Você está na página 1de 42
CAPITULO 4 REPRESENTAGAO E REFERENCIA INTRODUCAO Meu ponto de partida sera a alegacdo de que uma distingao estrita entre a descricdo verdadeira e a representagao esta condicionada a uma compreensao correta da natureza da escrita histérica.'* Uma descricao verdadeira corresponde ao que é dito sobre o passado no nivel de frases individuais em um texto historico, enquanto a representagao corresponde ao texto histérico como um todo. Muito foi dito na filosofia da linguagem sobre enunciados verdadeiros, mas muito pouco sobre a representac&o. Este ensaio é uma tentativa de sanar essa lacuna. DEsCRIGAO VERDADEIRA E REPRESENTAGAO, No caso dos enunciados verdadeiros — pense em afirmagées como inguir claramente entre aquela parte da ‘A ég’ - é sempre possivel di afirmacao que (exclusivamente) faz referéncia a algo, ¢ a outra parte, a do predicado, que exclusivamente atribui alguma propriedade ao objeto ao qual o enunciado se refere. Em enunciados como ‘A é g 0 termo ‘A’ refere-se a algum objeto no mundo - e aqui defino referéncia de acordo com o uso corrente na filosofia da linguagem, como, por Como jé havia argumentado em meu livro Historical Representation. Stanford, 2001, cap. 1. 186 exemplo, ‘escolhendo exclusivamente’ picking out uniquely - enquanto a frase ‘[...| é g’ atribui a propriedade a A. A operacao de referéncia, ou de ‘escolher exclusivamente, pode ser realizada por nomes préprios (légicos) como ‘Luis XIV; ou por descrigées de identificagao tnicas, como ‘o homem que pisou pela primeira vez na lua. Essa ‘escolha exclusiva’ é verdadeiramente crucial para considerar a descrigao verdadeira ou falsa. Obviamente, enquanto nao for possivel ter certeza sobre qual objeto no mundo a frase ou descri¢ao se refere, nao podemos decidir sobre a verdade ou falsidade proposicional. Se a condi¢ao de escolha excepcional houver sido satisfeita, pode-se retornar ao objeto referido no enunciado e verificar se ele possui ou nao a propriedade mencionada. Se isso ocorrer, a meng4o ou descri¢do é verdadeira, e se nao é falsa. Assim, o formato légico de um enunciado (ou descri¢ao) verdadeiro implica uma ontologia especifica: a ontologia de um mundo que é composto por objetos tinicos identificaveis, aos quais podemos atribuir certas propriedades.com predicados de afirmagées verdadeiras cujos sujeitos-termos fazem referéncia a eles. Nesse ponto, estranhamente, Nietzsche esta de acordo com o Strawson, de “Individuos: um ensaio sobre Metafisica Descritiva’. A existéncia deriva da verdade e da falsidade, e a realidade é aquilo sobre 0 qual nossas afirmagées verdadeiras sio verdade, singular ou universalmente (Quine). Grande parte da filosofia da linguagem do século XX foi uma investigacao de todas as complicasdes que essa simples ideia pode originar. Mas estou convencido de que tudo 0 que foi dito sobre isso desde os dias de Frege nunca poderia ser interpretado como uma refutacao deste esquema (certamente bastante elementar) que esbocei acima, O esquema define como no campo da epistemologia ¢ ontologia a utilizagao das no¢ées de verdade e falsidade é posta em pratica - embora possamos mover-nos na filosofia da linguagem e da ciéncia em dominios bastante remotos daqueles que se utilizam no mais elementar campo da afirmacao singular verdadeira. Mas tudo isso é diferente no caso da representagao. Pense na pintura, mais especificamente, em uma pintura-retrato representando alguém. Em um retrato, nao se pode distinguir entre as manchas de tinta que exclusivamente fazem referéncia ao retratado e os pontos de tinta que exclusivamente outorgam atributos e certas propriedades do modelo. Essa distingao nao faz sentido no caso de um retrato pintado - portanto, se consideradas do ponto de vista légico, a representacao pictorica é essencialmente diferente da descricdo. E 0 mesmo ocorre com representagao historica. Pense em um livro sobre a Revolugdo Francesa. Ali vocé nao pode indicar certos capitulos, secdes, paragrafos ou frases que exclusivamente se referem 4 Revolugdo Francesa, e outros que exclusivamente atribuem determinadas propriedades a esta. Como normalmente é 0 caso em um enunciado verdadeiro. Ali, ambas as operagdes estao sempre inextricavelmente ligadas uma a outra. Isso também explica por que nao podemos falar da verdade ou falsidade proposicional das representagdes (como as encontradas em retratos ou livros de histéria).! Devemos, portanto, deixar deladoo modelo deenunciadoverdadeiro sempre que estivermos lidando com a linguagem representacional.!* "> A ndo ser que a nogao de verdade seja redefinida de modo que se possa argumentar que encaixa no caso da representagao (histérica). Em meu trabalho sobre a semantica da representagio histérica, uma definigdo de verdade representativa € proposta, e, enldo, demonstra-se que as verdades proposicional e representativa nao sao redutiveis uma a outra, “A tendéncia antiepistemolégica nos escritos de Quine, Davidson e Rorty tem sido muitas vezes referida como ‘antirepresentacionismo, O antirepresentacionismo € entendido aqui como uma critica com reivindicagdes epistemoligicas a0 que tenho chamado de ‘descricio verdadeira’ Entao, 0 que é normalmente entendido por “antirepresentacionismo” certamente no deveria ser interpretado como uma rejeigao do que estou chamando aqui de ‘representagac. Na verdade, essa nogao de representagao nao é muito debatida na filosofia da linguagem atual. Nesta perspectiva, este ensaio pode ser visto como um convite aos filésofos da linguagem para explorar novos territérios, ou seja, o texto (histérico), Porém, neste ponto, uma observagio € relevante: nao se pode deixar de notar que a alegacao aqui defendida de que as descrigdes nao representam é muito mais simples e mais evidente do que o antirepresentacionismo de Quine et al. Isso pode induzir-nos a supor que o antirepresentacionismo de Quine é apenas um caso marginal do antirepresentacionismo aqui defendido (com relacao ao enunciado verdadeiro). Muito dependerd do que consideramos a forma mais basica do uso da linguagem: 0 texto ou 0 enunciado verdadeiro. Se for o segundo, a marginalizagao do antirepresentacionismo de Quine nao tem fundamento. Porém, 0 contrario ocorre se for o primeiro. Ea primeira posicao é a mais plausivel: enunciados verdadeiros 6 fazem sentido dentro do contexto de textos que os contenham. Quando nos deslocamos do texto aos enunciados verdadeiros, nos movemos na diregéo da abstragao artificial. A linguagem ir exercer suas fungdes naturais somente quando 187 188 Pois, nesses casos, nao se pode discernir entre referéncia e atribuicdo: nao ha ‘As’ e ‘gs’ cuja referéncia, significado e contetdo possam ser designados com algum grau de precisao. O resultado é que nao se pode dizer se essa linguagem (a representacao) é verdadeira ou falsa. Se nao puder, no entanto, resistir 4 tentacéo de fazé-lo, quais provas poderiam apoiar suas reivindicagdes de verdade ou falsidade? Apresso-me a acrescentar que certamente isso nao significa que nenhum argumento racional possa ser dado como motivo pelo qual devemos preferir uma representagaéo (por exemplo, da Revolugdéo Francesa) em lugar de outra. Tudo 0 que cu estou dizendo é que, ao contrario, os critérios da verdade e falsidade proposicional nao serao de nenhuma ajuda nesse Ambito — e que teremos de procurar outros critérios que sejam aplicaveis a representagoes histéricas do passado; e que possam, eventualmente, levar a uma alternativa a verdade proposicional. Pode-se agora objetar que, ja que referéncia e atribuigao nao podem ser distinguidas no caso da pintura-retrato, estas duas operagées ldgicas ocorrem ao mesmo tempo e que é a maravilha da representacao (em contraste 4 descrigdo verdadeira) que de alguma forma consegue reunir essas duas coisas em um unico procedimento. Mas isso seria, entao, todo o problema: a representagio faz em um passo 0 que a descri¢ao faz em dois. Assim, do ponto de vista légico, nao deveria haver nenhuma real diferenca entre descrigéo e representacao. Ambas as descricao e representaco poderiam ser reduzidas a referéncia e a atribuigao. E como consequéncia, a partir da perspectiva da referéncia, nao haveria diferengas légicas interessantes entre um representado (isto é, 0 que é representado por uma representagao), por um lado, e aquilo que uma descrigao verdadeira é verdade de, pelo outro. nos deslocamos em diregéo oposta. Veja meu texto Narrative logic. A semantic analysis of the historian’ language. The Hague/Boston, 1983, p. 144-169. A REPRESENTAGAO E UMA OPERAGAO DE TRES LUGARES (THREE-PLACE OPERATOR): A NOGAO DE ASPECTO Mas isto nao é satisfatdrio. Isso se torna claro se considerarmos mais de perto a questao do que ¢ representado por uma representa¢ao. As assimetrias entre descricdo e representagao, ento, anunciam-se mais claramente. A primeira vista, esta é uma pergunta tola. No caso de um retrato ou uma biografia de Napoledo, o que poderia representar, se nao o proprio Napoledo? Entao o que é representado por uma representagao nao é um objeto tinico identificavel no mundo (como Napoleao), ao qual podemos referir-nos basicamente da mesma forma como é feita pelo sujeito-termo de uma descrigéo verdadeira? Pensar assim 6, naturalmente, 0 que o simples bom-senso parece requerer. Porém, se © que é representado por uma pintura ou uma biografia de Napoledo, nao é 0 préprio Napoledo, o que poderia eventualmente ser isso, e como devemos entao conceber a relacao entre isto e 0 proprio Napoledo? Pense novamente na pintura-retrato. Nossa inclinagao natural seria a de equiparar o representado a um objeto identificavel e tinico no mundo, e dizer que, neste caso, o representado é a pessoa que foi pintada pelo artista. Mas, a intuigéo prova-se equivoca se considerarmos a situacao em que temos varias pinturas (representa¢des) de uma mesma pessoa — por exemplo, Napoledo como descrito por David, Baron Gros, Girodet-Trioson, Gillray etc. Essas representagdes sao todas diferentes, e As vezes até de forma drastica (compare 0 Napoledo de David ao de Gillray), e se as representagdes sdo representacdes de um representado, os representados devem diferir também, na medida em que um representado é aquilo que é representado por uma representagao. Isto obriga-nos a abandonar a viséo de que o representado deve ser identificado com 0 modelo que se senta em frente ao pintor. Devemos rejeitar a identidade dos representados com o objeto de referéncia — e reconhecer que a identidade é uma projegao ilegitima da estrutura do enunciado sobre a representagao. Nao temos outra escolha, pois 189 190 sabemos que as diferencas entre as representacdes de David ou de Gillray de Napoledo sao precisamente tudo 0 que essas representagdes representam, e aquilo que motivou os artistas a fazer estas representagdes tal como elas so. David e Gillray teriam protestado veementemente se lhes disséssemos que as diferencas entre as suas representagoes de Napoleao foram meras questées acidentais, j4 que ambos consideram que suas representac6es referem-se exatamente a uma mesma coisa, ou seja, Napoleao. ‘Vamos agora tomar um conjunto de fotos feitas de uma unica e mesma pessoa de diferentes perspectivas. Mais uma vez, num primeiro olhar, diriamos