo nao costuma acontecer na india, no Japaio, na China, no México, no Peru, no Chile, no Canada, ou em outros lugares das indias. Mas no Brasil as circunstancias impdem que isso acontega. Quais sfo? A indole dos indios: rude, inconstante, selvagem. Costumes alheios a qualquer pratica humana. Sim, de fato. Mas estes nio sao por acaso da mesma natureza de indole: rudes, inconstantes, selvagens? Leia alguém a historia do México, do Peru, da Nova Franga, ¢ outras; veja 0 quanto eles sao alheios de qualquer costume humano. Sem divida, se prestarmos fé, como & justo, aos anais da Sociedade da india, de longe aquele parecem piores do que estes. No entanto, a Sociedade os assiste em suas proprias terras, e nem cogita de mudar seu lugar. Precisa que esta provincia siga este costume, mesmo mil especificas razées impelindo para agir de outra forma. (...) ‘A resposta a terceira questiio: aqueles que acham necessirio 0 descimento. Por que razo, pergunto, aqui no Brasil deveria ser mais necessario do que no Peru, no Chile, no Canada, etc.? Ja que dos dois lados ha homens selvagens da mesma farinha? E ndo digam que nestes lugares os Padres assistem os indios vivendo sob a pressio de Espanhdis e Franceses, ao ponto de conviver com eles ¢ enfrentar seus deuses. Desenrole ele 0 Martirolégio de P. Alegamba, ¢ encontre ali o ingente niimero de mattires, onde aparece claro que ndo se podem obrigar, por medo coagao. Qual seré o futuro descimento? Serdo rodeados (protegidos)por todos os lados pela mao forte dos militares? Em vao. Mas coabitarfo com os brancos, pelo medo de cujas armas se deteriio, Mas aqui ja ndo coabitam -69- com os brancos? Coabitam. E sio tirados de suas terras, ¢ a coabitaggo que nem os padres antigos desejariam esta clara nas aldeias de Sdo Paulo. Copanema, ete. (...) Dizem que muito freqientemente acontece que depois de tirados os indios do sertéo e levados para o litoral, imbuidos de preceitos cristos. batizados, logo depois, arrependidos, eles fogem e voltam para suas terras. Nao € possivel nao rir. Entao, bons homens, de qual deseimento vao faiando, se logo que der vontade os indios podem voltar as suas terras? Que descimento é este? (.,.) Nem deve aparecer extraordinario que os indios recaiam no vicio de voltar de novo as suas terras, pois seria um grande milagre se nao 0 fizessem. Com efeito, sendo arrancados desta maneira, ¢ educados nos Principios de uma f€ nova e batizados, so tenros na fé e no podem ser alimentados a nao ser com leite, como diz 0 apéstolo dos Gentios, e no conseguem resistir a0 desejo de sua querida patria e digerir 0 dura comida (que nde sei como se possa dar) que sé homens santissimos mal agitentariam. (...) Finalmente, se os sacerdotes seculares nao hesitam em penetrar este sertio, para trabalhar e assistir-os Portugueses em Marasacara (= Macacara) ©, mais recentemente, no alto S. Francisco, distante muitas milhas, e nao temem os indios, pois ganham sua comida ¢ roupa, nés nos mesmos lugares, hesitamos em conviver com os indios, ganhando eles para Deus? Talvez que as almas dos indios estejam em condigdes piores do que antigamente? Ou hossas vidas silo mais preciosas do que aquelas dos padres Espanhois Franceses, ou mesmo dos seculares?”22 (Bras. 3 (2), £61) 22 Quaestio: Utrum tapuyae d Mediterranei proprius litora adducendi ut christianis inictentur sacris an non, A Jacobo Rolando aid Commiss, Missa. Magnum video, RP. sustinendum mihi eriti certamen, se (ou “&") quod contra fratrum omnium fore nostrorum Brasiliensium torrentes instituere conflictum non pertinescam: de quiee ipsum diuturnee adeo consuetudini instiutarum in Brasilia hac missionum, sit contrarium (..) Sed priusguam Propositae respondeam thaesi a RA° mirum in modum pato, hac, quae praemitienda existimavi RV" henigno vultu perlegere atque coram domino perpendere non gravetur, 1° Patres Provinciae huius nostrae, saltem plurique, circa ea quae meditullia hac Brasitiae spectant , caiect sunt, cum neque ea penetraverint munguam, nisi forte ante 30 vei 40 circiter anos, neque quidem tis agatur sciamt: errant hane toto caelo, dum existimant eam hie esse modo rerum faciem (..) 2%. Patribus Lusitanis huius Provinciae vidertur Paires, ex eorum mumero, qui. ut inv SS Paginis charitatem reliquerint primam. non aliam, crediderim, ob causam nisi guod missiones non instituant, unde neque R.1"" circa missiones instituendas recte edoceant. 