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As Portas pa Casa pA PaLavra A reunifio, em um volume tinico, de alguns dos livros edi- tados por Edimilson de Almeida Pereira entre 1985 e 2001 — acrescidos de inéditos — serve-me de pretexto para listar, algo esquematicamente, alguns dos pontos mais destacados de uma obra que é, sem favor, das poucas coisas verdadeiramente novas no Brasil, hoje, em matéria de arte verbal: a) a atualizacao tanto de temas quanto de procedimentos técnicos hauridos nas poéticas negro-africanas ¢ afro-brasileiras, entre os quais, a oralidade como elemento composicional e meio de afirmagao do outro (“Os homens que falam pocira cadé sua miséria se vestem de poeira cadé sua miséria”); b) a “estranheza” da organizacio frisica, em que predomi- nam a distor¢ao sintatica (“Entorto linha bem procedo ea esctita morde”), a “metafora concreta” — que se dé quando as palavras, relacionadas como que arbitrariamente, do ponto de vista da lin- guagem cotidiana, descolam-se de seus significados habituais voltam-se, num processo de reificacio, sobre sua propria dimen- so fisica — e a metonimia (“nao h4 teto nem domingos/ mas siléncio, bulindo”); ©) 0 didlogo com certa linha de tradigio que vivencia a po- esia como lugar da memoria -- ¢ do esquecimento, ditia 0 poeta- medievalista suigo Paul Zumthor (“No inverno da foto, tudo se dissolve, exceto a sensagao de alguém quase caindo da imagem”); d) o empenho, a um s6 tempo, na ritualizacao do ordinario (‘gesto de celebrar a forja e 0 fog”) e na captagio pottica, cabe dizer, material do sagtado (“é Zambi que engole o sol/ é Zambi que mata o sol”); ©) 0 dominio da técnica de montagem, responsivel pela aptopriacao/transfiguracao de fontes textuais as mais diversas — operagio da qual resultam pecas minimas, intercambiaveis, con- forme a participacio ativa do leitor. 15 Anoto esses t6picos na ilusiio de que eles de fato podem ajudar os que ainda no tiveram a chance de se langar na dificil travessia por essa poesia de que me tornei leitor privilegiado ja ha mais de década e meia, mas qual! Me dou conta a tempo de que 0 bom, no que toca a um provavel ptimeiro encontro com a obra de Edimilson (¢ poetas como ele, mesmo quando lidos pela enésima vez, sempre nos diio a sensacao de um “ptimeiro encon- tro”), talvez seja por de parte 0 conforto das “placas de sinaliza- clo” tedricas ¢, como um viajante na noite, esperar, com pacién- cia e sincera humildade, que se abram para nés as portas da “Casa da Palavra”. Dai para dentro, é empenhar 0 corpo todo, € nao sé os ouvidos, no jogo de tentar ouvir um idioma novo e tao antigo, que “(n)ao é lingua do suplicio nem do vexame, desenrola os signos ¢ se pronuncia”: poesia. Ricardo Aleixo Belo Horizonte, julho de 2003 16

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