que em cada imagem “o representado” é 0 mesmo - a pessoa de quem as fotos foram feitas. Mas isso seria incorreto, pois isso nao faz justi¢a ao fato de que em uma foto o perfil dessa pessoa é (0) representado; em outra, suas costas, e assim por diante. Entao, dizer que em cada caso existe apenas um tinico (a pessoa em questao) nao é simplesmente falso, mas sim parte de toda a verdade, e, desta forma, a afirmagao seria enganosa. O enunciado é uma elipse para a afirmagao correta de que o representado por esta foto ¢ 0 perfil da pessoa, enquanto que o representado daquela fotografia sao suas costas, e assim por diante. Cada vez vemos um aspecto diferente dessa pessoa, determinada pela perspectiva da qual a pessoa é vista. E devemos evitar a identificagao da pessoa que é representada por uma representacao (fotografia ou pintura) de si com o representado por essa representac4o, que é apenas um aspecto da pessoa em questao. Assim, os representados sao aspectos, palavra que sera um dos principais termos técnicos a serem utilizados neste ensaio.'” ' Ao introduzir nesta secao o termo ‘aspecto' devo alertar para a conotacdo metaférica da palavra, que pode facilmente obstruic o significado literal da palavra. O termo ‘aspecto’ é imediatamente associado com a visio das coisas de uma determinada perspectiva, 0 que nos faz pensar que apenas coisas que possam ser vistas e tocadas podem ter aspectos. Ao utilizar a palavra aspecto gostaria de me desfazer das origens metafdrica e etimoldgica do termo, de modo que se possa dizer que algo é, por exemplo, ‘um aspecto da vida, da ‘realidade econdmica contemporanea, ou, na verdade, de ‘(parte da) histéria. Entao, meu uso do termo é literal e ndo metaférico. Agora que © termo é uma catacrese, sua acep¢ao etimoldgica original se torna metaférica. ‘Talvez agora se pudesse objetar que essa distincao entre uma pessoa representada e o que é representado pela representagao é uma sutileza desprovida de qualquer significado pratico ou tedrico, Pense na situagio em que temos uma série de fotos de pessoas diferentes. Quem diria entao que teriamos um conjunto de fotografias de aspectos de pessoas, em vez, de simplesmente dizer que temos aqui um conjunto de (diferentes) fotos de pessoas diferentes? Falar aqui de “aspectos” é ridiculo, e nao se ganha nada com isso. E seria diferente com a escrita da historia? A maioria dos textos histéricos é escrita sobre temas que ainda nao haviam sido abordados anteriormente. Quem estaria, entao, preparado para dizer que estes textos sdo sobre aspectos do passado ao invés de (partes de) 0 proprio passado? Tenho duas respostas a essa obje¢ao: em primeiro lugar, sigamos com as fotos; ao dizer que os representados em um conjunto de fotos de pessoas diferentes é, em cada caso, a pessoa que é representada pela foto, é, novamente, uma elipse, pois a afirmagao correta é que cada foto representa, na verdade, apenas um aspecto de uma pessoa - ¢ nao a propria pessoa. E certo que nesta situagao nao acarretaria nenhum dano confundir pessoas com alguns dos seus aspectos, porque normalmente podemos identificar as pessoas a base desses aspectos tio facilmente como quando somos confrontados com estas pessoas mesmas, elas proprias. Nossa imaginagao, em seguida, elabora 0 aspecto em uma imagem do que esperariamos ver se cruzd4ssemos com 0 possuidor do aspecto na vida real - que é uma faculdade que possuimos, mas que os animais nado possuem. Caes nao reconhecem seus donos em fotografias,'* As veres, os aspectos sao dispostos de tal maneira a tornar esaa tarefa mais facil do que acontece com a propria pessoa real. Os aspectos “' Apesar de que eles reconhecam a reprodugio de suas vozes. Mas essas reprodugdes nao nos dio aspectos, pois sio cépias ou imitagdes das caracteristicas de uma pessoa. Observe, além disso, que argumento nao impede que animais, como os cies, tenham representagdes ao seu redor. Eles, sem diivida, possuem a capacidade da representagio. Mas ter essa capacidade nao implica necessariamente ter também a capacidade de claborar na imaginasao outros aspectos dayucles objetos dos quais esses aspectos formam parte. 191 192 podem ter uma individualidade mais pronunciada do que aquilo do qual eles sao um aspecto ~ fato que é explorado ao maximo em caricaturas. O grande nariz de um politico é ampliado para além da proporgao - e vocé reconhece 0 politico mais facilmente do que partir de uma foto. Muitas vezes até mesmo passamos de aspectos ao que eles se referem tao facilmente, que tendemos a esquecer completamente que, em muitas ocasiées, s4o meros aspectos que estamos tratando e nao aquilo do qual esses aspectos sao aspectos. Dessa forma, estamos vivendo em um mundo de fantasmas muito mais do que estamos cientes, pois confundir os aspectos com as coisas de que sao aspectos é algo que estamos literalmente fazendo o tempo todo. Dessa maneira, (a légica da) representacao é muito mais profunda em nossa interaao com a realidade do que geralmente compreendemos. Entao, aqui esta uma nova tarefa para 0 fildsofo: os aspectos estdo por toda parte, mas continuam de fora do debate filosofico. Agora, a histéria. Para comegar, muito da escrita histérica consiste em abordar um mesmo tema uma e outra vez. Pense nas revolugdes Francesa ou Russa (ou melhor, nas duas, a de 1917 e a de 1991), 0 Holocausto, e assim por diante. Os aspectos estao em jogo, até mesmo meu oponente imagindrio imediatamente reconheceria. Mas tome agora um caso mais dificil de temas que s4o abordados por primeira vez. O primeiro livro sobre Napoledo, por exemplo. Faria sentido, entao, confundir o representado com o préprio Napoledo, como meu oponente sugeriria? Claro que nao. Suponhamos que, apés esse primeiro livro, mais biografias foram escritas sobre Napoleao. Todos esses livros nos oferecem aspectos de Napoledo, que o desleixo no nosso uso da linguagem nos faz dizer que estao no préprio Napoleao. Podemos perdoar o desleixo, mas a negligéncia permanece. Mas entao 0 que ocorre com 0 primeiro livro? Sera que esse livro agora sera a tinica obra que realmente é sobre o proprio Napoledo, enquanto todos os posteriores sao apenas sobre aspectos dele? Ou sera que 0 advento de mais biografias de Napoleao Bonaparte obriga-nos a degradar 0 estatuto desse primeiro livro sobre Napoledo, passando este a ser sobre apenas um aspecto dele? Estas perguntas sao absurdas, é claro ~ 0 que nos deixa unicamente com a op¢ao do aspecto. Uma ultima observagao sobre este assunto. Em relagao 4 histéria, tendemos a padecer de uma equivoca confianga em sua concretude. ‘Ao pensar em objetos no passado e seus aspectos, somos inclinados a restringir o alcance desses objetos e seus aspectos para as pessoas, as batalhas, as cidades, pinturas, mobilia e assim por diante. Mas sabemos que os historiadores escrevem sobre um monte de outras, e mais abstratas, coisas ‘sem rosto, como a industrializacao, 0 conflito social, © crescimento econémico ou a cultura literdria. E 0 que deveria ser considerado, respectivamente, objetos e seus aspectos, em tais casos? Cada objeto nao se tornaria um aspecto, em seguida, se olhdssemos com suficiente aten¢ao e/ou vice-versa? Mas, entao, 0 que sao os objetos € 0S aspectos uns sem os outros? Nao seria 0 caso de que estariamos impingindo 4 historia uma distingao (entre objetos ¢ seus aspectos) sem contrapartida no préprio passado? Estou pronto para conceder que este raciocinio esteja correto. Mas 0 argumento vai além deste ponto. A confianga equivocada na concretude da histéria fez com que traduzissemos a teoria aqui defendida sobre a representacao em uma tese ontoldgica. Isso nos fez 1) conceber o mundo, como tal, de coisas e seus aspectos, como correspondente ao que é representado por suas representagdes e seus representados; 2) argumentar que, no caso das revolugoes, da cultura literaria, e assim por diante, a distingdo ente objetos e seus aspectos nao faz sentido; e 3) concluir de tudo isto que a teoria da representacao deve ser julgada improcedente. No entanto, a teoria da representagao defendida aqui nao é uma tese ontoldgica, mas uma teoria sobre a légica da escrita histérica (ou mesmo da representagao em geral). O mais proximo que eu estaria disposto a chegar de tal interpretacdo ontoldgica é permitir que aquilo que é representado por uma representa¢ao pode ser encontrado naquilo “do qual” temos evidéncia histérica - com énfase no “do qual” (e 193, 194 certamente nao “para o qual”). E onde a gama de provas é coextensiva com tudo o que é discutido pelos historiadores, de agentes individuais no passado as maiores abstracées sociais, ou até o que é representado por uma representacao e aspectos representados, e nao uma reflexio ontoldégica ou teoria sobre a natureza do préprio passado. Assim, entao, cada representacao arrasta consigo 0 seu préprio representado ou aspecto - da mesma forma que todos nds somos acompanhados por nossas sombras num dia de sol - e todos esses representados estdo indissoluvelmente ligados a uma representagao especifica correspondente a eles ~ e sd a essa. Assim, do ponto de vista logico, a representagao é uma operacao de trés lugares, e nao de duas: uma representagao (1) define um representado (2) em termos dos quais o mundo (3) é visto - e devemos evitar a confusao entre (2) e (3). Ea quem rejeitar isso como um superelaborado de construgdo duvidosa, eu gostaria de lembrar a posigdo fregeana de que 1) as palavras tém 2) sua referéncia ou denotaco e 3) seu significado ou conotacao, e essa referéncia e significado nao devem ser integrados um com 0 outro.'* Aqui temos também uma operagao de trés lugares. Finalmente, uma estipulagio terminoldgica.'"