3°, Constat mihi meridiana luce clarius, missiones inermissas, ‘olque animarum miltia deperdita pretiosissimarum, quod rectum non tenerunt patres in instituendis missionibus, volemes adducere nempe ad littora indos, modum, unde deferendee similiter missiones erunt, alia nisi missionum sit institwendarum ratio, quam RV" ineat oportet eos, si ad maiorem dei gloria, plurimarum animarum ¢entena millium salutem, RI (demo?) instineere augue promovere (cuprat?). Denique, si, quomodo sentiam, licear eloqui, existimem ego, hanc solam ob causam intermissarum missionum, a Deo nosiram Brasiliae Provinciam in tantas incidere seyllas permissam: quid enim, -70- afficiens a coeli vertice divinus ille animarum amator, tot in Thartarum nostro detrusas neglects ‘animas aeternis, aeternis (inc.?) poenis, quid, inquam, praeter maledicta in nos iaciat? (..) ‘Aiun, illi, qui affirmativam tweri cuphunt partem, atque, ut putant, inexpugnabili expugnant me ‘argumento: minimum, onmi tetro tempore fuisse in usu, wt indos in sybis et mediterraneis undique conguisitos proprius dducerent patres littora: adeoque oportere eidem insistere consuetutini, ufpote SS Patrum Heroum (?) vate apostolicorum exemplo et praxi minimae.(..) Coationem urgent necessariam, ut puntant, cum wt recte Christiani praecepti excotantur, tum ut Chr.t Sacris initiati perseverent constantas neque redeant in antigua syivam dico, mulla ratione indos e his (ou hiis) mediterrraneis abducendos ut Christianis imbuantur institutis ‘sed in suis terris propriis hos est in ipsis Brasiliae meditullis esse baptizandos (... ‘Se neque se in posterum indi abduci patiantur illusi partim totiens, partim anecti fame aliisque sem (7) Iniseriis: quotusquisque enim, observo, indorum plurimorum millium unquam sive diligentia patrum, sive aliorum ope ex hiis extractorum terris supersit? Ex mille forte umus vival? RP. clima maritimum “semper its obnoxium fuit, qui a temeris illt non assueverunt; idem accidere memini in meae provinciae Givitatis Dukerkiana’ et Bergensi S. (Minori ?) Maritimis , in quibus, si qui a provincialt ad illas ‘aliunde destinantur ut plurimus decumbunt graviter et tantum non fatum concecht: quamobrem non nisi gravissimas paires ob causas illi aeri non assueti e0 mittuntur: et quonam pacto hi indi naturae ienerioris propius littora non moriantur? Sed eorum aligui staturae sin robustiores ut aeris inclementia perferre possint: hos fames interint, quemadmodum interimissa toties experientia dacuit: quis enim sustentat infinitas poene homimum mottitudinem? Anne collegia nostra? Sed unde? Anne potentissimus nosier Lusitaniae Rex? Sed neque titus Thesuarus its sufficiat Reginae, Numquid non ‘prospisciebat Rex iis qui circa Cachoera defenderant ab hine armis duobus circiter sribus(?)! Prospiciebat hanc, et tamen mille miseriis (intariata, inturiare, iteriara, interiore?) universi Instituerat provincialatus sui tempore agregius ille animarum zelator Vasconcellus (quem ob doctrinam ¢1 animarum zelus unica veneror aigque suspicio) missionem praeclaram ad Gecarurus (sic} ‘eorumque ingentem multitudinem collegerat in Netheroaiba atque aluerat diebus plurimis paterno certe affectu, sed nonne paulatim fame illisque fasccentis (ow faxcentis, ou faxeantis) miserits extinti sunt, usque adeo ut vix ullus amplius superesse dicatur. Plura non in medium exempla profero, lempori parcens. Sed dicat aliquis (na outra versdio nao hao “sed”), adducentur indi (ou “dicet”, ow “aliquiis”, ow “adducantur"), doceanturque terras (na cutra versio é “terras suas”) colere, plantare quae comedant, verbo Rossas (grifo e matisculo no texto) facere, atque ita se sustentesni.Recte: verum fou “veram”) rogo te, cum id superioribus non factitatum casibus: vel, si factum, com indi extincti? Deainde (na outra versiio & “denique”) dum ea quae terrae femina mandent excrescaamt, quo _usui esse ‘possint et victui inservire, tanti unde interea vivant? Jeiunent? Durum (ou “duram”) sane. Hinc, meo ‘quidem iudicio, prudentes indi hic Sapoias ex aliis quaerebant, certiores de nostro adventu fact, rum cum illis ageremus nobiscum defenderent proprius ad mare; id, inguiebant, si patres intentent (ou “intentusnt” ou “intentant”), nequamguam faciamus; at si nobiscum hic permaneant, omnes Jubentes Christiana suscipiemus facta, Videar igitur RV quam recte initio dixerim, missiones eiusmodi esse impossibiles sine fructut...). ‘Sed ex objectorum solutione totum fiat clarius: quare (a capo nel testo) Ad Line, Parece “Rs”, que aparece também mais adiante) Nullo sane modo mentis esse meae ‘heroum nostrumPatrum Sanctisimorum improbare gesta vel oppugnare, cum ea venerer atque adorem (eam, cum,?) ab ipso S. Spirttu edocta: sed. Obsecto quae tun temporis ac circumstantiis talibus (quibus nempe se conformabani patres) unica erant necessaria, ea tempora hoc cinrcumstantiis ‘omnino immutatis, ne dicam contrariis, utilia sunt necessariaque dicenda? Quid futilius? Consuetudines enim ususque longaevi non levis autoritas est: verum etiam non usque est sui valitira momento ut aut rationem vincat, curt legem seriptam (sic) (...) Rationem igitur vincat qui consuetudini usuique longaevo tantum autoritatis tribuat, ut circumstantiis sublatis causisque, eundem velit effectum. Hine infero, siquidem sequi rationis velimus dictamen, aliam plane ineundam