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-_CONDONINIO DQ DIABO. Ato Zatuar CONDOMINIO DO DIABO Alba Zaluar aS , CONDOMINIO DO DIABO Copyrigh © 1994 by Alba Zaluat Resists Barbar GuimartesArényi Sandea Pésaro| Praise elit « apa Ana Curcio Products grfice Ricardo Gort serinica Impee Graphos C1P-Brat, Cetlogasiocna-fonte Sindicat Nacional ds Edivres de Livos. Rl Zaluar, Alba 226¢ ‘Condorinia da diabo / Albs Zalust.— Bo de Janeiro Revan : Ed. UFRJ, 1994 280) ISBN 85.7106-064 9 1. Criminalidade urban. 2. Detingdeoter juve ‘ie. 3. Babren 4 Juventade urbana, Universidade Federal do Rio de Janivo cop - 364.2 94.0508 cu = 343.97 M7915 Universidude Federal do Rio de Jairo acum de Citncas © Culture Editors UFR] Gonsetho Editorial Darcy Footouts de Almeids, Gerd Bosnheim, Gilberto Velho, Gullo Masaran. Joa Mala de Carvalho, Margarida de Souse Never, Silvio Saatiago, Wanderley Guilherme dor Santos ‘Apolo Fundasto Univectitris José Bosificio Editors UFR) Forum de Citnca ¢ Caleura ‘Av. Farteut, 290 1° soda = Rio de Janeiro CEP 22306.240 Tel: 295-1595 «18/19 FAX: (O21) 295.2346 Em co-edigi com: Editors Reran ‘Aveaids Palo de Frontin. 63 ‘CEP 20260-010- Rio de Janeiro - Ry PBX (021) 293-4495. FAX; 273-6873 Sumdrio capteulo 1 CONDOMINIO DO DIABO 7 eapisala 2 [AS CLASSES POPULARES URBANAS EA LOGICA DO “FERRO” E DO FUMO 13, caplrulo 3 © RIO CONTRA O CRIME 36 capleulo 4 (© DIABO EM BELINDIA 42 capitulo 5 DEMOCRACIA TAMBEM SERVE PARA OS POBRES? 49 caplrulo 6 AROTINIZACAO DA MALANDRAGEM 52 caplrulo 7 CRIME E TRABALHO NO COTIDIANO DAS CLASSES POPULARES 58 capieulo 8 POBRE, LOGO CLIENTELISTA 69 capteulo 9 ‘CRIME, JUSTIGA E MORAL: A VERSAO DAS CLASSES POPULARES 72 capteulo 10 APOLICIA E A COMUNIDADE: PARADOXOS DA (IN)CONVIVENCIA 88 capleulo 11 DILEMAS DO NARCOTRAFICO 96 capitulo 12 ‘TELEGUIADOS F CHEFES: JUVENTUDE E CRIME 100 capteule 13 HIPERINFLAGAO E (E) VIOLENCIA 117 capitulo 14 PRISAO, TRABALHO B CIDADANIA: O CENSO PENITENCIARIO 121 capleule 15 CRIME NO RIO DE JANEIRO: UM BALANGO 128 eapirute 16 NEM LIDERES NEM HEROIS: A VERDADE DA HISTORIA ORAL 136 capitulo 17 JUSTICAE OPINIAD PUBLICA 151 capleule 18 AS MARGENS DALEL 156 capitulo 19 GENERO, CIDADANIA E VIOLENCIA 161 eapleulo 20 BRASIL. NATRANSICAO: CIDADAOS NAO VAO AO PARAISO 187 capteulo 21 RELATIVISMO CULTURAL NA CIDADE? 202 capitulo 22 AMOEDAE ALE! 219 eapieute 23 MULHER DE BANDIDO: CRONICA DE UMA CIDADE MENOS MUSICAL 224 - capttule 24 ACRIMINALIZAGAO DE DROGAS E © REENCANTAMENTO DO MAL 235 capleulo 25 A AUTORIDADE, O CHEFE E O BANDIDO: DILEMAS E SAIDAS EDUCACIONAIS 255 BIBLIOGRAFIA 271 1 Condominio do diabo lugar ndo importa, Pode ser qualquer um, conranto que seja pobre ¢ marginal a esta outrora encantadora cidade. Nele fiquei mais de um ano convivendo e conversando com 0s supastos agentes da vio~ Iéncia urbana. Alguns por serem simples moradores do lugar. Pois 0 que é para nés, além de um grande medo, assunco jornal{stico, para les é nédoa contea a qual tém que lutar diariamente, até com eles préptios na feente do espelho que certa imprenss Ihes montou. Mais tum estigma que, na pressa de descobrir 08 culpados alhures, se thes jimpés. Outros porque sealmente traficam, assaltam ¢ fazem uso da arma de fogo. Eu os vi, observei, escutei ¢ deles ouvi contar muitas estérias. Durante todo esse tempo ouvi também