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O ensino de histéria como fator de coes&o nacional: OS programas de 1931 Katia Maria Abud* As relagdes entre a politica educacional e a sociedade que a produziu é uma realidade a ser considerada pelos estudiosos da Educagio. Como produto social, a Educag&o somente pode ser analisada a partir do contexto sécio-politico e cultural que a normatiza, considerando o periodo pesquisado. A historicidade da Educagao enquanto objeto de pesquisa exige a utilizagéo de métodos que levem em conta tal historicidade. Assim, as reformas de ensino nao permitem uma anélise mais aprofundada se forem abordadas simplesmente como atos legais desvinculados de seu momento histérico. Este artigo pretende evidenciar as relagées entre o contexto politico, social e cultural e a Reforma de Ensino de 1931, analisando como documento fundamental os programas de Histéria elaborados pelo Ministério da Educagao ¢ Satide Publica, sob a diregao de Francisco ‘Campos. Mesmo depois da criago da primeira escola publica de nivel médio, no Brasil, (o Colégio D. Pedro II, em 1838), 0 ensino permaneceu des- centralizado, organizado por cadeiras e os exames realizados por disciplinas, cujas bancas eram autorizadas pelo Pedro II. As escolas tinham © papel de cursos preparatérios para os exames e por isso seguiam os seus programas. Algumas tentativas de reformas de ensino (1911, 1925) ndo conseguiram alterar esse quadro. Somente depois de 30, com a tomada de poder por Getiilio Vargas e as transformagées impostas pelo governo Provisério, tornaram-se poss{veis reformulagSes mais profundas no sistema de ensino, que ensejaram o aparecimento de programas e currfculos de carater nacional. A Revolugao de 30 colocou fim ao regime federativo criado pela Constituigaéo de 1891 ¢ o poder politico passou a ser centralizado pelo governo federal. Alegando a necessidade de substituir as antiquadas instituigdes polfticas brasileiras, Getulio Vargas prometia a modernizagao do pais mediante a reformulagéo do seu modelo econémico e jurfdico- politico. * Professora de Prética de Ensino de Histéria da FHDSS-UNESP (campus de Franca). [Rex Bras de His [5 Paalo [By w 2756] wp TIA 163 Nos anos 20 a modemizagfo era tida como um desafio para o pais. As disputas entre as oligarquias regionais eram vistas como uma ameaga & unidade nacional, e conflitos armados, como os dos tenentes, pareciam demonstrar o perigo de rompimento entre os varios “brasis” e a necessidade de preservar suas “forgas sociais, seus valores culturais, tradigdes, heréis, santos, monumentos, ruinas” (IANNI, 1990). Tais preocupagdes fizeram da década de 20 um perfodo fértil de manifestagdes ¢ debates de caréter social e cultural, nas quais a Educagio era um tema freqiiente. Surgiam propostas inovadoras para o sistema educacional que vinha se constituindo num pdlo de interesse de intelectuais € politicos ¢ ocupando espagos significativos nos érgios de opiniéo piblica. A instrugio era entendida como um instrumento importante para a manutengGo do Estado Nacional e da identidade coletiva do povo brasileiro. Depois de 1925 intensificaram-se as discussdes sobre o ensino secundério. Em 1926, 0 jornal O Estado de S. Paulo realizou um inquérito sobre a educagio que alcancou grande repercussio. Em 1929, a ‘Associag&o Brasileira de Educago (ABE) promoveu outro inquérito ¢ a II ¢ Ill Conferéncias Nacionais de Educagéo deram importancia, em seu temfrio, ao ensino secundario. Ele se tornou assunto freqiiente na imprensa, objeto de palestras ¢ conferéncias, ¢ um numero crescente de revistas especializadas publicavam projetos © propostas para a organizagio da escola média, Mais que isso, um grupo de intelectuais de prestigio, entre os quais se encontavam Femando de Azevedo, Cameiro Ledo, Licinio Cardoso, procuravam repensar o papel da educagao ¢ levar o debate & populacao, Pretendiam a expanstio da escola secundéria, para que ela pudesse atender setores da sociedade que se expandiam, como as classes médias urbanas. A escola deveria ser instrumento de preparagfio dos novos segmentos da sociedade ¢ para cumprir tal papel ela precisava se transformar. Eles deixavam muito claras suas pretensdes em relagao ao sistema escolar: a finalidade da escola era a de formar cidadiios ¢ para alcangar esse objetivo era preciso que ela divulgasse para sua clientela “as idéias civilizadas” produzidas “pelas verdadeiras elites” (LEAO, 1927). Na realidade pensava-se na transmissio de um saber “civilizatério”, que formasse “aquela categoria social que fica “entre 0 povo ¢ os dirigentes do pafs”, tanto na politica como na ciéncia. As idéias, por meio deles, filtram-se, descendo continuamente das camadas superiores até os mais humildes: sdo eles que mantém coeso 0 corpo da nagio” (NADAL, 1988, p.235). ‘A reforma do ensino era também parte do projeto politico da elite paulista. Nos primeiros anos da Repiblica desenvolveu-se com forga