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Anilise do circuito Ronatvo Brito uuala funcdo da arte atualmente em nosso ambiente cultural? Domina da pelas leis do mercado que valo- rizam 0 objeto-fetiche em vez de o produto cultural, ela cumpre um papel quase que exclusivamente mundano junto as elites econémicas. 0 seu verdadeiro piblico em ppotencial, os estudantes, esté distante dela. Enio por escolha, mas por causa de uma si- tuago que é necesséria mais que nunca, ‘compreende. = Circuito e Mercado de Arte Nos iltimos anos, circuito e mercado de arte pareciam uma coisa s6. Ainda parecem, talvez. Mas a frase acima néo tem mais va- lor eritico: a esta altura é uma simples cons- tatagio que, permanecendo nesses estrei- tos termos, pode mesmo servir como cbs- ‘téculo para uma investigac3o mais rigorosa acerca da situacio da arte no Brasil. (Por situago da arte entenda-se nfo apenas 0 ‘momento produtivo dos artistas mas omodo vvigente de consumo de seus trabalhos e suas significacées sociais.) Vamos colocar as questées pertinentes. ‘A questo agora nao é simplesmente ana- lisar 0 comportamento do mercado nos til- timos anos e sim compreender suas leis, sua decisiva participacdo no conjunto do circuito e seus modos de pressio sobre a produgio e o consume do trabalho de arte. {A questio no é diagnosticar um sintoma, mas conhecer uma realidade para poder intervir nela. Esta ndo é somente uma dis- tingéo epistemolégica. Talvez por af passe linha que separa duas posigdes sem da- vida antagénicas em relagio ao circuito: a dos que pretendem transformé-lo e a dos que pretendem acompanhé-lo em suas smudangas. Nio € suficiente, por exemplo, afirmar que a implantagdo e consolidagao do mer- cado foio fator dominante na arte brasileira dos anos 70, ampliando © piiblico compra- dor dentro de um certo setor (afastando ou- twos setores, certamente) e produzindo gra- ves distorgées tanto na drea de produgdo-é case do famoso “estilo” acrlco - quanto na frea exitica ~ sacralizando obras desimpor- tantes, recalcando outras importantes ete. £ preciso analisar os varios aspectos dessa ideologia do mercado que foie ainda é do- minante no cieuito.£ ingénuo supor que ela se reduza a uma questio financeira e que todo 0 seu jogo seja descobrir o que é ven~ dével e o que nio & Para impor seu dominio, omercado uso estrategicamente todos os elementos do ci- cuito - artistas, criticos, colecionadores, alee, marchands e piibico 0 de sua ideclogia. Por razdes sobretudo locals, essa ideologia era e continua sendo extremamente conservadora. Nao, por aca~ 50, mas por absoluta necessidade. 0 proble ‘ma do mercado é, em iiltima andlise, con- quistar um piblico de formacéo estranha & hist6ria da arte e que procura nela um in- vestimento seguro e/ou signos de distingao declasse. (Num certonivel, o discurso daarte funciona como um nitido processo de discri- ‘minagio social’) © objetivo do mercado brasileiro é man- ter intacto o secular estatuto da arte no ‘mundo ocidental: a arte como manifestagio suprema e eterna (leia-se apolitica) da civi- lizacdo crista-ocidental. ‘A arte como manifestagio reservada a alguns poucos eleitos, inteligentes e sensi- vveis, e que o si por dom, nio por educagio aprendizado social ‘Aarte como .espaco mitico, echado sobre ‘si mesmo, uma espécie de moderno substi- ‘tuto da religifo. ‘A manutengio dessas “verdades" é, pa- radoxalmente, necesséria & ideologia de um mercado que, num outro plano, sabe muito bem o que representa 2 arte para a maioria de seus compradores: uma sofisticagao de consumo, uma pega de decoracao, no méxi- ‘mo mais um objeto-fetiche, como os automé- vveis, Mas 6, sem diivida,o substrato incons- ciente desse estatuto que sustenta o consu- mo de arte nesse nivel. £ ele que o mercado uta para conservar, modernizando-o, recri- ando-o a cada nova investida. A tarefa de vender arte nesse sentido prende-se obriga- toriamente a tarefa de defender o estatuto vigente da arte na sociedade - afinal é este cestatuto que assegura em iiltima insténcia possibilidade do comércio de arte. Dai a necessidade do mercado