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Alteridade simbélica e representacao étnica Stella Montalvdo Ferraz Afinal, 0 que & um papa, um presidente ou um secresirio-geral sendo alguém que se toma por wm papa ou um secretario-geral ‘ou, mais exatamente, pela Igreja, pelo Estado, pelo partido ou pela nagdo? A tnica coisa que 0 distingue do personagem de comédia ou do megalémano € que geralmente ele é levado a sério e Ihe & reconhecido o direito a essa espécie de impostura Tein renee Bouroiey Naliteratura brasileira ohomem negro reqdentou diferentes narativas 6 fo foo de diversas rpresentagdes,Pode-se afirmar que a identdade da rasa negra, ident conny "ease er peed que existe fundamental pelo reconhecimento dos outros", vem sendo consruda, na literatura e fora dela, a partir do olhar do dominador num processo flagrant de valragio negativa. Esta andlise do processo de valorago negativa do negro, presente no conto “Eu, um nomem corso", de Murilo Carvalo”, pretend desvear, a partic de uma perspectiva baseada nos conceitos de poder simbélico & violencia smbia de Pere Bound, forma pela qual odominador consti 4 representagio de si mesmo e, por contraposigio, consti a representagio do dominad, outorgando-e, assim, a autoridade necessiria para oexercicio 4a voléniasimbstica, Essa autoridad simbslca permit ao dominador no $6 fla pelo dominado, mas tragar definigdes dele rico edo outro que se tormam “natras’tomandoa violencia simbsticadifilmente perceptive importante destacar que aconstruio da identidade, nessa perspetiva, consist em ua lta pela possibildade de classifica eclassificu-se, Assim, no processo de consrugo da identidade, sea ela regional ou énica, toda busca de ritris objetivos para elassificago supde uma pric social em ue estio envolvidas representagdes mentais e objetais que passam pela 8 Sella Montalvo Fer percepelo, apreciagio e reconhecimento como estratégias de manipulagdo sumbélica, que visam determinar a representagao que os outros devem ter «dessas propriedades e de seus portadores, ou melhor, qual o valor que deve teressas propriedades no mercado dos bens simbslicos. Esse processo, baseado 1 valor atribuido aos bens simbolicos, edefinido a partir do capital simbélico desejével, visa legitimar a dominagdo. “Eu, um homem correto” € um conto em que se evidencia, quase que didaticamente, como se consti essa representacio eas possveis implicagies ‘desse processo. A histria énarrada em primeira pessoa por um vendedor que viaja de uma cidade do interior para outra, No Onibus, ele observa os demais, 35 fixa-se em dois: a ‘professorinha”, objeto de seu desejo',e 0 objeto de seu desprezo. A partir da suas “percepgdes”, conclui que o ‘homem negro est sexualmente interessado na professora. Quando o homem negro desce no mesmo ponto em que ela desce, ele deduz que aquele pretende violenté-lae convence os passageiros a interromper a viagem e procuré-lo.O desfecho é previsivel: o negro élinchado e morto, mesmo depois da apari¢io da professora, Destacam-se, entio, duas perguntas crucias que, colocadas pelo texto, io questdes que o extrapolam: Por que essas pessoas partcipam de um linchamento a partir de uma desconfianga de um tinico homem? E por {que acabam por matar 6 homem negro, apesar do surgimento de provas que 0 ‘As respostas a estas perguntas esto no processo de valoragio negativa do negro a partir das marcas de distngo historicamente consteuidas. A distinglo ‘deste em relago aos demais do grupo e, em especial, em relago ao narrador, ‘stabelece um campo de Forgas em que o homem negro fica & mereé da violéncia simbélica justificada, Assim, sua vor 6“legitimamente” ceqUestrada «suas possibilidades de defesa neutralizadas. [As marcas de distingio (0 processo de construgio da diferenca entre o narrador¢0 personagem negra & pentagonizada pelo “hamem enreeta” ele se apresenta coma a materializagio da ordem ¢ limpeza algo obsessivas. No entanto, quase {imediatamente somos levados a perceber a diferenga entre o que ele diz de si ‘mesmo, reafirmando sua identidade, e 0 que ele realmente é: sua obsessio pela limpeza ndo o impede de limpar seus sapatos sujos na colcha da