“ O termo “representado’ é estranho e engana, ja que se poderia dizer propriamente de ambos, 1) e 3), que so uma representagio do representado, enquanto que todo o raciocinio do meu argumento foi justamente que nao confundamos 1) e 3). Por conseguinte, vou trocar o termo “representado” por ‘apresentado. Esta terminologia j4 antecipa meu argumento posterior, de que a representacao apresenta-nos a certos aspectos da realidade representada, de forma que vocé pode chamar a atengao de alguém para certas caracteristicas de algo. "Nao estou querendo dizer que a representagao deva ser mapeada no mado como as palavras relacionam-se com o mundo: os representados sdo aspectos do mundo, e seria estranho dizer uma coisa assim sobre os significados. Deste, a semelhanga é meramente estrutural, “ Bu gostaria de agradecer a Hans Mooij por sugerir 0 termo ‘apresentado. REPRESENTAGAO, METAFORA E EsTILO Se a representacao é uma operacdo de trés lugares, e nao de dois, também pode explicar por que a representagdo (histérica) é frequentemente relacionada a metéfora.'"' A metafora tem a mesma estrutura. Pense na metafora “a Terra é uma nave espacial”. Podemos dizer que essa ‘metafora (1) nos propée, ou convida a ver ‘a Terra’ (2) em termos de ‘uma espaconave’ (3). Existe aqui um paralelo evidente entre representacao e metdfora. Arthur Danto fez muito para esclarecer a natureza dessa relacao: Quando Napoleio é representado como um imperador romano, 0 escultor [Canova (FA)] nao esta apenas representando Napoleao, em uma pose antiquada e em roupas que acredita ter sido usadas pelos imperadores romanos. Pelo contrario, 0 escultor anseia que 0 espectador tome, com relacao ao seu sujeito - Napoleao - as atitudes adequadas aos maiores imperadores romanos — César ou Augusto (se fosse Marco Aurélio, uma atitude um pouco diferente seria pretendida). A figura, assim vestida, é uma metafora da dignidade, autoridade, grandeza, poder e absolutismo politico. De fato, a descrigao ou representacao de a como b sempre tem essa estrutura metaférica: Saskia como Flora, Maria Antonieta como Pastora, a senhora Siddons como a Musa da Tragédia - Gregor Samsa como um inseto - como se a pintura convertesse em uma espécie de imperativo ver a com atributos de b (com a implicagao, é claro, nao necessariamente valida, de que a nao é b: 0 conceito de identidade artistica, apresentado anteriormente, pode ser visto como possuidor de grande parte da estrutura metaférica).' A ideia fundamental aqui é que toda representagéo é uma representacao como: Napoledo é representado (por Canova) como um imperador romano; Saskia é representada como Flora, Maria Antonieta como pastora'® etc. Obviamente, ninguém deixa de estar consciente ‘<1 Assim diz Koselleck: “Die Historie als Wissenschaft lebt im Underschied zu anderen Wissenschaften nur von der Metaphorik’. R. Koselleck. Uber die ‘Theoriebediirftigkeit der Geschichstwissenschafi Zeitschichten. Frankfurt, 2000, p. 305. "A.C, Danto. A transfiguragao do lugar-comum ~ uma filosofia da arte. Cambridge, 1983, p. 167. °® Eu diria que a senhora Siddon é um caso um pouco diferente, pois Gainsborough nao a pinta como a musa da tragédia: & um retrato da senhora Siddons vestindo roupas que considera 195 196 desse recurso da representacao no caso da escultura de Canova. Mas, mesmo que escultores ou pintores nao sejam tao explicitos como Canova foi sobre como desejam que suas representagdes sejam entendidas, a representagao tem sempre essa caracteristica de ser uma representacdo como. Muito ja se aclara com a insisténcia de Danto de que parte do que uma representacao faz é exigir que o espectador tome certa atitude com relagao a certos sujeitos. Isso é o que metafora e representacdo tém em comum, segundo Danto. Como insisti em outros lugares,'** 9 mesmo ocorre com conceitos tipicamente histéricos, como ‘Renascimento, ‘Século das Luzes’ e assim por diante. Os livros de Histéria sobre o Renascimento, o Iluminismo, e assim por diante, podem, de fato, ser vistos como metaforas; j4 que estes propdem, ou convidam seus leitores a ver certa parte do passado (a Italia do século XVI, a Europa do século XVIII), em termos daquilo que associamos a palavras como ‘renascimento (ou ‘re-nascimento’)’ ou ‘luminacao. Novamente, nao podemos deixar de ficar impressionados com a semelhanga estrutural da representacéo como uma operagao de trés lugares: 1) o quadro intelectual do século XVIII esta representado por 2) uma representacao escrita por um historiador do Iluminismo e cuja mensagem é 3) o que a representacio apresenta. A metdfora é geralmente considerada como um fendmeno puramente linguistico: a interacao semantica entre os termos “Terra’ e ‘espagonave’ que nos leva fora do dominio da linguagem, mais especificamente fora do que associamos com os termos ‘Terra’ e ‘espaconave. A metdfora é um jogo de significados — embora, é claro, esse jogo tenha consequéncias no modo como olhamos para partes do mundo e/ou para 0 nosso conhecimento delas e de como podemos lidar com elas posteriormente. 'Tomando como exemplo a metafora ‘o homem é um lobo; comenta Max Black: “o que é preciso nao é tanto que 0 leitor saiba o significado padrao de ‘lobo’ encontrado no dicionario adequadas a uma atriz. que representa o papel de musa da tragédia, As roupas fazem com que a modelo nao seja afetada ~ e isso é evidentemente diferente na escultura de Canova. '™ Veja meus textos Narrative Logic, p. 209-220 Historical Representation, p. 13-20. ~ ou ser capaz de usar essa palavra no sentido literal - mas sim o que chamo de sistema de lugares-comuns associados” (grifos autor).\° A metdfora convida a uma interagdo entre os significados dos termos de ambos os lados do par (e nao de suas referéncias) - e por isso Black fala da ‘viséo de interagéo da metafora. A propria realidade nao participa dessa interagao. Isso é diferente na metafora histérica. Pense no Renascimento. Essa metafora nos convida a projetar em uma parte do préprio passado - portanto, da realidade histérica - a imagem de um (re)nascimento (como especificado no e pelo livro do historiador sobre essa parte da histéria cultural ocidental). Assim, a interagdo de sentido existe, mas seu significado se move em uma tinica dire¢ao, ou seja, da linguagem para o mundo. O passado em si ¢ o recipiente mais ou menos passivo do significado que o historiador lhe investe. O significado é projetado na realidade. Pode ser que esse significado se encaixe de maneira torpe ao préprio passado. Mas o passado nao protestard contra isso, assim como nossas casas sofreréo passivamente com qualquer cor que as pintemos. $6 (mais tarde) os historiadores podem fazé-lo. Assim, no caso das metaforas historicas que transgrediram a linha de demarcagao entre a linguagem e o mundo - entao, ambos estao em jogo - enquanto a metéfora como discutida por Black, nunca deixa 0 dominio da linguagem e do sentido. Em suma, a metafora historica é, de fato, como uma metéfora convencional: 1) ‘A é B; onde A nao é uma simples associagao que temos com A, ou o conhecimento que temos de A como na metéfora convencional, mas para essa parte da realidade que éindicada por A. Como argumentarei em outro lugar, representagao histérica, e o tipo de metafora mobilizada por esta, para ‘6° a capacidade de cruzar a barreira linguagem/realidade também nos permite desenvolver uma nogao de verdade nao proposicional representativa, fazendo justica a nossa intuigao de que a verdade sempre deve envolver tanto linguagem ‘SM, Black. “Metaphor”. In: Models and Metaphors, Ithaca/Londres, 1962, p. 40. "© No meu liveo The Semantics of Historical Representation, 197 198 como mundo. F autoevidente que esse é um recurso mais ambicioso do poder da metafora do que o que estamos acostumados a ver em tedricos contemporaneos sobre a metafora, de Max Black a outros, como Mary Hesse, Davidson, Levin ou Lako e Johnson. Podemos repetir este argumento da seguinte maneira: podemos dizer da metafora e da representacao que propde ‘certa maneira de olhar’ parte da realidade (passada). Isso poderia convidar a visio de que o apresentado em uma representacao é (exclusivamente) uma maneira de olhar 0 mundo. Ja que a frase ‘uma maneira de olhar o mundo é vaga e imprecisa, nao se poderia condenar ess alegacao como incorreta. No entanto, ela pode induzir ao erro. Vamos primeiramente associar ‘maneiras de olhar para x’ com nossa atitude em relacao a x, € nao com o préprio x ou qualquer parte dele. Apenas podemos atribuir significativamente ‘Ver Saskia como Flora’ a Rembrandt, e nao a Saskia (a menos que ela esteja se olhando na pintura em questao). Mas isso nao s6 entraria em conflito com nossa observacao na secao anterior de que o apresentado é uma parte da realidade representada por uma representacao — e assim uma parte da propria realidade - mas também com 0 que foi dito agora sobre a capacidade da metafora historica para superar a lacuna linguagem/realidade. Assim como o apresentado nessa foto sdo as costas reais de uma pessoa e parte da frente dessa mesma pessoa, a metafora historica remete-nos a realidade do proprio passado. Em suma, tanto a representacao histérica como a metéfora podem atravessar a barreira linguagem/mundo e ambas o fazem de maneiras muito semelhantes. LINGUAGEM E REALIDADE Nao é menos evidente que isto adiciona mais urgéncia 4 questio da natureza da relacao entre linguagem e realidade no caso da metafora histérica ~ e, igualmente, entre 0 objeto de representa¢ao e o apresentado € sua representagdo, O que exatamente estamos fazendo quando fazemos com que a metdfora e a representacdo fechem a lacuna entre a linguagem e o mundo, e partem em dire¢ao ao improvavel caminho de comparar coisas com palavras? Ja que Danto nao é muito util sobre este tema, é melhor que observemos a teoria da representagdo de Nelson Goodman formulada em Linguagens da Arte (1976). Tenho em mente a critica de Goodman da teoria da semelhanga da representacao, segundo a qual a representagao deve assemelhar-se aquilo que representa. Um retrato deve se parecer com a pessoa que serviu de modelo. Se isso nao acontecer, esse nao chega a ser um retrato aceitavel dessa pessoa. Segundo Goodman, a principal deficiéncia da teoria da semelhanga é que ela é ingénua, ou essencialmente incompleta, pois omite mencionar que a afirmagao de que uma representacao deve lembrar o que ela representa, sé faria sentido com a condicao de que possuissemos um certo ‘sistema de notagao’ que definisse 0 que conta como semelhanga. Pense na elaboracao de mapas. Existem muitas maneiras de projetar o mundo para as duas dimensdes de um mapa: a projegao azimutal (ortogonais e equivalentes), a projecao azimutal equidistante, a projecao estereografica, a projecao cénica, a proje¢ao cilindrica, a projegao de Mercator etc. De maneira que é certamente verdade que sé podemos afirmar se algum ponto do globo foi corretamente ‘representado’ no mapa se tivermos em conta o sistema de projecao aplicado. Isso é, mais ou menos, o que Goodman tinha em mente com seu ‘sistema de notacao. O fato crucial é que nossa escolha por ou contra um determinado ‘sistema de notagao’ nao é ditada por como o préprio mundo €é: 0 globo (ou do mundo) nao pode ser o arbitro da escolha entre 0 sistema de nota¢ao (ou projegao) x ou y. O mundo simplesmente é - por isso nos toca decidir, com base em consideragées de conveniéncia, costumes, eficiéncia e elegancia representacional etc. que sistema de notacao adotaremos. Pense, além disso, sobre estilos de pintura - e que devemos primeiramente associar os sistemas de notagéo de Goodman ao mundo da arte e da representacao estética. E claro, estilos nao tem fundamentum 199 200 in re, na realidade nao ditam em que estilo algo deve ser representado. Novamente, cabe ao pintor decidir (se é que isso é uma decisao). No entanto, também sabemos que o estilo muitas vezes contribui mais para o significado de uma pintura do que aquilo que ela representa. O estilo, e nao 0 conteudo, permite-nos distinguir grandes pintores de seus colegas menos talentosos. Portanto, existe um importante (talvez mesmo singularmente importante) componente na representacdo pictorica sem fundamentum in re, que nao pode ser testada com relacao a realidade, mas que é, contudo, decisivo para a pintura ter significado e valor artistico - que se encontra no que ela apresenta (novamente, que nao se confunda com o que € representado pela pintura). Isso acrescenta mais um item a nossa lista de diferengas entre descrigdo e representagdo. Em ambos os casos, ha certas normas de como se relacionar com a linguagem e o mundo. No caso da descrigao, estas sdo as regras semanticas que definem as condigGes de verdade proposicional. No caso da representacao, estas séo as regras para relacionar os objetos ou partes dos mundos