in missionibus viam, cum causae circumstantiaeque, cur patres forte ¢ mediterraneis extraherent indos, sublaiae atque immutatae sint totae. (Demus, Paucis, Domus? Inc) enim patres adduxisse initio indos, ne extra ‘comnem alborum consueiudinem inter barbaros viverent mille expositi iniuriis: (... extraxerint mediterraneis crediderim , indos quod exiguo adeo patres in principio essent numero, ut assistere -T1- O debate se estendeu por muitas cartas, envolvendo nao apenas 0 veemente padre flamengo, mas as altas esferas da hierarquia jesuitica. De qualquer maneira, as aldeias ficaram no sertio com os padres, exceto aquelas destruidas por Garcia @Avila, em 1669 (cf. capitulo 8). indis simul ad mare et in meditallis terrae non sufficerent). Certe qui hodie ex nostris mediterranea hace incolat,indiisqne assistat non tantum-non extra: omnenr consuetiiudinem habitat, 1 merito timert posse videatur, ne (muriis?, muniis?) soc." atque resta indorum institutione (quemadmodum prope {ittora) absint potius quam prosint; usque adeo enim deserta modo have ab Europeis ac angolanisque gccupantur ut tota passideant et excolamt indorumque aldeis permixti vivant. Sublata itaque consuetedinis adducendorum indorum ad mare propius causa, auferatur et ipsa consuerudo, Sed, per me licat, consuetudo servanda Soe.” at quae? Provinciae unius particularis, an Soe." : sed eam quanta quanta ea sit, unquam coegisse indos suas defendere terras, andisse me non memini: non enim id in India fieri constat. non in iaponia, non in China, non in Mexico, non in Peru. non in Chili, non in Canada, aliisque locis uiriusque Indiae plurimi. At in Brasilia certae (castae, costae?) id iubent fieri circumstantiae. Quae istae? Indorum indoles rudis, inconstans, sylvestris; mores ab omni ferme fuumano usu alieni. Hane (tam?) vero, sed munquid isti eiusdem sunt naturae, indolis, rudes, inconstantesm sylvestres? Legat quis historias mexicanas, peruanas, Novae Franciae, aliasque: cernat quam ab omni humana sunt consuetudine alieni: profecto, si fidem, ut par est, , Soc." indicae adhibeamus annalibus, Jonge illi his pejores esse videntur: et tamen Soc." illis adsistit in hiismet terris ipsis, neque suas mutare sedes cogit. Eam soc." morem sequi oportet provinciam hanc, cum mille peculiaris ratio aliter fieri compeliat. Imo vero (ou “‘veto”) compellit (...) Ad 3." Coactionem quam necessaria voluni. Rs. (sic) 1° quorsum, rogo, potius hic in Brasilia coctio illa necessaria sit quam in Peruano Regno, Chilensi, , Canada etc? Cum utrobique eiusdem sint farinae homines sylvesires? Neque quis dical, indos quibus iss in locis Patres assitunt sub coactione vivere Hispanorum et Gallorum: adeoque Patres secure illis cohabitare suaque (naumia?) obire: evolvat enim quisquis ille sit Marprologium P. Alegambae, ingentes profecto reperiat Martyrizatorum ibidem vnumerum; unde clarius liquet, nullo omnino meiu vel coactione coérceri, vel certe initio coércitos fuisse, quicquid nunc fiat temporis. 2° Qualis ilfa est fitura coactio? Omne valida cingentur undique milinum maru? Nequoquam: sed cohabitabunt albis quorum armorum metu continebunt sese. Sed hic iam non cohabitant albis? Cohabitant sane. Quorum igitur terris extrahantur his, cum aliud neque a patribus ipsis antiquis desideraretur practer eiusmodi cohabitanionem, patet ex aldeis in S. Paulo, Capanema, etc. (.) Quo vero instantiam probent; sapenumero, inguitnt, contigit, extractos quidem a mediterraneis indos eiusmodi, et ad litora adductos, Chri.anis imbutos praeceptis; baptizatos, sed mox paenitentia ductos aufugisse et suas repetisse terras. Risum quis teneat: quid igitur, boni viri, coationem iactitatis vestram; cui ea rei inferviat? Si, quandocumgue (na outra versio é “quando”) volupe indis fuerit, in suas remeare demo (denwo?) terras possint na outra vesrio é “possint?”). Quid coactionis id est genus? (...} Porro mirum, nequaguam videri, neque verti debet vitio recipere sese indos denuo in patrias, quandoguidem miraculum foret ingens, id si neutiquam contingerunt. Cum enim eiusmodi recemter extract, noviter instituli fidei regulis alque baptizati tenelli sint in fide et non nisi lacte enutriri possint, ut Gentium loquitur apostolus, nequaqua suae charae desiderio patriae penarumque (quo ‘mais, vehementiusque nescio an dari possit) resistere valent aigue cibum adeo durum digerere, cui ‘vixdum sufficiant viri vel sanctissimi. {..) Denigue, si saeculares sacerdotes penetrare mediterranea hac non dubitant ut Lusitanis in Matasacra + et recenter in superiori parti fluminis S. Francisci a Bahia ducantis. et amplius milliaribus distante, Ferant opem iisque assistant, neque sibi ab indis timeant, quo victum vestitumgue lucrentur suum; nos iidem in locis, ut indos lucrifaciamus Chri.o lesu iis cohabitare dubitabimus? An forte indorum animae conditionis animabas (ou animabus) alborum