a idéia de uma “nagSo paulista”. Politicos de Sio Paulo ocupavam altos 164 escaldes do governo federal e o Estado pretendia, a todo o custo, manter a hegemonia na Federac&o, valorizando, entre outros aspectos, suas proprias wadig6es, Entre os instrumentos para a manutenggo do poder, coneebeu a formag3o dos novos quadros politicos nos recém-criados Gindsios do Estado. A implantagao pelo movimento de 30 de um novo regime politico minimizou a influéncia que os Estados mais ricos, como Minas ¢ Sao Paulo, exerciam € obstaculizou a crescente hegemonia de tais Estados na Federagdo. Assim, quando em 1931 foi realizada a Reforma do Ensino que tomou o nome do Ministro da Educagéo, Francisco Campos, o que formava scu nucleo era a manutengao e fortalecimento da unidade da Nagao Brasileira. Com a Reforma Francisco Campos (Decreto 19.890/31), 0 ensino secundério passou a ter dois cursos seriados: o fundamental ¢ o complementar. O curso fundamental tinha por objetive dar a formagao geral ao estudante, com dutagéo de cinco anos. O curso suplementar era obrigat6rio para os candidatos aos cursos superiores de Ciéncias Juridicas, Medicina, Farmacia e Odontologia, Engenharia ¢ Arquitetura, como também para a Faculdade de Ciéncias e Letras, que ainda nao existia. Era um curso nitidamente pré-universitirio. O decreto 19.890/31 impunha a seriagao obrigat6ria para todas as escolas do pais, em todos os estabelecimentos de ensino secundério, ¢ incumbia comissées organizadas pelo Ministério da Educacio de elaborar 0s programas de ensino das disciplinas, que também seriam unificados para © Brasil inteiro. O decreto foi publicado em 1* de abril de 1931 ¢ previa sua imediata implantagdo. Apesar disso, os programas somente ficaram Prontos em junho daquele ano, Vinham acompanhados de “Instrugdes Metodolégicas”, que indicavam os objetivos das disciplinas e as técnicas de trabalho que o professor deveria utilizar. Sugeriam também que o conteddo (que no era muito diferente dos programas anteriores, do Colégio Pedro II e dos gindsios estaduais) fosse tratado de uma forma que indicasse a tendéncia “modernizadora” dos intelectuais brasileiros, que sonhavam com uma democracia & americana. A Historia era tida como a disciplina que, por exceléncia, formava 0s estudantes para 0 exercicio da cidadania e seus programas incorporaram essa concepcao. Concepgio que jé estava presente nos programas do Pedro II, quer nos de Histéria Universal, copiados dos franceses, quer nos de Hist6ria do Brasil, derivados do programa de Jodo Ribeiro, vencedor do concurso do Instituto Histérico ¢ Geogréfico Brasileiro. As “InstrugSes Metodolégicas” que acompanhavam o programa de 1931 explicitavam os objetivos do ensino de Hist6ria, indicavam 165 técnicas para o professor desenvolver o programa ¢ aconselhavam quais aspectos da disciplina deveriam ser enfatizados. Os objetivos esclareciam com nitidez 0 que se pretendia da Histéria como componente curricular: “a) a formago humana do aluno, dando-lhe a conhecer a obra coletiva dos homens no decurso do tempo ¢ dos dife- rentes lugares; b) a sua (do aluno) educagio politica, contribuindo para que © adolescente se familiarize com os problemas particulares impostos ao Brasil pelo seu desenvolvimento e adquira ainda, perfeita consciéncia dos deveres que the incumbem para a comunidade” (HOLLANDA, 1957, p.17-18). Os objetivos transcritos acima se completam com a explicagao que Ihes € acrescentada: “Conguanto pertenga a todas as disciplinas do curso a formagao da consciéncia social do aluno, é nos estudos de Histéria que mais eficazmente se realiza a educagfo politica, baseada na clara compreensio das necessidades da _ordem coletiva e da estrutura das atuais instituigdes politicas e administrativas” (HOLLANDA, 1957. p.18). Mais ainda, a Hist6ria tinha a responsabilidade de permitir que 0 adolescente adquirisse “atitude critica, como adotar uma norma de ago no que diz respeito quer aos problemas peculiares ao Brasil, quer as questées internacionais” (HOLLANDA, 1957, p.18). © fato que primeiramente salta & vista € a concepgao de Histéria, como conhecimento produzido e como disciplina escolar. A Histéria é concebida como um produto acabado, positivo, que tem na escola uma fungdo pragmatica ¢ utilitéria, na medida que ela serve & educacao politica © A familiarizagio com os problemas que o desenvolvimento impée ao Brasil. Ao atribuir esse cardter utilitério ao ensino de Hist6ria, o legislador deu a disciplina 0 ponto de ligagfo com o corpo ideolégico do movimento getulista, cujo discurso ia na diregio da implantagio de reformas para superar os arcafsmos da sociedade brasileira e para implementar a modernizagio do pais, introduzindo-o, finalmente, no século XX, ao promover seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, porém, reconhecia que havia problemas a serem solucionados para se alcangar tal 166

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