representados que Goodman tinha em mente com seus sistemas de notacao (ou estilo). Assim, a este nivel, ha, de fato, terreno comum entre os dois. A diferenga é, no entanto, uma diferenga de énfase. No caso de (verdadeiras) descrigées, essas regras so intersubjetivamente aceitas ~ € entao podemos estabelecer intersubjetivamente se algum enunciado (ou teoria) que faca uso delas é verdadeiro ou falso. No caso de representagao, ao contrario, nao ha um acordo geral sobre esses sistemas de nota¢ao: s&o 0 que esté em jogo. Nés os projetamos no mundo - ao projetar 0 significado sobre o passado, como metafora historica e representa¢ao. Nao nos perguntamos se, dado um determinado sistema tedrico ou estilo, o pintor representou corretamente parte do mundo. Este é 0 tipo de pergunta que pertence as ciéncias, e nao a arte (ou historia da arte). Nao éa verdade, mas sim 0 estilo que conta.'” iu nao gostaria de excluir radicalmente a possibilidade, no entanto, de que - sob certas circunstancias ~ 0 que é normal na arte (e na histéria, como veremos) também pode ocorrer nas ciéncias. Talvez se possa dizer (embora certamente esta nao seja a minha opiniao) que as revolugées cientificas e os sistemas de notagio de Kuhn de repente perdem sua autoevidéncia Assim, na metafora histérica e na representagdo olhamos para a rela¢ao entre mundo e linguagem de uma perspectiva situada no exterior da linguagem e do mundo. Tomamos, por assim dizer, um retrocesso, um passo fora do dominio da linguagem e do mundo, momentaneamente nos movemos para um ponto de vista pelo o qual podemos objetivar as relagGes e refletir sua relacao para este caso em especifico. Estamos, de fato, perguntando-nos qual parte da linguagem deveria ir junto com essa parte da realidade, e se a epistemologia ¢ a subdisciplina filosdfica que rege como a linguagem e a realidade estao relacionadas uma com a outra, pode-se dizer que metafora e representagao estao fazendo um tipo de epistemologia ‘instantanea’ para cada uma dessas partes (ou blocos) de realidade sobre as quais sao as metaforas e representagdes individuais da realidade. Ou, parafraseando, 0 historiador quando compondo sua representagao histérica esta, de fato, fazendo uma espécie de epistemologia ‘particularizada’ ou filosofia da ciéncia, ou hist6ria, ou seja, respondendo a um caso bastante especifico da questao epistemolégica de como a linguagem e a realidade poderiam estar melhor relacionadas uma 4 outra. Portanto, aqui é onde Croce pode estar certo, no fim das contas, com sua afirmagao de que a profissao do fildsofo e a do historiador se entrecruzam. TEMATICIDADE O argumento exposto poderia ser reformulado dizendo que o texto histérico, ao nivel da representacao histérica, em oposi¢ao ao da pesquisa historica, é um ‘discurso sobre o discurso’: a esse nivel 0 texto fala sobre como relacionar o discurso ao mundo. Isto pode nos recordar daquilo que Quine chamava de ‘ascens4o semantica’: habitual e, temporariamente, tornam-se mais importantes que a verdade. A ciéncia, entéo, passa a ser representativa ao invés de descritiva. Mas mesmo que esse ponto de vista risqué fosse atraente para alguns, ninguém pode negar que crises assim so extremamente raras nas ciéncias, € que certamente devemos abster-nos de vé-las como parte da logica das descobertas cientificas pela mesma a raz4o que a nocao de revolucao ¢ um modelo pouco itil para a compreensio da sociedade contemporanea. 201 202 a teoria da relatividade de Einstein foi aceita em consequéncia nao apenas pelas reflexdes sobre tempo, corpos alongados headlong bodies e os disturbios de Mercurio, mas pelas reflexes sobre a teoria em si, como discurso, e por sua simplicidade em compara¢ao com teorias alternativas.'* A ascensao semantica leva-nos a “reflexGes sobre tempo, corpos alongados”, e assim por diante, e quando tomamos uma posigao fora das teorias sobre tempo, corpos alongados e etc., por um lado, e essas coisas em si, por outro. Dessa maneira, a ascensao semantica nao é um ‘discurso sobre (coisas no mundo)’ no sentido de que as teorias sobre coisas ‘discursam sobre’ essas coisas, mas um ‘discursar sobre o discurso, da mesma forma, isso pode ser dito da representagao histérica, como descobrimos no final da se¢ao anterior. Proponho o termo ‘tematicidade’ (aboutness) para caracterizar esse ‘discursar sobre o discurso’: tematicidade ¢ sugestivo, por uma ‘eta com 0 fato de que, tanto na ascensao semantica quanto no nivel da representaco, falamos sobre 0 mundo somente de concordancia in forma indireta, ou seja, por meio de um discurso que estd diretamente ligado ao mundo. Dizer isto pode ser enganoso, ao sugerir uma separa¢ao de todos os lacos entre a representagao (fala sobre a fala) e 0 mundo, ou o passado. Mas isso seria errado. Pois, entao, modelariamos esse discurso sobre o discurso ao nivel da representacgao sobre como podemos utilizar uma metalinguagem para discutir uma linguagem-objeto. Este modelo sugere uma hierarquia na qual cada metalinguagem é a linguagem-objeto de uma metalinguagem mais acima na hierarquia. Dessa maneira, de fato, ao mover-se para cima na hierarquia, o contato com a realidade é perdido. Mas isso é diferente nessa situacao, ja que gtacas a seus apresentados ~ aspectos do proprio mundo - o discurso sobre 0 discurso representativo sempre mantém uma ligagdéo com a realidade, ou com o préprio passado. E esses aspectos nos remetem — para usar uma metafora espacial - a um dominio que deve ser situado "® W.V.O. Quine. Palayra e objeto. Cambridge, 1975, p. 272. entre a realidade e o uso descritivo da linguagem. Para continuar nessa metdfora espacial, ha, por um lado, o proprio mundo, que é 0 objeto- material do uso descritivo da linguagem; e por outro, ha o nivel dos aspectos do mundo, que podemos acessar gracas a representagao; em terceiro lugar hd o nivel do préprio uso da linguagem descritiva; e, em quarto lugar, o nivel da linguagem representativa (discurso sobre o discurso). Como essa metafora espacial indica, quando nos deslocamos do uso descritivo da linguagem 4 representagao, mudamos o enfoque dos objetos no mundo a seus aspectos e do nivel da verdade proposicional ao da adequacao representativa. E, embora o nivel ‘mais profundo’ da linguagem representacional (quer dizer, 0 dos aspectos) possa ser situado em um nivel ‘mais profundo’ do que o nivel mais alto da linguagem descritiva (ou seja, a propria linguagem descritiva), os dois usos da linguagem nunca realmente se cruzam entre si. Antecipando o tema da referéncia, que ser discutido a seguir, nao podemos automaticamente projetar a relagao entre uma frase verdadeira e seu referente a relacdo entre uma representacdo e seu apresentado. Basicamente, a referéncia pertence a descrigao verdadeira e nao a representacao. As representagdes sao ‘sobre’ 0 mundo no sentido de ‘temacidade, mas nao ‘so sobre’ o mundo. E certo que, em um contexto bastante especifico, a nogao de referéncia pode ser adequadamente utilizada em relagéo a representagéo, Suponha que temos uma representagéo de alguma parte do passado que consiste nas frases S 1, S$ 2.aS n. As representagdes sio entdo definidas por autorreferéncia ou recursivamente. Cada frase possui uma dupla fungao: sua fun¢gao descritiva nos da verdades sobre o passado, sua fungio representativa contribui (junto com todas as outras frases da representagdo) a uma autorreferéncia ou definigéo recursiva da representacéo em questao.'® Dessa forma, é necessariamente verdade com relagéo a essa representa¢ao, ja que uma representa¢ao nao pode conter frases que nao sejam as que ela contém. Assim, nesse nivel, as nogdes de © Para um argumento mais elaborado em favor dessa tese, ver F. R. Ankersmit. Narrative Logic. A semantic analysis of the historian’s language. Dordrecht/Boston, 1983, p. 169-179. 203 204 verdade, falsidade e referéncia podem ser aplicadas a representacao. Enunciados (necessariamente) verdadeiros e falsos podem ser feitos sobre representacdes, nado porque devem ser verdadeiros com relagéo aquilo apresentado pela representacao a que estas frases supostamente se referem, mas porque elas sao autorreferenciais ou recursivamente verdade da representacdo mencionada nelas. Mas a mensagem basica ¢, mais uma vez, que devemos sempre discernir com cuidado entre o uso descritivo e representativo dos termos na escrita historica. E cada vez mais urgente alertar para este fato, ja que, por algumas lamentaveis coincidéncias, muitas vezes utilizamos os mesmos termos aos dois casos. Por exemplo, quando utilizamos 0 nome ‘Napoledo; o nome pode, infelizmente, ser utilizado em ambos os sentidos, e, portanto devemos sempre saber claramente se o utilizamos em referéncia ao individuo humano assim chamado, ou a alguma representagao dele. Somos tentados a confundir esses dois usos, pois muitas vezes esquecemos que a representacao nao ¢ uma operacao de dois, mas de trés lugares, e, portanto, tendemos a confundir a realidade representada com os apresentados das representacdes historicas. Grande parte da discussao historica esta frustrada por essa confusao. Os historiadores costumam confundir ‘vérités de fait’ (verdades sobre Napoledo) com ‘vérités de raison’ (verdades analiticas sobre as representagdes de Napoleao), confundindo estas tiltimas com as primeiras. Provavelmente estariamos menos inclinados a tal confusao ao lidar com temas como o Renascimento ou o Tluminismo, uma vez que estamos mais conscientes da natureza destes termos do que no caso do uso representativo que pode ser feito do proprio nome de individuos histéricos, como NapoleadoMas, entdo, tendemos a cair na armadilha de outro erro e comecamos a postular no proprio passado entidades correspondentes a esses termos, da mesma forma que corresponde um Napoledo histérico ao nome préprio Napoleao. EXISTENCIA Sem divida, a maioria dos filésofos da histéria (e talvez até mesmo os historiadores) se recusar-se-do a conceder a ideia de que nao existiu um Renascimento ou um Iluminismo da maneira que entendemos que Napoleao existiu. Certamente, eles irao se opor, deve haver existido algo como o Renascimento, uma entidade a qual este termo se refere, pois se tal entidade nao existe, nao ha nada que diferencie tal nogao, de pura especulagio. Meu argumento pode até provocar respostas indignadas, daqueles que consideram que ele abre caminho para um ceticismo sobre a existéncia do Holocausto. Para comegar, as representagdes histéricas so definidas (autorreferencialmente) pelas frases que contém, nas quais referéncias ao passado sao feitas. E claro que os lacos referenciais entre essas frases e o passado também impéem limites estritos sobre o significado de termos como Renascimento ou Iluminismo, e 0 passado histérico sobre 0 qual eles sao aplicados. Vocé nao pode obter, a partir de uma representagao histérica, nada que nao seja sustentado pelas frases nela contidas. De forma que a nogao de Renascimento nunca poderia estar significativamente relacionada a outras partes da historia, épocas diferentes das que costumamos associar a esse termo, Em segundo lugar, ha termos histéricos que usamos para referir-nos a individualidades histéricas com um certo grau de complexidade, como ‘o PIB da Franca em 1950; e, apesar