Você está na página 1de 6
TEMAS EM DEBATE LURIA E 0 DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA NA CRIANCA Emilia Ferreiro Tradugao: Neide Rezende No ntimero 75 de Cademos de Pesquisa (nov. 1990) foi_publicado um artigo, assinado por Maria Thereza Fraga Rocco, inttulado “Acesso ao mundo da esorita: os caminhos paralelos de Luria e Ferreiro”. O Uiimo paragrato desse artigo expressava 0 seguinte desejo: “Assim sendo, aguardamos, © com ansiedade, algum escrito da autora que, a noséo ver, melhor que ninguém, poderd apreciar e analisar os itinerérios que ela @ 0 estudioso soviético acabaram por trilhar juntos fem tempos diversos” (p.92). Desde que esse numero de Cademos de Pesquisa chegou as minhas maos, ropus-me responder a sugestao da autora. Muliplas @ variadas_atividades postergaram, entretanto, esse ‘momento. Escrevo agora com a esperanga de contri- buir para uma andlise séria das semelhangas e dite- rengas histéricas, e também com a esperanca de con- tribuir para dissipar sectarismos inateis e improceden- tes. Todas as citagdes que ullizo correspondem a tra dugo brasileira dos textos de Luria de 1929 © 1930 (ygotsky, Luria, 1988) A difuséo no Ocidente do texto de Luria sobre 0 desenvolvimento da escrita na crianga — texto de 1929 — suscitou um amplo movimento de admiragéo. Por que nao tomamos conhecimento antes desse tex: 0? Como é possivel que a histéria da escrita, no Oci- dente capitalista, tenha-se detido na historia das gra- fias, ignorando que naquele maravilhoso despertar in- telectual da Russia revolucionéria pré-stalinista alguns eram capazes de ver com olhos realmente novos as rimeiras produgdes das criangas? Quando recolhe- ‘mos @ analisamos os dados apresentados no Los sis- femas de escritura en el desarrolio del nifo (lvro que, 7 lamentavelmente, mudou de nome a cada tradugo)', desconheciamos esse trabalho de Luria. Estévamos ‘nos Giltimos momentos da redagéo quando apareceu, fem tradugao inglesa, Mind in society, de Vygotsky (1978), que inclui o trabalho “The Prehistory of Written Language’. No que segue, vou restringir-me ao texto de Luria Como as praticas dos informes cientificos tém mudado com o tempo, quem hoje Ié esse texto s6 Pode surpreender-se com aquilo que, a nossos olhos, aparece como “desprolixidade": nao se sabe com exa- tidao quantas criangas foram interrogadas, quantas esses foram feitas com a mesma crianga, quantas © quais oragdes foram apresentadas, quais palavras etc. (observagées semelhantes podem ser feitas a respeito dos textos de Piaget da mesma época). Além do que, aparecem excertos de entrevistas com crian- {gas normais e com criangas “mentalmente atrasadas’, sem maiores precaugdes ao passar de umas a outras. Inclusive, o leitor é informado que quando Yura, de 6 anos, “recordou mais palavras na segunda série do que na primeira, recebeu um doce como recompense” 1. No Brasil ol publicad com o titulo de Psicogénese da lingua esorita (Porto Alogro: Artos Médicas, 1986); em inglés, s@ in- tiuiou Literacy before schooling (Exeter & London: Hoino- ‘mann, 1982); em italiano traduziuse como La Cosruzione dola ‘ingua ‘scrita ne! bambino (Fironze: Giunti Barbera, 11985). Como se pode observar, a tradugto para 0 portugues fol a ultima, seta anos depois do original om espanhol Los sistemas de escrtura on desarrollo del niffo (México: Siglo Xx, 1979) Cad. Pesg,, Sao Paulo, n.88, p.72-77, fev. 1994 {p.152), sem que esses detalhes aparegam mencio- nados em outros casos. No entanto, o importante ra- dica em outros aspectos. © sensacional é a amplitude de visdo do psicé- logo Luria. As seis primeiras ilustragdes séo — na sua aparénoia externa — apenas garatujas, ziguezagues. 