cama do hotel em que esta hospedado, justificando que “desse jeito a dona da pensio cra obrigada a mandar lavé-la” (EHC, $8). Esse processo se repetiré durante todo © conto: os comportamentos que critica nos outros e especialmente no 2 Ateridade simblica e represents nica hhomem negro so pelo naradorpaticadosejustificads.E de se questionar: (Oqe faz dele wm homem correo, portant, dos demas, homens McoRets? Ele se define como alguém que segue as convengies espeita hors, este guarda-p6 para evitar a pocir da estrada, tz ternos para cad casio, acredita no Brasil Ao mesmo tempo, revela suas contraigdes: Ie rabiscos em porta de micro, mascaplits de dente 08 cospe no cio, fa assocagbes ‘scatoldgicas: "Abrus porta com um sonora chiado que me fez lembrar um peido" (EHC, 61). Observacuidadosament todos os passagiroseretira ‘conclusbespelassparéniss. Ientficae identfica-e com os passageirs sobre quem eve consieragbes, mas ao se envolve. A passagem comprada 1a vésper, mencionadadiversis vezesno texto diferencia-o dos demas. '\ primeira mengio do narrador eo homem nego & rida edsplicente “Um pouco longe dels, no mesmo banco, um negro” (EHC, 62) O narador volta sua steno para 0 negro novamente quando este “inclinava-s para 0 lado e procurava olhar melhor a professora" (EHC, 63). Fama: “Achei esquisto" (EHC. 63) O que haveria de esquisito na aitude do homem negro. $i que o prprio naradoracabera de fazer 0 mesmo? O que tomava, a set ver, eu comportamento plenamenteacivel e exauisitoo do homem negro? Neste momento ja se esabeleceu uma diferencia bisca entre 0 naridor {205 demais passageiros. Mas sua diferenciago em relagaoo negro é enti, om cerezs, como mais profunds Em seguida,onarador descreve uma ago do homem negro: ele ajuda prontamente duas mulheres que entram no dnibus com bosase sacolas. E complets:“Enquant cle jitavaas boss, noe que no desgradaa.os olhos da professoriaha.." (EHC, 63). Sendo assim, onaradorinsinuao que seria 0 ‘motivo de tanta gentilcea por parte dohomem negro: poder observar melhor a professor © narrador compartita opretensoineresse do negro pela professora com seu companhiro de banco, descrito como ‘bom companheiro de viagem” Este 6 claramente do mesmo gropo soi percepydes. Destacive a afinmiagao do satan. “Nav que le tives preconceitos, como eu também nunca os tive, mas onegroestavaaté decal (EHC, 63). Surge assim o motivo alegao pelos dois para suas conclusdes de aque “sta gente munca sabe o seu lugar” (EHC, 63). “Essa gente, & car, #o aqueles quero se vestem conforme as convenges, andam até descalgos! (que se omite aqui ¢ evident: as citerengas socioecondimicas ene eles €0 homem negro. que aparece como falta de gosto ou de “competécia cultural” Serve apenas para mascarar a real diferenga eatibuir 0 homem negro a 3 ue ele se define pelas mesmas Stella Montalvio Ferraz “clpa” pela sua declarada inadequagio a0 momento ¢ ao lugar em que se ‘A cada movimento da professora, a cabiga do narradorserevela. “Com ‘© movimento o vestido subi um pouco, mostrando até mais em cima, um ppedago deslumbrante de coxas claras. Bram pernaslisas certase pareciam ‘jas como boa madeira de lei” (EHC, 63), Ele afirma que “O negro estava ‘de oho, Eu nao podia ver-Ihe os olhos, mas pude adivinhar muito bem a gula {Que ia por eles” (EHC, 63). 0 que o coloca em condigées de perceber gula ros olhos que ele nio vé? Evidentemente, é a sua prépria gula projetada na attude do homem negro. Gula que ele entende como legitima para ele, mas cespiria no que se refere ao negro. ‘Uma nova marea de disting20 se estabelece, em seguida, no momento fem que 0 cobrador cobra as passagens: o narrador apresenta sua passagem “reservada com boa antecedéncia” (EHC, 63) enquanto o homem negro paga sua passagem com “um dinheiro amassado e ensebado, quase a conta cert.” (EHC, 63). Novamente, tem-se aidéia de que © homem negro estédeslocado, pis quase nao tinha dinheiro para pagar sua passagem. Além disso, onarrador introduz, «partir da expresso “dinheiro ensebado", uma idéia que jé permeava sua propria descrigdo: a sua constante ordem e limpeza se contrapem sujeira

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