de nao ser nada facil esgotar 0 discurso sobre estes termos, eles possuem um status ontolégico que nao difere daquele outorgado a individuos como César ou Napoledo. No outro extremo do espectro, vocé tem termos como Renascimento ou Iluminismo que nao possuem esse status e cuja tarefa principal é organizar nosso conhecimento do passado (como ¢ percebido em frases que expressam verdades descritivas) em um todo coerente e consistente. Cada um desses termos ~ e eu estou pensando particularmente em utilizagGes rivais de um mesmo termo ~ 0 faz de maneira diferente, e é por isso que podemos 205 206 chami-los, como dizia Gallie, ‘conceitos essencialmente contestados.'” O uso dos termos nao (necessariamente) envolve alega¢Ges existenciais. No entanto, duvidar da existéncia do Holocausto implica duvidar que seis milhdes de judeus foram brutalmente assassinados por nazistas - uma dtvida que pode ser imediatamente refutada pela abundancia de evidéncias histéricas disponiveis. Isso coloca 0 termo “Holocausto’ (muito) mais préximo ao ‘PIB da Franga em 1950’ que ao ‘Renascimento. Utilizar um espectro que tenha nogées como ‘o PIB da Franga em 1950’ ou ‘o Holocausto, de um lado, e nogdes como ‘o Renascimento, do outro, possui a estranha consequéncia de obrigar-nos a ver a existéncia como uma questao de grau. ‘O PIB da Franca em 1950’ existe, ou existiu, e pode-se dizer o mesmo sobre o Holocausto, enquanto que ‘o Renascimento’ é um termo puramente representativo que nao possui um homélogo no préprio passado. Nenhuma alega¢ao existencial é feita quando utilizamos esse termo - repito, sem que isso implique que o termo nao tenha sentido, que seja arbitrério ou mera especulagao. Ao contrario: esses termos sao indispensdveis para qualquer discussao histérica racional, e a discussao racional sobre eles é possivel - como comprova © progresso que se deu no debate histérico sobre o Renascimento desde Michelet e Burckhardt. E entaéo temos nogées como ‘Franga, ‘a Guerra dos Trinta Anos’ e ‘Revolugao Francesa, cada uma delas tem seu proprio lugar no espectro, em algum lugar entre os extremos ‘Napoleao’ ou ‘o PIB da Franga em 1950; por um lado, e ‘o Iluminismo, por outro. Dessa forma, podemos falar de ‘graus de existéncia’ no mundo da historia. Ao final de seu livro Metaphysics, Walsh sugestivamente compara metafisica e escrita histérica: A ligdo a ser aprendida a partir desses casos é a de que é injusto comparar a metafisica com as ciéncias naturais ou a matematica em relacao a suas reivindicagées para com a verdade. Repetindo o ponto principal: uma decisio clara sobre a possibilidade de aceitar ou rejeitar uma proposicao cientifica s6 € possivel porque a ciéncia é uma atividade que funciona por meio de regras pré-acordadas, W.B. Gallic. Historical understanding? regras que, entre outras coisas, especificam o que conta como evidéncia a favor ou em contra, Na metafisica, por outro lado, nao estamos exatamente seguindo muitas regras, mas sim promovendo- las. [..] E que esta circunstancia nao destréi de imediato a respeitabilidade intelectual da metafisica, é demonstrado pelo fato de que encontramos algo andlogo na histéria, que é, desde todas as Pperspectivas, um importante ramo da atividade humana [...].”" Apoiando a alegag’o de Walsh, gostaria de insistir no fato de que 0 metafisico e o historiador lidam com aspectos do mundo. O metafisico faz isso ao declarar, apés ampla meditac4o, que um aspecto do mundo = como Agua, matéria, mente, Deus sive Natura, e assim por diante - é mais basico que todos os outros, e que esses outros podem, de alguma maneira, ser explicados em termos do primeiro. O historiador faz algo semelhante ao declarar - apds andlise de todas as evidéncias historicas relevantes — que um aspecto do passado é fundamental para uma compreensao correta deste. Coloca-lo dessa forma sugere que os metafisicos se impuseram, desde o inicio, uma tarefa grandiosa. Perguntar-se, como metafisico, a qual aspecto de todo o mundo deveria ser concedido a honra de ser a base de todo 0 restante, é tentar ultrapassar os limites da razao humana, e nunca conseguiremos obter mais que respostas interessantes, porém ‘subjetivas’ (para usar a terminologia do historiador). E também por isso que os historiadores condenam as filosofias especulativas da historia, como as de Condorcet, Kant, Hegel e Marx. Nenhuma evidéncia é decisiva, porém, se restringimos a busca de aspectos a partes do passado (como Renascimento, Napoleao ou Guerra Fria), a investigacao torna-se uma opgao viavel e esta sujeita a discussao racional, como sabemos que ocorre na pratica da historia, j4 que nesse caso a evidéncia pode ajudar-nos a decidir entre propostas rivais. Mais uma caracteristica da escrita historica é relevante nesse contexto. O entendimento contemporaneo de Renascimento é mais refinado e sofisticado que o de Michelet ou Burckhardt. Imagine uma discussao entre um deles e um académico moderno do Renascimento °W, Walsh, Metafisica. Londres, 1963, p. 176, 177. 207 208 e nao é dificil prever quem teria os argumentos mais fortes e mais convincentes. No entanto, o Renascimento ainda é um conceito contestado, como sempre foi ¢ sempre sera, um acordo sobre o termo ainda nao foi alcangado, e a discussao continuara num futuro proximo. No entanto, nao podemos objetar ao principio de um possivel consenso universal sobre 0 Renascimento. Apesar de parecer improvavel, um consenso assim poderia vir a dar-se. Nesse caso, a verdade (proposicional) histérica sobre o Renascimento teria sido descoberta. Entao, teriamos um novo objeto individual no mundo, ou seja, um objeto ao que poderiamos nos referir (no bom sentido da palavra) com 0 nome proprio ‘Renascimento. Enunciados poderiam entao ser formulados expressando verdades descritivas (ou falsidades) sobre essa “coisa nova’, que agora existe no passado, junto com Napoledo, César ou o Templo de Jerusalém Uma tiltima coisa, Nossa consciéncia do mundo tem suas origens na representagao: a representagaéo é absolutamente fundamental, até mesmo animais primitivos podem representar 0 mundo. A linguagem nao é necessaria para a representagao - a linguagem pertence a uma fase posterior da nossa conceptualizagéo do mundo. Quem disser que (no meu raciocinio) a linguagem é apresentada como algo mais basico éricas séo formadas que a representagao, j4 que as representacées hi: por enunciados, nao esta entendendo. A humanidade conhecia casas antes de aprendermos a construi-las com tijolos. Entéo, podemos utilizar material descoberto no tempo t para construir coisas existentes desde antes de t. E isso é 0 que fazemos aqui. O indiscutivel fato de que usamos a linguagem para a construcao de representagées historicas nao refuta minha tese de que a representacio precede a linguagem légica e temporalmente. Ao contrario, a explicacao de representacao dada aqui pode explicar como a linguagem pode surgir de uma fase anterior a ela. Talvez certos padres de representacao tendam a repetir- se uma e outra vez, e tomamos consciéncia desses padroes recorrentes e, em seguida, talvez a representacao finalmente perca seus contornos e se dissolva nestes. Entao, teremos uma nova palavra para uma coisa nova - e uma infinidade de enunciados verdadeiros (e falsos) poderao ser feitos sobre essa coisa nova ao que todos se referirao com a palavra nova. Aspectos (ou seja, os apresentados das representa¢Ges), tornam-se, entao, caracteristicas dessas coisas. E assim que as coisas no mundo e suas caracteristicas se concretizam, e também é assim na metafisica que todos nés podemos seguramente nos apoiar ao usar as mesmas palavras para coisas e suas caracteristicas. REFERENCIA A referéncia parece ser uma das fungées indispensaveis mais proeminentes da linguagem. Imagine uma linguagem sem ela: tal linguagem seria inutil para a maioria da comunicagéo humana. Isso deixaria-nos com a desagradavel escolha entre 0 siléncio e uma confusao babilénica. Entao, deveriamos alegrar-nos pela capacidade da linguagem de fazer referéncia ao mundo, e saudd-la como uma das principais garantias do sucesso na comunicagao humana! E, de fato, nado é verdadeiramente milagroso, se vocé chegou a considera-lo, que a referéncia permita-nos escolher exclusivamente uma unica coisa individual de tudo aquilo que o universo contém, desde o Big Bang até agora? Vocé menciona o nome ‘César’ ou ‘Abadia de Westminster’ e a maioria das pessoas sabera imediatamente a qual individualidade singular vocé esta se referindo, de todas as possibilidades do mundo. De fato, dos dias de Frege e Russell aos de Strawson e Searle, a referéncia tem sido um tema de discussdo no debate filoséfico, avidamente pesquisado e ansiosamente debatido. No entanto, desde meados dos anos 1970, a referéncia passou a ser vista com menos confianga e interesse. Ela foi perdendo parte da sua aura anterior. A nogao tornou-se cada vez mais problematica, e foi considerada incapaz 209 210 de sustentar-se - e, portanto, inutil se utilizada para sustentar algo fora de si. A referéncia comecou a parecer uma nacao em declinio. Verdade e significado fizeram com que gradualmente desaparecesse da cena filoséfica. Um bom exemplo é 0 ensaio de Keith Donnellan Keith 1972, sobre os nomes proprios e as descrigées de identificagao.'* O argumento é, grosso modo, o seguinte: a Referéncia é prototipicamente realizada pelos nomes proprios. Dois requisitos devem ser satisfeitos pela referéncia: ° primeiro demanda que 0 usuario do nome préprio seja capaz de fornecer certo numero de identificagdes ou de descricdes de quem ou daquilo a que o nome préprio se refere (esta exigéncia era central na maioria das discussées sobre referéncia), e 0 segundo é que o referente do nome proprio deve encaixar-se de maneira tnica em certo numero deste grupo de descrigées identificadoras. (Esse conceito de referéncia era quase universal, enquanto a discordancia sobre como definir o ‘certo numero descrigGes identificadoras’ nao era menos universal), Donnellan, entao, menciona diversos contraexemplos: casos em que os dois requisitos eram satisfeitos, porém a referéncia falhava. Esses contraexemplos tem em comum que ha um conjunto de descrigSes corretas de identificagao, e que estas descrigdes realmente escolhem exclusivamente uma tinica coisa, porém a coisa errada, Donnellan conclui que a explicacao quase universalmente aceita de referéncia deve estar equivocada. Ele entao tenta corrigir as deficiéncias da explicagao tradicional, e da o primeiro passo em dire¢ao ao que viria a ser conhecido, a partir de Kripke, como a teoria causal da referéncia.'” "= K. S, Donnellan. “Proper names and identifying descriptions”, In: D. Davidson e G. Harman (Eds.). Semantics of natural language. Dordrecht, 1972, p. 356-380. ™ Minha objegio ao comenticio de Donnellan é que ele ilegalmente contrabandeia a questio da verdade para o campo da referéncia. Do ponto de vista da filosofia da linguagem, o interessante sobre a referéncia é que ela distingue de forma exclusiva. Isso é 0 que ela faz, € que o faga, nao decorre automaticamente a partir do significado da palavra ‘teferéncia’ em si, Entio essa € a afirmagio realmente interessante sobre a referéncia. Desconhego qualquer discussio de referencia que haja conseguido questionar esta caracteristica. Serei 0 primeiro a conceder ‘que as vezes a coisa errada possa ser escolhida, como Donnellan tao convincente argumenta. No entanto, essa questo € totalmente irrelevante. Pense nos mapas. A maravilha dos mapas & que eles podem ajudar-nos a encontrar o caminho de um lugar para outro, e 0 fato de que ‘0s mapas sejam, as vezes, incorretos, ou que possamos Ié-los equivocamente (como minha 2i1 Mas havia mais acalorados debates 4 espera da referéncia, principalmente pelo crescente impacto da filosofia da ciéncia na filosofia da linguagem. Refiro-me especialmente ao que ficou conhecido como tese Quine-Duhem, formulada por Quine da seguinte maneira: Meu contra-argumento, que procede essencialmente da doutrina carnapiana do mundo fisico no Aufbau, € que nossos enunciados sobre 0 mundo externo submetem-se como corpo total ao tribunal da experiéncia sensivel, e ndo individualmente.'