'S6 0 fato de reproduzi-las ja 6 um sinal de mudanga de atitude. O dedicar mais de 20 paginas impressas @ analisar essas produgées 6, para essa época, sim- plesmente extraordindrio. Algumas afirmacdes de Lu- fia so to préximas &s que eu mesma fiz (sem t-lo lido), que resultam surpreendentes. Cito apenas algu- mas, comegando por aquela que inicia seu texto de 1928. “A histéria da escrita na crianga comega muito an- tes da primeira vez em que 0 professor coloca um |épis em sua mao @ Ihe mostra como formar letras.” "Quando uma crianga entra na escola, ela néo & uma tabula rasa que possa ser moldada pelo pro- fessor segundo a forma que ele preferi.” (p.101) “Psicologicamente, a crianga néo 6 um adulto em miniatura.” (p.102) Maria T. Fraga Rocco sugere que “os soviéticos (.) chegaram meio século antes ao ponto atingido por Ferreiro nos anos 70”. A autora formula uma per- ‘unta ingénua: “Teria sido Luria um precursor e Fer- reiro uma retardataria?”. Embora sua resposta sea: “Acreditamos que nem uma coisa nem outra’, repousa sobre uma base de comparages aparentemente db- vias e, em minha opiniéo, pouco relevantes (quanti- dade de niveis distinguidos, forma de obtengao dos ‘dados), pasando “a c6té de la question’. A compa- ragao entre os niveis (seu numero, contetido @ se- quéncia) esta longe de ser o mais relevante para comparar?. Para facilitar a confrontagao, referir-me-ei ‘a mim mesma em terceira pessoa. As diferencas entre Luria 1929 @ Ferreiro 1979 si- tuam-se no nivel das perguntas que guiam a experi mentagao. Ambos tm perguntas que lhes permitem ver ‘algo novo” nas produgées infantis. No entanto, no sao as mesmas perguntas. Para Luria, a escrita 6 uma importantissima téc- rnica sociocultural, que, uma vez aprendida, afeta as funges psiquicas superiores. Luria se questiona a respeito dos mecanismos de apropriagao dessa téc- nica, criada pela humanidade para cumprir duas fun- ges fundamentais: uma fungao mnémica e uma fun- $40 de comunicagao. Luria afirma: “Um adulto escreve algo se ele quiser lembrar-se dele ou transmitito aos outros. As atitudes de grupo desenvolvem-se bastante tarde na crianga; portanto esta segunda fungao da escrita no aparece quan- do ela ainda se encontra em seus estdgios embrio- nérios.” (p.99) © que Luria cita para afirmar que a fungao co- municativa da escrita nao pode aparecer “em seus es- tagios embriondrios"? Pois bem, cita Piaget. Sem di- Luria @ 0 desenvolvimento. Vida 0 Piaget de Linguagem @ pensamento. Vejam que curioso: inclusive em maos de um leitor to com- petente como Luria, Piaget comega a cumprir um dos apéis mais contraproducentes, o papel que o Piaget pesquisador no tentou jamais cumprir (nem no ter- reno educativo, nem no psicolégico): 0 de criar “pro bigdes*, 0 de assinalar *o que uma crianga pode fa- zer’. E claro que Piaget analisou com o maior discer- riimento as limitagSes-de certo nivel de envolvimento, mas isso somente depois de haver iniciado suas con- Quistas com relagéo ao nivel precedente. Obras como Nascimento da inteligéncia e A Construgéo do real ‘so exemplos desse duplo movimento com 0 qual se analisa cada nova aquisigao: as conquistas com rela~ 40 & etapa precedente @ as limitagdes com relagao 2(s) subseqiiente(s). © surpreendente é observar que 6 precisamente este 0 modo de proceder de Luria no caso da escrita: em cada nivel distinguido Luria se es- forga por vé-lo como “positive” ou “negativo". No enfoque de Luria, pois, a escrita tem duas fun- (ges: mneménica e comunicativa. Dado que a fungao comunicativa nao estaria ao alcance das oriangas pe- quenas, 86 resta estudar a fungdo mneménica. Po- tém, deve-se observar bem: Luria nao trata de iden- tificar quais fungdes poderia cumpri a escrita do pon to de vista de um sujeito em desenvolvimento. Polo contrario, trata de observar como a crianga assume as fungées que um adullo atribui & escrta. Em outros, termos, como ela chega a utilizar apropriadamente a escrita, em contextos onde também a utlizariam os adultos, para garantir uma recordagao exata de um enunciado linglisticamente codificado. O funcional, pois, esta subordinado a idéia da escrita como objeto instrumental Ferreiro no se coloca as mesmas perguntas. Nao caracteriza a escrita