de elaborar uma estratégia que, sobre cada aspecto especifi co do circuto, atue de modo pertinente. Tra- ta-se de conservar os valores da arte, o seu iitico e decisive apelo de consumo. A coisa antistica, por exceléncia. Uma anélise da performance de nosso rmereado sem as consideracées acima, con- uz a conclusdes equivocadas. A primeira delas, em curso, é 2 de atribuir ao mercado uma rigidez que Ihe é por definigéo estra- nha. A recusa da producéo contemporinea, 0 privilégio dos suportes tradicionais, a vol- ta nostdigica ao passado, suas ROUTIAS ca racterfsticas, devern ser tomadas exatamen- te pelo que S86" manobras téticas, nada mais, Nos tltimos &ii68, omercado oficial de atone Brasil utilizou quase exclusivamen. te um dispositivo de reagéo cultural o blo- queio ~ que nio é sequer o mais eficiente Na defesa do estatuto tradicional da arte, bloquelo da producio critica é uma forma até certo ponto arcaica, embora sempre presen- te numa ou noutra medida. O proceso de recuperacio é ser dtivida mais gil eficaz, até do escrito ponto de vista comercial. Isso porque inclu a apropriagio do produto, dis- tante j de seus pressupostos de producao edevidamente insevito com as marcagbes da ideologia oficial-Bloqueio e recuperacio so fs elementos a serem conceituados, nao basta analisar os chamados fenéménos de ‘mercado como os leildes etc. 32 do bloqueio e da recuperagio & que omercado tenta assegurar o controle da prodUGlo, « da fruigdo do trabalho de arte. Controlar & produgio significa nao apenas privilegiar e recalcar linguagens, mas di- vulgé-las de certa maneira, num espaco que porta significagées prévias, convencionais, neutralizadoras do efeito critice das propos- tas. Controlar a fruigdo também € possivel, ‘uma vez que 20 vender trabalhos o mercado vende néo apenas 0 objeto mas uma deter- minada leitura dele. (Pratice extensiva a toda a chamada sociedade de consumo, $= gundo Baudrillard") ‘A.agio do mercado, portanto, esté longe de se restringir &s transagées financeiras. Ele age de modo a eriar um sistema fechado dentro do qual o trabalho vai obrigatoria- mente circular, desde @ sua propria concep- ‘cdo atéavenda, Aideologia do mercado, por sua vez, opera para enquadrar em limites previamente fixados esse produto até certo ponto explosivo, o trabalho de arte, Opera- ‘cdo meticulosa, incessante, que permite a apropriagdo de um objeto ao mesmo tempo ‘em que se Ihe esvazia os significados. Para tanto é necessério atuar em todo 0 espaco a0 redor do trabalho. Examinemos 0 percurso: 2) Olga da exposigio. Deve ser obviamente Institucionelizado como tal (Duchamp jé demonstrou como mictério expoato &m 82- teria vira obra de arte). Mais ainda, a pré- pra eseritura da exposigio deve obedecer 2 critérioe tradicionais, estreitamente soli- Grice de uma certa maneira de “contém play” arte. £ fécil perceber que um trabalho Contemporineo, lide de maneira tradiclo- nal, tem efeitos tradcionais. ~ Para omercado brasileiro, esses aspectos aparentemente acessérios sio taticamente importantes: reforgam, para consumidores vidos de seguranga social, ocardter de 80- Tider e imutablidade da ate 1) 0s textos erticos. Funcionam como es0- téricos apoios publicitaios as obras. No caso esoterismo é imprescindivel:trata-se de rmanter aarte no terreno doininteligvel, do sublime, do nao discursivo. 0 "mundo a pat- te", enfim. Quando no sto vages divagagoes etafisicas, esees textos se posicionam de ‘um modo mitico em relacdo & arte, afastan- do assim os profanos. O fetiche do trabalho de arte -o que o toma trago distintivo de su- perioridade no grupo social, 0 que 0 torna feixe de mediocres projesées psicologicas ~ deve ser preservado 2 todo custo. A funcéc bjetiva desses textos nao € produzir conhe- ‘cimento, nem sequer situar os trabalfios Ko ambiente cultural: Estao"ali para Suiperbor ‘aig um nivel ao discurso que vai envolver © produto etorné-lo, num primeire momento, ‘objeto cultural e em seguida objeto de pra- zere consumo, 0 objeto de arte (o nome de ‘seu autor), a galeria (o nome da galeria), 0 texto (o nome do critico) sao os elementos