* m caso de conflito entre um fato real e teoria, nao Resumidamente apenas a teoria esta em jogo, mas toda a rede de outras teorias cientificas que podem ser relacionadas de forma significativa 4 teoria em questao. Quine observa na doutrina trés indeterminacées: 1) a subdeterminacdo da teoria pela evidéncia; 2) a indeterminacaéo da traducdo; e 3) o ‘hermetismo’ da referéncia. Com relagao a este ultimo ponto, a ideia € que ‘a linguagem encaixa-se frouxamente ao mundo, como Quine o coloca, que é uma ilusao pensar que a referéncia poderia resolver esta situago e restaurar a fixidez na relagao entre palavra e objeto.!> esposa tem o habito de fazer), nao deve levar-nos a concluir que deve haver algo fundamental ¢ irrevogavelmente errado com a prépria ideia de mapeamento. Ninguém em seu bom-senso exigird de uma explicacao satisfatéria do que os mapas fazem que também nos dé uma garantia de que eles nunca estardo incorretos. Da mesma forma, nao é uma parte necesséria do sentido de referéncia que as frases que fazem referéncia a algo devam ser sempre verdadeiras aquilo que se referem. Meu palpite pessoal é que, quando relaciona referencia a verdade, Donnellan tacita ¢, talvez inconscientemente, aceita a matriz disciplinar da epistemologia. Pois, de fato, dentro dessa matriz, faz sentido exigit que a referéncia que deve garantir a verdade (epistemoldgica). Assim, Donnellan confunde referéncia e verdade, e, na confusio, o reconhecimento da capacidade da referéncia de selecionar as coisas de maneira tinica, perde-se, O ensaio de Donnellan também exemplifica um habito questionavel na filosofia da linguagem contemporanea, o de dar muita atengao aos chamados casos quebra-cabecas. Suponhamos que vocé tenha uma teoria filoséfica Te, em seguida, apresente uma série de casos quebra-cabegas que sejam dificeis ou mesmo impossiveis a T explicar. E comum conchuir que T deve estar errada, mas essa conclusao é precipitada. Pense no ‘caso quebra-cabecas’ de um astronauta soltando um objeto de seu ‘6nibus espacial, supostamente refutando a teoria de que os objetos caem ao chio ao solta-los, £ claro, seria insano concluir que essa teoria foi refutada, ou mesmo que tenha sido seriamente questionada. £ precisamente a estranheza dos casos quebra-cabecas que muitas vezes colocam nos em situagdes como esta, ¢ é ai que introduzimos novos elementos ou contextos que no refutam a teoria, mas apenas indicam onde ela aplica-se, ou nao. *W.V.O. Quine. From a logical point of view. Cambridge, 1961, p. 41. 5 Para uma exposigio brilhante das discussdes relevantes & filosofia da ciéncia, ver J. Zammito. A nice derangement of epistemes. Post-positivism in the study of science from Quine to Latour. Chicago, 2004, p. 15-52. 212 O cientificismo de Quine é indispensdvel para a tese da ‘insondabilidade da referéncia (como € também para as outras duas). Certamente na ciéncia ha uma interdependéncia das teorias cientificas, de modo que mudangas em um lugar terao, inevitavelmente, uma ressondncia em muitos outros lugares. O resultado é que as teorias tendem a agregar-se em um todo (holistico). E entao, em caso de conflito entre teoria e fato, o culpado pode estar em qualquer lugar de todo esse emaranhado de redes de teorias holisticas. Por isso, Quine refere-se a essa indeterminacao entre a teoria (linguagem) e realidade (mundo) como ‘hermetismo da referéncia. Mas esse holismo é menos plausivel para as linguagens naturais, fora do ambito da ciéncia ha pouco espaco para ele. Na vida diaria, fatos e opinides (doxai) estao frequentemente imunes de ser verdadeiros ou falsos sobre outros (mesmo que ‘préximos’) fatos. Mudar de ideia sobre uma coisa normalmente acarreta poucas consequéncias ao resto de nossas opinides. E preciso ser paranoico ou um adepto da doutrina leibniziana do harmonie préétablie para discordar disso. Este tipo de paranoia é certamente recomendavel na ciéncia, mas incompativel coma maneira em quea vida humana ea historia sao. E ilustrativo da tendéncia cientificista que inspira a filosofia da linguagem contemporanea que, apesar de que Donald Davidson no compartilha 9 cientificismo de Quine, persista na relativizacao holistica de Quine da referéncia, sem sentir-se compelido a discutir, porque adere ao holismo apés abandonar © cientificismo. Mas tal argumento é indispensavel, pois as linguagens naturais ndo possuem a coeréncia da teia apertada tecida pelas teorias cientificas. A linguagem histérica é mais proxima a linguagem natural do que 4 dos cientistas (embora certamente nao deva ser identificada com a primeira!). Novos dados sobre a Revolug’o Francesa nao terao consequéncias perceptiveis ao que os historiadores dizem e pensam sobre a Idade Média, e vice-versa. Um apelo as filosofias especulativas da historia desenvolvidas por Hegel e Marx seria necessario para alcangar uma interdependéncia mutua de todas as explicagdes do passado, reminiscente do que Quine tinha em mente com seu holismo. Os relatos histéricos tém uma tendéncia a permanecer como ‘ilhas’ autarquicas individuais, por assim dizer - que, alias, é a contrapartida cognitivista na antiga reivindicagao ontoldgica historicista da singularidade de todo 0 passado.!"* Apesar disso, mais adiante chegarei a conclusdes quanto a referéncia muito semelhantes as de Donnellan, Quine e Davidson. Devo argumentar que, na escrita historica, a referéncia é mais problematica, também, do que aquilo que estamos inclinados a pensar: termos histéricos que parecem fazer referéncia a algo podem nao fazé-lo se analisarmos cuidadosamente suas fungdes semanticas. No entanto, gostaria de insistir em que qualquer semelhanga entre 0 modo como a referéncia é problematizada na filosofia da linguagem contemporanea e seu papel na escrita da historia é pura coincidéncia, pois ha pouca ou nenhuma base comum a questao em jogo em ambos os casos. A problematizacao da nogao de referéncia na filosofia da linguagem contemporanea foi ocasionada por dificuldades encontradas apés a década de 1960 (j4 mencionei algumas delas alguns pardgrafos atras). Portanto, pode ser visto como um refinamento da concep¢ao de referéncia desenvolvida, aproximadamente, no periodo de Frege a Strawson. Mas essa preocupacao é diferente da investigacao da referéncia na historiografia, que aqui esta em questao. Na verdade, esta obriga-nos a viajar no sentido oposto. Essa problematizacao obriga-nos a voltar para a primeira fase da reflexao sobre a referéncia, a fim de estabelecer onde os problemas de como definir referéncia para a representagdo histérica foram contornados. Assim, a fim de tratar adequadamente o tema da representagao e da referéncia, devemos estar dispostos a suspender temporariamente o que foi dito sobre a referéncia na filosofia da linguagem anglo-saxa. Um novo comeco é necessario. Entao, nao me De fato, como afirmei em Narrative Logic, o historicismo de Ranke ¢ de Humboldt (no confundir com o que Popper entende por ‘historicismo’) torna-se uma teoria da historia perfeita se a transformarmos de uma teoria sobre as coisas historicas em uma teoria da linguagem do historiador. 213 214 preocuparei com as queixas de que minha explicagao de representacao e referéncia entra em conflito com o que é aceito na filosofia da linguagem contemporanea. Na verdade, tal conflito nao poderia existir, ja que estou discutindo um assunto que é essencialmente diferente do que ali esta em jogo. A ILUSAO REFERENCIAL Considerar a representagao como uma operagao de trés lugares (como vimos acima) permite-nos reconhecer 0 que chamo ‘ilusio referencia’: isto é, a crenga de que referéncias sao feitas em relagéo 4 realidade quando a linguagem é utilizada representativamente. Lembre-se da distingéo entre descrigao e representacao. Resulta que nenhuma referéncia a coisas individuais no mundo é feita no campo da representagdo, ja que simplesmente nao ha sujeitos-termos na representacao, a referéncia esta fora do jogo. A ‘ilusao referencial, ao convidar-nos a modelar a representacao na descricéo verdadeira, faz- nos acreditar no contrario. Pode-se alegar que isso esté em contradicao com meu argumento no capitulo anterior, que afirmava que cada representa¢ao corresponde sempre a um, e apenas um, apresentado (ou seja, aspecto). Nesse caso, nao deveriamos vé-lo como aquilo ao qual a representagao se refere? Afinal, a representagao ‘escolhe exclusivamente’ este apresentado especifico, ou aspecto, da mesma maneira que a referéncia bem-sucedida (se tudo der certo) escolhe exclusivamente um individuo ou objeto unico, de todos os objetos do mundo? Minha resposta a essa objecdo se desenvolverd em duas etapas. Em primeiro lugar, apesar de que uma representa¢ao, de fato, escolhe exclusivamente um unico representado, ela ndo escolhe uma unica pessoa/objeto no mundo (como deveria ser, se a este se refere). £ verdade que o apresentado pode dar-nos aspectos do mundo, mas nao ha coisas individuais que (necessariamente) correspondam a ele, assim como nao hd coisas individuais que correspondam a nogdes como ‘o contribuinte tipico’ ou ‘o centro de gravidade dessa tabua. Qual objeto inico corresponderia a estas nogées? Por exemplo, o centro de gravidade de uma tabua é totalmente irrepreensivel do ponto de vista conceptual, ja que pode ser determinado milimetricamente se temos todos os dados fisicos necessarios sobre essa tabua - porém ndo se refere a uma coisa individual que poderia funcionar como objeto de referéncia. A nocao nao faz referéncia a uma das moléculas, 4tomos ou mesmo a um proton ou néutron especifico da tébua. Ha aspectos do mundo - que podem, de fato, ser identificados com grande precisio matematica - aos quais nao existem objetos identificdveis correspondentes no mundo.'” Crer que existam seria pura metafisica aristotélica, e significaria acreditar que 0 mundo é de tal forma que as coisas no mundo correspondem a tudo o que pode ser dito de forma significativa sobre o mundo. Certamente, podemos muito bem associar 0 que se expressa por meio de nogdes como ‘o centro de gravidade dessa tabua’ a certas coisas individuais, como uma marca na tabua de madeira, que casualmente se encontra no ponto da tabua onde podemos situar (com absoluta preciso) 0 centro de gravidade da tabua. Da mesma maneira, a frase ‘o contribuinte tipico’ pode fazer-nos pensar na