como uma técnica, mas si ‘como um objeto, com um modo particular de existén- ‘cia no contexto sociocultural. Quer saber que tipo de objeto 6 a escrita para uma crianga em processo de desenvolvimento. Considera-a um objeto em si, apta para uma indagagao epistemolégica. Nao pensa que sseja, a priori, um instrumento ou uma mera técnica. Por isso, no atribui apressadamente a escrita as fun- ‘g5es que esta cumpre no adulto. A resposta & pergun- ta: que tipo de objeto 6 a escrita para a crianga? le- vara talvez a descobrir que fungdes Ihe sao atribuidas. Por outro lado, assinalemos que a dicotomia entre fungao mneménica @ fungdo comunicativa é uma ul- ‘ra-simplificagéio do problema. Historicamente, a firma real ou imperial, quer dizer, a marca esorita que ca- racteriza propriedade ou identidade qualificada, 6 mui- to antiga @ nao corresponde de maneira evidente a enum dos termos de tal dicotomia, E dbvio que se 2 Em trabalho mais recente, Maria Alice Setubal S. Siva (1993) também compara o niveis @ as técnicas experimen- tais, 8s quals aludiremos indretamente mais adiante. Con- trariamonte ao trabalho de Fraga Rocco, Setibal onfatiza mais as diferencas que as semelhancas. aproxima mais de uma func&io comunicativa, contudo do se trata da comunicagao no sentido de transmitir uma mensagem, e sim da comunicagao emblematica, ou seja, a marca escrita de atributos de autoridade, Poder, identidade qualificada, que dao forga ao ato co- municativo, 0 qual pode ser transmitido por outro Conjunto de signos, estes sim propriamente comuni- cativos. © Ponto de discrepancia mais importante que ‘gostaria de enfatizar é 0 seguinte: Luria (1929, 1930) esté fortemente influenciado por uma verso — a ver- 840 dominante na época e hd até bem pouco tempo — sobre a evolugao histérica da escrta. (© desenvolvimento da escrita na crianga pros- segue ao longo de um caminho que podemos des- crever como a transformagao de um rabisco ndo- diferenciado para um signo diferenciado. Linhas & rabiscos do substituidos por figuras @ imagens, @ estas dao lugar a signos. Nesta sequéncia de acon- fecimentos est todo 0 caminho do desenvolvimen- to da eserita, tanto na histéria da civilizagéo como no desenvolvimento da crianga.” (p.161) texto dedica uma secao completa & andlise da “ase pictogrdfica do desenvolvimento da escrita’ ‘Além disso, como o objetivo manifesto da experimen- tagéo era “acelerar 0 processo” (p.171) e fazer a ctianga passar dos grafismos diferenciados a “uma at vidade gréfica diferenciada’, Luria descobre que a i twodugao de referentes numéricos nas oragdes pro- ostas para serem recordadas, assim como a mencao de objetos faceis de desenhar, aceleravam a passa- gem & assim chamada “pictografia’. Aqui também ha diferencas sensiveis com Ferreiro (1978), que nao ten- ta acelerar 0 proceso — mal podia nessa época ten- tar acelerar um processo que desconhecia — mas sim tentar inferir, por meio das produgdes infantis, a ma- neira como as criangas concebem a escrita. Poderiamos, além disso, perguntar algo. mas: como se pode acelerar um proceso que nao se co- nhece? Ha duas maneiras de fazé-lo: 1) definindo um nivel ou estigio final que deve ser alcangado o mais rapido possivel © independentemente das interpreta~ Ges infantis do objeto desse aprendizado; 2) definin- do as etapas desse processo em fungao de um mo- dolo externo. De acordo com essa interpretagao, “ace~ Jerar 0 processo” nao consiste em obter © quanto an- tes 0 nivel final, mas aqueles niveis que o modelo ex- tetior define como “superiores” numa seqdéncia evo- lutiva. Cremos que é correto atribuir essa segunda i terpretagao ao pensamento de Luria (a primeira esta mais préxima do condutivismo). Luria observa que certas caracteristicas do contetido das frases que se apresentam para serem recordadas ajudam a passar dos “rabiscos” & assim chamada “pictogratia": referén- cias quantitativas e substantivos facais de desenhar. Isso acelera 0 processo, se — @ apenas — se con- siderar que a passagem de formas graficas néo-ict- nicas as formas graficas icénicas for um passo ne- 74 cessério na aquisigéo da escrita. Luria, € claro; néo nos dé nenhuma evidéncia psicolégica de tal passo necessério. Apéia-se num modelo externo — uma cer- ta visdo da histéria da escrita na humanidade — para afitma-lo sem submeté-lo a0 menor escrutinio. Para deixar-nos, além do mais, na mais absoluta escuridao no que se refere & passagem do pictografico ao al- fabético. No texto de 1990, a passagem a esse uitimo periodo se faz de maneira brusca, por intervengao de um novo agente cultura: “.. este periodo primitivo da capacidade de ler e es- crever da crianga (..) chega ao fim quando 0 pro- fessor dé um Idpis a crianga.” (p.180) Uma diferenga marcante entre Luria (1930) e Fer reiro (1979 postetiores) se situa neste ponto: para Luria 0 ingresso na instituigdo escolar criaria, por si 86, uma ruptura com os conhecimentos prévios; para Ferreiro, 0 ingresso na instituigéo escolar interage com as concepcdes prévias das criangas e néo de- termina automaticamente uma passagem de nivel conceptual. Ferreiro foi capaz de demonstrar isso; Lu- ria sequer tentou indagar de que maneira as concep- Ges prévias interagiam com 0 ensino escolar. Outra diferenga importante entre Luria (1929) © Ferreiro (1979 e seguintes) 6 esta: Luria fala de eta- pas nas quais ha uma substituigéo de- uma técnica Por outra. "Como qualquer outra fungao psicolégica cultural, o desenvolvimento da escrita depende, em conside- ravel extensdo, das técnicas de escrita usadas equivale essenciaimente & substituicao de uma téc- nica por outra.” (p. 180) Isso 6 particularmente importante, porque a id de substituigao parece inteiramente oposta & de cons- trugao. No texto de 1930 Luria explcita essa id “.. uma vez tendo uma crianga aprendido a escrita simbdlica (..) ela perde ou descarta todos os an- teriores, que constituiam formas mais primitivas, e merguiha por inteiro nesta nova técnica cultural.” (p.100) Esse ponto € de importancia decisiva, mas me- rece outros contextos de discusséo. Voltemos a influéncia da histéria da escrita no tra- balho de Luria. Num pardgrafo do texto de 1930, ele reune as duas idéias: a de substituigdo © a de para- lelismo com a evolugao histérica. "0 desenvolvimento das habilidades culturais de contagem e escrita envolve uma série de estégios nos quais uma técnica & continuamente descartada ‘em favor de outra. Cada estégio subseqiente su- planta 0 anterior, 56 apés ter passado pelos esté- gios em que inventa seus prdprios expedientes @ aprendido os sistemas culturais que evoluiram a0 longo de séculos, ela — a crianga — chega ao es- tagio de desenvolvimento caracteristico do homem avangado, civiizado.” (p.101) Ferreiro (1979) também esta muito marcada pelas referéncias @ historia da escrita. Apesar de escrever Cad, Pesq. n.88, fev. 1994 50 anos depois de Luria, ambos compartiham uma “versao oficial da histéria da escrita” que, em grandes linhas, vai da pictografia & fonetizagao; esta titima se inicia por procedimentos de rébus, passa por sistemas silébicos e culmina com o sistema aifabético. Os au- tores de referéncia para Ferreiro (1979) eram Gelb (1952) e Cohen (1958) e, em segundo plano, Jensen (1969) © Février (1959). A seo 4 do capitulo Vill do livro de 1979 (‘Las soluciones histéricas al proble- ma de la escritura’) tenta confrontar ambas as evo- lugoes. E uma segéo que, com leves moditicagdes, sua autora assinaria hoje, isto é, 14 anos depois de ‘té-la publicado. E agora passo a falar em primeira pessoa, Durante a gestagio do livro Los sistemas de es- coritura en ef desarrollo del nino, a literatura pedag gica e psicolégica entdo disponivel sobre o tema re- sultou_sumamente decepcionante. A Gnica literatura intelectualmente estimulante foi a relativa & histéria da escrita. Gelb, em particular, com a importancia que deu as escritas silabicas na reconstrucao da histéria