peioris sint? Vel nostrae vitae praetiosiores vitis PP Hispanorum Gallorumque, imo ipsorammet saecularium?. -72- O de deixar os indios em suas aldeias, separados dos colonos foi também o sonho jesuitico (bem sucedido, de seu ponto de vista) das missdes no Paraguai, e foi o sonho do padre Vieira (fracassado) no Maranhio. No Regulamento das Missdes, (a “Visita”) composto por volta de 1660, quando era Visitador no Maranhio, Vieira adaptou as regras estabelecidas nas Visitas anteriores realidade amazOnica ¢ a seu - proprio pensamento. Com efeito, uma parte relevante é dedicada 4 questio da liberdade dos indios e da proibigdo da utilizagao de sua mio-de-obra pelos colonos Nos anos 90 do século XVI, explodiu o conflito politico entre Vieira e Andreoni, que ‘iu a aposig&io dos padres portugueses ao poder dos “estrangeiros” (principalmente italianos) na Companhia, e se articulou novamente em volta da liberdade dos indios. Os “italianos” Andreoni ¢ Benci ratificaram, em 1694, as Administragdes dos Indios, com as quais os Paulistas se tornavam donos dos indios trazidos dos sertées da “Guerra dos Barbaros”. No Voto, em resposta as dividas dos moradores de Sio Paulo a este respeito, Vieira se declarou radicalmente contrario ¢ denunciou que “os que os Paulistas trouxeram do sertao nao eram tapuias barbaros, senfo indios aldeados, com casa, lavouras e seus maiorais, aos quais obedeciam, ¢ os governavam com vida, deste modo humana, e a seu modo politica” (apud Leite, 1938-50, VI: 337) Poucos anos antes, como veremos, Vieira providenciara a reorganizagio das aldeias dos Kariri, chegando até a dar 0 nico voto favoravel, na Junta das Missdes, a mudanga da aldeia de Saco dos Morcegos, seguindo a idéia das Adverténcias. Esta estrénua defesa do espirito missionério e da instituigdo das aldeias, contra o espirito mercantilista dos “italianos” levou-o a comentar sarcasticamente: “Mas nfo se sabe la que nenhum de todos eles [os padres que assinaram as Administracdes] tratou, em toda sua vida, com indios, nem thes sabe a lingua, excepto um que Ihe fala alguma palavra. Anténio Vieira esteve cinco anos em todas as aldeias da Baia, ¢ nove anos nas gentilidades do Maranhio ¢ Gro Paré, onde em distancia de quatrocentas léguas levantou dezesseis igrejas, fazendo catecismos em sete linguas diferentes (...) Também se no sabe que o autor destas Administragdes, que lé se aprovaram, foi um padre italiano que nunca viu indio e sé 0 ouviu aos Paulistas (...) Do mesmo modo é intolerdvel que la se admita a paridade dos indios dos Paulistas, tiranica e violentamente cativos, comparando-se com os das Aldeias da nossa doutrina; nao advertindo que estes so indios, que livre e voluntariamente receberam a fé e vassalagem de El-Rey” (carta ao Padre Manuel Luiz, 21/7/1695, apud Leite, 38-50, V1:345). -B- Na verdade, Andreoni viu algum indio, pelo menos uma vez, em 1706, quando visitou as remotas aldeias dos Jandui, do sertio do Ceara (cf. capitulo 8), mas nao Testa divida de que sua vocagdo no era a de missionario. Curiosamente, depois da morte de Vieira, foi ele, enquanto reitor do Colégio da Baia, a ultima pessoa a ver os originais da Clavis profetarum, de-Vieira,-e seus comentirios a-respeito; mesmo com louvores formais, foi o de que algumas de suas opinides deveriam ser Convenientemente discutidas, para ser admitidas ou rejeitadas, ¢ que talvez, melhor seria omiti-las. Afinal, esta tinha sido também a idéia da Inquisigao. Ha, finalmente, uma premissa a fazer a Tespeito das cartas jesuiticas que serio analisadas: um breve exame de sua estrutura retorica. Mais uma vez, a idéia nfo é a de extrair 0 que de “verdadeiro” nelas existe, e distingui-lo do “retoricamente construido”, j4 que, como vimos no caso dos testemunhos do século XVI, é impossivel cientificamente initil tentar esta operagdo, mas apenas para entender melhor 0 contexto literario e cultural no qual as “informagées etnograficas” esto inseridas. A atividade epistolar dos jesuitas foi a verdadeira chave de todo seu sistema missionario. Sua importancia justifica 0 fato de que, diferentemente de outras atividades deixadas, como vimos, & iniciativa individual, esta era regulada por prescrigdes rigidas, que distinguiam géneros epistolares conforme 0 conteudo ¢ os destinatarios. A obrigatoriedade institucional de escrever Tespondia a varias exigéncias: a de difusdo © “propaganda” dos resultados da catequese para 0 mundo externo (incentivando também as vocagées), a de controle do governo central da ordem sobre os membros dispersos e, finalmente, a de reconfirmag&o permanente da identidade desses membros. E 0 que Aleir Pécora chama de “jnformagao”, “reuniao de todos em um” e “experiéncia mistica ou devocional” (Pécora, 1999: 381). Por isso, 0 contetido e 0 estilo das cartas mudavam conforme a maior ou menor abertura de sua circulagdo. Jé em 1541, Inacio