explicades, ou seja, centativas de encaixar o que para eles pode vir a ser uma terrivel tragé- dia pessoal numa Iégics qualquer, na ordem das coisas deste mundo. E claro. Todo mundo sabe o fim dos bandidos pobres: morrer antes dos 25 anos. E ninguém quer ver seu fitho, seu iemia, seu parente ou seu vizinho com este destino, embora haja quem acredite que este ca- minho néo é escolha, é sina. Talvez seja 0 modo que encontram pata dizer que as condigdes em que vivern os levam forsosamente a agir as- sim, Porém, para nio colocar aqui o ponto final, vou me deter nas con- digées que assinalam a razio da escotha com os pedagas de entendi- mento que recolhi deles préprios. Pois capacidade de entender nao fal- taa nenhum ser humano, por mais silenciado e esquecido que seja. E, se algumas vezes seu pensamento nasce da ilusio ¢ se amedronta diante de fantasmas, por outras é de grande bom senso, que surpreende ape- nas aqueles que nao tém, como eu, de ouvi-los por oficio ¢ que desco- nhecem a inteligéncia que se esconde sob as marcas do inculto, inteli- Bincia esta a que se nega ceconhecimento € que, portanto, é cheia de duvidas sobre si mesma. Mas que pensa apesar de tudo. Quando Lemos diariameate estampadas nas manchetes dos jornais as conseqiiéncias funestas ¢ trégicas das batidas policiais, nao é 5 repisar 0 ja dito sobre os aspectos sociais do aumento da criminalidade, Existem claros indicios de que 0 desemprego sealmen- z CONDOMINIG BO DIABO te aumentou nos ltimos anos, com o rérmino do nosso suposto mila- gre. Mas este fato s6 toma proporgées alarmantes em paises como este, em que o desemprego nao sé afasta o trabalhador de qualquer tipo de assisténcia social provida pelo Estado, como o coloca na categoria de criminoso ¢ enquanto tal tratado. Este fato, além de criar situagdes em que o trabalhador, desempregado ¢ 2s vezes também 0 empregado, tem que enfrentar a violéncia do aparato policial, apaga perigosamen- tea distingio entre trabalhador e bandido, distingéo essa fundamental na visto social da populacio pobre desta cidade. “Tanto faz ser traba- Ihador ou bandido”, dizem-me , “o tratamento é igual”. Mas o desemprego ndo se faz sentir na mesma intensidade em codas as faixas de idade nem para tadas as categorias de trabalhadores. Ele é particularmente grave para os trabalhadores mais jovens e menos qualificados, isto é, parte substancial da populagéo economicamente ativa. Com 0 rebaixamento do salirio real dos trabalhadores de baixa qualificaco, os pais de familia no s6 tiveram que suplementar sua renda através de um esforso extra de trabalho, biscateando ou fazendo horas extras, como tiveram que contar cada vez mais com a ajuda de sua familia, inchusive dos filhos menores. Isso sem falar no alto percentual de familias chefiadas por mulheres entre esses trabalhado- res, que precisam ainda mais do auxilio de seus filhos para sobreviver. O problema é que essa entrada maciga de criangas e jovens no merca- do de trabalho nao encontrou a oferta necesséria para absorvé-los, nem as esperaveis modificacées na legislagao. Esses dados podem ser con- firmados pelas pesquisas do IBGE; mas o resultado dessas estat(sticas na vida real é, segundo me dizem, que os menores de 14 anos quase nunca sio empregados porque os patrées temem a fiscalizagio do Mi- nistério do Trabalho; que os