pessoa P, que paga exatamente o valor médio de impostos. Mas tais associagGes sao inteiramente nossas, e nado dadas ou legitimadas pelos significados das proprias nogdes. Ou, pensemos entao no que é apresentado por um mapa, ou seja, qual seria a coisa exclusiva individuada pelo apresentado em um mapa? Acaso houve algum astronauta que consultasse varios mapas do nosso planeta, cada um desenhado por um método de projegao cartografica diferente, e que, apds examinar um deles, olhasse o glorioso espetaculo Falhar em reconhecé-lo, a meu ver, é 0 vitium originis de muitas cegueiras, deficigncias e insuficiéncias da filosofia contemporinea da historia. Mas aqui deparamo-nos com um preconceito tio grande e inabalavel como o Monte Everest, sei por experiéncia prépria, Pior ainda, é um preconceito que nem sequer é reconhecido como uma premissa discutivel, que deva ser cuidadosamente analisado pelo fildsofo. Foi esse preconceito que — infelizmente - naufragou minha carreira como um fildsofo da hist6ri 215 216 do nosso globo pela janela de sua nave espacial e em seguida suspirasse: ‘Agora finalmente vejo 0 que é individuado por este mapa, a que se refere (como é diferente dos outros)’? Isso seria uma enorme tolice. Mesmo que possamos dizer com precisao que nogGes como o mapa expressam, nao existem coisas individuais correspondentes a elas, da maneira que coisas individuais correspondem a nomes proprios e descricées identificadoras inequivocas. Para coloca-lo de forma diferente, o apresentado pela representagao comparte a capacidade de isolar um determinado aspecto do mundo ou s como ‘o centro um de seus objetos com precisao absoluta com nog de gravidade dessa tabua’ ou ‘o contribuinte tipico’ ou seja, sem se referir a alguma pessoa ou coisa unica no mundo — e aqui é onde ambos diferem de nomes préprios ou descrigées exclusivas de identificacao. Isso tem suas implicagées na maneira que as verdades sobre diferentes tipos apresentados e nogdes podem ser contrastadas: aquelas como ‘o centro de gravidade dessa tabua, por um lado, e as verdades proposicionais que citam nomes proprios ou que identificam inequivocamente certas descrigées, por outro. Neste ultimo caso, o nome préprio ou a descri¢ao de identificagio exclusiva remetem-nos a um unico individuo - e, se chegamos a este objeto individual, teremos acesso a um nimero indefinido de outras verdades empiricas sobre este individuo tinico. Por exemplo, a descricao de identificagéo unica ‘o homem que foi rei de Franga entre 1643 e 1715’ nos da acesso a muitas outras verdades empiricas sintéticas sobre este homem (ou seja, Luis XIV), como, por exemplo, ‘o monarca europeu que informou a Leibniz que as cruzadas estavam fora de moda’ ou ‘o homem que disse ‘Létat, cest moi, ao entrar no Parlament de Paris em 1655 com um chicote nas maos. E a descricéo de identificagao Unica ‘o primeiro homem a pisar na Lua’ nos da acesso a verdades como a de que o nome deste homem é Neil Armstrong, e que ele pisou na Lua em 21 de julho de 1969. No entanto, no caso de apresentados e nogGes como ‘o centro de gravidade dessa tabua, nao temos onde ancorar outras verdades sintéticas, aquelas as quais temos acesso ao té-la revelado. Isso ocorre porque representaces e nogdes de ‘o centro de gravidade dessa tabua’ nao nos levam nem um milimetro além do que ja conhecemos com tais representacdes ou nogdes. Entao, se € que existe tal coisa como uma referéncia de representacao, ela deve ser categoricamente diferenciada de referéncia como foi exemplificado, da maneira como o enunciado verdadeiro consegue referir-se ao mundo, pois, ao contrario da referéncia, a representa¢ao nao escolhe uma unica coisa individual. Agora seria possivel objetar que as representagdes escolham aspectos tnicos da mesma forma que os sujeitos-termos de enunciados verdadeiros escolhem coisas individuais unicas. Isso é verdade, claro. No entanto, essa objecao nos fara reconhecer mais uma assimetria entre referéncia e representa¢ao. Pense em uma representacao historica R, que consiste nos enunciados descritivos e¢,, e, a e,. Como vimos acima, R é entao definida por e, a e,. Frente a qualquer mudanga, mesmo que pequena, introduzida na série de enunciados e, a em. teremos, estritamente falando, uma representacdo bem diferente. As representagées sao definidas pelos enunciados que as contém. E ja que cada representa¢ao corresponde a apenas um apresentado, esses apresentados sao determinados pelos enunciados contidos em uma representa¢ao histérica. Assim, a relacdo entre uma representacao e seu apresentado paira sobre todas as afirmagées contidas na representacao. Isso € bem diferente do que ocorre na referéncia. Ali, uma unica descricao identificadora é suficiente para fixar a referéncia. A frase ‘o compositor de Le Nozze de Figaro’ é tao bem-sucedida em fazer isso como a frase ‘o compositor de Cosi fan Tutte’ - e nado terfamos necessidade de listar 0 namero infinito de alternativas possiveis para alcangar a referéncia com sucesso no caso de W. A. Mozart, compositor austriaco que viveu de 1756 a 1791. Mas isso é diferente na relacdo representacaa e representado no caso da representacao histérica. Ali vocé realmente precisa de todos os enunciados descritivos da representagao ~ pois se deixar de apresenta-los todos, vocé tera uma representagao 217 218 diferente, e, portanto, um apresentado também diferente. Em resumo, a unica relagao entre um nome préprio légico e aquilo ao qual ele se refere tem sua contrapartida na relacao entre uma representa¢ao e seu apresentado. Mas, se por um lado 0 vinculo entre um nome proprio légico e aquilo a que ele se refere pode ser a mais fina de muitas linhas (e ainda assim ser inquebravel), no caso da representagao ela deve ser tao ‘grossa’ quanto representacao e seu apresentado. Ali vocé realmente precisa de tudo o que faz dessa representagdo a representacao unica que é, € que a une a seu apresentado. E, mesmo assim, a uniao entre a representagao e seu apresentado é considerada indeterminada pela presenga de outras representac6es, como afirmei em outro lugar.'* De fato, tudo isso pode lembrar-nos da insondabilidade da referéncia de Quine. Mas, novamente, existe uma diferenca. As indeterminagoes de Quine tém sua origem na verdade, e as da representacao, no significado. Para Quine, devemos confiar na verdade quando se tenta estabelecer a forga de qualquer vinculo entre a linguagem e 0 mundo. Na histéria, essa unidade de medida é a representagao. O balango dos resultados desta se¢do nos impele a evitar 0 termo “referéncia” para caracterizar a relagao entre uma representagao ¢ seu apresentado. No entanto, pode-se continuar utilizando a palavra ‘teferéncia, mas as duas assimetrias descobertas nesta segéo entre a maneira em que referéncia e representacao se relacionam com o mundo sao tao dramaticas que fazé-lo seria mais um convite 4 confusao do que ao esclarecimento. "Veja Narrative Logic, p. 239-241 REFERENCIA E VERDADE Minha estratégia nesta secao foi a de desconectar verdade e 79 referéncia. Na representagdo nao podemos chegar da verdade 4 referéncia e vice-versa. Ambas nog6es parecem ter perdido sua forga nas realidades filos6ficas ao serem utilizadas com relagao a representacao. Os adeptos da ortodoxia filosdfica atual podem agora querer dizer que a minha estratégia deve estar errada, e defender que 1) verdade e referéncia sao indissoliveis; e 2) que a referencialidade da representacao pode ser salva por um recurso a verdade ‘representativa. Podem objetar que - em contraste com meu argumento na seco 2 - certamente existe algo chamado ‘verdade’ e ‘falsidade’ representativas, e que, portanto, nada impede a defesa da referencialidade da representacdo. Nao costumam os historiadores dizer que as representac6es historicas sao ‘verdadeiras’ ou ‘falsas’? E, de fato, ao fazé-lo, nao rompem coma forma comolidamosaqui com a representa¢4o? Pense, por exemplo, em um retrato que representa um modelo com muito cabelo, quando na verdade cle é calvo. Nao seria justificavel dizer que essa representacao é ‘falsa’ ou ‘nao verdadeira’? E, se assim for, isto nao significa que podemos legitimamente usar a nocao de referéncia no que diz respeito a representagdo? A representacao ‘se refere’ ao modelo, e 0 que ‘expressa’ esta ‘errado’ (seja 1a o que a palavra ‘expressar’ possa exatamente significar nesse contexto) sobre 0 cabelo do modelo. Isso nao implicaria que a minha alegagao da diferenga logica entre descrigao e representacao esta fundamentalmente errada? E, finalmente, isso nao quer dizer que 0 que disseram os filésofos sobre a verdade e a referéncia dos enunciados, portanto, seria também aplicdvel a representagao? De modo que a légica da representagao (histérica) seria idéntica 4 do enunciado verdadeiro? "Como desconectei em outro lugar verdade e experiéncia. Ver meu texto Sublime Historical Experience. Stanford, 2005, cap. 5. 219 220 Isto pode parecer bastante convincente, mas algumas complicagées se apresentam, pois o fato de que podemos inferir que enunciados sao verdadeiros (ou falsos) com base em um retrato (e nao duvido que isso seja possivel) nao significa que os préprios enunciados devam estar presentes, em algum lugar e de algum modo, na pintura, e que, por isso, a representacao pode ser reduzida a légica da verdade.'® Este tipo de enunciado, verdadeiros ou falsos, podem, de alguma forma, ser ‘lidos’ a partir da representa¢ao - como é possivel ‘ler’ a temperatura do corpo de alguém em um termémetro ~ mas a representagdo, como tal, nio formula essas verdades (ou falsidades, conforme o caso) da maneira como o termémetro realmente diz: ‘a temperatura corporal desta pessoa é de 37 graus centigrados. E necessdrio alguém (ou um instrumento concebido para isso) que seja capaz de traduzir a enunciados verdadeiros o que informa o termémetro. Evidéncia nao é verdade: a evidéncia pertence ao mundo, e a verdade a linguagem. Isso poderia ser diferente nas representagdes textuais, como os textos histdricos, ja que estes tipicamente consistem em enunciados verdadeiros sobre o passado ~ e, dessa maneira, verdades sao fornecidas pela representagao. Apesar de ser possivel objetar que colher informagées factuais de uma representacao histérica pressupée 0 conhecimento do que sao representacoes, e que esta possa ser considerada uma operagio legitima. E entao a representagao histérica estaria no mesmo ambito que a representacao pictérica. Apesar de que seja possivel dizer que o levantamento de enunciados verdadeiros a partir de uma representagéo histrica nao esta isento de riscos, j4 que suas reivindicagées de verdade também dependerao, em parte, da representagio como um todo. '® E claro que podemos dizer 0 mesmo da propria realidade: também podemos inferir afirmagies verdadeiras sobre a realidade, baseados na forma em que €a realidade, Mas isso nao deve induzir- nos a projetar a estrutura logica do enunciado sobre a propria realidade, Aliés, esta equivaléncia ontolégica da representagao e do mundo est de acordo com a chamada teoria da substituigao da representagao, defendida por Edmund Burke, William James, Hans Georg Gadamer, Ernest Gombrich e Arthur Danto. Segundo esta teoria, uma representacao é um ‘substituto, tomando 0 lugar do que representa e possuindo, portanto, o mesmo status ontolégico. Nesse contexto, a pintura-retrato é instrutiva por mais uma razio, Observe que essa ‘leitura’ de certas afirmagées verdadeiras (diferentemente do caso do termémetro) funciona exatamente da mesma maneira quando tratamos da realidade em si (0 modelo) ou de sua representacao (o retrato): vemos 0 modelo e entao dizemos ‘ele é calvo, ou vemos a pintura e também poderiamos dizer ‘ele é calvo. E da mesma forma como ninguém concluiria que 0 enunciado verdadeiro ‘ele é calvo’ forma parte da prépria pessoa real, calva, nao faz sentido dizer que esse enunciado deve ser parte do retrato da pessoa calva. A realidade (por exemplo, 0 modelo do retrato), e sua representagao, nao contem uma pequena placa com enunciados verdadeiros sobre ele, como “P é calvo” (dai a equivaléncia ontoldégica das representacdes e aquilo que representam). Portanto, seria um grande erro inferir - com base no fato incontestavelmente correto de que podemos fazer afirmagGes verdadeiras sobre alguém a partir de um retrato ~ que as caracteristicas légicas do enunciado verdadeiro também sao as do retrato ou representa¢ao. E isso significa o fim da tentativa de inferir a referencialidade das representag6es a partir da verdade. Ao plantear 0 argumento anterior, percebemos queas representagdes tém uma tendéncia a se comportar como coisas no mundo: ambas funcionam como provas para afirmagées verdadeiras, sem nunca ter sido elas mesmas afirmacoes.'