de Loyola instituia a “segunda carta” (que foi chamada dai em diante hyuela), ou seja, a carta de circulagio restrita em que os padres e irmaos dariam noticias de tipo administrativo e institucional, a ser anexada & carta principal que teria uma func&o edificante e que qualquet um poderia -74- ler. Numa carta do ano seguinte, mostrando conhecer bem a ligéo latina do verba volant, scripta manent, o proprio Inacio explicava esta escolha: “Cada um da Companhia, quando quisesse escrever para ca, escrevesse uma carta principal, a qual se pudesse mostrar a qualquer pessoa... O que se escreve € ainda muito mais de admirar do que se fala; porque a escrita permanece, ¢ sempre dé testemunho, ¢ nao se pode assim bem soldar nem glosar tao facilmente como quando falamos” (Monumenta Ignatiana, 1, p. 236, apud Prosperi, 1976: 51) Em 1547, 0 secretario de Inacio, Juan Polanco, enviou uma carta circular a todos os membros, explicando, as razées pelas quais os jesuitas deviam manter uma boa correspondéncia. As regras detalhadas foram estabelecidas nas Constituigdes de 1558, especificando o tipo de carta, o estilo, o assunto, a frequéncia, Entre a enorme massa de correspondéncia, podemos distinguir, grosso modo, dois tipos de cartas {fora dos catdlogos, que constam das listas dos padres e de suas caracteristicas): as hijuelas, que tratavam de assuntos internos a ordem e tinham circulagdo restrita, ¢ as cartas edificantes, das quais as “anuas” ¢ as “Relagdes” so um exemplo. Enquanto as primeiras, por precisa indicag3o de Polanco, deviam ser sucintas € evitar predmbulos extensos, detalhes intteis, artificios da linguagem e ir direto a0 assunto (Eisenberg, 2000: 53ss.), 0s relatos oficiais, destinados a leitura publica na sede central e nas casas espathadas pelo mundo, bem como a possivel publicacao, eram moldadas conforme a ars dictaminis medieval. Partindo do pressuposto de que a construe da forma é o elemento chave da narrativa da histria, Aleir Pécora (1999) afirma que as cartas jesuiticas, antes de mais nada, devem ser vistas como um mapa retorico em progresso da propria conversao. Ao examinar as cartas de Nobrega (mas, em geral, as observagdes podem se aplicar a todas as cartas), ele identifica nelas os cinco pontos classicos da ars dictaminis: a salutatio, a captatio benevolentiae, a narratio, a petitio e a conclusio. Nestes pontos estio imbufdas também as discussées teoldgicas da época, sistematizadas por expoentes da Segunda Escolastica (como Francisco da Vitéria, por exemplo) a partir das observagies de Acosta, Sepiilveda e Las Casas. que o autor quer mostrar, obviamente, é que as cartas jesufticas esto longe de set efeito espontineo tanto da realidade objetiva dos indigenas do Brasil, quanto -75- da reacdo subjetiva do impacto desta realidade em certa mentalidade catdlica europeia. O conteiido das cartas, principalmente no que diz respeito a relagao entre indios e missionérios, ¢ fungao estrita da operagio de ajuste da tradicao epistolografica a situacao historica especifica, que é a necessidade da conversio, Também Charlotte Castelnau-Estoile mostra que os escritos “literarios” " Jesulticos, diferente das documentacdo administrativa, concorrem para compor o que ela chama a “escrita da missio” (Relagdes e outras narrativas), que é um outro aspecto do “mapa” do qual fala Pécora, no qual a identidade missiondria ¢ a legitimagao de seu projeto catequético se constrdem colados & construgao da propria narrativa. Neste sentido, a autora analisa cartas que utilizo ao longo deste trabalho, como @ nua de Pero Rodrigues, de 1599 ¢ a Relagdo de Lufs Figueira, de 1609 (cf. capitulo 4, “Leituras e tradugdes") como exemplo de “literatura de entrada”. A entrada se Presta melhor ao modelo de “relato edificante”, no momento de crise das vocagées que determina a “esterilidade “da vinha da qual fala Aquaviva, na virada do século XVI. Neste periodo, nao hé mais cartas provindo das aldeias ou, se foram escritas, elas nunca chegaram em Roma (Castelnau-L’Estoile, 1999: 438). Enquanto a aldeia se cala, sufocada pelas dificuldades da catequese ¢ do cotidiano, a “entrada” recupera o verdadeiro espirito missionério jesuitico expresso nos Exercicios e nas Constituigdes: missio ¢ sindnimo de “entrada”. A “Relag&o de entrada” constitui também um documento politico e diplomatico, j4 que ela contém informagoes preciosas com respeito ao contexto militar e politico da colénia: os lugares visitados, as forgas ou as fraquezas do inimigo, a recepgdo dos indigenas (Castelnau- L’Estoile, 1999: 450-451) Como justamente nota Eisenberg, a disting’o entre as hijuelas, @ as cartas edificantes se manteve durante todo 0 século XVI. Sucessivamente, me parece que a diferenga nao foi mais tio rigida. Com efeito, se as hijuelas se caractetizam pela urgéncia dos pedidos (ajuda financeira, envio de material litirgico