do alfabeto, @ com aspectos tais como a importancia da escrita dos nomes proprios para obrigar A passa- gem para a fonetizagao, ofereceu a oportunidade para cair na tentagao: apesar de estarem expostas a um Unico tipo de escrita (alfabética), as criangas recapi- tulariam alguns momentos-chaves da histéria da es- crita na humanidade. No entanto, é preciso reconhe- cer que de nenhuma maneira tentamos adotar uma tose de “recapitulagao" “Este paralelismo entre a histéria cultural e a psi- cogénese nao deve ser interpretado como uma ten- tativa de reduzir a primeira & segunda." (p.360) “as razées da semelhanga de ambos os processos deve ser buscada nos mecanismos de tomada de consciéncia das propriedades da linguagem’. (p.381) “A semelhanga entre as progressoes histéricas Psicogenéticas deveriam ser buscadas numa andli- ‘se dos obstdculos que devem ser superados — ognitivamente falando — para ter acesso a uma tomada de consciéncia de certas propriedades fun- damentais da linguagem.” (p.362) Nesse momento estévamos fascinadas — Ana Teberosky e eu — com as escritas silébicas como an- tecessoras das alfabéticas. O fato de descobrir que Gelb, em sua reconstrugao da histéria da escrita, con- cedia uma importdncia fundamental as escritas silébi- cas (interpretando as semiticas como silébicas), nao podia deixar de nos causar impacto. No entanto, alguns detalhes da evolugao — tal ‘como Gelb a apresenta — entravam em flagrante con- tradigo com os dados da evolugéo na crianga. Em particular, 0 papel da pictogratia. Na evolugio psicolégica no hd dado algum que ermita supor que a pictografia preceda a escrita fo- nogréfica. Uma coisa & a utiizagéo de desenhos ‘como recordagao — tal como obtém Luria — e outra muito diferente 6 a gerago de sistemas de marcas Luria e 0 desenvolvimento, que guardam uma relagdo nao aleatéria entre si, © Cujo objetivo fundamental 6 representar algumas das propriedades e relagdes da linguagem, convertida em objeto a ser representado. No livro de 1979 diz-se claramente: “A linha do desenvolvimento psicogenético que tra- gamos comega com a separacdo dos sistemas re- resentativos icénicos @ néo-icénicos(..).” (p.360) Em textos posteriores — em particular no capitulo do texto original, em francés, intitulado “L’Ecriture avant la lettre", de 1988° — se enfatiza e se explica or que esta parece ser a primeira distingo a partir da qual hd, sem duvida, uma evolugao do desenho enquanto tal e uma evolugao da escrita, que apenas reconhecem uma origem comum: os grafismos indife- renciados iniciai Em 1979 acreditavamos que a histéria da escrita na humanidade estava ‘4 escrita’, enquanto que a historia da escrita no desenvolvimento da crianga es- tava "sendo escrite’, Atualmente a situagdio mudou otavelmente. A produgdo académica sobre probl mas de histéria da escrita aumentou muito € também se diversificou com a contribuigéo de profissionais das mais variadas origens. Por outro lado, o aumento das pegas disponiveis a partir de escavagies, assim como uma maior precisao nos instrumentos de datagéo das mesmas, obrigam a rever algumas das interpretagdes mais difundidas. Creio que néo é exagerado afirmar que estamos assistindo & apari¢éo de um campo mul- tidisciplinar que ainda nao tem nome nem lugar claro dentro das disciplinas académicas. 0 nico aspecto que vou considerar, porque € re- levante para esta discussao, refere-se & ordem picto- grdtica da escrita. Recentemente enfatizou-se uma distingao que, uma vez enunciada, se mostra elemen- tar: nao confundir a histéria dos Sinais gréficos com a historia dos sistemas de marcas linguisticamente in- terpretados. Os elementos com os quais se constréi um sis- tema notacional podem ter a mais variada origem, jé que 0 homem foi produtor de sinais antes de ser ca~ paz de inventar sistemas de sinais. A aparicao da es- rita nao suprime os sinais pictéricos, porque eles ser- viram e continua servindo a outros fins. O que acon- tece entdo