dessa equagio comercial destinada a vender algo que néo é apenas objeto mas também € prioritariamente signo social, distribuidor de status. (A rigor sio os investimentos sociais ‘que recortam o objeto do mundo das coisas em geral eo transformam em obra de arte.) Do panto devista tebrico, esses textos si0 insignificantes. Defendendo, consciente- ‘mente ou néo, o isolamento do circuito era relagéo ao mundo exterior (isto é, vida so- Gal), nem por isso intentam analisara espe cificidade do trabalho de arte, auxiliando as- sim 0 confusionismo necessério a um mer ccado que tem como procedimento bisico @ homogeneizacio dos discursos, colocando ado alado propostas diversas entre si, tra ‘vés da conivéncia com esse confusionismo ce do jogo de aplicacao de rétulos ~ uma for- ‘ma de eludir questdes e recelcé-las ~2 mal ‘ria da produgao textual representa um pa~ pel até certo ponto importante no dispositi- ‘yo de recuperacio do trabalho de arte. Ser- ‘vem 20 mesmo tempo como protegio a0 cir * 6a oe cuito sempre em fungao da posicéo distin- ta das chamadas belas-artes na sociedade ~ como agentes de dispersio do significado dos trabalhos, uma vez que escamoteiam sua especificidade, ¢) A mundanidade. £ praticamente a tnica base externa do nosso circuit de arte. hm espécie de prolongamento das galerias em dias de inauguracéo. Para ela sobretudo fu- em no momento os efeitos dos trabalhos ¢ nela sobretudo so consumidas as suas si nificagdee. A mundanidade est tradicional mente liga as artes ~e as chamadas artes plésticas em particular - mas num cicuite sob o dominio da ieologia do mercado ease toma assustadora e ridiculamente presente A sua maneira vaga e desinteligente, exerce tama pressio considerdvel bre a produéo 3 fruigio, determinando indivetamentelin- quagens, priviegiando escolhes e imponde names especifios. Como toda audiéncia al fs, Talvez no seja exagerado inclu a mun- danidade como setorespecfco do ciruito de arte como se apresenta hoje no Bras = Circuito e produgéo ‘A década de 7o inaugurou um novo pert- ‘odo na arte brasileira ao estabelecer vincu- los concretos entre produgioe mercado. Até ‘entio 0 circuito de um modo geral compor- tava-se de forma mais ou menos amadora, ‘ou melhor, artesanal. Como € notério, a con- solidacéo do mercado de arte brasileiro -0 ‘chamado boom - se fez por intermédio de artistas cujas linguagens eram, digamos, redundantes e que por isso mesmo tinham penetracio mais ffeil junto a0 publico. A roducéo contemporénea, submetida tam- bém a presses mais amplas, foi violenta- mente recaleada. Eclaro, entretanto, que no hé contradi cio insuperdvel entre arte contemporénea ce mercado, desde que respeitadas determi- nadas condigées, Pode-se vender tudo, inclu sive 08 xeroxes dos conceltuais. Como espe- roterdemonstrado acima, a énfase na “des coberta” de artistas do passado foi sobretu- do uma questéo de “timing” comercial. Era necessério criar, na cabeca do consumidor ignaro, uma “histéria” da arte brasileira, ele- ger of heréis, os mitos de nossa tradigao cultural. Talvez estejamos ainda vivendo pparcialmenté essa fase. Mas aproxima-se 0 ‘momento (se jé néo est em curso) em que ‘a produce contemporinea sera maciga- ‘mente confrontada com © mercado: algu- ‘mas poucas obras serdo bloqueadas, a mai- coria recuperada e entre essas uma ou outra sacralizada. O jogo recomesa, com as mes+ ‘mas regras, ‘A apropriagio pelo mercado da produgio ccontempordnea néo transforma significati- vamente o circuito. No maximo, introduz ‘modemizagbes urgentes: 0 incentivo @ su- pportes menos gastos, a reforma da escritura tradicional das exposicées, um maior apoio te6rico ete. Uma atitude criticamente inte- ligente dos artistas (ndo s6 deles, mas de todos os que se interessam por arte contem- pporfinea), em defesa de um campo de a¢do, ‘mais livre para os seus trabalhos, envolve a formulagio de uma estratégia de ago den- tro do mercado e do circuito que reconheca esse fato. Convém ndo esquecer que, para certa faixa de consumidor, 0 termo mitico vvanguarda oferece um apelo inescedivel. © primeiro movimento dessa estratégia