e roupa, pedido de novos missionarios) ou pelas especificidades do assunto (problemas com os colonos, Gificuldades na catequese, fuga de indios), bem como pelo estilo mais imediato, -76- poderiamos dizer que as cartas do serto que veremos na segunda parte sao deste tipo: por isso, sfio mais interessantes para nds porque mais livres de artificios ret6ricos. Entretanto, as coisas nfo s&o t4o simples: a carta de Rolando em defesa das aldeias do serto, transcrita acima, poderia ser uma /ijuela pelo conteado, ja que dificilmente 0 relato de-um-cenflito-poderia-ser considerado: “edificante™. -O-estilo-- ret6rico dela nao respeita todos os pontos da ars dictaminis, mas nfo se pode dizer nem que € breve ou direta, conforme a orientagio de Polanco, nem que falta de organizag&o retérica. Sem davida, o padre Rolando constitui uma excepgio no panorama missionario, mas talvez seja a prépria especificidade da época e da regio que informa 0 contedido ¢ o estilo das cartas. Com efeito, as anuas desta época relativas 4 area sertaneja, mesmo no interior de um modelo experimentado de estrutura epistolar, e mesmo repetindo freqientemente os modelos clissicos da entrada ou das formas de catequese, contém informagées diferentes com respeito aos costumes indigenas ¢ a maneira dos padres lidarem com eles. © que quero salientar aqui é que, na segunda metade do século XVII, como justamente frisa o proprio Rolando em sua carta, as exigéncias catequéticas sdio outras daquelas experimentadas por Nobrega ou Anchieta e construidas dentro do esquema retérico mencionado. Se, como diz Pécora, a narratio das cartas de Nobrega € mais a composigao de um quadro tematico, um conjunto de cenas exemplares, do que 0 relato de ocorréncias verdadeiramente tnicas, a narratio das cartas do sertio constréi outro tipo de quadro tematico, a partir de situagdes reais. No meu entender, na segunda metade do século XVII os debates sobre a natureza dos indios, sua humanidade, sua possibilidade de converso estavam, para 0s jesuitas e os missiondrios em geral, encerrados. Sobretudo, a construgao da alteridade do indigena, que vimos no capitulo 1 e que caracterizara o século XVI, estava, em suas linhas gerais, completa. Nestas alturas, enquanto os grupos tupi da costa ja estavam em avangada queda demografica, 0 modelo do indio a converter ja existia: era justamente o indio tupi. E foi este modelo, construido através de uma série de experiéncias bem sucedidas ou fracassadas durante um século de catequese, 0 ponto de partida para ler, interpretar, e traduzir o “Tapuia” do sertao. Como veremos, foi um olhar tupinizante, e tupinizado, que os jesuitas langaram sobre os Tapuia, assim -17- como foi uma lingua tupinizada, apesar da aprendizagem das linguas “tapuia” e da elaboragao da gramdtica e dos catecismos kari, a linguagem de mediagao, inclusive, religiosa, que eles utilizaram. Linguagens e traducies O problema da lingua indigena ¢ de seu uso para veicular os contetidos da fé foi sentido, obviamente,..logo..no..comego .da..evangelizagéo...J4. vimos no.-primeiro capitulo que, mais do que uma descrigao da alteridade, os primeiros relatos procuram remeter os fatos observados a um sistema de cédigos conhecidos e portanto compreensiveis. Como observaram Todorov e Greenblatt, o proprio Colombo era um infatigavel leitor de signos: ele e os primeiros viajantes, na leitura da alteridade, acharam apenas 0 que estavam procurando, a confirmacao do discurso de autoridade dos eruditos © dos santos; os outros sinais emitidos pelos selvagens americanos, simplesmente, no eram significativos, nao eram signos. Mas mesmo os primeiros viajantes mostraram o incémodo da falta de comunicagdo, percebida como o veiculo essencial para entender o que mais interessava nos outros: a religiio. Verrazzano lamentava que “devido a falta de linguagem nio pudemos averiguar por sinais ou gestos que grau de religiosidade Professava esse Povo que encontramos”. A conclusio de Verrazzano, como jé vimos para muitos autores, € simples: este “outro” com quem ndo se pode estabelecer uma comunicacao, nao tem religido, nem lei (Greenblatt, 1996: 144) Os viajantes compartilhavam com Santo Agostinho a idéia de que existe uma Tinguagem “de natureza” comum a todos os homens, feito de gestos e sinais, sem Palavras © com esta linguagem foram feitas as primeiras tentativas de comunicacao. Jogavam-se assim as diferengas culturais no plano da natureza: por isso, era opiniao difundida entre os evangelizadores, que a bondade da mensagem cristi, seria “naturalmente” compreendida e accita pelos selvagens (Mazzoleni, 1999:157) As coisas niio foram tdo simples assim, e também os intérpretes nativos foram vistos com desconfianga, por ser provaveis veiculos de “‘influéncias pemiciosas” (Greenblatt, 1996:146). Por isso, apareceu logo a necessidade de aprender as linguas -78- nativas: afinal, os apéstolos, cujo caminho os missionérios estavam percorrendo de novo, tinham recebido de Cristo 0 dom do conhecimento das linguas. Como em outras esferas, os jesuitas estiveram também 4 frente do trabalho de aprendizagem das linguas, e de sua justificativa teolégica. Anthony Pagden (1989:202) observa que, na Historia Natural y Moral de las Indias, Acosta jé estava convencido de que “lingua” era sinénimo de “cultura”. Ele sabia que a conversdo sé seria possivel através da compreensio das culturas nativas e, portanto, da comunicagdo. Como Nébrega para os Tupinamba, que no tendo rei ou religitio nao podiam entender o sentido dos ensinamentos missionarios, Acosta também sabia que a palavra evangelizadora precisava se adaptar ao nivel de compreensio dos selvagens, j& que “nossa compreensio de suas idéias os convencera a acreditar nas nossas” (Acosta, Histéria, apud Pagden, 1989: 204).23 Paralelamente, ¢ justamente por esta razio, muitos evangelizadores percebiam 0 riscos inscritos na adaptago de conceitos mais “elevados” as simples palavras dos “parbaros”. O problema estava no fato de que os nativos nio tinham palavras (¢ nem as letras alfabéticas!) para indicar “Deus”, “religiéo”, “fé”, “autoridade” etc. Vimos no capitulo 1 quais foram as primeiras solugdes dos jesuitas (0 Deus Tupd, por exemplo). A no correspondéncia de palavras a conceitos poderia engendrar equivocos e erros teolégicos, quando nao abertas falsidades. Este risco era antevisto com clareza pelas hierarquias eclesidsticas na Europa’ reduzir a palavra de Deus na lingua dos barbaros seria igual a corrompé-to, j4 que estas linguas, consideradas um amontoado de sons inarticulados (¢ veremos, no capitulo 8, este aspecto da barbaric frisado por todas as testemunhas entre os “Tapuia”), eram quase a lingua do Demdnio que, conforme Eusébio, falava aos homens mediante barulhos incompreensiveis. Q debate sobre esta questdo levou os ambientes oficiais hispanicos a optar pela impossibilidade da tradugdo, sem cometer 23 Esta idéia da “adaptacao” nao foi sé jesuitica. Veremos que também o capuchinho Bernardo de Nantes sustentara a tese da necessidade de adaptar as nogdes religiosas a simplicidade dos costumes indigenas. Seu Catecismo kariri, de 1709, utilizar-se-a de muitos termos tirados por exemple do codigo alimentar, ou do trabalho (a pesca, a caga, etc.) -19- graves ertos, e, portanto, por deixar a doutrina na lingua espanhola (Pagden, 1996: 231). Mas, como ja foi indicado, os missionarios “de campo” pensavam de outra forma: eles sabiam que a evangelizagao nao passaria a nfo ser pelo veiculo da lingua nativa. No maximo, foram aceitas solugdes intermedidrias, como aquela de deixar algumas palavras do catecismo em castelhano (ow portugués), ou latim. O-esforgo missionario, porém, concentrou-se exatamente nesta “tradugdo” para os cédigos culturais nativos de conceitos europeus, da mesma forma como eles préprios, como vimos, traduziram a si préprios nos mesmos cédigos (lembre-se da sobreposigaio entre xami e jesuita, por exemplo), Por outro lado, esta “traducdo” foi re-traduzida, ou seja, de-codificada pelos destinatarios indigenas da mensagem crist&: 0 resultado foi a produgao de uma religigo “hibrida”, no interior de uma cultura de contato. A necessidade obsessiva da tradugo fez com que a claboragdo, ou pelo menos a publicac&o, das gramaticas antecedesse a dos catecismos, Isto € emblematico no caso brasileiro: em 1595 estavam prontas tanto a gramatica quanto a Doutrina da Fé de Anchieta, que circulavam jd em manuscritos ha anos, mas s6 a primeira foi publicada (Agnolin, 2001:30), enquanto a segunda foi integrar, em 1618, 0 Catecismo de Araijo. Evidentemente, considerada a necessidade de enfrentar as despesas de uma ¢ de outra por parte da Provincia, escolheu-se o texto mais urgente. AS gramaticas tupi foram um esforgo de uniformizagao, antes do que das regras da doutrinas, conforme os ditames de Trento, da propria lingua indigena. Criow-se assim uma lingua-padrao, a partir de uma homogeneizagdo de diferentes dialetos tupi, conformados a légica da gramética latina. A elaboragéo da Arte, e mais, a do Vocabuldrio na Lingua Brasilica , atribuido ao padre Leonardo do Vale, foram uma obra coletiva: copiados e recopiados por todos os catequistas, cada qual introduzindo modificagdes ¢ novos vocabulos, no trabalho constante de aprimoramento da lingua (Monteiro, 2000: 40). A Lingua geral mais usada na costa do Brasil portanto jé uma lingua hibrida, colonial, instrumento de uma comunicacio que, tirando Vocabulos de um polo ¢ estrutura sintatica do outro, nao deixou inalterados nem um, nem outro. A mesma coisa pode se dizer, como vimos e como veremos ainda, da “doutrina”, veiculada por aquela lingua -80- © compilador da gramatica foi Anchieta, professor de gramatica latina no colégio de Coimbra, mestre da escrita