com as histérias repetidas em todos os li- ‘ros de divulgagao que tratam da evolugao da escrita, € que nos apresentam, por exemplo, a evolugéo do desenho da cabeca de boi, sua estiizagao e, final- mente, a letra grega alpha, convertida depois em nos- sa letra A? A resposta ¢ simples: a historia das gra~ fias individuais € uma coisa, a dos sistemas de escrita 6 outra Estéo implicados aqui, evidentemente, dois pro- blemas distintos: um, 0 mais antigo, diz respeito aos sinais pictograficos frente aos ndo-pictograficos: outro, refere-se a relagdo entre a natureza dos sistemas de 3 Traduaide para 0 portugués om 1990. 75 escrita e a origem dos grafemas utiizados. Umas pou- as citagdes sao suficientes para esbogar uma idéia dos termos nos quais se encontra 0 debate atual. Leroi-Gourhan (1964), fazendo referéncia aos si- ais graficos deixados por nossos ancestrais do pa- leolttico, faz uma afirmagéo determinante: “Sil est un point sur lequel nous ayons maintenant toute certitude c'est que le graphisme débute non pas dans la représentation naive du réel mais dans Vabstrait.” (p.253)* — Denise Schmandt-Besserat (1978) diz com re- lagdo escrita suméria: “Hypotheses about the origin of writing generally postulate an evolution from the concrete to the abs- tract: an initial pictographic stage that in the course of time and perhaps because of the carelessness of scribes becomes increasingly schematic. The Uruk tablets contradict this line of thought. Most of the 1800 signs (...) are totally abstract ideographs."® Piotr Michalowski (na imprensa) também com re- lagdo escrita suméria: “Various kinds of non-linguistic communicative mo- des had been in use of them with larger scope, and undoubtedly the inventor, or inventors, of the new [writing] system utilized many of the elements of these other communicative devices. (..) we must be careful not to confuse the history of individual sym- ols with the history of writing systems as such."® AA visio escolar tradicional enfoca as grafias e es- quece os sistemas. A viséo escolar tradicional vai do concreto (no caso, 0 figurativo) ao abstrato (no caso, © nao-figurativo). Se nosso livro de 1979 tinha por ti- tulo Os sistemas de escrita no desenvolvimento da erianga & precisamente porque nos ocupévamos dos sistemas (no plural) e ndo das gratias individuais. No curso de nossa indagagéo descobrimos que certos principios organizadores gerais — tais como a quan- tidade minima e a variedade intema — precedem os principios de interpretagdo alfabética. (Ndo confundir 68 principios organizadores quantitativos com a pos- sibiidade de obter uma marcagao vagamente “numé- rica’, tal como assinala Luria.) O desenvolvimento vai do abstrato ao concreto, jé que o proprio da atividade estruturante do sujeito € a construgéo de esquemas Interpretativos gerais para poder compreender (assi- mmilar) 0s desafios da realidade. Essas so idéias que estdo no nicleo da teoria piagetiana, embora possam surpreender a quem tenha uma leitura superficial des- sa teoria Para conclu: a comparagéo que acabo de fazer tom por objetivo ajudar os leitores — principalmente os brasileiros — a situar corretamente as diferengas; ‘no ter como objetivo aumentar uma polémica que conhego porém que considero pouco produtiva. 6 possivel que se solicte (implcita ou explctamente) aos educadores optar entre Luria (1929-1930) e Fer- reiro (de 1979 até agora). Essa 6 uma atitude pro- fundamente anticientfica, 76 Quando um autor descobre um antecessor téo Préximo @ téo importante como Luria, s6 pode sentir ‘grande admiragéo por esse trabalho pioneiro e abso- lutamente excepcional em sua época. Ao mesmo tem- po, no pode deixar de lamentar profundamente que Luria, em vez de prosseguir nessa linha, a tenha ‘abandonado, a ponto de em trabalhos posteriores so- bre 0 tema (p. ex. 1977) — certamente muito mais centrados na patologia — ndo se encontrar a menor mengdo a esses trabalhos de “juventude’. De fato, & dificil — a0 menos para mim — estabelecer relagéo entre esses trabalhos posteriores de Luria e o que ‘aqui comentamos. Se se aceita que a psicologia ¢ uma ciéncia, os debates cientiticos devem dirimir-se no terreno préprio da ciéneia, caracterizada por confrontagao de evidén- clas empiricas @ de interpretagdes tedricas. O proprio da ciéncia 6 avangar. O reconhecimento de antece- dentes histéricos é uma coisa; retroceder o debate & época dos antecessores é outra. Por exemplo, quan- do Noam Chomsky (1966) busca explicitamente sous antecessores na lingOifstica cartesiana, ninguém supde que tente retroceder o debate nos termos da Gramé- tica de Port-Royal, do século XVIII, Nao & possivel imaginar, supor, pressupor ou plicitamente indicar que a opeéo pedagégica atu (com relagéo evolugao da esorita na crianca) cor- responda a: Luria (1929) ou Ferreiro (um excluindo 0 outro). Em todo caso, o importante é realizar as ex- perimentagées necessérias para atualizar 0 debat completando 0 que Luria deixou apenas esbo¢ado, ‘num nico trabalho de pesquisa. As relagdes entre a prética pedagégica € 0s re- ferentes tedricos so complexas e intrincadas. Nao as reduzamos a uma mera etiqueta. 4 Tradugéo: “Se existe um ponto sobre © qual temas agora, tada cartoza ¢ que o graismo principia nfo na representaglo ingnua do real mas sim no abstrato’. ‘5. Tradugdo: “As hipteses acerca da origem da esorta geral- ‘mente postulam uma evolugso do concrsto em direpo 30 abstrato: um estigio pictogrtico inicial qua, no transcurso do tempo @ talvez devido 20 descuido dos escribas, se faz cada vez mals esquomatico. As tabulotas de Uruk contradizem ‘essa linha de pensamento. A maioria dos 1500 signos (..) ‘so ideogramas totalmente abstratos.” {6 Tradugdo: "Varios tipos de procedimentos comunicativos no- lingdisticos estiveram em uso no Oriente Préximo durante mi lenis, alguns dos quais com alcance local, outros com maior alcance, © sem divida o inventor, ou inventores, do novo sistema (de escrital utizaram vrios dos elementos desses: outros instrumentos de comunicagao. (..) davernos sor cui- ddadosos para néo contundir a histéria dos. simbolos indivi duals com a Fistéria dos sistemas de escritura enquanto tale Cad. Pesq. n.88, fov. 1994 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS COHEM, M. La grande invention de écriture at son évoluton, Paris: Klincksiok, 1958 CHOMSKY, Noam. Cartesian Linguistics. New York & London: Harper & Row, 1966 FERREIRO, Emila, TEBEROSKY, Ana. Los sistemas de oscr- fura on of desarrollo del nino, México: Siglo XXI, 1979. [Trad bras. Psicogénese da lingua escrita. Porto Alegre: Arias Mé- dicas, 1986} FERREIRO, E. L’écture avant la lato, In: SINCLAIR, H. (ed) ‘La production de notations chez le jeune entant. Pars: PUF. [Trad. bras. A produgdo de nolapdes na crlanca. Sao Paulo Cortez, 1990,} FEVRIER, J. Histove de Iécrture, Paris: Payot, 1959. GELB, |. A study of writing. Chicago: University of Chicago Press, 1952. [Trad. esp. Histria da la escrita. Madtid: Alian- za, 1976] JENSEN, H. Sign, symbol and script. New York: Putnam, 1969, LEROLGOURHAN, A. Le geste ef la parole — Technique et lan- ‘gage. Paris: Albin Michel, 1964, MICHALOWSKI, P. Early teracy revisited. in: KELLER-COHEN, . (ed). Literacy, Interasoipinary conversations. Hampton Press. (no prelo) ROCCO, M. T. Fraga. Acesso ao mundo da escrita: os caminhos paralélos de Luria e Ferrel. Cademos de Pesquisa, S40 Paulo, n.75, 1990, SCHMANDT-BESSERAT, D. Tho eattist precursor of writing ‘Scientific American. June, 1978, SILVA, M. Alice Setibal S. . A Lingua escrita numa perspectiva interacionista: embates @ similaridades. In: Id6ias 20 — Cons- Iutvismo om revista, S80 Paulo: FDE, 1993. p.95-104. VYGOTSKY, L. S. Mind and society. Cambridge & London: Har- vvard University Press, 1978. VIGOTSKII, L. S., LURIA, L. Linguagem, desenvolvimento @ ‘aprenalzagem. S80 Pavia: cone/EDUSP, 1988, Luria @ 0 desenvolvimento.

Você também pode gostar