seria ameu ver uma luta no sentido de uma ‘maior independéncia do circuito em relaao ‘a0 mercado e, mais especificamente em re- lacdo 8 ideologia do mercado. Nao se trata, ado we sa ne al ua vig de abot (algo impossvel no regime cap- false) mas de restrngit a sua penetraio, mnulplcande dseursoe critics paralelos 20 teu. Permit uma fruigio menos assista © tnais intligonte de seus trabalhos & um in- tereese unnime dos artistas conterpori- eos. Todos dessjam que seus produtos2e- jam consumidos no devido nivel: como fa {os culture polarizadores de debates ele turaseficas £ dbvio que o simples ingresso de seus trabalhos no mercado fatoafnal desejével Mao implica a obteno dsse nivel de fru Géo.Pelocontrério. Omercado significa ape- fav eprecisamente, em termos de produ- ‘o, gaantiaecondmica de continuidade Gotrabalhe. Oquendo anula.aseguintever- dade: produgho e mercado encontram-se em posiges anagSnicas. Os representantes do Tnereado quae sempre tim consciéncia ds- foros arstas, ndo. Mas pelomenos desde a arte coneeitual a produ contemportnea cadaver mais uma critica explca e cer rada a sistea da arte como esté conti do. Eesuaertcaatinge desde o maséara- mento da base concitual sobre a qul pro- pide trabalho de arte-magcaramentoque Cuma das constantes d deologia do mer- cado~atéa organizagi das mostras eo PrS: prio estatuto do artista na sociedade Independente de suas linguagens, pas- so ser necessrio aos artistas contempo- tneos a manipulagéo de uma inteligtncia tetratégica que permit combate oinces- tant prcestoderecuperago ebloqueio de seus trabalhos.Talver mais do questo, as- ‘Gia Ger necessirio agi crcamente acer ada propria posigio da arte na socedade ‘ndupla questi é a segunte: como impedir a neutralizagdo de suas propostas e como tomara arte um instrument que tenha un minimo de eficécia social? Hé provavelmen- te urgéncia de uma maior mobilidade na prética dos artistas, ao nivel da producto e ‘yeiculagao de seus trabalhos. Uma mobilida- de essencialmente titica, voltada para fora — sem prejuizo, é claro, do rigor de articula- gio interna do trabalho, quesito que me pa- rece indispensdvel - e que permita, por exemplo, encontrar 0 suporte circunstanci- almente mais eficaz. Ou multiplicar suas intervengées, buscendo canais fora do circul- to, Ou mesmo criar formas alternativas de venda e divulgacio, sem a ingenuidade de consideré-las a sclucdo para o problema da apropriagdo da arte pelas classes ricas. olitizar (no sentido amplo do termo, cla- 1) 0 relacionamento trabalho-mercado, Po- litizar 0 relacionamento trabalho-circuito, politizar o relacionamento circuito-ambien- te cultural significa apenas reconhecer a ver- dade do jogo e escapar ao mascaramento proposto pela ideologia de arte vigente. E é sobretudo em relaglo a essa ideologia que @ ‘meu ver se define um trabalho contempo- ;neo: uma proposta é tanto mais interes- ‘sante quanto apresente maior grau de liber- dade dentro do sistema estabelecido de arte, Forcar os limites de permissividade do cir- ccuito é uma das principais tarefas da produ- gio contemporanea Entende-se bem que nao estou propon- do uma norma de atuagio para os artistas. Faco apenas a defesa de uma inteligéncia programitica frente ao circuito de arte © a0 mereado em particular. A partir do racioci- rio que entende o circuito como um siste- ‘ma com suas regras proprias ~ e que se pre- tende isolado, quase mitico - considero que ‘86 uma ago continua tem alguma chance de transformé-lo, Nao ha divida, porém, de que esse tipo de ago exige entre outras coi- 268 sas que o artista, digamos, deixe de ser ar tista: ivre-se do mito de “ser criador” ~ posi do que lhe assegura uma situagio confor ‘vel, mas intil~e pense em si mesmo como ‘alguém que esté amplamente comprometi- cdo com os sistemas e processos de significa: ‘d0 em curso na sociedade. IIL - Circuitos e ambiente cultural ‘Transformer 0 circuito de arte, como {magino, significa em primeiro lugar rom- per com o seu estatuto especifco dentro de nosso ambiente cultural. A sua pouca efi |

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