*' E como se na representacao (textual), a linguagem tentasse voltar novamente a realidade. Isso pode nos ajudar a apreciar as atragdes da chamada ‘teoria da substituicao’ da representacao."* Como o proprio nome da teoria sugere, uma representagdo € uma substituigdo daquilo que representa (e lembre- se que a representacao é uma operagio de trés lugares, de modo que nao devemos confundir o representado de uma representagao com o que é representado por uma representagao ~ assim como nao devemos Para um argumento diferente em favor desta mesma alegacdo, ver meu texto History and Tropology. Berkeley, 1994, p. 88-95. " O principal rival desta teoria é a teoria da semelhanca da representagio, segundo a qual a representagao deve parecer-se aquilo que representa 221 222 confundir 0 sentido de um enunciado com otema que esta sendotratado). Como uma substituicao daquilo que representa, a representagdo tem 0 mesmo status ontolégico deste. Ela pretende, por assim dizer, ser ‘tao boa quanto’ a prépria realidade (representada). Pense em uma pessoa que se encontra em uma longa viagem longe de casa, ¢ que olha um retrato de sua amada esposa. Sua esposa, entao, de alguma forma esta verdadeiramente presente na representagao (retrato). Meros enunciados verdadeiros sobre a esposa, infelizmente, nao conseguem alcangar esse efeito (claro, a menos que estes coagulem em uma representagao textual, como é tipicamente o caso da representagao histérica). Gadamer gastou 183, um bom tempo ¢ energia nessa questao da gradacao ontoldgica. Finalmente, pense em como experimentamos 0 retrato. Nao © experimentamos como um composto de bits de informacao sobre o cabelo, nariz, cor e forma dos olhos etc. (todos enunciados correspondentes ao cabelo, nariz e assim por diante do modelo), mas como um todo ‘representativo. Primeiro vemos 0 todo, e, a seguir, podemos baixar dali e ‘questionar, por assim dizer, o retrato, por informagées factuais sobre 0 modelo. Mas isso pertence a uma fase essencialmente posterior — se é que se pretende chegar a ela. E pode-se questionar se chegar a essa fase posterior é de qualquer significancia para a compreensao do retrato, j4 que os detalhes que analisariamos possuem pouca importancia representativa. Pense em caricaturas. Na caricatura, os aspectos da aparéncia fisica de uma pessoa sdo extremamente exagerados, de acordo com a percepcio de representacao que o caricaturista deseja transmitir. E apesar de que distorcdes demonstraveis sao entao colocadas ao nivel da ‘verdade, a caricatura, ou o retrato ‘distorcido, pode dar-nos uma melhor ‘imagem, ou o que poderfamos chamar de uma boa semelhanga, uma mais profunda introspeccao na personalidade de uma pessoa - que uma foto. Muitos politicos e outros VIP's, paradoxalmente, assemelham-se mais a suas caricaturas que a suas fotografias, 0 que sugere que o nivel “HG. Gadamer. Verdade e método. 2.ed. Nova York, 2003, p. 137 representativo nao sé possui certa autonomia em rela¢do ao enunciado verdadeiro, mas que possui até uma prioridade sobre o segundo. A representagao é um preparado mais forte que a verdade, A representa¢ado contém a verdade - pense nas afirmagées contidas por uma representagao histérica -, nao esta contra, mas além da verdade. A representagao contém a verdade, mas também pode fazer algo com ela. Por exemplo, enquanto nunca podemos passar da verdade a aco, do é ao deve ser (Hume, Kant), a representagdo pode brindar-nos com uma perspectiva sobre 0 mundo convidando-nos a certo tipo de agao. A representagao é 0 ‘elo perdido’ entre o é e o que deveria ser, leva-nos A criatividade e ao uso retérico da linguagem, nos quais a linguagem pode comover-nos e ser uma fonte de alegria ou tristeza." A representacao nos leva para onde a linguagem pode nos ajudar através dos abismos mais profundos da existéncia humana, e para onde ela é nossa companheira de confianga na jornada de nossas vidas. Ela nos daa linguagem da poesia, do édio e do amor, sem as quais simplesmente nao seriamos humanos. Tudo isso até agora permaneceu oculto aos fildsofos da linguagem contemporaneos. Entao, é aqui que a representacao pode abrir novos caminhos inesperados ao pensamento, para eles e para nds. Um FaTo Metarisico BAsico Ha um fato metafisico incontestavel sobre nosso universo. E este 60 fato de que os objetos individuaisnele contidos sao amplamente diferentes uns dos outros, o que leva ao resultado de que é surpreendentemente facil distingui-los, e o que faz com que a referéncia possa obter sucesso. Como ja foi dito na introducao deste ensaio, meros nomes préprios ou enunciados identificativos compreendidos em apenas algumas frases ja sao suficiente para fazé-lo. Se levarmos em conta a imensa variedade de objetos contidos em nosso universo, isso pode ser considerado uma das mais surpreendentes e fascinantes caracteristicas do universo "Ver segao 12, 223 224 que habitamos. Na verdade, é um milagre, e nossa incapacidade de surpreender-nos com isso nos cega a um dos fatos mais basicos do mundo em que vivemos. Aparentemente, nosso universo nao é nada como 0 tipo de universo sobre 0 qual os fildsofos da ‘grande cadeia do ser’ gostavam de especular ou o que Leibniz tinha em mente quando disse que a realizado de um ‘universo inteiro’ é o simbolo de sua perfeicao. Se comparado a como poderia ser, 0 que existe em nosso mundo pode lembrar-nos de uma molécula no vacuo do espago intergalactico: ha apenas uma molécula, e em torno dela muitos quilémetros ciibicos, cheios de nada. E esta quantidade finita de possibilidades nao realizadas, reduzindo as possibilidades realizadas aos limites do impossivel, que fazem com que referéncia e individuagao sejam tao absurdamente faceis e pouco problematicas em nosso universo, e, ao mesmo tempo, o que faz com que a légica da representagao seja tao dificil de conceber. Mas isto poderia ter sido diferente. Prove 0 seguinte experimento mental: Suponha que a viagem interestelar torna-se possivel num futuro préximo, e que, entao, decidimos fazer uma viagem para algum planeta circulando em torno de Sirio. Nesse planeta, percebemos que seus habitantes sao pessoas peculiares, que desenvolveram um complexo tipo de vida social. Nao apenas sao todos muito parecidos, mas também se comportam da mesma maneira, dizem exatamente as mesmas coisas, tendem a estar ao mesmo tempo nos mesmos lugares, possuem os mesmos conhecimentos etc. Assim é sua vida social. Isso nos apresentaria um problema incomum. O problema seria: como podemos individua-los, como poderiamos ter certeza de que nos referimos a um tinico siriano ao falar sobre ele? Mencionar seu nome, ou tentar um par de descrigées identificadoras nao seria de nenhuma ajuda ali, pois todos eles possuem 0 mesmo nome, e as descrigdes que sao verdadeiras sobre um siriano tendem a ser verdade para todos os outros também. A saida seria fazer uma lista de descrig6es cada vez mais longa, até que finalmente chegamos a uma lista que seria verdadeira apenas sobre este siriano do qual estamos falando, e ndo de qualquer outro. Quanto mais eles se parecem, mais longa deverd ser essa lista para garantir uma identificagao correta — e no final, a lista se parecera, sim, ... a uma historia especifica desse siriano! Observe, além disso, que esse universo dos sirianos passou a existir pela efetiva realizacdo de todos os sirianos possiveis, isso é 0 que dota seu universo com a propriedade de nado possuir lacunas. Nesse tipo de universo que se assemelha ao universo da escrita da historia (nao © universo da propria histéria, é claro!), j4 que ambos sao ‘universos inteiros’ (no sentido de Leibniz), sem lacunas entre os individuos que o habitam, ocorre que podemos trabalhar com as ideias da variante leibniziana da légica modal para a légica da escrita historica.!* Suas histérias individualizam cada sirianos, as historias dao acesso aos sirianos individuais. E, de fato, em tais circunstancias, podemos dizer que a referéncia (ou seja, essa longa lista descritiva desse siriano) e representacao (a histdria desse siriano que estamos, de fato, narrando com essa lista) unificam-se com 0 outro. De fato, em fais circunstancias, poderiamos dizer que os historiadores estéo corretos ao unificar coisas e seus conceitos, e referéncia e representagao, No entanto, nosso universo nao é assim: como disse no inicio desta secao, vivemos em um universo no qual as coisas sao muito diferentes umas das outras. E € por isso que podemos dizer que a distingao entre referéncia (ou verdade) e representa¢ao foi escrita em letras grandes, e de maneira indelével, nos préprios fundamentos metafisicos do nosso universo. A referéncia funciona muito bem em nosso universo, mas nao no universo representativo das historias que podemos escrever sobre ele. “5 Como tentei demonstrar em Narrative Logic, cap. 5 225 226 ConcLusAo A nogao de referéncia tem sido impiedosamente sondada e questionada na filosofia da linguagem contemporanea, e tem sido reconhecida como uma ponte menos confidvel entre linguagem e mundo do que se acreditava até cerca de trés ou quatro décadas atras. Do ponto de vista da representagao, pouco pode ser dito para melhorar © status da referéncia. ‘Tematicidade’ é tudo o que pode ser garantido, porém a tematicidade é, no maximo, uma condigao necessdria para que uma referéncia obtenha sucesso, mas nunca 0 suficiente. 3 aqui que os resultados da presente investigacao sobre a natureza da representacio enquadram-se com os da filosofia da linguagem contemporanga. Claramente, isso nao implica que deva haver algum paralelismo ou espaco comum entre dois tipos de argumentos. E a plausibilidade (ou sua auséncia) de cada argumento nao acarreta em qualquer consequéncia para os demais.

Você também pode gostar