maiores de 14 anos, apesar de jé poderem ‘ter suas carteiras assinadas, dificilmente 0 sfo porque 0 aprendizado téenico que recebem na FEEM e emt outras escolas profissionalizantes Pouco tem a ver com o know-how necessério para lidar com as mAqui- nas existentes nas firmas, Esta situagio agrava-se especialmente na pro- ximidade do servigo militar, j4 que é proibido despedir quem vai cum- pri-lo, Servir 0 Exército é, aliés, um pesado 6nus para as familias po- bres, pois elas se privam de um ganha-pio certo e tém que ascar com as pequenas despesas pessoais do fitho. O resultado disso & 0 que vemos nas ruas, sinais, feiras e fren- tes de supermercado, onde bandos de criangas e jovens vendem balas € Candaminis da diaba fazem carteto para ajudar a mae. £ nessa convivencia didria ¢ intensa de tantas criangas ¢ jovens, prematuramente independentes e afasta- dos da vigilancia materna, que se formam os bandidos, com suas pro- prias leis, constitufdas no contexto da luta didria pela sobrevivéncia seus inevitdveis conflitos. E é isto que gera forte solidariedade interna 2 gerasio © uma vida social perigosamente infensa a capacidade edu- cadora dos adultos. Pois slo estes jovens que, de usudrios, passam a comerciantes ou empresirios do téxico, 0 que os leva numa escalada de existéncia exclusiva e de adogio de métodos violentos. Para afugenté-los do trabalho, esses jovens néo contam apenas com as dificuldades de conseguir emprego. Forma-se entre eles, 2 partir de suas préprias experiéncias e da observacio da vida de seus pais, uma visio negativa do trabalho, termo que equiparam 3 escravidao. Escra- vidio ¢ trabalhar de “segunda a segunda" por irris6rios salérios duran: te quase todo o tempo em que se esta desperto. Escravidao ¢ também submeter-se a um patrio autoritério que humilha o trabalhador com cordens rlspidas, que nao ouve nunca, que 0 vigia sempre. Sem serem formados por escola ou religito que lhes passe uma ética rigida de ssabatho, esses jovens cedo aprendem os valores da machismo, 0 que exacerba ainda mais o caréter humilhante da submissio, negacio da marca de um homem. Como fazé-los, portanto, admirar ¢ tomar por modelo o pai que se curva a esta ardua rotina, & exploraga0 € a0 au- toritarismo? Seus herdis sio outros. Na falra de um movimento operi- rio forte de onde saiam I{deres trabalhadores com fama, eles se voltam para os eternos valentes da nossa cultura popular que desafiam, passam rasteira e se negam a este mundo do trabalho. Se antes, por {4, 08 valen- tes eram os simpaticos malandros, hoje sio 0s perigosos e armados ban- didos, A navalha foi substitufda pelo “oitéo” ou minimetralhadora, leal corpo a corpa pela acaia traisocica, a lei do mais valente pela lei do mais armado. Isto nfo quer dizer que, na cultura desta populaséo pobre, prevalesa a recusa de qualquer autoridade ou se descanheca o que € consentimento. Ao contritio, eles opdem muito claramente “vencer na moral” a violéncia das armas, A brutalidade, a dominagio crua dos que se recusam a0 uso das palavras porque com élas nao estio certos de manter 0 seu poder. O trdgico € que 0s que, entre eles, procuram agir “na moral” véem-se impotentes para conter essa avalanche de vis lencia e brutalidade que permeia toda a nossa sociedade hoje ¢ ques 9

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