em lingua geral, em que comps a maioria de suas obras poéticas, como os Autos, dirigidas a Tupi ¢ colonos, ja que a lingua geral era a lingua de todos. Veremos as solugdes que ele encontrou para veicular conceitos que nao tinham correspondentes:no tupi- O grande “falante”-desta-Hingua foi, porém, © padre Azpilcucta Navarro (cuja facilidade de aprendizagem da lingua derivava, conforme a opinidio jesuitica da época, de sua origem basea). Do padre basco vimos, no capitulo 1, a gestualidade ¢ a oratéria tipicas do grande caraiba; evidentemente, a apropriagéio da fala habilidade em seu uso colocava o padre no mesmo patamar dos “senhores da fala”, e disso ele, como qualquer bom missionério, soube aproveitar. Estamos aqui frente ao que Vicente Rafael (1988: 40-41) chama de “dimensio oral” da catequese, onde a voz tem a primazia sobre a escrita na transmissio do evangelho, ¢ a converstio é uma relagSo entre quem fala e quem ouve. Voltaremos a emblematica dos primeiros momentos da catequese, quando a igreja que converte ¢ uma igreja fortemente apostdlica, na acepgao “pentecostal” dos apdstolos: a do dom da fala. S6 a esta questo; por enquanto, basta lembrar que esta relagao “oral” esfera lingiiistica pode dar conta deste apostolado, sobretudo em terra de rudes, como diz Agostinho. Mesmo se imperfeita para traduzir 0 “sopro” divino, a palavra ¢ a marca deixada no coraciio por aquele sopro: “a intuigio nos atravessa o espirito quase com a rapidez de um relampago, enquanto a palavra procede lenta, prolixa e em modo totalmente diverso (..}. A intuigdo, todavia, imprime de forma surpreendente na memoria pegadas que permanecem no breve tempo de emissdo das silabas, slo, de fato, essas pegadas que nos permitem modular os signos sonoros daquilo que nés chamamos “lingua” (latina, grega,’hebraica ou qualquer outra), seja quando tais signos so somente pensados, seja quando séo expressos, também, com a voz"( De Catechizandis Rudibus, apud Agnolin, 2001: 42). Charlotte Casteinau-L’Estoile (1999: 154) observa também que esta é uma lingua fundamentalmente oral, cuja aprendizagem se fazia no campo, ja que Roma, até o Regulamento de Gouveia, nfo deu diretrizes precisas na matéria. Aliés, a regulamentago a respeito das linguas nas provincias de ultramar se deu justamente nos anos 80 do século XVI, e possivelmente sob o impulso da situago brasileira. A -81- estudiosa considera que a expressio “grego da terra”, freqiientemente usada nas cartas jesuiticas para indicar o tupi, expressa o profundo sentido deste apostolado em terra de missao, jé que o tupi “é a colocagao em pratica da doutrina teolégica” De fato, o grego ¢ a lingua do Evangelho e da pregagiio aos gentios, na acepcéio de Sao Paulo. Por isso, me parece pouco provavel a afirmagao.da autora, segundo a qual esta expresstio nao deixa de conotar o estatuto inferior desta lingua, ao mesmo titulo daquela de “negros da terra” (Monteiro, 1994). Pelo-contrario, na literatura classica 0 grego ¢ a lingua por exceléncia (e os “barbaros” so aqueles que nfo falam srego, ou seja, nfo falam rout court, gaguejam). A lingua geral, 0 grego da terra, é a lingua da conversdo e, por isso mesmo, da civilizagdo: seus falantes néo sio mais “Darbaros” - adjetivo este agora destinado a indicar os “Tapuia” - mas dignos para todos 0s efeitos, de entrar no consdrcio civil. Nao por um acaso, esta lingua tupi nao é 4 lingua dos Tupi, mas a lingua que passou pelo processo de “tradusdio” (=conversio) jesuitica em termos civilizados. Sem ditvida, porém, apesar das tentativas literdrias de Anchieta, o tupi ocupava tum grau inferior nas hierarquias lingtisticas das misses jesuiticas nas Américas, jé que nao foi produzida uma literatura verndcula, como no caso no nahuatl ou do quichua, ¢ a cadeira de Lingua Brasifica, instituida em 1560 na Bahia, foi fechada em 1574, para ser reaberta numa aldeia proxima de Salvador. Com efeito, a lingua que se ensinava “a ler ¢ a escrever” nas escolas das aldeias era 0 portugués (ou o latim), no © tupi, cuja dimensio letrada ficou em segundo plano com respeito a fungio comunicativa, oralidade da lingua, procede, entdo, como a imagem especular (lingaistica) da imagem cultural e religioss: os tupi néio 1ém literatura porque nfo tém escrita, assim como nao tém idotos, nem templos. Ao “grau zero da idolatria”, da qual falam Bemand e Gruzinski (1988. cap. II), corresponde um “grau zero” de civilizagio e de lingua (que permanece na cimensio da cralidade). Nas trés dimensdes, a conversio deve imervir com os instrumnios do lingua (geral, ou, para os conteudos de f, latina), da civilizagao (ocidental) < a> r2i:giao (catélica), A dimenso oral da politica Iinguistiea dos jesuitas durou até a hierarquia central tomar consciéncia da importincia capital do estudo das linguas indigenas, -82-

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